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Doutrina A Crise do Inquérito Policial: Breve Análise dos Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal AURY CELSO L. LOPES JR. Doutor em Direito Processual pela Universidad Complutense de Madrid e Professor de Direito Processual Penal da Fundação Universidade Federal do Rio Grande. I Introdução; II Análise dos sistemas de investigação preliminar; A) Considerações prévias; a) Problema terminológico; b) Caracteres determinantes: instrumentalidade e autonomia; c) Fundamento da existência da investigação preliminar; B) Órgão encarregado: investigação policial, juiz instrutor ou promotor investigador; a) Investigação preliminar policial; b) Instrução preliminar judicial juiz instrutor; c) Investigação preliminar a cargo do MP: "promotor investigador"; C) Objeto e grau de cognição da investigação preliminar; D) Forma dos atos da investigação preliminar; III Contornos de um sistema "ideal" de investigação preliminar para o processo penal brasileiro; A) Investigação preliminar a cargo do MP e a figura do juiz de garantias; B) Determinar a situação do sujeito passivo; C) A necessidade de uma instrução efetivamente sumária e a pena de inutilizzabilità; D) Forma dos atos; IV Conclusões. I INTRODUÇÃO A investigação preliminar é uma peça fundamental para o processo penal. No Brasil, provavelmente por culpa das deficiências do sistema adotado (o famigerado inquérito policial), tem sido relegada a um segundo plano. Inobstante os problemas que possa ter, a fase préprocessual (inquérito, sumário, diligências prévias, investigação, etc.) é absolutamente imprescindível, pois um processo penal sem a investigação preliminar é um processo irracional, uma figura inconcebível segundo a razão e os postulados da instrumentalidade garantista. 1 Não se deve julgar de imediato, principalmente em um modelo como o nosso, que não contempla uma "fase intermediária" contraditória. Em primeiro lugar, devese preparar, investigar e reunir elementos que justifiquem o processo ou o nãoprocesso. É um grave equívoco que primeiro se acuse, para depois investigar e ao final julgar. O processo penal encerra um conjunto de "penas processuais" que fazem com que o ponto nevrálgico seja saber se deve ou não acusar.

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Doutrina

A Crise do Inquérito Policial: Breve Análise dos Sistemas de InvestigaçãoPreliminar no Processo Penal

AURY CELSO L. LOPES JR.Doutor em Direito Processual pela Universidad Complutense de Madrid e

Professor de Direito Processual Penal da Fundação Universidade Federal do Rio Grande.

I Introdução;II Análise dos sistemas de investigação preliminar;A)Considerações prévias;a) Problema terminológico;b) Caracteres determinantes:instrumentalidade e autonomia;c) Fundamento da existência da investigaçãopreliminar;B) Órgão encarregado: investigação policial, juiz instrutor ou promotorinvestigador;a) Investigação preliminar policial;b) Instrução preliminar judicial juiz instrutor;c) Investigação preliminar a cargo do MP: "promotor investigador";C)Objeto e grau de cognição da investigação preliminar;D) Forma dos atos dainvestigação preliminar;III Contornos de um sistema "ideal" de investigaçãopreliminar para o processo penal brasileiro;A) Investigação preliminar a cargo doMP e a figura do juiz de garantias;B) Determinar a situação do sujeito passivo;C) Anecessidade de uma instrução efetivamente sumária e a pena de inutilizzabilità;D)Forma dos atos;IV Conclusões.

I INTRODUÇÃO

A investigação preliminar é uma peça fundamental para o processopenal. No Brasil, provavelmente por culpa das deficiências do sistema adotado(o famigerado inquérito policial), tem sido relegada a um segundo plano.Inobstante os problemas que possa ter, a fase préprocessual (inquérito,sumário, diligências prévias, investigação, etc.) é absolutamenteimprescindível, pois um processo penal sem a investigação preliminar é umprocesso irracional, uma figura inconcebível segundo a razão e os postuladosda instrumentalidade garantista. 1 Não se deve julgar de imediato,principalmente em um modelo como o nosso, que não contempla uma "faseintermediária" contraditória. Em primeiro lugar, devese preparar, investigar ereunir elementos que justifiquem o processo ou o nãoprocesso. É um graveequívoco que primeiro se acuse, para depois investigar e ao final julgar. Oprocesso penal encerra um conjunto de "penas processuais" que fazem comque o ponto nevrálgico seja saber se deve ou não acusar.

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Atualmente existe um consenso: o IP está em crise. Os juízes apontampara a demora e a pouca confiabilidade do material produzido pela polícia, quenão serve como elemento de prova na fase processual. Os promotoresreclamam da falta de coordenação entre a investigação e as necessidades dequem, em juízo, vai acusar. O inquérito demora excessivamente e nos casosmais complexos, é incompleto, necessitando novas diligências, com evidenteprejuízo à celeridade e à eficácia da persecução. Por outro lado, os advogadosinsurgemse, com muita propriedade, da forma inquisitiva como a políciacomanda as investigações, negando um mínimo de contraditório e direito dedefesa, ainda que assegurados no art. 5º, LV da CF, mas desconhecidos emmuitas delegacias brasileiras. No meio policial, ainda domina o equivocadoentendimento de que a CF é que deve ser interpretada restritivamente, paraadaptarse ao modelo previsto no CPP (de 1941), e não ao contrário, com oCPP adaptandose à nova ordem constitucional.

Em torno ao tema, proliferam trabalhos jurídicos. Inobstante a qualidadede muitos desses artigos, todos pecam em um mesmo aspecto: forampontuais, limitados a analisar apenas o sujeito, ou seja, se o MP deve ou nãoser a autoridade encarregada do IP. Por questão de simetria, 2 o problemajurídicoprocessual é mais bem analisado quando decomposto em três partes.No processo, o trinômio sujeito, objeto e atos permite estudar o fenômeno emtoda sua dimensão. Por isso, entendemos que carece a doutrina atual de umenfoque que observe o problema na sua totalidade e que analise a instruçãode forma sistemática, não só a partir do sujeito, mas também e principalmentesob o ponto de vista do objeto e dos atos.

Pretendendo contribuir para o preenchimento dessa lacuna, oferecemoso presente trabalho, ainda que de forma resumida por questões óbvias. Aexposição começará analisando os sistemas de instrução preliminar no planoteóricoabstrato para, a partir dessas breves considerações, chamar a atençãopara determinados aspectos e sugerir um modelo ideal para o processo penalbrasileiro.

II ANÁLISE DOS SISTEMAS DE INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

A) Considerações prévias

a) Problema terminológico

Para definir essa atividade prévia ao processo, com uma claraconotação instrumental, os legisladores adotam diversos nomes jurídicos.Assim, denominase IP no Brasil; sumario, diligencias previas ou instruccióncomplementaria em Espanha, indagine preliminare na Itália; inquéritopreliminar em Portugal; vorverfahrem e ermittlungsverfahren na Alemanha;l'enquete preliminaire e l'instruction na França; procedimiento preparatorio noCPP Modelo para IberoAmérica, apenas para citar alguns exemplos.

Ao pretender fazer uma análise sistemática, impõese, por questão demétodo e rigor científico, a adoção de um termo que seja suficientementeamplo para abranger a diversidade de sistemas existentes. A expressão que

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nos parece mais adequada é a de instrução preliminar. O primeiro vocábulo instrução alude ao fundamento e à natureza da atividade desenvolvida. Fazreferência ao conjunto de conhecimentos adquiridos no sentido jurídico deatividade de cognição e reflete a existência de uma concatenação de atoslogicamente organizados, um procedimento. Para uma análise de sistemasabstratos é melhor utilizar o termo instrução do que investigação, não só pelamaior abrangência do primeiro (pois pode referirse tanto a uma atividadejudicial juiz instrutor como também a uma sumária investigação policial),mas também, porque seria uma incoerência lógica falar em investigaçãopreliminar quando não existe uma investigação definitiva.

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O termo de instruir vem do latim instruere, que significa ensinar,informar. Por isso, ao vocábulo instrução devese acrescentar o preliminar,para distinguir da instrução realizada também na fase processual instruçãodefinitiva e apontar para o caráter prévio com que é levada a cabo. Preliminarvem do latim prefixo pre (antes) e liminaris (umbral da porta) expressandoclaramente que essa instrução vem antes da porta, antes do processo penal.

Sem embargo, no Brasil é tradicional o emprego de investigaçãocriminal. A doutrina brasileira prefere utilizar investigação, reservando instruçãopara a fase processual. A nosso juízo, o termo instrução pode ser utilizadodesde que acompanhado do adjetivo preliminar, evitando assim qualquerconfusão com a instrução definitiva realizada na fase processual. Contudo,vencidos pela tradição brasileira, tivemos que adotar a designação deinvestigação preliminar. Por tudo isso, em definitivo, utilizaremosindistintamente as expressões investigação/instrução preliminar, atendendo anatureza do inquérito policial e a terminologia adotada no Brasil.

Chamaremos de investigação/instrução preliminar "o conjunto deatividades desenvolvidas concatenadamente por órgãos do Estado, a partir deuma notíciacrime, com caráter prévio e de natureza preparatória com relaçãoao processo penal, e que pretende averiguar a autoria e as circunstâncias deum fato aparentemente delituoso, com o fim de justificar o processo ou o nãoprocesso."

b) Caracteres determinantes: instrumentalidade e autonomia

A autonomia vem dada pela natureza dos atos levados a cabo nainstrução preliminar, bem distintos daqueles praticados no processo penal,principalmente no que se refere a natureza da intervenção dos sujeitos (nãoexistem partes), ao objeto (notíciacrime e não a pretensão acusatória) e àforma dos atos (predomínio da escritura e do segredo). Em definitivo, aautonomia está no fato de que o procedimento préprocessual pode nãooriginar um processo penal (casos de arquivamento prévio ao exercício dapretensão acusatória), e naqueles em que o processo penal pode nascer e sedesenvolver sem a prévia instrução (sistemas de instrução preliminarfacultativa, como no modelo brasileiro).

Ao seu lado, a instrumentalidade fundamenta porque a instrução existe.O processo penal é um meio para chegar à satisfação da pretensão jurídicaacusatória, que permitirá ao Estado aplicar a pena e tornar efetivo o poder depunir. A instrução preliminar não tem como fundamento a pena e tampouco asatisfação de uma pretensão jurídica. Não faz em sentido próprio justiça,senão que tem como objetivo imediato garantir a eficácia do funcionamento dajustiça.

Por isso, tratase de uma instrumentalidade qualificada, pois a instruçãopreliminar está a serviço do instrumentoprocesso. Nesse sentido, podeseperfeitamente aplicar a magistral doutrina de CALAMANDREI 3 de queestamos ante uma instrumentalidade eventual e qualificada, por assim dizer,elevada ao quadrado. É eventual porque predomina nos sistemas modernos o

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caráter facultativo da instrução. É de segundo grau porque não é um fim em simesma, mas um instrumento a serviço do instrumentoprocesso.

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Considerando que a instrução preliminar serve lato sensu aoprocesso, entendemos que seu objetivo estará cumprido tanto quando seproduzir a acusação, como também quando não se produzir (non procedere).

c) Fundamento da existência da investigação preliminar

O fundamento da existência do processo penal é a instrumentalidadegarantista e desse marco a instrução preliminar não se pode afastar.CARNELUTTI 4 defende que a "...encuesta preliminar no se hace para lacomprobación del delito sino solamente para excluir una acusaciónaventurada". Explica o autor que para evitar equívocos a função doprocedimento preliminar não deve ser entendida no sentido de uma preparaçãoao procedimento definitivo, mas ao contrário, no sentido de um obstáculo asuperar antes de poder abrir o processo penal.

Também colocando em relevo a finalidade de proteção, LEONE 5 afirmaque a instrução preliminar tem duas finalidades:

assegurar a máxima genuinidade das provas;

evitar que o imputado inocente seja submetido ao processo, que comsua publicidade (ainda que se conclua favoravelmente a ele) constitui umacausa de grave descrédito e humilhação.

Preocupado com o caráter utilitarista, MANZINI 6 afirma que a instruçãopreliminar deve recolher e selecionar o material que deverá servir para oprocesso, eliminando tudo que resulte "embarazoso, superfluo o inatendible".Basicamente, a instrução preliminar deve evitar os debates inúteis e prepararum material selecionado para os debates necessários.

Partindo dessas diferentes doutrinas e considerando ainstrumentalidade garantista, entendemos que das funções de averiguar ecomprovar a notíciacrime, justificar o processo ou o nãoprocesso eproporcionar uma resposta estatal imediata ao delito cometido, podese extrairas três razões que fundamentam a instrução preliminar:

a) Buscar o fato oculto: esclarecendo em grau de probabilidade a autoriae a materialidade.

b) Salvaguardar a sociedade: ao assegurar a paz e a tranqüilidade socialpela certeza de que todas as condutas possivelmente delitivas serão objeto deinvestigação. Essa garantia de que não existirá impunidade manifestasetambém através da imediata atividade persecutória estatal.

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c) Evitar acusações infundadas: é a função de filtro processual, evitandoque acusações sem um mínimo de verossimilhança prosperem. Além de evitarpara o Estado um custo desnecessário, é especialmente importante para osujeito passivo, pois impede que se produza toda gama de penas processuais(como a estigmatização social, o stato di prolungata ansia, etc.).

B) Órgão encarregado: investigação policial, juiz instrutor oupromotor investigador

A instrução preliminar está nas mãos do Estado, que poderá realizálaatravés da Polícia Judiciária, de um Juiz Instrutor ou do MP (promotorinvestigador). Qualquer dos três órgãos encarregados apresentam vantagens einconvenientes, que devem ser sopesados segundo as variáveis próprias decada Estado, isto é, segundo os aspectos estruturais e de política interna deum país. A construção de um modelo ideal, necessariamente, deve partir doreconhecimento das vantagens e inconvenientes de cada um dos sistemas.

a) Investigação preliminar policial

É o modelo adotado pelo direito brasileiro, que atribui à polícia a tarefade investigar e averiguar os fatos constantes na notíciacrime. Essa atribuiçãoé normativa 7 e a autoridade policial atua como verdadeiro titular da instruçãopreliminar. No modelo agora analisado, a polícia não é um mero auxiliar, senãoo titular, com autonomia para decidir sobre as formas e os meios empregadosna investigação e, inclusive, não se pode afirmar que exista uma subordinaçãofuncional em relação aos juízes e promotores.

É um sistema arcaico e totalmente superado, cuja ineficiência é patente.Excepcionalmente, em países como Inglaterra, atendendo às especiaiscaracterísticas sociais, políticas e de estrutura judicial, esse sistema pode serconsiderado como satisfatório. Obviamente não é o caso do Brasil. São"vantagens" da instrução policial:

a) A abrangente presença e atuação policial, que lhe permite atuar emqualquer rincão do país, dos grandes centros aos povoados mais isolados. Talcaráter confere à polícia, principalmente em países de grandes dimensõesterritoriais, uma nota de eficácia da perseguição, pois a polícia está em todos oslugares e sua atividade é mais ampla e penetrante que a dos juízes de instruçãoou promotores. Esse foi o principal argumento dos legisladores brasileiros de1941 Exposição de Motivos do CPP para justificar a manutenção do IP.Segundo eles, a realidade brasileira da época e as grandes dimensõesterritoriais impossibilitariam que o juiz de instrução pudesse atuar de formarápida e eficaz nos mais remotos povoados, a grandes distâncias dos centrosurbanos, que exigiam "vários dias de viagem".

b) A polícia está mais próxima ao povo, está em todos os lugares, e porisso dispõe de meios mais rápidos e eficazes para conduzir a investigação.

c) Partindo de um enfoque puramente econômico, o sistema de instruçãopreliminar policial é muito mais barato para o Estado. Com o salário de um juizou promotor, o Estado pode manter quase uma equipe policial inteira.

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d) Por fim, para o governo, a instrução policial é mais vantajosa, porque oPoder Executivo dispõe totalmente do poder de mando e desmando, sem que seprecise explicar o alcance negativo desse fato para a sociedade.

Como "argumentos contrários", entre muitos outros, apontamos:

a) A polícia é o símbolo mais visível do sistema formal de controle dacriminalidade, e, em regra, representa a firstline enforcer8 da norma penal. Porisso, dispõe de uma "discricionariedade de fato" para selecionar as condutas aserem perseguidas. Esse espaço de atuação está muitas vezes na zona cinza,no sutil limite entre o lícito e o ilícito. Em definitivo, não se deve atribuir à políciaainda mais poderes (como a titularidade da instrução), mas sim exercer ummaior controle por parte dos juízes, tribunais e membros do MP. A polícia deveser um órgão auxiliar e não o titular da instrução preliminar, pois quanto maior éo controle real dos Tribunais e do MP sobre a atividade policial, menor é essadiscricionariedade, e o inverso também é verdadeiro.

b) A eficácia da atuação policial está associada a grupos diferenciais, istoé, mostrase mais ativa quando atua contra determinados escalões da sociedade(obviamente os inferiores) e distribui impunidade em relação à classe maiselevada. Também a subcultura policial possui seus próprios modelospreconcebidos: estereótipo de criminosos potenciais e prováveis; vítimas commaior ou menor verossimilitude; delitos que "podem" ou não ser esclarecidos,etc. O tratamento do imputado é diferenciado, e conforme ele se encaixe ou nãono perfil prefixado, o tratamento policial será mais brando e negligente ou maisrigoroso. Essa última situação é constantemente noticiada, em que a polícia,frente ao "perfil de autor ideal" daquela modalidade de delito, atua com excessivorigor e inclusive age ilicitamente, para alcançar todos os meios de incriminação(muitas vezes inexistentes). Assim são cometidas as maiores barbáries,refletindose nas elevadas cifras da injustiça da atuação policial.

c) A polícia está muito mais suscetível de contaminação política(especialmente os mandos e desmandos de quem ocupa o governo) e de sofrera pressão dos meios de comunicação. Isso leva a dois graves inconvenientes: apossibilidade de ser usada como instrumento de perseguição política e as gravesinjustiças que comete no afã de resolver rapidamente os casos com maiorrepercussão nos meios de comunicação.

d) O baixo nível cultural e econômico de seus agentes faz com que apolícia seja um órgão facilmente pressionável pela imprensa, por políticos epelas camadas mais elevadas da sociedade. Também é responsável peloembrutecimento da polícia e o completo desprezo dos direitos fundamentais dosuspeito, que de antemão já é considerado como culpado pela subculturapolicial. Por fim, a credibilidade de sua atuação é constantemente colocada emdúvida pelas denúncias de corrupção e de abuso de autoridade.

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A discricionariedade de fato da polícia é uma realidade que violacompletamente qualquer ideal de igualdade jurídica. Como apontamFIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, 9 ela possui algumas variáveis:

a) Gravidade do delito a discricionariedade da polícia varia conforme agravidade do delito, de modo que a eficácia aumenta nos delitos graves. Mas opróprio conceito de gravidade varia conforme o grau cultural e as circunstânciassociais do agente policial. Por isso, a escala de gravidade do policial de rua édiferente da realizada pelo juiz ou promotor. Também existe uma tendência devalorar mais os delitos de impacto social imediato em detrimento dos delitos semvítima concreta ou afastados da sua realidade, como podem ser os delitoseconômicos (whitecollar).

b) A atitude do denunciante10 a polícia evita de forma sistemática aperseguição de delitos contra a vontade expressa da vítima (ainda que públicose incondicionados) solucionando de forma unilateral entre as partes materiais(principalmente em delitos contra o patrimônio ou de pequena gravidade).

c) Distância social da polícia pode ocorrer um distanciamento entre arealidade social da polícia e a subcultura onde se produz o delito. Dessa forma,quanto maior é o nível profissional e burocrático da polícia, maior será adificuldade de averiguar os delitos cometidos nas favelas. No sentido inverso, osagentes de uma delegacia no meio de um bairro pobre tendem a absorver oscritérios e as tendências subculturais do meio. Nos dois casos é patente oprejuízo do princípio da legalidade.

d) Atitude do suspeito o ponto nevrálgico da atuação policial não é arazão, mas sim o poder. Por isso, a polícia tende a ser mais compreensiva emenos rigorosa com os suspeitos que exibem humildade, postura servil erespeito à "autoridade". No sentido inverso, o tratamento será duro para os queadotem uma atitude contrária e, principalmente, apresentem uma posturadesafiante, independente de sua culpabilidade ou inocência. O fato de pretenderexercer um determinado direito como o de defesa muitas vezes é interpretadocomo um desafio ao poder e à autoridade, ocasionando graves prejuízos para osuspeito.

e) Relação com os Juízes, Tribunais e o MP entre a polícia e osmembros da Magistratura e do MP existe um contraste substancial no que serefere à situação econômica, cultural e, principalmente, concepção do Direito eda própria sociedade. Os membros da polícia em geral pertencem e/ou sãoprovenientes dos estratos mais baixos da sociedade e revelam um grande apegoao positivismo e à rigidez da norma (que lhes convém), identificandosefacilmente com movimentos como o law and order e o chamado EstadoPolicial(em contraste com o Estado de Direito). Como conseqüência, tendem a sermenos respeitosos com os direitos fundamentais do imputado e a censurar apostura dos Tribunais como excessivamente benevolente com os que elesconsideram "delinqüentes". A presunção de inocência é uma fantasia retórica,vista como uma demagógica criação política e, por isso, é totalmentemenosprezada pelos policiais. Os juízes e promotores são vistos comoburocratas, que não compreendem a "justiça de rua" e acabam por desmoralizarem juízo o trabalho policial. Isso, além de criar um descompasso entreautoridades que deveriam caminhar num mesmo sentido, pode acabar gerandoanimosidades e graves prejuízos para o esclarecimento do fato. Em definitivo,essa falta de entrosamento só pode gerar uma coisa: elevar os índices decriminal case mortality e as cifras da injustiça.

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f) Interiorização das normas legais a polícia assimila as normas deforma completamente diferente dos juízes e promotores e isso influi no grau e naforma do intervencionismo policial. A grande maioria das normas constitucionaisde proteção ou garantia do sujeito passivo são interpretadas no meio policial deforma restritiva, numa atitude de resistência aos avanços democráticos da CF.Interpretar as normas constitucionais de forma a adaptálas ao CPP, restringindocom isso a esfera de proteção, e não ao contrário como deve ser, é umarealidade constante nas delegacias de todo país. Em nome do poder,habitualmente a polícia nega efetividade às garantias constitucionais. Ademais,nas comunidades afastadas dos centros de produção legislativa, a polícia tendea adaptar a norma ao perfil da pequena comunidade, ainda que não seja essa amelhor interpretação ou aplicação.

g) Poder relativo do infrator não existem dúvidas de que o statuseconômico e social do suspeito influi definitivamente na atividade policial, atéporque a polícia é muito mais suscetível de pressões políticas e econômicas.Existe uma "distribuição diferenciada da imunidade" e também um diferente graude respeito pela imagem, privacidade, integridade e direitos fundamentais doimputado. A polícia normalmente desenvolve suas atividades junto a umadeterminada classe da população (por suposto a mais baixa) e isso faz com queexistam os "clientes preferenciais" sobre os quais ela exerce seu poder e fazvaler sua autoridade com máxima severidade. Em sentido inverso, frente a umindivíduo de uma classe sociocultural elevada, a atuação policial poderá ir paraum dos dois perigosos extremos: a conivência ou o arbítrio. No último caso,frente a uma posição de superioridade (social e econômica), liberdade deatuação e falta de servilismo, o policial pode submeter o indivíduo a toda classede cerimônia degradante, excessivo rigor e arbítrio.

Toda essa gama de problemas que possui a instrução policial leva aonecessário descrédito probatório do material recolhido e à necessidade decompleta repetição em juízo. Pior ainda, não cumpre com sua função principal:aclarar em grau de probabilidade a notíciacrime para fundamentar o processoou o nãoprocesso. Como relação ao nosso inquérito policial, podese afirmar,ademais de todas as críticas anteriormente feitas, que:

Não serve para o MP, pois ao ser levado a cabo por uma autoridadediversa daquela que irá exercer a ação penal, não atende a suasnecessidades. Além disso, é patente o descompasso na relação promotorpolicial.

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Não serve para a defesa, pois a polícia nega qualquer possibilidade deo sujeito passivo participar da investigação e solicitar diligências de descargo.Também, em regra geral, a autoridade policial nega arbitrariamente ocontraditório e o direito de defesa (ainda que em grau mínimo e previsto naConstituição).

Não serve para o juiz, porque a própria forma de atuar da polícia nãopermite dar maior credibilidade ao material recolhido.

Por isso, entendemos que existe uma crise da instrução policial, e maisconcretamente, do nosso IP, exigindo uma imediata revisão de sua estrutura etitularidade. Para isso, contribuirá a análise dos modelos de instruçãopreliminar a cargo do juiz e do promotor, como se verá a continuação.

b) Instrução preliminar judicial juiz instrutor

O juiz instrutor é o principal protagonista nesse modelo de instruçãopreliminar e detém todos os poderes necessários para levar a cabo toda ainvestigação que buscará aportar os elementos necessários para o processoou o nãoprocesso. Ao contrário do que pensam alguns defensores do modelo,nesse sistema a prova não é apenas produzida na presença do juiz instrutor,senão que é colhida e produzida por ele mesmo. O juiz de instrução obra comoum verdadeiro investigador, atuando de ofício e sem estar submetido ouvinculado a petições do MP ou da defesa, que são meros colaboradores.Caberá a ele decidir sobre a utilidade das diligências solicitadas para os fins dainvestigação, denegando as que, a seu juízo, forem desnecessárias. Para levara cabo essa atividade de investigação, é imprescindível que à sua disposiçãoesteja a polícia judiciária, totalmente dependente no aspecto funcional.

Cumpre destacar que nos delitos públicos, o juiz de instrução poderáatuar de ofício inclusive para adotar medidas cautelares pessoais ou reais ainda que contra a vontade do MP. Dessa forma, o instrutor poderá investigarmesmo que o titular da futura ação penal entenda que não existem motivosrazoáveis para isso.

Em síntese, o juiz de instrução é o titular da instrução preliminar e cabea ele receber direta ou indiretamente a notíciacrime, buscar as fontes deinformação e investigar os fatos apontados. Dirigirá de perto a atividade policiale atuará pessoalmente, indo ao local do delito, determinando as períciasnecessárias, interrogando os suspeitos, ouvindo a vítima e testemunhas, etc.

Antes de apontar as vantagens e inconvenientes desse sistema, cumpredestacar o grave problema que representa essa figura do juizinvestigador paraa imparcialidade. Atualmente, na maior parte dos países em que é adotadoesse sistema existe uma presunção absoluta de parcialidade do instrutor, demodo que "o juiz que instrui jamais poderá julgar" a causa. Os diversosprejulgamentos que ele efetua no curso da instrução levam à prevenção comocausa de exclusão de sua competência para julgar o futuro processo.

Principais "vantagens" do sistema judicial de instrução preliminar:

a) A imparcialidade e independência do juiz instrutor é uma garantia deque a instrução preliminar não servirá por exemplo como instrumento de

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perseguição política por parte do Poder Executivo.

b) O fato de ser a investigação conduzida por um órgão suprapartes.

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c) Maior efetividade da investigação e qualidade (credibilidade) domaterial recolhido.

d) O produto final poderá servir tanto para a acusação como também àdefesa, pois advém de um órgão imparcial e preocupado em aclarar o fato, tantobuscando as provas de cargo como também as de descargo.

e) Garantia de que o juiz que instrui não julga e a observância doprincípio de nullum iudicium sine accusatione.

f) Na investigação é necessário adotar medidas que limitam direitosfundamentais (cautelares, busca e apreensão, etc.) e que por essa razãonecessitam que sejam adotadas por um órgão com poder jurisdicional. Logo,nada melhor que seja o próprio titular da instrução dotado desse poder.

Alguns dos graves "inconvenientes" que apresenta o juiz de instrução:

a) É um modelo superado e intimamente relacionado à figura histórica dojuiz inquisidor, pois sua estrutura outorga a uma mesma pessoa as tarefas de (exofficio) investigar, proceder à imputação formal (o que representa uma acusaçãolato sensu) e inclusive defender. Isso levou a uma crisis de la instrucciónpreparatoria y del juez instructor, 11 pois esse modelo é apontado como o maisgrave impedimento à plena consolidação do sistema acusatório.

b) O grave inconveniente que representa o fato de uma mesma pessoadecidir sobre a necessidade de um ato de investigação e valorar a sualegalidade. 12 Nesse sentido, a Exposição de Motivos do Código ProcessualModelo para IberoAmérica aponta que "não é suscetível de ser pensado queuma mesma pessoa se transforme em um investigador eficiente e, ao mesmotempo, em um guardião zeloso da segurança individual; o bom inquisidor mata obom juiz ou, ao contrário, o bom juiz desterra o inquisidor".

c) Transforma o processo penal (lato sensu) em uma luta desigual entreo inquirido, o juizinquisidor, o promotor e a polícia judiciária. Essa patologiajudicial 13 acaba por criar uma grave situação de desamparo, pois se o juiz é oinvestigador, quem atuará como garante?

d) Por vício inerente ao sistema, a instrução judicial tende a setransformar em plenária, comprometendo seriamente a celeridade que devenortear a fase préprocessual.

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e) Representa uma gravíssima contradição 14 lógica, pois o juiz investigapara o promotor acusar, e o pior, muitas vezes contra ou em desacordo com asconvicções do titular da futura ação penal. Em definitivo, se a instruçãopreliminar é uma atividade preparatória que deve servir, basicamente, paraformar a opinio delicti do acusador público, deve estar a cargo dele e não de umjuiz, que não pode e não deve acusar.

f) Gera uma confusão entre as funções de acusar e julgar, com inegávelprejuízo para o processo penal.

g) Por fim, outro grave problema da instrução judicial está no fato deconverter a instrução preliminar em uma fase geradora de provas, algoabsolutamente inaceitável frente ao seu caráter inquisitivo. A maior credibilidadeque normalmente geram os atos do juiz instrutor pode levar a que a prova nãoseja produzida no processo, mas meramente ratificada. O resultado final é amonstruosidade jurídica de valorar na sentença elementos recolhidos em umprocedimento preliminar em que predomina o segredo e a ausência decontraditório e defesa. Não se pode olvidar que a instrução preliminar serve paraaclarar o fato em grau de probabilidade, e está dirigida a justificar o processo ouo nãoprocesso, jamais para amparar um juízo condenatório.

c) Investigação preliminar a cargo do Ministério Público: "promotorinvestigador"

Atualmente, existe uma tendência de outorgar ao MP a direção dainstrução preliminar, de modo a criar a figura do promotor investigador, quepoderá obrar pessoalmente e/ou por meio da Polícia Judiciária(necessariamente subordinada a ele).

A instrução preliminar a cargo do MP tem sido adotada nos paíseseuropeus como um substituto ao modelo de instrução judicial anteriormenteanalisado. Nesse sentido, a reforma alemã de 1974 suprimiu a figura do juizinstrutor para dar lugar ao promotor investigador. A partir de então, outrospaíses, com maior ou menor intensidade, foram realizando modificaçõeslegislativas nessa mesma direção, como sucedeu, v.g., na Itália (1988) e emPortugal (1987 e novamente em 1995).

Na Espanha, a Lei Orgânica (LO) 7/88, que instituiu o procedimentoabreviado, deu os primeiros passos nessa direção, ao outorgar ao fiscalmaiores poderes na instrução preliminar. Sem embargo, é fundamental frisar,ao contrário do que afirma equivocadamente alguma doutrina brasileira malinformada, "na Espanha ainda vigora o sistema de juiz instrutor", pois asalterações legislativas, ao mesmo tempo em que atribuíam mais poderes aopromotor, não romperam com a tradição da instrução judicial. O que existe naatualidade é que o promotor até pode iniciar e praticar atos de investigação,mas a partir do momento em que o juiz de instrução passar a atuar, eleautomaticamente assume o mando 15 total da instrução preliminar, devendo ofiscal remeter para ele todas as informações obtidas e cessar sua intervenção.Apesar de existir uma tendência de implementar os poderes da Fiscalia, afigura do juez de instrucción não foi abandonada.

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Nesse modelo de instrução, o promotor é o diretor da investigação,cabendolhe receber a notíciacrime diretamente ou indiretamente (através dapolícia) e investigar os fatos nela constantes. Para isso, poderá dispor e dirigira atividade da Polícia Judiciária (dependência funcional), de modo que tantopoderá praticar por si mesmo as diligências, como determinar que as realize apolícia segundo os critérios que ele (promotor) determinou. Assim formará suaconvicção e decidirá entre formular a acusação ou solicitar o arquivamento(visto como nãoprocesso em sentido lato). Em regra (e assim é aconselhávelque seja), dependerá de autorização judicial para realizar determinadasmedidas limitativas de direitos fundamentais, como podem ser as medidascautelares, entradas em domicílios, intervenções telefônicas, etc. Caberá aojuiz da instrução (que não se confunde com a anterior figura do juiz instrutor)decidir sobre essas medidas. Esse juiz atua como um verdadeiro órgãosuprapartes, pois não investiga, senão que intervém quando solicitado comoum controlador da legalidade (e não da conveniência) dos atos de investigaçãolevados a cabo pelo promotor. A essa figura denominamos juiz garante dainstrução preliminar.

Para seus defensores, o sistema de promotor investigador surge comouma salvação ante a crise e a superação do modelo de juiz instrutor. Como"principais vantagens" da instrução preliminar a cargo do MP, destacamos:

a) Representa uma aproximação à estrutura dialética do processo,apesar de algumas naturais limitações da publicidade e do contraditório (queseriam inerentes à própria natureza da instrução preliminar).

b) Essa instrução preliminar do acusador é uma imposição do sistemaacusatório, pois mantém o juiz longe da investigação e garante a suaimparcialidade 16 (ao juiz cabe julgar e não investigar). Com isso, cumprese comos postulados garantistas do nullum iudicium sine accusatione e ne procedatiudex ex officio. Em última análise, o sistema fortalece a figura do juiz, cujaatividade na instrução fica reservada a julgar (decidindo sobre as medidasrestritivas e a admissão da própria acusação).

c) A imparcialidade do MP leva à crença de que a investigação buscaráaclarar o fato a partir de critérios de justiça, de modo que o promotor agirá paraesclarecer a notíciacrime resolvendo justa e legalmente se deve acusar ou não.Inclusive deverá diligenciar para obter também eventuais elementos dedescargo, que favoreçam a defesa. 17 Na síntese de GUARNIERI, 18 o MPconstituye una figura que si bien tiene el cuerpo de parte, ofrece el alma de juez.

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d) A própria natureza da instrução preliminar, como atividadepreparatória ao exercício da ação penal, deve, necessariamente, estar a cargodo titular da ação penal. Por isso, deve ser uma atividade administrativa dirigidapor e para o MP, sendo ilógico que o juiz (ou a polícia em descompasso com oMP) investigue para o promotor acusar. Em resumo, melhor acusa quem por simesmo investiga.

e) Como atividade destinada a formar um juízo sobre o processo ou onãoprocesso, a instrução preliminar a cargo do MP tende a ser,verdadeiramente, uma cognição sumária. Com isso, também se evita que osatos de investigação sejam considerados como atos de prova e, porconseqüência, valorados na sentença.

f) A impossibilidade de que o MP adote medidas restritivas de direitosfundamentais distribui melhor o poder (antes concentrado nas mãos do juizinstrutor) e permite criar a figura do juiz garante da instrução, como instânciajudicial de controle da legalidade dos atos de investigação. Em suma, representauma melhor distribuição do poder, e com isso beneficia a situação jurídica dosujeito passivo e evita o autoritarismo típico da estrutura inquisitiva do juizinstrutor.

Como "argumentos contrários" a esse sistema de instrução preliminar:

a) Historicamente, o modelo está associado ao utilitarismo judicial, ocombate da criminalidade a qualquer custo, pretendendo o Estado justificar osfins com o uso abusivo dos meios. Nesse sentido, a reforma processual levada acabo na Alemanha em 1974 19 foi produto da pressa do legislador em combatero terrorismo do grupo BaaderMeinhof. O que importava era dar armas para aacusação, aumentando a eficácia da instrução quanto ao fim punitivo pretendido,ainda que com claros prejuízos para o sujeito passivo. No mesmo sentido, aItália do pósguerra estava completamente assolada pela corrupção dos órgãospúblicos, a máfia e o crime organizado. A reforma realizada em 1988 pretendia,de uma vez por todas, mudar esse panorama a qualquer custo. E os frutos nãotardaram. Já em 1992, quando o promotor ANTONIO DI PIETRO começa ainvestigar um "caso de menor importância" culmina por colocar em relevo umescândalo de corrupção política sem precedentes (tangentópolis). A partir deentão, a operazione mani pulite inicialmente levada a cabo por sete promotoresde Milão e posteriormente por uma ampla equipe processa em menos de umano a seis ministros e mais de uma centena de parlamentares e os dirigentesdas mais importantes empresas da Itália. Em 1997, esse número é elevado acinco mil pessoas, os interrogatórios passam de vinte mil e as cartas rogatórias aoutros países superam as quinhentas. 20 São números elevados e preocupantes,não só pelo nível de criminalidade que representam, mas principalmente porquepor trás deles está uma elevada cifra da injustiça (pessoas inocentesinjustamente submetidas ao processo). O que parece ser a supremacia da leireflete na realidade o império do MP. As cifras indicam não só uma supostaeficácia da perseguição, mas também reais e elevadas cifras dos casos deabuso de autoridade, perseguição política, desnecessária estigmatização e todotipo de prepotência. Em síntese, é um modelo típico de utilitarismo judicial, deum Estado de Polícia e não de um Estado de Direito.

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b) Levada ao extremo, a transferência de poderes faz com que o juizinstrutor deixe de ser o temível, e passa a sêlo o promotor, gerando a nãomenos criticável inquisição do próprio acusador. 21

c) O argumento da imparcialidade do MP é uma frágil construção técnicafacilmente criticável, pois é contrário à lógica pretender a imparcialidade de umaparte. Provavelmente o maior crítico foi CARNELUTTI, 22 que frisava aimpossibilidade da "quadratura do círculo: Não é como reduzir um círculo a umquadrado, construir uma parte imparcial?" Para o autor, o MP é um juiz que sefaz parte, mas ao invés de ser uma parte que sobe, é um juiz que baixa. Emoutra passagem, CARNELUTTI 23 explica que se o MP exercitaverdadeiramente a função de acusador, querer fazer dele um órgão imparcialnão representa no processo mais que "una inútil y hasta molesta duplicidad".Além disso, o MP é uma parte fabricada para cumprir com os requisitos dosistema acusatório, para ser o contraditor natural do imputado. Só assim nasce oconflito do qual brota a luz da verdade para o juiz. Logo, a pretendidaimparcialidade do MP vai de encontro à necessidade natural de sua existência.Como golpe derradeiro, J. GOLDSCHMIDT 24 explica que essa exigência deimparcialidade dirigida a uma parte acusadora "cae en el mismo error psicológicoque ha desacreditado el proceso inquisitivo". A pergunta que surge é: em quedifere a inquisição do promotor daquela realizada pelo juiz instrutor? Que"mecanismos" subjetivos de proteção tem o promotor e de que carece o juizinstrutor? Em síntese, o argumento da imparcialidade de uma parte acusadoranão se sustenta.

d) Somente um MP institucionalmente calcado na independência emrelação ao Poder Executivo e sem que exista hierarquia funcional interna podeser o titular da instrução preliminar, sob pena de contaminar politicamente oprocesso penal com os mandos e desmandos do governo. E isso nos leva a umquestionamento: se para atribuir a instrução ao MP é necessário dotálo dasgarantias de um autêntico juiz, por que não encarregar logo a um juiz instrutor?

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e) Na prática, o promotor atua de forma parcial e não vê mais que umadireção. Como afirma GUARNIERI, 25 por sua própria índole, o promotor estáinclinado a acumular tãosomente provas contra o imputado. Ao transformar ainstrução preliminar numa via de mão única, estáse acentuando a desigualdadedas futuras partes, com graves prejuízos para o sujeito passivo. É convertêlaem uma simples e unilateral preparação da acusação, uma atividade minimalistae reprovável, com inequívocos prejuízos para a defesa.

f) Por fim, cumpre destacar que o fato de atribuir normativamente ainstrução preliminar ao MP não significa que ela será efetivamente levada a cabopelo parquet (eterna luta entre normatividade e efetividade). Como foiconstatado em um estudo realizado pelo Instituto MaxPlanck de Freiburg em1978, 26 nos países cuja instrução preliminar está nas mãos do MP como naAlemanha na grande maioria dos casos ela realmente havia sido realizadainteiramente pela Polícia Judiciária, sem qualquer intervenção do MP. Opromotor só toma conhecimento depois que as atuações policiais já estãoconclusas, e como já está acabado o trabalho caráter inibitório ele nãoinvestiga e se conforma com o material apresentado. Como aponta ARMENTADEU, 27 constitui uma prática habitual que a investigação recaia exclusivamentesobre a polícia, limitandose o MP a uma mera revisão formal posterior. Emdefinitivo, representa uma volta ao famigerado sistema de instrução preliminarpolicial.

C) Objeto e grau de cognição da investigação preliminar

O objeto 28 da instrução preliminar não é o seu fim, mas sim a matériasobre a qual recai o complexo de elementos que a integram, isto é, os fatosnarrados na notitia criminis ou obtidos ex officio29 pelos órgãos de investigaçãoestatal.

Delimitado o objeto, cumpre verificar o nível ou grau de conhecimentodo objeto que se pretende obter com a instrução preliminar. Para isso,devemos levar em consideração seu caráter instrumental e preparatóriorelacionado ao processo penal, isto é, que a instrução não é um fim em simesma. Ademais, existe uma íntima relação entre o nível de conhecimento quese busca e a natureza dos atos que devem ser praticados para alcançar esseconhecimento. Outra importante relação está entre o grau da cognição e anatureza do juízo que se pretende: juízo de verossimilhança ou de certeza.

Assim, classificamos a instrução preliminar em:

a) Plenária: é aquela que se produz nos sistemas em que o conteúdo dafase processual não é outro que o mero controle do material recolhido nainstrução preliminar, pois é nesta última que se esgota totalmente a coleta daprova. Nesse sistema, a instrução preliminar não prepara o processo penal, masobjetivamente prepara a sentença, e o processo existe exclusivamente paraimpor a sanção penal. Dessa forma, a fase préprocessual acaba por converterse no verdadeiro juízo, com o gravame de que, em regra, não são observados ocontraditório e as garantias fundamentais do sujeito passivo. É um retrocesso aosistema inquisitivo. Nesse modelo, a instrução tem como objeto uma cogniçãototal, plena, que pretende um juízo de segurança e não de verossimilhança. Emsíntese, transforma a instrução não em um meio, mas sim um fim em si mesma.

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b) Sumária: 30 a summaria cognitio significa uma limitação na atividadeinstrutória, que deve responder a uma indagine limitata o superficiale. 31 O nívelde conhecimento é limitado, pois se busca um juízo de verossimilhança e não decerteza. Posteriormente, no processo, a cognição será plena, suprindo aslimitações da atividade anterior. Esse juízo de verossimilitude é provisional,podendo ser alterado pelo posterior processo plenário. Inclusive, na expressãode CALAMANDREI, o procedimento sumário è dunque un provvedimentoprovvisorio che aspira a diventar definitivo. Ela está limitada ao imprescindível, 32já que reserva para o processo propriamente dito a investigação dos dadoscomplementares, assim como a sua verificação, proporcionando ao julgador oconvencimento quanto à exatidão e certeza dos mesmos.

Interessanos a "instrução sumária", mais de acordo com os fins dainstrução preliminar e com os postulados do moderno processo penal. Asumariedade implica uma limitação, que poderá operar no plano qualitativo ouquantitativo, ou ainda em ambos.

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A limitação qualitativa pode se operar em dois planos (vertical e/ouhorizontal). 33 No processo penal, entendemos que no plano horizontal está ocampo probatório, ou seja, os dados acerca da situação fática descrita nanotíciacrime e sobre os quais irá recair a atividade de averiguação ecomprovação. Uma limitação dessa natureza impede o instrutor (juiz, promotorou polícia) de analisar a fundo a notíciacrime, de comprovar de forma plenatodos os elementos necessários para emitir um juízo de certeza sobre amaterialidade e a autoria. No plano vertical está o direito, visto como oselementos jurídicos referentes à existência formal do crime (tipicidade, ilicitudee culpabilidade). Logo, a limitação qualitativa significa que o instrutor estálimitado a comprovar a verossimilhança do fato, isto é, a probabilidade dofumus commissi delicti. A antítese dessa cognição seria, no plano horizontal, acerteza sobre o fato, e no plano vertical, a certeza sobre a tipicidade, ilicitude eculpabilidade.

Em definitivo, significa que a instrução preliminar está limitada àatividade mínima, 34 de comprovação e averiguação da materialidade e daautoria, necessária para justificar o exercício ou o não exercício da ação penal,isto é, para decidir sobre o processo ou o nãoprocesso.

A limitação quantitativa está refletida na adoção de um critério temporal,isto é, impor uma limitação temporal para a duração 35 da instrução preliminar.Não se trata propriamente de sumariedade mas sim de celeridade, e alimitação da cognição resulta da restrição temporal e não das técnicas desumarização horizontal e vertical. É uma forma de evitar que as investigaçõessejam eternas ou se prolonguem excessivamente no tempo. Todavia, comocritério único, é imperfeito.

O sistema misto36 surge como o mais adequado, pois limita a instruçãopreliminar em dois aspectos: grau da cognitio (sumariedade) e tempo deduração da atividade. É, em síntese, o resultante da aplicação concomitantedos dois métodos anteriormente analisados.

D) Forma dos atos da investigação preliminar

Em Direito Processual, os atos devem ser analisados segundo o lugar, otempo e a forma. Na instrução preliminar, o lugar e o tempo não oferecemmaiores problemas. O ponto nevrálgico está na forma e nela nos centraremos.

A instrução poderá ser obrigatória ou facultativa, segundo condicione oexercício da ação penal a sua prévia existência ou não. Também é possívelconceber um sistema misto, em que a instrução preliminar seja obrigatória paraos delitos graves e facultativa para os de menor potencial lesivo.

A produção dos atos de investigação poderá ser levada a cabooralmente ou por escrito. Como explica J. GOLDSCHMIDT, 37 a oralidade deveser vista como o princípio de que la resolución judicial puede basarse sólo enmaterial procesal proferido oralmente, e mantém uma íntima relação com asformas de publicidade/segredo e imediação/mediação. O contraste está naforma escrita, em que a decisão se baseia na matéria reduzida por escrito nosautos. A instrução preliminar está dirigida a uma decisão: o juízo de pré

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admissibilidade da acusação, isto é, o momento em que o juiz decide serecebe ou não a ação penal com base nos elementos recolhidos na instruçãopreliminar. Por suposto, uma instrução verdadeiramente oral só pode existirnos sistemas em que exista uma fase intermediária contraditória.

A instrução preliminar poderá ser ainda dominada pela publicidade oupelo segredo dos atos. No plano doutrinal, explica ARAGONESES ALONSO, 38propugnase por um sistema misto, em que sejam secretas as primeirasinvestigações ou nos delitos graves, e nos demais casos deve prevalecer apublicidade (principalmente a interna). Ainda, deverá ser observado se osegredo é interno ou externo, total ou parcial. Destacamos que o tema, alémde crucial, é muito amplo e desborda os estritos limites do presente artigo, demodo que nos limitaremos apenas a citar, sem analisar as vantagens e osinconvenientes do segredo.

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Sumamente importante é definir claramente a eficácia probatória dosatos da instrução preliminar. Para isso, o sistema pode considerar a atividadedesenvolvida na instrução preliminar como atos de prova ou atos deinvestigação. Os primeiros, apesar de produzidos na fase préprocessual,integram os autos do processo e podem servir para o convencimento do juiz nasentença (juízo de certeza). Em síntese, podem amparar um juízocondenatório ou absolutório sem necessidade de repetição em juízo.Infelizmente, na prática, sob o argumento de que foram "cotejados com asdemais provas" os atos do nosso inquérito acabam por converterse em atosde prova, pois costumeiramente são valorados na sentença. É um grave erro.

Outros sistemas atribuem ao material recolhido na instrução preliminar ovalor de meros atos de investigação, limitando sua eficácia aos limites dainstrução. Dessa forma, os atos de investigação servem apenas para formarum juízo de probabilidade (e não de certeza) sobre a acusação e por isso nãoestão dirigidos à sentença. Por isso, consideramos que sua função éendoprocedimental, 39 no sentido de que esses atos têm eficácia interna,somente servindo para amparar as decisões interlocutórias tomadas nessafase (como medidas cautelares, busca e apreensão, etc.) e a decisão sobre aadmissibilidade da acusação.

Ainda no que se refere à eficácia probatória, destacamos a importânciada produção antecipada da prova, como um instrumento processual destinadoa disciplinar a reprodução ante a impossibilidade de repetição dos atos.Infelizmente, o instrumento está parcamente disciplinado no processo penalbrasileiro (art. 225 do CPP) e exige uma urgente reformulação.

III CONTORNOS DE UM SISTEMA "IDEAL" DE INVESTIGAÇÃOPRELIMINAR PARA O PROCESSO PENAL BRASILEIRO

O sistema policial é nosso velho conhecido, e por isso mesmo nãoprecisa de nenhuma apresentação: é unânime o rechaço. A poucacredibilidade e eficácia, aliada ao fato de que não agrada a ninguém (nem aquem vai acusar, muitos menos à defesa e tampouco a quem vai julgar) exigeuma imediata reformulação. A discussão deve centrarse entre os outros doispossíveis titulares: juiz de instrução ou promotor investigador.

A primeira figura juiz de instrução é histórica e vem sendopaulatinamente substituída, por estar completamente superada. A evoluçãodas idéias liberais vai minguando os poderes do temível juiz inquisidor atéprivarlhe de todo poder de iniciativa (nemo iudex sine actore). O problemacomeça quando esses poderes são retirados do juiz e outorgados ao promotor,deixando o juiz instrutor de ser o temível, ao mesmo tempo em que o passa aser o promotor. Ao final, sucede que o promotor acaba convertendose em juizde instrução.

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Explica ARAGONESES ALONSO 40 que "el sistema de instrucción por elfiscal, que parece más ortodoxo con el acusatorio, oculta, en definitiva, si serefuerzan sus poderes, un 'sistema inquisitorial'. Si, por el contrario, no se leconceden facultades al fiscal, la instrucción puede ser ineficaz". A soluçãoestá, uma vez mais, em "encontrar um equilíbrio na distribuição de poderes".

A conclusão é: "não se resolve o problema só substituindo o juizinstrutor (ou a polícia) pelo promotor investigador, pois em última análise issopreservaria as deficiências da instrução preliminar" (valoração probatória,contraditório e defesa mitigados, segredo interno, ausência de efetivasumariedade, etc.). Além disso, é fundamental alcançar o equilíbrio de poderesatravés de uma clara definição da figura do "juiz garante da instruçãopreliminar". Por tudo isso, em continuação desenharemos uma sugestão demodelo ideal a partir dos três elementos básicos: sujeito, objeto e atos.

A) Investigação preliminar a cargo do Ministério Público e afigura do juiz garante ou juiz de garantias

Apesar das críticas que gera a instrução a cargo do MP, entendemosque é o sistema que menos defeitos apresenta, ou ao menos aquele cujosdefeitos são mais facilmente resolvidos ou tolerados.

A investigação preliminar está basicamente dirigida a decidir sobre oprocesso ou o nãoprocesso, e por isso deve ser uma atividade administrativaa cargo do titular da ação penal. Ninguém melhor do que ele para preparar oexercício da futura acusação. É uma incongruência lógica que o juiz investiguepara o promotor acusar. Se o MP é o titular constitucional da ação penalpública atividadefim obviamente deve ter ao seu alcance os meiosnecessários para lograr com mais efetividade esse fim, de modo que ainvestigação preliminar, como atividade instrumental e de meio, deverá estarao seu mando.

Atribuir ao MP o comando da investigação preliminar é a melhor soluçãopara o processo penal brasileiro, principalmente se levarmos em conta que oMP no Brasil é independente, gozando das mesmas garantias da Magistratura.Possui poderes tanto no plano constitucional (art. 129 da CB), como tambémno orgânico (especialmente nos arts. 7º e 8º da Lei nº 75/93 e art. 26 da Lei nº8.625/93), para participar da investigação ou realizar seu próprio procedimentoadministrativo préprocessual.

Sem embargo, é imprescindível que a polícia judiciária esteja a serviçodo MP, com clara subordinação funcional (ainda que não orgânica). O "controleexterno da atividade policial" está timidamente disciplinado pela LC nº 75/93 enão corresponde ao esperado e muito menos ao necessário. Continua faltandoum dispositivo que diga de forma clara que "o MP exercerá o controle externoda atividade policial, dando instruções gerais e específicas para a melhorcondução do IP", as quais estarão vinculados os agentes da polícia judiciária.As "instruções gerais" correspondem às grandes linhas da instrução preliminar,de forma genérica e abstrata, conforme os critérios de política criminal traçadospela instituição. Um dos maiores problemas que enfrenta o MP paraacompanhar o IP é a falta de informação, mais especificamente, o fato de não

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canalizar a notíciacrime. Através das instruções gerais, o MP poderia, porexemplo, determinar que todos os BO relacionados com determinados tipos dedelito crime organizado, homicídio, etc. fossem imediatamente enviados àpromotoria correspondente, para que definisse a linha de investigação ousimplesmente tivesse ab initio plena ciência da investigação. No segundo caso,o MP se reservaria o poder de intervir diretamente em um caso concreto, istoé, dando instruções específicas sobre como deverá ser realizado o IP naquelecaso, atendendo a suas especiais circunstâncias.

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Isso não significa que todos os fatos devam ser obrigatoriamente noticiados direto ao MP e tampouco que o promotor deva ficar 24 horas por diana delegacia. Nada disso. Caberá ao MP definir instrumentos para um controleperiódico de tudo que chegar ao conhecimento da polícia, estabelecendo quaisdelitos por sua gravidade ou complexidade devam ser imediatamentelevados ao seu conhecimento, para que ab initio controle toda a investigação.Nesses delitos graves, a presença do promotor será imprescindível e se faránotar pela sua constante intervenção e estrito controle da atividade policial.Nos demais casos, o promotor poderá definir uma espécie de procedimentopadrão, estabelecendo que investigações devem ser realizadas e de queforma, assim como que diligências não poderão ser realizadas sem a suapresença. Em linhas gerais, assim atua o promotor nos sistemas em que ainvestigação preliminar está a cargo do MP. Em suma, entendemos que afigura do promotor investigador é a mais adequada para a nossa realidade,exigindose apenas uma melhor definição do que se entende por controleexterno da atividade policial, para permitir ao MP dar as instruções gerais eespecíficas necessárias para o satisfatório desenvolvimento da instruçãopreliminar.

Mas então, com isso estaria resolvido o problema, bastando com o MP41 assumir o mando da investigação? A resposta é não.

Com igual importância que atribuir (ou meramente reconhecer) atitularidade do MP, está definir os contornos da figura do juiz garante dainstrução preliminar, ou, como preferem os italianos, giudice per le indaginipreliminari.

O juiz garante não investiga e tampouco julga no processo, até porque aprevenção deve excluir a competência por claríssimo comprometimento daimparcialidade (nisso reside um dos grandes equívocos do nosso sistema). Aolivrarse da função de instruir (alheia à sua natureza), o juiz garante dainstrução ou juiz de garantias concreta sua superioridade como órgãosuprapartes, fortalecendo no plano funcional e institucional a própria figura dejulgador.

Esse juiz da instrução (e não de instrução) será quem, mediante préviainvocação do MP, decidirá sobre todas as medidas e atos que impliquem arestrição dos direitos fundamentais do sujeito passivo, isto é, decidirá sobre asmedidas cautelares de natureza pessoal ou real, colherá a prova no incidentede produção antecipada, autorizará a busca e apreensão, a intervençãotelefônica, etc. Também, mediante invocação da defesa, decidirá sobre alegalidade dos atos de investigação levados a cabo pelo MP. É um verdadeiro"controlador da legalidade dos atos praticados pelo promotor na instruçãopreliminar".

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O promotor investiga por si mesmo ou através da polícia, ouvindotestemunhas (e até mesmo interrogando o sujeito passivo, desde queobservadas as garantias da defesa técnica e pessoal), determinando arealização de perícias, etc., mas não pode determinar, por exemplo, umaprisão preventiva. Esse tipo de restrição de direitos fundamentais somentepode partir de um órgão jurisdicional que decidirá mediante prévia invocação.

Também será esse juiz garante da instrução quem, na fase intermediáriae necessariamente contraditória, fará o juízo de préadmissibilidade daacusação, que, uma vez admitida, dará início ao processo penal. Nesse caso,a acusação será distribuída ao juiz criminal competente para presidir oprocesso e ao final julgar. Destacamos que a atual posição do juiz frente ao IPé similar ao modelo garantista aqui propugnado (pois não atua de ofício, nãoinvestiga nem dirige a investigação e basicamente está para decidir sobre asmedidas restritivas de direitos fundamentais), mas com uma fundamentaldistinção: o juiz que de qualquer modo intervém na instrução preliminar nãopoderá atuar (instruir e julgar) na fase processual, ao contrário do modelo emvigor.

Para não deixar dúvidas: o juiz da instrução não pode atuar no processopenal, porque nesse caso sua imparcialidade estaria comprometida. Bastarecordar que no sistema de juiz instrutor, o que instrui não julga, não tantoporque instruiu, mas porque decidiu sobre os incidentes da instruçãopreliminar.

Em síntese e seguindo a DRAGONE, 42 ao juiz garante da instruçãopreliminar incumbe:

a) Função de garantia da liberdade pessoal e da liberdade dascomunicações.

b) Controle da duração da instrução preliminar e dos requisitos formaisda ação penal exercida pelo MP (na fase intermediária contraditória).

c) Garantia da formação antecipada da prova no respectivo incidenteprobatório.

d) Função de decisão e controle do resultado da instrução preliminar naaudiência contraditória que forma a fase intermediária.

Somente com essa repartição de poderes e o estabelecimento de umsistema de controle recíproco, impedirseá a temível figura do promotorinquisidor, tão reprovável como a seu tempo foi a do juizinquisidor. A quasetotalidade das críticas ao sistema de promotor investigador caem por terra comessa divisão racional de poderes. Este sistema é o que mais se aproxima a umgrau razoável 43 de transferência da estrutura dialética do processo para ainstrução preliminar.

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B) Determinar a situação do sujeito passivo

Outro gravíssimo problema do IP é o mais completo confusionismoacerca da situação jurídica do sujeito passivo. Sobre a figura do indiciamentopairam inúmeras dúvidas, principalmente quando não existe uma prisãocautelar. Em nenhum momento o CPP define claramente a situação do sujeitopassivo não submetido a uma prisão cautelar. Entre as inúmeras incertezas,questionamos:

a) A partir de que momento alguém deve ser considerado como sujeitopassivo?

b) Que circunstâncias devem concorrer para que se produza a situaçãode imputado?

c) De que forma se deve formalizar essa situação?

d) Que conseqüências endoprocedimentais produz o indiciamento?

e) Que cargas assume o sujeito passivo?

f) Que direitos lhe cabem?

Enfim, reina a mais absoluta incerteza, 44 em inequívoco detrimento dasua situação jurídica, do seu status libertatis e da sua própria dignidadepessoal. São graves os prejuízos para a defesa, tanto pessoal como técnica.Isso tudo sem falar na aberração jurídica de alguém ser acusado sem anteshaver sido formalmente imputado. Ou ainda, o que é pior, o sujeito passivocomparece ante a autoridade policial na situação de testemunha quandodeveria fazêlo na condição de imputado, com todas as garantias inerentes aessa figura. Isso é uma repugnante práxis policial, que, aliada à lacuna legal,deve ser abolida.

Em linhas gerais, devemos caminhar para uma maior eficácia do direitode defesa e contradição contido no art. 5º, LV, da CF. Tal dispositivo, no que serefere a sua aplicação no inquérito policial, tem sido objeto de interpretaçõesabsurdamente restritivas. Esse é um ponto básico a ser revisto. É incrível aresistência no âmbito policial em respeitar os direitos constitucionalmenteassegurados, negando que o CPP deva adequarse à CF e não ao contrário.

O tema é de fundamental importância e transcendência, mas extrapolaos estritos limites da presente exposição. Entretanto, como ponto de partidapara disciplinar o tema, é imprescindível que:

a) Tãologo como exista uma imputação contra uma pessoa determinadaou elementos suficientes que permitam identificar o possível autor do delito, estedeve ser chamado a comparecer perante a autoridade encarregada da instruçãopreliminar.

b) Na comunicação deverá constar uma síntese da imputação eesclarecer em que qualidade comparece para declarar.

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c) Deverá serlhe comunicado do direito de comparecer acompanhadode advogado ou solicitar a nomeação caso não tenha condições econômicaspara constituir.

d) No momento do interrogatório, deverá serlhe comunicado o direitoque lhe assiste a não declarar, sem que o exercício do direito de silêncioacarrete qualquer conseqüência jurídica.

e) Deverá a autoridade advertir do direito que assiste ao imputado deindicar provas e solicitar diligências.

Após ser ouvido, a autoridade policial deverá proceder ao indiciamentocaso existam suficientes indícios. É importante destacar três aspectos:

a) necessidade de que o suspeito seja ouvido tãologo surja a imputação;

b) que sejam respeitadas certas garantias no momento do interrogatóriopolicial;

c) imediatamente após, manifestese a autoridade policial sobre oindiciamento, momento em que o sujeito passivo passa a participar doprocedimento. O indiciamento deve ser um dos primeiros atos do inquérito e nãoo último.

Neste sentido, citamos como exemplo o art. 118 da LECrim espanhola:45

"Toda pessoa a quem se impute 46 um ato punível poderá exercitar odireito de defesa, atuando no procedimento, qualquer que seja este, desde quese lhe comunique sua existência, tenha sido objeto de detenção ou de qualqueroutra medida cautelar. A admissão de uma notíciacrime ou qualquer atuaçãopolicial 47 ou do Ministério Público, da qual resulte a imputação de um delitocontra uma pessoa ou pessoas determinadas, será levada imediatamente ao seuconhecimento. Para exercitar o direito de defesa, 48 a pessoa interessada deverádesignar um defensor e não o fazendo, deverá serlhe nomeado um, que lheassistirá em todos os atos da instrução preliminar."

Por fim, também disciplinando a situação do sujeito passivo, merece sertranscrito parte do art. 7º do anteprojeto de reforma do nosso CPP:

"Art. 7º Logo que reúna os elementos suficientes, a autoridade policial,fundamentando devidamente, procederá ao indiciamento.

§ 1º O indiciado será interrogado com observância das garantiasconstitucionais."

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Apesar de representar um avanço em relação ao sistema atual,principalmente ao disciplinar o momento do nascimento da situação deindiciado, entendemos que o § 1º merece maior atenção. Seria aconselhável,tendo em vista a larga tradição de desrespeito aos direitos do indiciado pelapolícia judiciária, que constasse de forma expressa o direito à defesa técnica eà autodefesa negativa (silêncio). Ademais, é importante permitir o acessoprévio do advogado aos autos do inquérito e também possibilitar que o sujeitopassivo indique provas e solicite diligências.

C) A necessidade de uma instrução efetivamente sumária e apena de inutilizzabilità

No que se refere ao objeto, a instrução preliminar deve ser sumária, e arestrição da cognição deve ser qualitativa e também operarse no aspectotemporal. Por isso, a primeira limitação deve estar incluída na própria definiçãolegal do instituto, visto como a atividade mínima de comprovação eaveriguação dos fatos e da autoria. Como isso, está limitada a proporcionar ofumus commissi delicti necessário para formar a opinio delicti do MP (acusar,solicitar o arquivamento ou ainda fundamentar o pedido de medidas restritivas)e também para justificar o processo ou o nãoprocesso (fornecendo elementospara a fase intermediária).

A instrução preliminar aliada a fase intermediária contraditória, funcionacomo um verdadeiro filtro processual, somente permitindo o ingresso nomundo jurídicoprocessual daquelas condutas que revistam uma aparência dedelito que justifique o custo do processo.

É sabido que a efetividade deriva da normatividade, ainda que o inversonem sempre se produza. Por isso, entendemos que ao atribuirse a instruçãoao promotor, se lhe pode exigir que também realize investigações sobre oselementos de descargo, é dizer, a favor e no sentido de comprovar averacidade da tese defensiva. Por isso, é aconselhável incluir esse dever, nosmesmos moldes do existente no art. 358 do CPP italiano e no § 160 da StPOalemã.

A limitação temporal, por si mesma, é insatisfatória, mas aliada àqualitativa, nos leva a um sistema misto muito eficaz. Por isso, a instruçãopreliminar também deve ter uma duração máxima limitada em lei. Se realmentese quer um instrumento sério, esse prazo não pode ser excessivamente exíguo(como no inquérito) porque isso leva a dois problemas:

o mero descumprimento, como soe ocorrer, gerando o mais completodescrédito da norma;

ou o que é pior, gera conclusões equivocadas e processos imaturos einfundados, simplesmente por utilitarismo judicial (e policial) e para dar umasatisfação à imprensa.

Por isso, e principalmente porque o prazo não precisa ser esgotado,entendemos que a regra geral deve ser 03 meses, contados a partir do dia emque ocorrer a atribuição do fato a uma pessoa determinada. Logo, se a notíciacrime já imputar o delito a uma pessoa, esta deve ser ouvida momento em

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que adquire ou não a qualidade de sujeito passivo passando a contar o prazopara a conclusão do inquérito. A instrução deve estar concluída tãologoexistam elementos que justifiquem o processo ou o nãoprocesso e, emqualquer caso, no prazo máximo de 03 meses. O MP poderá solicitar aprorrogação, por igual prazo e de forma fundamentada, ao juiz garante, quedecidirá em audiência com a presença e participação da defesa.

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Em caso de indiciado preso, o prazo deve ser mais exíguo, mas semexageros. Nossa experiência com o prazo de 10 dias do art. 10 do CPP mostraque:

ou inquérito é concluído às pressas pela exiguidade do prazo paraevitar a soltura;

ou inquérito segue e o sujeito passivo obtém a liberdade pela via dohabeas corpus;

ou o que é pior, o inquérito supera o limite (10 dias) e mesmo assim aprisão é mantida. 49

Por isso, sugerimos um prazo de 30 dias como regra geral para aconclusão do IP em caso de indiciado preso. Ademais, é imprescindível que asmedidas cautelares pessoais estejam submetidas a um controle judicialperiódico. 50 Dessa forma, estipulase uma obrigação para o juiz de revisarperiodicamente e de ofício, se persistem os motivos que justificaram a prisãocautelar, fundamentando a necessidade de sua manutenção. O objetivo éevitar que o detido seja simplesmente "esquecido" na prisão e essemecanismo de controle terá grande utilidade no transcurso do processo penal(tendo em vista que sua duração é maior).

Por fim, para assegurar a eficácia da limitação temporal, nos pareceperfeita a sanção contida no art. 407.3 do CPP italiano. Se o MP não exercitara ação penal ou solicitar o arquivamento no prazo estabelecido pela lei (ouprorrogado pelo juiz), os atos de investigação praticados na indaginepreliminare depois de expirado o prazo não poderão ser utilizados no processopenal. É o que se denomina de pena de inutilizzabilità, em clara alusão àineficácia jurídica (inutilidade) desses atos. Adotado esse sistema, a partir domomento em que esses atos são considerados inúteis, não existe justa causapara manter em "aberto" a instrução preliminar e ela deve ser trancada atravésdo habeas corpus ou ainda por simples petição ao juiz garante.

Em definitivo, a instrução preliminar deve ser sumária, adotandose o"sistema misto com sanção". Qualitativamente, deve estar limitada àquelaatividade mínima, necessária para justificar o processo ou o nãoprocesso. Emqualquer caso, a proporcionar o fumus commissi delicti em grau deprobabilidade. No aspecto temporal, devemos limitar a duração da instruçãopreliminar distinguindo entre as situações de imputado preso ou solto. Porúltimo, para assegurar a eficácia das restrições, o sistema deve consagrar umasanção de caráter processual para o incumprimento do prazo máximo deduração, de forma similar à pena de inutilizzabilità do processo penal italiano.

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D) Forma dos atos

O primeiro problema está em definir seu caráter obrigatório oufacultativo. Segundo a razão, ninguém pode aceitar um processo penal semuma prévia atividade investigadora, ainda que mínima. Na síntese de FAIRENGUILLEN 51seria o mesmo que um processo sem pensar, irracional. Ainstrução é uma garantia para todos e, principalmente, para o sujeito passivo,evitando os nefastos e irresponsáveis processos infundados e a acusação desurpresa.

Mais ainda, é absolutamente inconcebível um processo sem préviainstrução nos sistemas que como o brasileiro não contemplam umaautêntica fase intermediária, 52 destinada a realizar um juízo contraditório depréadmissibilidade da acusação. Por isso, opinamos pela adoção de umsistema misto: a instrução preliminar deve ser obrigatória53para os delitosgraves e facultativa para os de menor potencial lesivo (como já está na Lei nº9.099).

A forma escrita acabará predominando, mas o ideal é que a faseintermediária seja composta de uma audiência em que o MP e o sujeitopassivo possam produzir algo de prova testemunhal e, com isso, permitir aojuiz um contato direto. Ainda que com reduzido número de testemunhas, paraevitar dilações, pois não se pode olvidar que se trata de um juízo deprobabilidade (fumus commissi delicti) e não de certeza.

O segredo externo deve ser uma regra, pois ao mesmo tempo quegarante a eficácia da investigação também respeita a intimidade e a imagemdo imputado, impedindo a prematura estigmatização social. Por outro lado, osegredo interno deve ser evitado ou limitado no tempo e só para determinadosatos. Não há dúvida que viola os mais elementares ditames dainstrumentalidade garantista (e, por isso, resulta contrário ao própriofundamento da existência do processo penal).

Por fim, a eficácia probatória dos atos da instrução preliminar deve serendoprocedimental, servindo apenas para justificar o processo ou o nãoprocesso e como fundamento das decisões interlocutórias que o juiz garantetenha de tomar no curso da instrução preliminar. Ademais, reconhecer adiferença entre atos de prova e atos de investigação (limitando a eficácia dosúltimos), também é fundamental que as peças que compõem a instruçãopreliminar não integrem os autos do processo, salvo as produzidas sob a formae com as garantias da produção antecipada da prova. Com esse sistema deexclusão54 se garante que a prova será efetivamente produzida em juízo,acabando com a famigerada praxe de relegar o processo a um papel de meroratificador dos atos do inquérito (ou o que é pior, valorando os elementos doinquérito na sentença).

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Neste sentido, DALIA e FERRAIOLI 55 sublinham a importância daoriginalità do processo penal, de modo que não se atribui a fase préprocessualo poder de aquisição da prova, somente deve recolher elementos úteis àdeterminação do fato e da autoria, em grau de probabilidade, para justificar aação penal. A efetiva coleta da prova está reservada para a fase processual giudice del dibattimento cercada de todas as garantias inerentes ao exercícioda jurisdição. A originalidade é alcançada, principalmente, porque se impedeque todos os atos da instrução preliminar sejam transmitidos ao processo exclusão de peças de modo que os elementos de convencimento são obtidosda prova produzida em juízo. Desta forma, evitase a contaminação e garantese que a valoração probatória recairá somente sobre aqueles atos praticadosna fase processual e com todas as garantias.

IV CONCLUSÕES

O tema é complexo e o que pretendemos foi introduzilo na suaamplitude, ainda que de forma sumária, despertando a atenção para todos osseus aspectos e não apenas para a titularidade.

A nosso juízo, o MP pode e deve assumir o mando da fase préprocessual. Mas, para isso, é imprescindível definir a subordinação funcionalda polícia, que não pode mais continuar atuando sem sincronismo com o MP e,o que é pior, quando e como bem entender. Com igual importância está adefinição de quem vai controlar suprapartes essa atividade, é dizer, qual será afunção do juiz garante e como deverá atuar. O que não se pode conceber, sobnenhum argumento, é que o MP, ademais de investigar, também possa decidir,porque darlhe o poder de adotar medidas cautelares pessoais e outras queimplique a restrição de direitos e garantias fundamentais, é darlhe o poder dejulgar. Isso seria o mais completo retrocesso à inquisição. Por isso, éfundamental a figura do juiz garante. Não é demais recordar, que suaexistência está calcada no fato de que ele (juiz) não investiga e que tampoucopoderá atuar na fase processual (está prevenido e como tal não pode julgar).

As críticas que enumeramos à instrução preliminar, a cargo do MP, nãocontradizem o modelo ideal que traçamos, senão que servem para apontar oserros e induzir à solução. Obviamente, não existe um modelo imune a críticas.

De igual importância, limitar o conhecimento do objeto é imprescindível.A experiência do inquérito policial nos leva a buscar, não só a limitaçãoqualitativa e quantitativa, mas também uma sanção efetiva para as falhas dosmecanismos de controle. Basta de inquéritos intermináveis e "inchados". Acrítica de que todo o material deve ser "repetido" em juízo, cai por terra se oinquérito for efetivamente sumário. Ademais, não existe repetição, mas simprodução, porque prova valorável na sentença só existe quando praticada emjuízo ou por meio do respectivo procedimento judicial de produção antecipada.Também cabe recordar, que é absolutamente inadmissível que os atos deinvestigação, praticados na fase préprocessual e sem as devidas garantias,bastem por si mesmos. Seria um retrocesso ao sistema plenário, em que afase processual se limitava a ser um mero trâmite de controle formal e prévio àsentença. Muitos dos que são contra a mal chamada "repetição em juízo"esquecem disso.

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A forma dos atos é talvez o aspecto que encerra maiores problemas eminúcias. Nessa breve análise, pretendemos chamar a atenção para oproblema do valor probatório e a necessidade de limitar a eficácia dos atos deinvestigação e de excluílos dos autos do processo. É importante acentuar afunção endoprocedimental do inquérito, para evitar inclusive que se admita asua valoração pelo "cotejo" com a prova judicial, que nada mais é do que umamaquiagem para condenar com base em meros atos de investigação. Oinquérito, por ser um procedimento préprocessual administrativo, estácaracterizado por um alto grau de "liberdade de forma" e, por isso, é inidôneopara proporcionar resultado probatório, até porque ele representa o predomíniodo poder e da força sobre a razão, algo absolutamente inadmissível em umEstado de Direito que aspira a um moderno processo penal. Também aprodução antecipada de provas é uma ilustre desconhecida para o nossoprocesso penal e isso deve mudar.

Por fim, é completamente inadmissível a atual indefinição que pairasobre a situação jurídica do sujeito passivo (principalmente quando não existeuma prisão cautelar). Algo tão básico como o dever de comunicarimediatamente ao sujeito passivo da existência e do conteúdo de umaimputação, permitindolhe comparecer para se defender (autodefesa e defesatécnica), não pode faltar no moderno processo penal de um Estado de Direito.