A Caixa Do Silêncio 2014

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A CAIXA DO SILÊNCIO Para muitos cidadãos a TV é o rei dos Eletrodomésticos. É a pequena sociedade de espectáculos que se instala com pezinhos de lã até assumir o controlo da casa e faz de nós seres isolados e silenciosos, em troca da evasão que proporciona. Georges Friedmann escreve que, para sobreviver, uma sociedade necessita que os seus membros participem num núcleo comum de símbolos correspondentes a valores, opiniões, conhecimentos, experiências. A TV é na nossa civilização tecnológica – diz o instrumento “mais mais poderoso” para fazer participar as massas em sistemas de símbolos cujo estabelecimento em comum “é necessário” para a coesão social. Poder-se-ia fazer a apologia deste aparelho transmissor de imagens como depósito de um saber universal em que todos seriam iguais porque todos receberiam a mesma cultura. Seria uma visão optimista, se não traduzisse uma apreciação incorrecta e parcial do facto. O processo cultural não é orientado pela televisão, mas pela situação familiar e pela inserção social do telespectador. A TV tem, no entanto, para criar influências nos gostos, nas atitudes, para estabelecer uma moral de padrões de comportamento. A sua força reside tanto na possibilidade de evasão como na sua capacidade de modelação. A aparelhagem áudio-visual conta com defensores convictos. Joseph T. Klapper classifica as funções atribuídas às imagens acusadas de proporcionar evasão de “relaxamento”, de estimulação da imaginação e de fornecimento de uma interacção de substituição. Segundo esta corrente de opinião, através dos mass media a pessoa não só conseguiria repousar esquecendo preocupações, como teria hipótese de estimular a imaginação e a criatividade com uma imagem de TV, uma música na rádio, ou um artigo de jornal. No plano da interacção de substituições referido por Klapper, tanto a televisão como a rádio, ao se dirigirem directamente ao telespectador ou ao ouvinte serviriam como substitutos de contactos humanos, quando estes faltam, ou satisfazem o desejo de realizá-los de maneira diferente da proporcionada pela vida quotidiana. Alardear que a televisão incita a à violência é outra das inconveniências que frequentemente lhe são atribuídas. Estudos objectivos feitos a partir inquéritos realizados em Inglaterra, América e Japão indicam que não se podem estabelecer relações “directas” entre cenas consumidas pelos utentes dos mass media e o seu comportamento posterior. As crianças, no entanto, nos seus comportamentos agressivos, servem-se do material simbólico de que dispõem e daquele que os “media” lhes fornecem. Oliver Burgelin, no livro Comunicação Social, refere que as crianças que vêem western na televisão ‘massacram” simbolicamente com normas em uso no western, aqueles que vêem filmes policiais “entrematam-se” por palavras, segundo os usos da luta entre os “gangsters” e polícias. “Mas nada permite dizer que estes comportamentos agressivos são mais números numerosos ou violentos devido aos mass media. Pode atribui-se à representação da violência um efeito catártico. A vivência fictícia das situações, estados e sentimentos de outrem dispensaria o aprofundamento das nossas próprias necessidades e conflitos. A contemplação do universo e das ascensões sociais, frequentes nos enredos televisivos, fazem-nos apropriar desses

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Obrar literaria brilhantes.

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A CAIXA DO SILÊNCIO

Para muitos cidadãos a TV é o rei dos Eletrodomésticos. É a pequena sociedade de espectáculos que se instala com pezinhos de lã até assumir o controlo da casa e faz de nós seres isolados e silenciosos, em troca da evasão que proporciona.

Georges Friedmann escreve que, para sobreviver, uma sociedade necessita que os seus membros participem num núcleo comum de símbolos correspondentes a valores, opiniões, conhecimentos, experiências. A TV é na nossa civilização tecnológica – diz o instrumento “mais mais poderoso” para fazer participar as massas em sistemas de símbolos cujo estabelecimento em comum “é necessário” para a coesão social.

Poder-se-ia fazer a apologia deste aparelho transmissor de imagens como depósito de um saber universal em que todos seriam iguais porque todos receberiam a mesma cultura. Seria uma visão optimista, se não traduzisse uma apreciação incorrecta e parcial do facto.

O processo cultural não é orientado pela televisão, mas pela situação familiar e pela inserção social do telespectador. A TV tem, no entanto, para criar influências nos gostos, nas atitudes, para estabelecer uma moral de padrões de comportamento. A sua força reside tanto na possibilidade de evasão como na sua capacidade de modelação.

A aparelhagem áudio-visual conta com defensores convictos. Joseph T. Klapper classifica as funções atribuídas às imagens acusadas de proporcionar evasão de “relaxamento”, de estimulação da imaginação e de fornecimento de uma interacção de substituição.

Segundo esta corrente de opinião, através dos mass media a pessoa não só conseguiria repousar esquecendo preocupações, como teria hipótese de estimular a imaginação e a criatividade com uma imagem de TV, uma música na rádio, ou um artigo de jornal.

No plano da interacção de substituições referido por Klapper, tanto a televisão como a rádio, ao se dirigirem directamente ao telespectador ou ao ouvinte serviriam como substitutos de contactos humanos, quando estes faltam, ou satisfazem o desejo de realizá-los de maneira diferente da proporcionada pela vida quotidiana.

Alardear que a televisão incita a à violência é outra das inconveniências que frequentemente lhe são atribuídas. Estudos objectivos feitos a partir inquéritos realizados em Inglaterra, América e Japão indicam que não se podem estabelecer relações “directas” entre cenas consumidas pelos utentes dos mass media e o seu comportamento posterior.

As crianças, no entanto, nos seus comportamentos agressivos, servem-se do material simbólico de que dispõem e daquele que os “media” lhes fornecem. Oliver Burgelin, no livro Comunicação Social, refere que as crianças que vêem western na televisão ‘massacram” simbolicamente com normas em uso no western, aqueles que vêem filmes policiais “entrematam-se” por palavras, segundo os usos da luta entre os “gangsters” e polícias. “Mas nada permite dizer que estes comportamentos agressivos são mais números numerosos ou violentos devido aos mass media.

Pode atribui-se à representação da violência um efeito catártico. A vivência fictícia das situações, estados e sentimentos de outrem dispensaria o aprofundamento das nossas próprias necessidades e conflitos. A contemplação do universo e das ascensões sociais, frequentes nos enredos televisivos, fazem-nos apropriar desses ambientes, habitá-los e viver esses golpes de sorte como se da nossa vida se tratasse.

Enquanto para uns a TV é um usufruto social, para muitos é um objecto. Antes da imagem é uma coisa que se compra e se possui, um sinal de riqueza e de integração nos imperativos da moda que precisa de estar sempre em evidência e em respeito, frente ao qual se mantém uma atitude passiva.

Para Baudrillard, a apropriação do objecto, porque é um penhor de reconhecimento, de integração e de legitimidade, não se prolonga numa pátria racional, mas na sua contínua demonstração, segundo um processo de ostentação quase religiosa, porque é um capital, o objecto deve ser rentável. Nas sociedades industriais e modernas raramente o objecto é um fetiche. O que é preciso é mostrar que ele funciona. (…)

Vê-se televisão todas as noites, seguem-se emissões diferentes e sucessivas duma ponta a outra. A falta de uma economia racional do objecto dá-se a “submissão” deliberada a uma norma económica formal e irracional: no tempo de uso absoluto.

Ao televisor é, por isso, dado o privilégio que deveria caber ao indivíduo: ser o centro da casa, o transmissor de experiências, o interlocutor do quotidiano.

Artigo publicado no Expresso, 15 de Outubro de 1988