A Capacidade de Dizer Não_ Lina Bo Bardi e a Fabrica Da Pompéia

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    UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

    LIANA PAULA PEREZ DE OLIVEIRA

    A CAPACIDADE DE DIZER NO:

    LINA BO BARDI E A FBRICA DA POMPIA

    So Paulo

    2007

  • 2

    LIANA PAULA PEREZ DE OLIVEIRA

    A CAPACIDADE DE DIZER NO:

    LINA BO BARDI E A FBRICA DA POMPIA

    Dissertao apresentada Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Arquitetura e Urbanismo

    Orientador: Prof. Dr. Abilio da Silva Guerra Neto

    So Paulo

    2007

  • 3

    O48c Oliveira, Liana Paula Perez de A capacidade de dizer no - Lina Bo Bardi e a fbrica da Pompia / Liana Paula Perez de Oliveira 2007. 200 p.: il. ; 30 cm Dissertao (Mestrado em arquitetura e urbanismo) - Ps- Ps-Graduao da Universidade Presbiteriana Mackenzie, So Paulo, 2007. Referncias bibliogrficas : p. 118-123.

    1. Arquitetura. 2. Memria. 3. Coletividade. I. Ttulo.

    CDD 720.92

  • 4

    Aos meus pais e irmos, pela dedicao e apoio.

  • 5

    AGRADECIMENTO

    Agradeo aos que de alguma forma estiveram presentes e contriburam para

    a realizao desta dissertao, ciente de que seria impossvel mencionar ou me

    recordar aqui de todos que participaram desta obra: aos meus pais pelo apoio e

    confiana, aos meus irmos sempre dispostos a ajudar, aos meus amigos por se

    fazerem presentes em momentos especiais.

    Ao meu orientador Ablio Guerra e todos os pesquisadores que se envolveram

    com o trabalho de alguma forma: Cristina Ortega, Ana Paula de Oliveira Lepori, Ana

    Carolina Bierrenbach, Anat Falbel, Zeuler Lima, Olvia de Oliveira, Eduardo Rossetti,

    Renato Anelli.

    Ao Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, pela oportunidade de estudo e crescimento

    oferecida, em especial Graziella Bo Valentinetti, Daniela Paula Rodrigues de

    Arajo, Luiz e Rafael Carvalho, Yannick Bourguignon, Sandra Moraes, Tatiana

    Russo e Margot Crescenti.

    queles que se dispuseram a ceder um pouco de seu tempo , memria e

    conhecimento em entrevistas, to preciosas para o trabalho: Andr Vainer, Marcelo

    Ferraz, Cilene Canoas, Hans Gnter Flieg, Tadeu jungle, Rubens Gerchman, Julio

    Neves.

  • 6

    Se o problema fundamentalmente poltico econmico,

    a tarefa do atuante no campo do desenho , apesar de

    tudo, fundamental. aquilo que Brecht chamava a

    capacidade de dizer no (Lina Bo Bardi)

  • 7

    SUMRIO RESUMO

    ABSTRACT

    LISTA DE FIGURAS

    INTRODUO............1

    CAPTULO 1 UM EDIFCIO ABANDONADO ESPERA DE UM

    ARQUITETO.......................................................................................3

    1.1. Uma breve histria da Fbrica da Pompia..........................................................3

    1.2. Lina Bo Bardi na Bahia .......................................................................................11

    Captulo 2 A ARQUITETURA COMO MATERIALIZAO DE UM IDERIO......24

    2.1. Interveno no existente: 1 fase do projeto.......................................................31

    2.1.1. Os galpes e suas atividades..........................................................................36

    2.1.2. Mobilirio..........................................................................................................51

    2.1.3. Comunicao visual.........................................................................................63

    2.1.4. Restaurao concluda.....................................................................................68

    2.2. Construo do novo: 2 fase do projeto..............................................................70

    CAPTULO 3 A EXPOSIO COMO MANIFESTAO DE UM IDERIO..........83

    3.1. Conceito de exposio artstica em Lina Bo Bardi..............................................84

    3.2. Design no Brasil: histria e realidade..................................................................91

    3.3. Mil Brinquedos para a Criana Brasileira............................................................96

    3.4. O belo e o direito ao feio...............................................................................100

    3.5. Pinocchio...........................................................................................................103

    3.6. Caipiras, Capiaus: Pau-a-Pique........................................................................106

    3.7. Entreato Para Crianas.....................................................................................110

    CONCLUSO..........................................................................................................115

    BIBLIOGRAFIA........................................................................................................118

    ANEXOS..................................................................................................................124

    Anexo 1: Entrevista com Rubens Gerchman...........................................................125

    Anexo 2: Entrevista com Julio Neves.......................................................................136

    Anexo 3: Entrevista com Cilene Canoas..................................................................138

    Anexo 4: Entrevista com Andr Vainer....................................................................156

    Anexo 5: Entrevista com Hans Gutter Flieg.............................................................169

    Anexo 6: Entrevista com Marcelo Ferraz.................................................................174

    Anexo 7: Entrevista com Tadeu Jungle....................................................................189

    Anexo 8: Desenhos Sesc Pompia..........................................................................195

  • 8

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - Vista da Fbrica da Pompia antes da Reforma.........................................2

    Figura 2 - Vista area geral da Fbrica da Pompia antes da Reforma.....................3

    Figura 3 - A Fbrica de tambores da Pompia............................................................4

    Figura 4 - A Fbrica de tambores da Pompia............................................................5

    Figura 5 - A Fbrica da IBESA- Industria Nacional de Embalagens S. A. que instala

    o espao a fabrica de carcaas de geladeiras querosene Gelomatic.......................5

    Figura 6 - Planta de situao projeto arquiteto Julio Neves para o Sesc Pompia. Na

    seqncia, da esquerda para a direita; piscinas, quadras poliesportivas, bloco de

    atividades gerais, rua interna sem sada (crrego das guas pretas),

    administrao...............................................................................7

    Figura 7 - Guirardelli Square, vista da rua Hyde, pier So Francisco..........................8

    Figura 8 - Atividades no Sesc Pompia antes do restauro..........................................8

    Figura 9 - Atividades no Sesc Pompia antes do restauro.................................... .....9

    Figura 10 - Recuperao do edifcio do Solar do Unho,Salvador.............................9

    Figura 11 - Milo, maio, 1945. Bahia del Re, Lina Bo Bardi em bairro popular

    construdo durante o fascismo, poucos dias aps o fim da

    guerra.........................................................................................................................10

    Figura 12 - Estudo de Lina para mobilirio Solar do Unho. Dec. 50/60..................12

    Figura 13 - Monte Santo, Bahia. Filmagem de Deus e o Diabo na Terra do Sol de

    Glauber Rocha. Da esquerda para direita: Paulo Gil Soares, o cmera Waldemar

    Lima, Glauber Rocha e Lina Bo Bardi. 29/jul./1963...................................................16

    Figura 14 - Exposio Mario Cravo, realizada no MAMB..........................................18

    Figura 15 - Lina no Solar do Unho, aps a restaurao. 1963................................19

    Figura 16 - Solar do Unho, aps a restaurao. 1963.............................................20

    Figura 17 - Convite para a Inaugurao do Solar do Unho.....................................22

    Figura 18 - Croqui de Lina Bo Bardi para a escada do Unho. 1963........................22

    Figura 19 - Pea encenada no Unho. 1963.............................................................23

    Figura 20 - Pea encenada no Unho.1963..............................................................23

    Figura 21 - Maquete..................................................................................................24

    Figura 22 - Vista do possvel futuro do Sesc Pompia..............................................25

  • 9

    Figura 23 - Quarto de arquiteto.................................................................................26

    Figura 24 - Lina, Andr Vainer e Marcelo Ferraz no Sesc Pompia...........................28

    Figura 25 - Lanchonete para o bloco esportivo.........................................................29

    Figura 26 - Sesc Pompia em obras.........................................................................34

    Figura 27 - Retirada do reboco das paredes originais do Galpo de Atividades

    gerais. Abril/80...........................................................................................................34

    Figura 28 - Detalhe da tubulao aparente do Sesc.................................................35

    Figura 29 - Detalhe das trelias do galpo de atividades gerais...............................35

    Figura 30 - Retirada do reboco das paredes originais do Galpo de Atividades

    gerais. Abril/80............................................................................................................36

    Figura 31 - Atividade na rua interna..........................................................................37

    Figura 32 - Inicio das obras na rua interna................................................................38

    Figura 33 - Calha de concreto e alvenaria revestida com seixos rolados................ 39

    Figura 34 - Primeiros estudos para a restaurao da fbrica...................................40

    Figura 35 - Concretagem do contrapiso do leito do rio. Dezembro/1979...............42

    Figura 36 - Rio com a forrao de seixo rolado e piso do galpo com revestimento

    de pedra mineira. Janeiro/1980..................................................................................42

    Figura 37 - Montagem das formas da sala de leitura e biblioteca.............................43

    Figura 38 - Salas de leitura e piso prontos................................................................43

    Figura 39 - Foyer teatro.............................................................................................44

    Figura 40 - Foyer teatro.............................................................................................45

    Figura 41 - Teatro-auditrio.......................................................................................46

    Figura 42 - Apresentao do Fbrica do Som no teatro do Sesc Pompia............46

    Figura 43 - Estudo para disposio dos atelis.........................................................47

    Figura 44 - Vista geral dos atelis.............................................................................48

    Figura 45 - Vista restaurante do Pompia obras...................................................... 49

    Figura 46 - Vista geral restaurante do Pompia........................................................50

    Figura 47 - Cadeira Masp 7 de abril..........................................................................52

    Figura 48 - Cadeira Z madeira compensada.............................................................53

    Figura 49 - Cadeira madeira compensada e chita.....................................................54

    Figura 50 - Cadeira trip em madeira assento removvel em couro..........................55

    Figura 51 - Cadeira preguiosa.................................................................................55

    Figura 52 - Cadeira Bowl publicidade.....................................................................56

    Figura 53 - Cadeira auditrio teatro Castro Alves.....................................................58

  • 10

    Figura 54 - Mobilirio desenvolvido para o galpo de atividades gerais...................59

    Figura 55 - Mobilirio desenvolvido para o galpo de atividades gerais...................59

    Figura 56 - Estudo de roupas para o teatro............................................................60

    Figura 57 - Mobilirio desenvolvido para crianas....................................................61

    Figura 58 - Concretagem mobilirio restaurante.......................................................62

    Figura 59 - Mobilirio desenvolvido para restaurante................................................62

    Figura 60 - Homenagem a Torres Garcia..................................................................64

    Figura 61 - Totem na entrada do Sesc Pompia.......................................................65

    Figura 62 - Desenho indicao comunicao visual.................................................65

    Figura 63 - Desenho mascara teatro.........................................................................66

    Figura 64 - Desenho elementos comunicao visual................................................66

    Figura 65 - Desenho logotipo....................................................................................67

    Figura 66 - Desenho logotipo entrada Sesc Pompia...............................................67

    Figura 67 - Atividades no Sesc Pompia...................................................................68

    Figura 68 - Desenho almoo no Pompia.................................................................69

    Figura 69 - Vista externa Sesc Pompia...................................................................70

    Figura 70 - Obras de restaurao na fbrica adquirida elo REDE, Providence........71

    Figura 71 - Primeiros estudos para o Sesc Pompia................................................72

    Figura 72 - Primeiros estudos para o Sesc Pompia................................................72

    Figura 73 - Estudo para bloco esportivo Sesc Pompia............................................72

    Figura 74 - Estudo para a pintura do banheiro feminino bloco esportivo..................74

    Figura 75 - Bloco esportivo Sesc Pompia................................................................75

    Figura 76 - Flor de mandacaru..................................................................................75

    Figura 77 - Quadra esportiva outono......................................................................76

    Figura 78 - Estudos para quadra esportiva...............................................................77

    Figura 79 - Piscina bloco esportivo............................................................................78

    Figura 80 - Janela buraco..........................................................................................78

    Figura 81 - Deque Atlantic City. Venturi/ Scott Brown...............................................80

    Figura 82 - Chuveiro ao ar livre solarium...................................................................80

    Figura 83 - Chamin-Caixa dgua do Pompia........................................................82

    Figura 84 - Torres da cidade satlite (1957-1958) de Barragn................................82

    Figura 85 - Chamin-Caixa dgua do Pompia em obras........................................82

    Figura 86 - Masp 7 de abril: primeiro andar do museu..............................................85

    Figura 87 - Franco Albini. Galeria Palazzo Bianco in Genova 1950 51..............87

  • 11

    Figura 88 - Pinacoteca Masp.....................................................................................88

    Figura 89 - Exposio Burle Marx MAMB..................................................................90

    Figura 90 - Exposio de artistas do Nordeste no Solar do Unho..........................90

    Figura 91 - Geral da primeira parte da exposio de design.....................................94

    Figura 92 - Geral da segunda parte da exposio de design....................................94

    Figura 93 - Exposio Design no Brasil: histria e realidade....................................95

    Figura 94 - Exposio Design no Brasil: histria e realidade....................................95

    Figura 95 - Vista geral da exposio Mil brinquedos para a criana brasileira.........98

    Figura 95 - Playmobil................................................................................................98

    Figura 96 Bonecos.................................................................................................99

    Figura 97 - Brinquedos exposio............................................................................99

    Figura 98 - Vista Geral da exposio......................................................................101

    Figura 99 Mveis..................................................................................................101

    Figura 100 - Cama e roupas....................................................................................102

    Figura 101 - Painis Exposio...............................................................................102

    Figura 102 - Vista geral exposio Pinocchio..........................................................104

    Figura 103 - A baleia ..............................................................................................105

    Figura 104 - Menino na boca da baleia...................................................................105

    Figura 105 - Vista geral exposio..........................................................................108

    Figura 106 - Cobra..................................................................................................108

    Figura 107 - Estudo para o Cartaz .........................................................................109

    Figura 108 - Contra-kafka .......................................................................................109

    Figura 109 - Forno de barro e casa de Pau-a-pique. 1984.....................................112

    Figura 110 - O capito com a mulher, Dna Tereza. 1984........................................112

    Figura 111 - Capela.1984........................................................................................113

    Figura 112 - Sanfoneiras na festa de abertura........................................................113

    Figura 113 - Galinhas, Vacas e Porcos na Exposio. 1984..................................114

    Figura 114 - Desenho de chapu utilizado no Cartaz da exposio. 1984.............114

    Figura 115 - Lina Bo Bardi obras Sesc................................................................ 115

  • 12

    INTRODUO

    No projeto do Sesc Pompia, encontramos um momento de maturidade na

    obra da arquiteta Lina Bo Bardi. Nela possvel vislumbrarmos sua trajetria de vida

    e, em especial, seu entendimento do Brasil, fruto de intensa pesquisa dos valores

    genunos da populao.

    Lina afirma, em escrito encontrado em seus arquivos, A arquitetura o

    espelho da personalidade de quem a escolhe, a habita ou de quem a projeta. A

    dissertao procura evidenciar esse mundo da arquiteta: os iderios, as suas

    verdades que a leva para certas tomadas de posio singulares; a leva a

    constituio de um mundo com o povo e para o povo, real mas tambm potico.

    A arquitetura vivida por ela em seu sentido lato: intervenes urbanas,

    exposies, design, trajes, cenografias de teatro. A pesquisa investiga essas

    questes atravs de todo o processo desenvolvido na Fbrica de Lazer da Pompia.

    No antigo bairro fabril da Pompia, uma rua de paraleleppedos nos convida a

    visitar os diversos galpes de tijolos e concreto aparente: mundos distintos onde

    interatuamos com a pequena experincia socialista1 de Lina Bo Bardi: direita, o

    Galpo de Atividades Gerais, onde pessoas de diversos tipos, cores, tamanhos,

    idades lem jornais e revistas, encontram-se apenas sentados, conversam,

    descansam. Percorremos adiante uma rea mltiplas funes onde serpenteia o Rio

    So Francisco em sua legtima funo de unir diversos tipos em torno de si. Logo

    em seguida encontramos o galpo teatro-arena e seu foyer, tambm utilizado como

    espao expositivo, e, mais alm, o galpo de oficinas. Ao fundo trs imponentes

    torres de concreto dividem a paisagem com os novos prdios que surgiram na

    regio. A comprida torre cilndrica, chamin-forte-caixa dgua marco da cidadela.

    Um outro prdio robusto que abre janelas-buraco para a cidade cinzenta, causando

    estranheza ou alegria aos transeuntes, abraa um bloco mais alongado e estreito,

    atravs de passarelas de concreto que atravessam um solarium de madeira, local de

    lazer e estar, onde pessoas tomam sol ou assistem a algum show eventual.

    1 BARDI, Lina Bo. Sesc Pompia. Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi.

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    As experincias da arquiteta modificaram a maneira de lidar com o lazer, com

    a cultura, com o espao. Numa tarde de quarta feira em meados de 2006, o rudo de

    uma modinha antiga me levou para o galpo-restaurante-choperia situado

    esquerda do conjunto horizontal. Senhoras elegantes, aprumadas em vestidos

    rodados bailavam, namoravam. Outros senhores levavam mocinhas pequenas

    encantadas com a festa. Jovens observavam entusiasmados e arriscavam alguns

    passos, estrangeiros procuravam entender o que ocorreria naquela antiga fbrica

    adaptada ao lazer. Era o dia do baile da terceira idade na cidadela, projetada para

    todas as idades, para o estar, deitar, falar, brincar, danar. Uma estrutura to dura,

    mas to cheia de textura e cor onde acontecia mgica: numa cidade entulhada e

    ofendida pode, de repente, surgir uma lasca de luz, um sopro de vento 2, diz o texto

    de introduo Sesc.

    Figura 01 - Vista da Fbrica da Pompia antes da Reforma Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ crdito

    2 LATORRACA, Giancarlo (ed.) Texto de introduo Sesc. Cidadela da Liberdade. So Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, Sesc- Servio Social do Comrcio,1999.

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    CAPITULO 1 UM EDIFCIO ABANDONADO ESPERA DE UM

    ARQUITETO

    1.1. Uma breve histria da Fbrica da Pompia

    Figura 02 - Vista area geral da Fbrica da Pompia antes da Reforma

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Foto Peter Sheier

    O terreno que abriga hoje o Sesc Pompia fazia parte da chcara do Bananal.

    Em 1911 foi vendida Companhia Urbano Predial, que inicia o loteamento urbano

    na rea. Existem registros de que em 1915 Daniel Heydenreich ganha posse da

    terras numa hipoteca, e, em 1922 a vende para Adolf Heydenreich. Em 1936 a firma

    alem Mauser & Cia Ltda adquire uma primeira parte do terreno, complementando-

    o em 1938, ano de construo da fbrica destinada fabricao de tambores3. Sua

    tipologia foi fundamentada num projeto ingls do incio do sculo, o que se manifesta

    em sua estrutura simples e rigorosa, com detalhes tipicamente ingleses, como a

    3 C. f. BARBARA, Fernanda. Espaos culturais na obra de Lina Bo Bardi: uma anlise do Sesc Pompia. Iniciao cientfica FAPESP. So Paulo, 1993, p 7-8.

  • 15

    utilizao de tijolos aparentes e rebocados, estrutura de ferro e concreto, simetria de

    planos, sheds para iluminao zenital.

    A utilizao de projetos ingleses no comeo da industrializao brasileira foi muito comum. A fbrica de Tambores dos irmos Mauser, transformada no Sesc-Pompia em So Paulo, as Indstrias Reunidas Matarazzo juntamente com outras fbricas deste perodo, distribudas pelos bairros do Brs e Mooca e pelo interior de So Paulo, como o engenho Central em Piracicaba, exemplificam esta tipologia de edio fabril. No Rio de Janeiro a Fbrica de Tecidos Botafogo caracteriza as fbricas deste perodo 4.

    Figura 03 - A Fbrica de tambores da Pompia

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Foto H.G. Flieg

    4 CASTRO, Cleusa de. Permanncias, transformaes e simultaneidades em Arquitetura. Dissertao de mestrado. Porto Alegre, FAU-PROPAR-UFRGS,2002.

  • 16

    Figura 04 - A Fbrica de tambores da Pompia

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Foto H.G.Flieg

    Devido a motivos polticos referentes Segunda Guerra Mundial, o terreno foi

    embargado e leiloado no ano de 1945, quando a Ibesa Indstria Nacional de

    Embalagens S.A. coordenada pela Confab Cia. Nacional de Forjagem de Ao

    Brasileiro5 o adquire, instalando posteriormente em seu espao a fbrica de

    geladeiras querosene Gelomatic. A Ibesa funcionava como uma linha de

    montagem na Pompia. L eram fabricadas as carcaas da geladeira. Mais tarde, a

    fbrica foi desativada, vendendo-o no ano de 1971 para o Sesc.

    Figura 05 - A Fbrica da IBESA- Industria Nacional de Embalagens S. A. que instala o espao a fabrica de carcaas de

    geladeiras querosene Gelomatic Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Crdito H. G. Flieg

    5 A Confab comeou a funcionar em 1942, com a fundao da IBESA Indstria Brasileira de Embalagens S.A., para a produo de tambores de ao. Pouco depois, passou a produzir botijes para GLP, tanques para postos de gasolina, alm de outros produtos como refrigeradores. Disponvel em www.enfoque.com.br. Acesso: jul./2007.

  • 17

    O Sesc Servio Social do Comrcio elabora, de 1969 a 1974 um novo

    plano de trabalho, o qual englobava a construo de uma ampla rede de centros

    sociais maiores e mais modernos nas principais cidades do Estado e nos quatro

    pontos cardeais da cidade de So Paulo 6. Sob a administrao de Papa Junior, o

    Sesc procurava um terreno para a criao de um centro cultural e esportivo na zona

    oeste da cidade, o que o leva a adquirir o terreno da Pompia. Inicialmente, a idia

    era a de aproveitar somente o terreno para a construo do novo centro cultural

    esportivo urbano. Um primeiro projeto foi elaborado pelo arquiteto Julio Neves.

    Aps a elaborao de diversos estudos, a adequao do programa foi proporcionada atravs de sua distribuio em dois novos blocos, sendo um horizontal e outro vertical. A partir da definio adotada pela entidade, nosso escritrio elaborou os desenhos que foram submetidos aprovao da Municipalidade o que ocorreu em 05/12/1975, com a expedio do competente alvar de obra. A seguir, o projeto arquitetnico foi devidamente compatibilizado com os demais projetos complementares, contratados diretamente pelo Sesc e destinados execuo da obra. Nossos trabalhos foram concludos e entregues em janeiro de 1977.7

    Segundo o arquiteto Julio Neves seu projeto no foi realizado por razes

    econmico-financeiras.

    No incio de 1977, com o projeto executivo em mos e de posse de oramento mais detalhado da obra e, ainda, em funo da conjuntura econmico-financeira de ento, a direo do Sesc optou por suspender a programao de incio da obra e reformular seus objetivos fixados anteriormente para o empreendimento. A arquiteta Lina Bo Bardi foi encarregada da elaborao de um projeto que mantivesse as edificaes existentes, aproveitando-as, reformando-as e complementando-as com o que mais fosse necessrio.8

    6 REQUIXA, Renato. Introduo pasta portflio Sesc Pompia. Arquivo ILBPMB. S/data. 7 Entrevista realizada com o Arquiteto Julio Neves. So Paulo, 18.01.07. Anexo.

    8 Ibidem.

  • 18

    Figura 06 - Planta de situao projeto arquiteto Julio Neves para o Sesc Pompia. Na seqncia, da esquerda para a

    direita; piscinas, quadras poliesportivas, bloco de atividades gerais, rua interna sem sada (crrego das guas pretas), administrao

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi

    A preocupao e deciso em preservar a estrutura da antiga fbrica e

    consequentemente a histria da formao do bairro ocorreu por parte da equipe do

    Sesc. Segundo o arquiteto Marcelo Ferraz, Renato Requixa (diretor regional do

    Sesc) e Glucia Amaral (diretora do Sesc) realizaram uma viagem a So Francisco,

    quando conheceram o Ghirardelli Square9, bloco residencial transformado em centro

    para o comrcio e o lazer. Os diretores vislumbraram a idia de transformar os

    galpes industriais recm adquiridos na Pompia, agregando valor ao

    empreendimento.

    9 Disponvel em: http://www.ghirardellisq.com/ghirardellisq/ . Acesso: jul./2007

  • 19

    Figura 07 Guirardelli Square, vista da rua Hyde, pier So Francisco

    Fonte: www.chirowerkz. S/ Crdito

    A antiga fbrica foi utilizada pelo Sesc precariamente entre os anos de 1973 e

    1976. L funcionava uma sede de um grupo de escoteiros e atividades como artes

    marciais, ginstica, jogos esportivos e teatro infantil.

    Figura 08 - Atividades no Sesc Pompia antes do restauro Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

  • 20

    Figura 09 - Atividades no Sesc Pompia antes do restauro Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

    A direo do Sesc optou por convidar a arquiteta Lina Bo Bardi para realizar o

    projeto de restauro na fbrica da Pompia. A arquiteta j havia realizado um projeto

    de restauro no Solar do Unho, em Salvador, importante conjunto arquitetnico do

    sculo XVI, um complexo agro-industrial dos engenhos de acar utilizado como

    fbrica de rap e trapiche, onde trabalhou com intervenes significativas

    evidenciando suas transformaes ao longo da histria, adaptando-o para ocupao

    do Museu e Arte Popular e Escola de Desenho Industrial.

    Figura 10 - Recuperao do edifcio do Solar do Unho,Salvador

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Foto W.Ninck

  • 21

    A equipe de planejamento do Sesc forneceu a Lina uma lista das

    necessidades objetivas do projeto para a realizao do espao. Essa lista se

    equivale ao programa recebido pelo arquiteto Julio Neves, que compreendia reas

    de escritrio e servios gerais no setor administrativo e o setor cultural e desportivo

    provido de biblioteca, rea para exposies/estar, lanchonete/cozinha, teatro,

    ambulatrio, rea para fisioterapia, quadras de esporte e ginstica, piscina,

    vestirios e sanitrios.

    [O programa desenvolvido por Lina] um programa muito parecido num certo sentido mas com outro enfoque. Ele concentrava tudo em um prdio, tinham umas piscinas ao ar livre, um pouco dentro dos moldes do que estava sendo feito o naquela poca que era o centro de Santos e logo em seguida o projeto do centro campestre. Logo antes da Pompia tinha sido feito um centro grande em Santos e tambm estava sendo feito pelo [Alberto Rubens] Botti acho o centro campestre [Interlagos,1976] que so em outros moldes. Piscinas grandes, reas externas grandes e construes novas para abrigar sobretudo as funes de lazer e de apoio ao esporte. Acho que na Pompia, como a rea dos galpes validamente equivalente rea de esportes, o caminho, o uso, para a utilizao da fbrica a parte antiga como centro cultural foi muito exacerbado. Passou a ter uma importncia muito maior do que nos outros Sescs. 10

    * * *

    Lina Bo Bardi participou de ambiente propcio para o desenvolvimento de uma

    postura voltada para o social em sua formao, marcante na Itlia ps-segunda

    guerra mundial. Vinculado a esse contexto encontramos: a arquitetura e design

    desenvolvidos por Gi Ponti que prope uma modernizao do artesanato italiano

    atravs dos valores culturais do povo, sendo que Lina colabora nesta direo

    participando das revistas Domus, Lo Stille e Bellezza e tambm com trabalhos

    espordicos; os pensamentos do poltico italiano Antonio Gramsci (1891-1937),

    voltados para o Nacional-Popular e sempre presentes nos estudos da arquiteta; e o

    cinema neo-realista, que revolucionou a arte cinematogrfica com sua abordagem

    humanista, o uso de temas cotidianos, o retrato das runas morais e fsicas de um

    pas devastado pela guerra, tendo como maiores representantes Vittorio de Sicca

    (1902-1974) e Roberto Rossellini (1906-1977). Em meio a essa atmosfera, a

    arquiteta buscou recursos criativos de sobrevivncia, as bases para o

    desenvolvimento industrial do povo italiano no segundo ps-guerra porm se depara

    10 Entrevista realizada com o Arquiteto Andr Vainer. So Paulo: jul. 2007. Anexo.

  • 22

    com a nova sociedade de consumo do mundo ocidental. Ao invs de solues

    voltadas para os valores do povo, encontrou os enlatados americanos e toda uma

    cultura voltada para o consumo.11 Em 1946 casa-se com o marchand e crtico de

    arte, Pietro Maria Bardi, embarcando para o Brasil

    Figura 11 Milo, maio, 1945. Bahia del Re, Lina Bo Bardi em bairro popular construdo durante o fascismo, poucos

    dias aps o fim da guerra Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

    1.2. Lina Bo Bardi na Bahia

    Chegando ao Brasil em 1946, a arquiteta se depara com a possibilidade de

    envolvimento com os valores de um povo numa sociedade livre das runas, da

    histria, do domnio do mundo ocidental de consumo. Um pas aberto, repleto de

    possibilidades. E foi na Bahia, nas dcadas de 50/60, que ocorreu o grande divisor

    de guas de sua vida. A arquiteta se aprofundou na realidade brasileira atravs de

    seus aspectos sociais e antropolgicos. Sua arquitetura desde ento passou a

    contemplar a capacidade criadora popular e peculiaridades que encontrou na regio.

    11 FERRAZ, Marcelo. Texto extrado de palestra. Chile, Viena, s/ data.

  • 23

    De uma parte, aprendendo a reconhecer e a ler a nossa especificidade cultural. De outra, realizando intervenes onde ntido o peso conferido ao seu carter ou alcance social, no sentido poltico e no cientfico do vocbulo. Lina soube olhar a rede, por exemplo, a um s tempo leito e poltrona, cuja aderncia perfeita forma do corpo, o movimento ondulante, fazem dela um dos mais perfeitos instrumentos de repouso. Soube ver uma colcha-de-retalhos numa feira nordestina pelo prisma de quem fora educada em Albers/Mondrian, mas sem extra-la de seu contexto.12

    Figura 12 - Estudo de Lina para mobilirio Solar do Unho. Dec 50/60 Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Desenho Lina Bo Bardi

    Lina se aproxima a vertente do incio do modernismo brasileiro, onde surge o

    conceito de integrao entre a vanguarda europia e a tradio cultural brasileira,

    sustentada nas obras de Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Raul Bopp. O

    iderio de Lina acerca do desenvolvimento da cultura brasileira adequa-se sobretudo

    viso adotada por Mrio de Andrade, onde existe uma procura da autenticidade da

    civilizao brasileira, conectada em relao Europa, mas diferenciada. Existe uma

    tentativa de erudio das artes brasileiras, estruturadas a partir de um fator cultural.

    Mario de Andrade desenvolveu extensa pesquisa acerca dos costumes populares

    brasileiros. Em sua dissertao de mestrado, Ablio Guerra ponderou a respeito do

    livro Ensaio sobre a Msica Brasileira, de Mrio de Andrade,

    12 RISRIO, Antonio. Avant-Garde na Bahia. So Paulo, Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995, p.113.

  • 24

    A msica erudita qualitativamente melhor do que a msica popular, mas nesta que se reflete as caractersticas musicais da raa. O trabalho de composio deveria, portanto, se constituir de dois momentos: o primeiro seria coligir os ritmos, as melodias e as instrumentaes populares; no segundo, se daria a elaborao erudita a partir do material coletado. O valor de uma obra no est em sua originalidade, mas na sua autenticidade e o msico deve sacrificar sua individualidade e se engajar na arte interessada.13

    A condio primitiva aparece como essencial para o surgimento de uma

    civilizao autntica. presente tambm em Mario de Andrade o estabelecimento

    de uma conscincia nacional para o desenvolvimento dessa cultura, uma tendncia

    realista, conectada ao desenvolvimento histrico da sociedade.

    O momento poltico pelo qual o Brasil atravessava propiciou a liberdade necessria

    para o desenvolvimento artstico e cultural: foi entre os governos de Getlio Vargas e

    Joo Goulart que a Bahia passou por esse momento de redemocratizao.

    Sob JK, tivemos a combinao de duas realidades to raras quanto fundamentais, em termos brasileiros. De uma parte; o pas experimentou um ritmo indito de crescimento, da expanso urbana abertura e asfaltamento de estradas, passando pela implantao da indstria automobilstica e pelas obras de Braslia. De outra parte vivemos anos de grande liberdade as discusses corriam sem entraves, idias circulavam em sua inteireza inexistiam presos polticos no pas, os comunistas se movimentavam tranquilamente. Nesse clima de liberdade e desenvolvimento, o Brasil se convenceu de que era dono do seu nariz. De que tinha o futuro em suas mos. E todo projeto corria o srio risco de poder trocar a luz do sonho pela luz do sol.14

    Sob a administrao do reitor Edgard Santos e a Universidade Federal da

    Bahia, com efetiva participao de um governo democrtico e classe estudantil,

    houve uma significante ao cultural focada no desenvolvimento cultural e artstico

    baianos. Com a incurso de intelectuais de diversas reas de atuao como

    Agostinho da Silva que cria o CEAO Centro de Estudos Afro-Orientais, Hans

    Joachim Koellreuter e os seminrios livres de msica, Martim Gonalves e a escola

    de teatro, Yanka Rudzka e a escola de dana, o etngrafo Pierre Verger, e, por fim,

    Lina Bo Bardi, que dirige o MAMB Museu de Arte Moderna da Bahia. O ambiente

    cultural baiano viveu esse momento de vanguarda, atuando com experimentos

    13 GUERRA, Ablio. O homem primitivo: origem e conformao o universo intelectual brasileiro (sculos XIX e XX). Dissertao de mestrado. Campinas, Faculdade de Historia da Universidade de Campinas UNICAMP, p.158.

    14 RISRIO, Antonio. Avant Garde na Bahia. So Paulo, Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995, p.17.

  • 25

    inditos no campo da arte e cultura. Deste, podemos testemunhar importantes frutos

    como o Cinema Novo e a Tropiclia.

    Mestres como Lina Bo Bardi, Agostinho da Silva e Hans Joachim Koellreutter foram, portanto, formadores de mentalidades e de sensibilidades, faris da liberdade de pesquisa e da aventura criadora, em suma: encarnaes de uma pedagogia da inquietude [...]. E o fato que o iderio dessa gente de Lina e de Agostinho, sobretudo permanece ainda hoje vivo em meio vida esttico intelectual da Bahia.15

    Parte dessa nova elite cultural que participou do avant-garde era de origem

    estrangeira: a Bahia se abriu para considervel fluxo internacional de informaes

    esttico-intelectuais e se preparou para intervir sob os signos da modernidade. O

    grupo de intelectuais acreditava existir ali a possibilidade de sada do estgio de

    colonialismo cultural, com o rompimento dos laos de dependncia aos pases

    industrializados.

    Em abril de 1958, convidada por Edgard Santos a proferir duas palestras na

    Universidade Federal da Bahia, Lina enfatizou a necessidade de humanizao da

    arquitetura contempornea. Ao 1 de Agosto retornou com o intuito de compartilhar

    dessa ao cultural em Salvador, convidada a dar as aulas na cadeira de Teoria e

    Filosofia da Arquitetura junto com o professor Digenes Rebouas. Na ocasio, o

    ento governador Juracy Magalhes a convidou a dirigir o MAMB Museu de Arte

    Moderna da Bahia, cargo que exerceu at o ano de 1964. Restaurou o Solar do

    Unho, instalando ali o Museu de Arte Popular e a Escola de Desenho Industrial da

    Bahia, participou do movimento teatral que despontava, projetando o cenrio para as

    peas Calgula (Albert Camus) e pera dos trs tostes (B. Brecht e K. Weill)

    organizada por Martim Gonalves, diretor da Escola de Teatro da Universidade da

    Bahia, e tambm assumiu a direo da Pgina Dominical do Dirio de Notcias da

    Bahia, onde trabalhou com a importncia de se considerar as bases populares

    tradicionais para a constituio de uma sociedade autntica do ponto de vista

    artstico e cultural. Desenvolveu temas como a conscincia do patrimnio

    cultural/material e a formao de conceitos como cultura, civilizao, arte.

    15 RISRIO, op. cit., p.26.

  • 26

    Essa preocupao da arquiteta em documentar a cultura brasileira,

    conciliando-a com a modernidade vem desde os anos 1950, quando era recm-

    chegada ao Brasil, o que observamos ao inaugurar junto com Pietro Maria Bardi a

    revista Habitat (1950).

    A histria das artes no Brasil continua ainda em grande parte indita: por enquanto no passa de uma crnica contempornea que progride com surpreendente celeridade. Assim que o passado to rico em temas para a reevocao e a efervescente atividade do presente no encontraram ainda uma documentao e uma informao adequadas realidade e sua importncia, embora dia a dia aumente o desejo de se conhecer o que se faz no pas e fora dele em matria de arte [...] Habitat significa ambiente, dignidade, convenincia, moralidade de vida, e portanto espiritualidade e cultura: por isso que escolhemos para ttulo dessa nossa revista uma palavra intimamente ligada arquitetura, a qual damos um valor e uma interpretao no apenas artstica, mas uma funo artisticamente social.16

    Em sua dissertao17, Ablio Guerra desenvolve a questo de que um fato

    cultural nunca a expresso natural de uma toda coletividade, mas um

    entendimento de mundo formado a partir da unificao de antigas tradies com

    uma dada realidade histrica. Como no existem sociedades homogneas sem

    alguma diferenciao de grupo ou indivduo, no existe uma cultura harmnica e

    universal. A representao do mundo traduz uma luta poltico-ideolgica e sempre

    ser repleta de contradies. Atravs desse raciocnio insiro a ao de Lina no

    Brasil. A partir do seu entendimento de mundo Lina contemplou um imaginrio sobre

    um caminho futuro para a cultura considerada erudita ou culta com base em tomada

    de conscincia histrico-cultural do pas. O desenvolvimento das novas tcnicas de

    reproduo trouxe um exame do conceito da arte, que substitui o seu carter cultual,

    de origem, por um carter calcado na realidade.

    A expresso que Lina utiliza para sintetizar o que seria a Fbrica de Lazer da

    Pompia, desenvolvida por Ferreira Gullar,

    A cultura popular , em suma, a tomada de conscincia da realidade brasileira. Cultura popular compreender que o problema do analfabetismo, como o da deficincia de vagas nas universidades, no est desligado da condio de misria do campons, nem da dominao imperialista sobre a economia do pas. Cultura popular

    16 BARDI, Lina Bo. Prefcio. Revista Habitat n. 1. So Paulo, Habitat Editora Ltda., out./dez., 1950. 17 GUERRA, Ablio. O homem primitivo: origem e conformao o universo intelectual brasileiro (sculos XIX e XX). Dissertao de Mestrado. Campinas, Faculdade de Historia da Universidade de Campinas UNICAMP.

  • 27

    compreender que as dificuldades por que passa a industria do livro, como a estreiteza do campo aberto s atividades intelectuais, so frutos da deficincia do ensino e da cultura, mantidos como privilgios de uma reduzida faixa da populao. Cultura popular compreender que no se pode realizar cinema no Brasil, com o contedo que o momento histrico exige, sem travar uma luta poltica contra os grupos que dominam o mercado brasileiro. compreender, em suma, que todos esses problemas s encontraro soluo se realizarem-se profundas transformaes na estrutura scio econmica e consequentemente no sistema de poder. Cultura popular , portanto, antes de mais nada, conscincia revolucionria.18

    A arquiteta procurou trabalhar a conscincia histrica e cultural do pas. Sua

    observao pessoal da cultura popular brasileira e desenvolvimento ao longo dos

    anos acabou por instituir suas prprias convices que foram determinantes para o

    projeto da Fbrica de Lazer da Pompia

    Retomando o Museu de Arte Moderna da Bahia, ele surge com propostas

    educativas, tornando-se parte do projeto de modernidade social e cultural de

    Salvador.

    Figura 13 - Monte Santo, Bahia. Filmagem de Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha. Da esquerda para

    direita: Paulo Gil Soares, o cmera Waldemar Lima, Glauber Rocha e Lina Bo Bardi. 29/jul./1963 Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

    Publicado no livro Avant Garde na Bahia

    18 GULLAR, Ferreira. Cultura Posta em Questo. Rio de Janeiro, Editora Civilizao Brasileira S.A., 1965.

  • 28

    O museu nasceu em janeiro de 1960, funcionando provisoriamente no antigo

    foyer do Teatro Castro Alves, situado no bairro do Campo Grande, em Salvador. O

    projeto do Teatro dos arquitetos Bina Fonyat e Humberto Lopes, recebendo

    meno honrosa na 1 Bienal de Artes Plsticas de So Paulo. Sua criao surgiu

    de uma antiga reivindicao da classe artstica e cultural da Bahia, aprovada no

    governo de Antonio Balbino (1955-59), passando por dois incndios.

    O primeiro incndio ocorreu cinco dias antes de sua inaugurao, prevista

    para o dia 14 de julho de 1957. A verso oficial a de que um curto circuito causou

    o incndio do futuro espao cultural. A obra foi reconstruda aps nove anos,

    ocasio de funcionamento do Museu de Arte Moderna no espao. No dia 04 de

    maro de 1967 o teatro por fim inaugurado, na presena do ento presidente

    Castelo Branco e do governador Lomanto Jnior. Foi um espao de intensa agitao

    cultural, e no final dos anos 80, j degradado, passou por outro incndio, sendo

    reformado e reinaugurado novamente em julho de 1993.19

    Durante a adequao do MAMB no foyer do espao foi instalado tambm um

    auditrio-cinema para conferncias e debates na rampa de acesso. J nos

    subterrneos funcionava uma escola de iniciao artstica para crianas com escola

    de Teatro e Seminrios livres de msica.

    A verba reduzida do MAMB no permitia grandes aquisies, mas Lina obteve

    diversos emprstimos com o MASP Museu de Arte de So Paulo, atravs de

    Pietro Maria Bardi, e, com recursos adquiridos, o MAMB chegou a possuir

    importante coleo de artistas brasileiros e alguns estrangeiros.

    19 Disponvel em: http://www.tca.ba.gov.br/01/index.html. Acesso em: jan. 2002.

  • 29

    Figura 14 - Exposio Mario Cravo, realizada no MAMB Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

    a arquiteta italiana radicada em So Paulo Lina Bo Bardi tinha sido convidada pelo governador Estadual para organizar o Museu de Arte Moderna da Bahia [...], onde, alm do acervo crescente de obras brasileiras e estrangeiras, vamos magnficas exposies didticas que, se fosse o caso, contavam com alguns quadros de grandes artistas (Renoir, Degas, Van Gogh) a que a senhora Bardi tinha acesso por ser mulher do diretor do Museu de Arte de So Paulo. O Museu de Arte Moderna da Bahia funcionava no foyer, todo em mrmore e vidros, do imenso teatro Castro Alves, que tinha sido quase inteiramente destrudo por um incndio apenas um dia depois de inaugurado, poucos anos antes da criao do museu. O foyer ficara intacto, mas a sala de espetculos tinha se transformado numa enorme caverna negra de que Lina utilizou a parte correspondente ao palco para criar um pequeno teatro de meia-arena onde, em sua colaborao com o diretor da Escola de Teatro, Eros Martim Gonalves, montou-se a pera dos Trs Tostes, de Brecht [...], e, depois, Calgula, de Camus. Houve colaborao tambm com o crtico de cinema Walter da Silveira na transformao da rampa que liga o foyer sala de espetculos num belo cineminha exclusivo do clube de cinema que ele fundara.20

    20 VELOSO, Caetano. Escrito sobre MAMB. Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1997.

  • 30

    Figura 15 - Lina no Solar do Unho, aps a restaurao. 1963

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/Crdito

    Posteriormente o MAMB se deslocou para o conjunto do Solar do Unho: sua

    construo data do sculo XVI e teve como primeiro residente Gabriel Soares de

    Souza.21 No sculo XVII foi residncia do desembargador Pedro Unho Castelo

    Branco, de onde possivelmente surgiu seu nome atual. Existem relatos de diversos

    usos ao longo de sua histria, tais como engenho de acar, fbrica de rap,

    depsito de inflamveis da Standard Oil, quartel de fuzileiros navais da 2 guerra

    mundial, curtume, sede se subprodutos de cacau de uma empresa baiana, ncleo

    de pequenas indstrias. J no sculo XX o governo desapropriou o terreno, doando

    o ao MAMB. O conjunto foi restaurado pela arquiteta Lina Bo Bardi, transformando-

    se na sede do Museu de Arte Popular e tambm a sede de uma Escola de Desenho

    Industrial, fundamentado em extensa pesquisa a respeito dos valores esttico-

    culturais brasileiros e meios de transferncia para o desenho industrial. O conjunto,

    formado pelo Solar da Casa Grande, Igreja e Senzalas situa-se sobre um

    embasamento de pedra grantica, com duas plataformas sobrepostas. Da

    construo restavam apenas as paredes externas. Seu uso foi adequado da

    21 Gabriel Soares de Sousa foi senhor de engenho na Bahia. Chegou ao Brasil em 1569 e escreveu o Tratado descritivo do Brasil em 1587, uma das mais valiosas fontes de informao sobre o Brasil do seu tempo. Disponvel em: http://www.jangadabrasil.com.br/setembro25/al250900.htm. Acesso: maio, 2007.

  • 31

    seguinte forma: na antiga capela, situada frente ladeira de acesso, foram locadas

    as aulas de artes populares e industriais. Nas senzalas, trs barraces situados ao

    lado da casa grande, encontravam-se as oficinas de trabalho com palha,

    marcenaria, couro, tecelagem, rendas, e, no solar da casa grande, de trs andares,

    encontrava-se o restaurante, museu de arte moderna permanente e de arte popular.

    Para a conexo entre os pavimentos Lina projetou uma escada que se desenvolve

    entre quatro colunas de sustentao da construo. Seus degraus so presos por

    encaixe, sem utilizao de pregos ou cola. Lina faz aluso em seus estudos ao

    antigo sistema de encaixe de rodas dos carros de boi.

    A arquiteta se fundamentou no mtodo da restaurao crtica, desenvolvida

    na Itlia por Carlo Scarpa e Franco Albini. Esse modelo de restaurao trabalha o

    respeito pela tradio e ao mesmo tempo reconhece o valor funcional da realidade.

    A restaurao critica tem por base o respeito absoluto por tudo aquilo que o monumento

    representa como potica, dentro da interpretao moderna da continuidade histrica,

    procurando no embalsamar o monumento, mas integr-lo ao mximo na vida moderna. 22

    Figura 16 - Solar do Unho, aps a restaurao. 1963

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Foto Armin Guthman, 1963. Repr. H.G. Flieg

    22 BARDI, Lina Bo. Museu salva a cultura da Bahia e o passado pela F. Salvador, BA, Jornal da Bahia, 1963.

  • 32

    A restaurao do conjunto preservou os antigos materiais empregados, como

    a madeira de lei no revestimento de piso, escada, estruturas, o uso das tesouras de

    madeira e telhas cermicas, o uso de alvenaria e tijolos, caixilho de madeiras.

    O incio das atividades no museu foi marcado pela exposio Nordeste,

    realizada no perodo de novembro de 1963 a fevereiro de 1964. A mostra, que teve

    colaborao do Museu de Arte da Universidade do Cear, do Instituto Joaquim

    Nabuco de Pesquisas Sociais e do Museu do Limoeiro foi dividida em duas partes, a

    mostra de arte popular, realizada no Solar e uma mostra de artistas contemporneos

    representantes de trs estados do nordeste brasileiro: Cear, Pernambuco e Bahia.

    Esta exposio que inaugura o Museu de Arte Popular do Unho deveria chamar-se Civilizao do Nordeste. Civilizao. Procurando tirar da palavra o sentido ulico- retrico que a acompanha. Civilizao o aspecto prtico da cultura, a vida dos homens em todos os instantes.23

    Logo em seguida o museu foi tomado pelos militares que apresentaram no

    espao uma exposio de armas subversivas da ditadura, quando a arquiteta

    retornou para So Paulo.

    Lina experimentou intensamente os valores dessa civilizao que conheceu

    no perodo e atravs desse espetculo procurou abrir um espao na modernidade

    para uma nova leitura de fatores culturais. A arquiteta investigou esses valores, essa

    identidade, atravs de inmeras possibilidades, que permeiam de hbitos populares

    do cotidiano, hbitos alimentares, tcnicas de construo, hbitos musicais.

    23 BARDI, Lina Bo. Texto retirado do cartaz da Exposio Nordeste. (nov. 1963-fev. 1964). Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi.

  • 33

    Figura 17 - Convite para a Inaugurao do Solar do Unho

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi

    Figura18 - Croqui de Lina Bo Bardi para a escada do Unho. 1963 Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Desenho Lina Bo Bardi

  • 34

    Figura 19 - Pea encenada no Unho. 1963

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

    Figura 20 - Pea encenada na escada do Unho. 1963 Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/Crdito

  • 35

    CAPTULO 2 A ARQUITETURA COMO MATERIALIZAO DE UM IDERIO

    Figura 21 - Maquete

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Foto Hans Gnter Flieg

    Uma fortaleza que cultiva em seu interior espaos de lazer, de convivncia,

    de interao entre as pessoas que a freqentam. Definida pela autora do projeto

    como cidadela, ponto de defesa de uma cidade, do ingls, goal 24, meta; procura

    o bem estar do povo atravs de uma experincia autntica de dignidade e

    simplicidade. A arquitetura do Sesc se constitui atravs de sua funcionalidade,

    apresentando tcnicas contemporneas na execuo. As solues plsticas e de

    textura empregadas apresentam um aspecto simples, o que apreende a percepo

    dos usurios no espao.

    O projeto da Fbrica de Lazer da Pompia realizou-se em duas etapas, em

    um total de nove anos. A primeira etapa, recuperao estrutural e adaptao dos

    galpes da antiga fbrica para atividades culturais e de lazer, foi realizada de 1977 a

    1982. A segunda etapa, construo de torres de concreto aparente para

    24 LATORRACA, Giancarlo. (ed.) Cidadela da liberdade.So Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi e Sesc - Servio Social do Comercio,1999, p.11.

  • 36

    acomodao do bloco esportivo, aconteceu de 1982 a 1986. A rea total do terreno

    de 16.500m, com 23.500m de rea construda.

    Essa concepo do Sesc Pompia carrega elementos antagnicos que a

    torna amplamente comunicvel, como o antigo e o moderno representado pelos

    galpes horizontais voltados para as atividades culturais e as torres verticais para os

    esportes, sintetizando a heterogeneidade do bairro inicialmente fabril, e, na poca da

    construo do Sesc, j ocupado pela especulao imobiliria com edificaes

    verticais; ou ainda a dialtica de trabalho e lazer, uma antiga fbrica que carrega a

    idia do trabalho intenso dos homens que passou a produzir poesia, liberdade

    atravs das atividades e relaes que ali se desenvolveram.

    Figura 22 - Vista do possvel futuro do Sesc Pompia

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Desenho Lina Bo Bardi, 1983

  • 37

    Para os procedimentos tcnicos do restauro dos galpes, Lina baseou-se nos

    princpios da carta de Veneza; documento aprovado no segundo congresso

    internacional de arquitetos e tcnicos dos monumentos histricos, em maio de 1964.

    O documento trata de princpios de preservao de elementos dotados de valores

    humanos, testemunhos da histria de um povo. A Carta de Veneza estende-se no

    s s grandes criaes mas tambm s obras modestas, que tenham adquirido, com

    o tempo, uma significao cultural 25

    Para a arquiteta, o passado faz parte do cotidiano, vivo, dinmico. Dessa

    maneira ela trabalha os museus que concebe, a disposio de obras de arte no

    espao, o restauro de construes histricas. Em artigo intitulado Quarto de

    Arquiteto 26 desenvolvido pela arquiteta Olvia de Oliveira esse conceito ilustrado

    por uma gravura de Lina onde maquetes de edifcios antigos, modernos, templos,

    palcios ocupam todo o espao, como se fossem roupas e objetos de cotidiano,

    garantindo essa constante renovao entre o passado e o presente.

    Figura 23 - Quarto de arquiteto

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Crdito Lina Bo Bardi

    25 CARTA de Veneza.Documento,1964. Disponvel em: http://www.vitruvius.com.br/documento/patrimonio/patrimonio05.asp. Acesso em: jul. 2006.

    26 OLIVEIRA, Olvia Fernandes de. Quarto de Arquiteto. Revista CULUM, n.5.

  • 38

    Justificando sua atitude em considerao histria e como ela se adiciona ao

    presente, Lina desenvolve a idia de que A Histria aquilo que transforma os

    monumentos em documentos 27, contestando o filsofo Michel Foucault, LHistoire

    est ce que transforme des documents en monuments28. A histria como documento

    traduz a noo de que o passado testemunho da cultura de um povo, e persiste

    ainda no presente. Para a arquiteta os monumentos no se referem somente s

    obras arquitetnicas, mas do mesmo modo s aes coletivas do povo:

    Antes de assumir o compromisso da restaurao e reciclagem da velha fbrica, procurei me informar sobre sua importncia histrica e seu valor para a regio. Vi que a industrializao no lado oeste da cidade est muito ligada s estradas de ferro, que foi tambm o que gerou a urbanizao dos antigos capoeires e chcaras isoladas existentes na rea. Falando com os antigos moradores do lugar senti que havia neles um apego pela construo. Ento a preservao tinha razo de ser, mesmo tratando-se de uma fbrica despojada, de arquitetura apenas tcnica. 29

    A arquiteta no se limitou ao levantamento do terreno, da regio, observando

    seus freqentadores e hbitos, visto que o Sesc j se encontrava funcionando nos

    galpes da fbrica; mas ainda participou efetivamente da obra, em todos os passos:

    seu escritrio, um barraco de madeira, foi construdo no prprio canteiro de obras,

    concebendo muitas das solues no cotidiano da obra ao lado de seus

    colaboradores, engenheiros e operrios e as executando juntos. Assim foi no Museu

    de Arte de So Paulo, no Solar do Unho, e igualmente na Fbrica de Lazer da

    Pompia. O filsofo Eduardo Subirats descreve o escritrio e suas impresses sobre

    ele:

    Era uma casinha de madeira, de paredes escorridas pelas chuvas e pelo bolor, que se sustinha sobre umas delgadas pilastras. Conheci mais tarde estas delicadas arquiteturas nas encostas da selva amaznica, s que agora a exuberante vegetao estava substituda pela selvagem monumentalidade de um subrbio industrial de So Paulo. O conjunto era frgil, chegava-se casinha por uma tenebrosa escada, que logo dava-se lugar a uma passarela. Seu interior oferecia assolhos um alegre espetculo: empoeirados arquivos, mesas e cadeiras velhas, muitas pastas com recorte de jornais, revistas, e alguns textos manuscritos. Uma certa desordem. E, aqui e ali, referncias a um museu de arte popular brasileira: joguinhos maravilhosos, bonecos lavrados por mos delicadas e toscas a um

    27 LATORRACA, op. cit., p.38.

    28 FOUCAULT,Michel. L'Archologie du Savoir. Paris, Gallimard, 1969. (A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro, Forense-Universitria, 1972) 29 BARDI, Lina Bo. Escrito sobre a fbrica da Pompia. Arquivo ILBPMB.

  • 39

    mesmo tempo, cermicas cheias da mais sensual fantasia. E esse era o obrador, a oficina, como se chamavam os atelis dos artistas que construram as Igrejas na Idade Mdia europia.30

    Figura 24 - Lina, Andr Vainer e Marcelo Ferraz no Sesc Pompia

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Desenho Lina Bo Bardi, 1986

    A convivncia na obra foi rica e frtil ao lado dos operrios, mestres de obra,

    engenheiros e inclusive seus colaboradores, os arquitetos Marcelo Ferraz e Andr

    Vainer. Eram muitas as exigncias, mas existia uma relao de trabalho baseada no

    respeito, na dignificao da profisso humana do trabalho.

    Ela dava voz, dava poder s pessoas. No era autoritria apesar de ser muito autoritria conceitualmente , tinha um respeito pelo ser humano que era uma coisa preciosa. Aprendi muito com isso, pela maneira como ela comandava. [...] Era uma mulher muito dura, mas, ao mesmo tempo, muito doce, muito gentil e delicada. 31

    Lina possua uma capacidade grande de assumir erros e encontrar diferentes

    solues que vinham da realidade da obra, sem preconceitos; fossem do tcnico, do

    operrio, do arquiteto. Ela no era exatamente contraditria, incoerente, mas

    30 SUBIRATS, Eduardo. Os gigantes e a cidade. So Paulo, 1986. Publicado na revista Projeto n. 92 e n. 149. So Paulo, 1992.

    31 Entrevista com o artista plstico Rubens Gerchman. So Paulo,13/10/06. Anexo.

  • 40

    paradoxal. Essa caracterstica certamente causava muitas brigas no decorrer da

    obra, mas traziam as dissonncias, expostas percepo dos usurios.

    Sendo o projeto executivo realizado no canteiro de obras , foram permitidas

    muitas decises, principalmente de acabamentos, que no seriam possveis no

    projeto executivo entregue num s pacote para o cliente. As divergncias, erros de

    percurso, caminhos possveis que existem no cotidiano faziam parte do processo de

    trabalho. Lina borrou nesse momento a fronteira entre o erudito e popular,

    relacionando artistas, tcnicos e operrios, situao de troca que se traduziu numa

    arquitetura simples, clara, repleta de poesia. Atravs de toda a sua histria, ligada

    condio estrangeira e ao esforo de integrao no novo contexto cultural, a

    arquiteta teve a capacidade de produzir uma nova realidade, atravs de uma

    releitura de valores.

    Figura 25 Lanchonete para o bloco esportivo

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Desenho Lina Bo Bardi, 1984

    Lina utilizava-se muito de seus croquis para a representao e dilogo na

    obra. Seu pai, Enrico Bo, engenheiro e tambm pintor, a ensinou a desenhar desde

    pequena. Depois cursou o Liceu Artstico, antes de ingressar na faculdade de

    Arquitetura de Roma. Desenhava muito bem. Suas aquarelas, colagens, esboos

  • 41

    demonstram que sua percepo estava voltada para as relaes do Homem com o

    entorno; retratavam o cotidiano, a realidade do espao imaginado. Nos desenhos da

    arquiteta para o Sesc percebemos essa particularidade sobretudo na fase dos

    acabamentos, onde obtinha o entrosamento de todos os aspectos, tcnicos ou no,

    atravs de croquis em cores, caneta esferogrfica, hidrocr. Durante a realizao da

    obra, seguia os experimentos in loco.

    Nesses experimentos o espao obteve solues que carregavam um pouco

    da cultura dos operrios, incorporando valores do povo, criando identidade; como

    acontece com os mdulos de azulejos de folha de bananeira e peixes idealizados

    pelo artista plstico Rubens Gerchman, combinados aleatoriamente pelos

    trabalhadores e resultando em arranjos autnticos no restaurante e piscina; os pisos

    dos galpes para as oficinas de gravura e desenho, feitos com retngulos de

    cimento e salpicados com seixos trazidos diretamente de rios do tringulo mineiro,

    dosados pelos prprios operrios; a execuo do painel de comunicao para o

    restaurante, uma homenagem a Torres Garcia, feito por um operrio da obra, o

    Paulista, enfim, diversos detalhes construtivos que evidenciam o valor da

    execuo, do fazer. Os resultados, produtos em parte inesperados, so

    intencionais. A arquiteta procura uma releitura de valores culturais atravs da

    realidade de todos que trabalham no dia a dia da obra. Existe nesse sentido um

    grande rigor ideolgico da arquiteta na busca do que seria para ela a cultura

    brasileira.

    A cultura um fato de todo o dia. E o que a gente conseguiu pr, dentro de um plano da realidade de certa realidade esse fato prtico da cultura, que vai das coisas mais humildes at certas coisas importantes. 32

    32 BARDI, Lina Bo. In Entrevista de Fbio Malavglia com Lina Bo Bardi. Realizada em duas sesses, de 23 e 26 de agosto de 1986. Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi.

  • 42

    2.1. Interveno no existente: 1 fase do projeto

    A interveno no conjunto dos galpes da fbrica levou seis anos para se

    concluir, e no houve modificao estrutural. A escolha de materiais para as

    alteraes foi feita com critrio para que a integrao entre o antigo e o novo

    parecesse natural, porm diferenciada. A fbrica se encontrava com as paredes

    externas rebocadas e Lina optou por evidenciar os tijolos da construo.33 Podemos

    constatar em fotografias tiradas pelo fotgrafo Hans Gntter Flieg, no inicio da

    dcada de 50, para o desenvolvimento de material publicitrio para a IBESA, que as

    paredes externas encontravam-se rebocadas, e as internas, de tijolo vista. A

    limpeza foi realizada com jatos de areia e em seguida, os tijolos originais foram

    limpados. As telhas da fbrica, da mesma forma, foram lavadas e recolocadas. A

    construo despida mostrou os elementos originais conservados: estrutura, parede

    externa e cobertura.

    A idia foi expor a histria da construo da fbrica e toda a sua evoluo ao

    longo do tempo. Nos acrscimos arquitetnicos foram empregadas tcnicas

    modernas sem rebuscamento ou relevo. O concreto utilizado, por exemplo, possui

    um aspecto bruto, diferente das vigas e pilares originais; elementos como tijolos de

    concreto aparente foram utilizados nos atelis, biblioteca, salas de msica e

    separaes internas; a tubulao toda aparente e diferenciada por cinco cores

    marcando funes, trs principais (vermelho para esgoto e incndio, amarelo para

    som e azul para eletricidade) e mais duas complementares (verde para gua e

    laranja para linhas telefnicas), o que tambm proporciona uma manuteno rpida

    e eficaz. Esse esquema foi utilizado tambm no MASP Museu de Arte de So

    Paulo (So Paulo, 1957-1968) e na casa do Benin (Salvador, 1987). Lina tinha a

    tendncia de repetir solues que funcionaram bem em outras experincias de

    projetos, adaptando-as ao novo uso. Assim foi cultivando uma seqncia, uma

    narrativa de sua obra.

    33 Entrevista com o arquiteto Andr Vainer. So Paulo, jul. 2007. Anexo.

  • 43

    As portas da antiga fbrica, em madeira de lei, foram preservadas. Nas

    aberturas, foram colocadas esquadrias treliadas, tambm em madeira de lei,

    tambm utilizadas na restaurao do Solar do Unho (1959-1963) e Casa Valeria

    Cirell (So Paulo,1958).

    Os muxarabis foram utilizados largamente na arquitetura colonial brasileira,

    emergidas da colonizao portuguesa e de suas referncias mouriscas, podendo

    ainda ser observados em construes de cidades histricas como Ouro Preto,

    Mariana, Diamantina. O elemento adaptado na obra do Sesc possui um fator

    intencional, mostrando vnculo com a cultura popular, mas trabalhada de maneira

    particular. A articulao entre a modernidade e a tradio foi tambm objeto de

    estudo de Lcio Costa, sendo os muxarabis componentes de sua arquitetura no

    incio dos anos 1930. Um exemplo o projeto para a Vila Monlevade, 1934:

    Assim, a pequena cidade idealizada por Lcio Costa [Vila Monlevade] resultante de uma sntese entre elementos e valores aparentemente dspares: concreto e barro, telha de amianto e venezianas de madeira, pilotis e muxarabi, festana da roa e mveis standard, estradas rurais e preceitos da urbanizao moderna...34

    A mesma condio pode ser observada na utilizao dos azulejos

    desenhados em motivos predominantemente azuis no restaurante da fbrica e

    tambm na piscina, uma herana portuguesa utilizada largamente na arquitetura

    colonial e j adaptada no inicio da arquitetura moderna brasileira com a sntese das

    artes. O tema figurativo evocado nos azulejos da piscina do Sesc pelo artista

    plstico Rubens Gerchman; peixes, cavalos marinhos, estrelas do mar, foi

    justamente o tema utilizado por Portinari no Ministrio da Educao e Sade, edifcio

    precursor da arquitetura moderna brasileira, projetado por Lucio Costa e equipe.

    Desde o inicio da arquitetura moderna no Brasil podemos encontrar a integrao nos

    trabalhos entre arquiteto, escultores e pintores.35 Essa ainda uma particularidade

    de Lina, que acredita a arquitetura como um produto do trabalho conjunto do

    arquiteto, artista, arteso, engenheiro; conforme observado pelo arquiteto Andr

    Vainer, A Lina sempre incorporou coisas de outras pessoas nas obras, o que

    34 GUERRA,Ablio. Lcio Costa:modernidade e tradio Montagem discursiva da arquitetura moderna brasileira. Tese de doutoramento. So Paulo, 2002, p. 23.

    35 FERNANDES, Fernanda. A sntese das artes e a moderna arquitetura brasileira dos anos 1950. Disponvel em http://www.iar.unicamp.br/dap/vanguarda/artigos_pdf/fernanda_fernandes.pdf.

  • 44

    muito interessante. Significa que voc no est sozinho fazendo o projeto, est

    aberto a que o projeto tenha participao de outras pessoas.36

    Lina utiliza continuamente elementos extrados da cultura popular, o que nos

    trs intimidade com sua obra: a consolidao do projeto se estrutura a partir de

    valores culturais e, atrelado a isso, trabalha a criatividade. A arquiteta define sua

    prpria arquitetura como poesia realizada com grande rigor tcnico e prtica

    cientfica.37

    A materializao dessa poesia acontece no projeto do Sesc Pompia atravs

    da naturalidade na qual o espao projetado e da insero de uma perspectiva

    humana. Em texto escrito em ocasio de premiao pela cenografia da pea UBU-

    Folias, Pataphysicas e Musicaes (1985), a arquiteta cita Lautreamont38: a arte deve

    ser feita por todos e no por um s,39 sugerindo que o espao feito por quem o

    circula, com ele interage, o vivencia. Esse , igualmente, o princpio utilizado no

    Sesc Pompia: um espao amplo, galpes de fbrica, que proporcionam infinitas

    possibilidades e arranjos para o lazer.

    Mas ningum transformou nada. Encontramos uma fbrica com uma estrutura belssima, arquitetonicamente importante, original, ningum mexeu. Ns colocamos apenas algumas coisinhas: um pouco de gua, uma lareira. Quanto menos cacareco, melhor. Fizemos tambm um esforo para dignificar a posio humana. 40

    36 Entrevista com o arquiteto Andr Vainer. So Paulo, jul. 2007. Anexo. 37 C.f. MICHILLES, Aurlio.vdeo Lina Bo Bardi. So Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1994.

    38 Pseudnimo de poeta uruguaio Isidore Ducasse. Disponvel em http://pt.wikipedia.org/wiki/Conde_de_Lautr%C3%A9amont. Acesso jun./2007 39 BARDI, Lina Bo. UBU Folias physicas, pataphysicas e musicaes. In: FERRAZ, Marcelo (org.). Lina Bo Bardi. So Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1993, p. 260. 40_____________. Interview n63. So Paulo, ago./1983.

  • 45

    Figura 26 - Sesc Pompia em obras

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

    Figura 27 - Retirada do reboco das paredes originais do Galpo de Atividades gerais. Abril/80

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

  • 46

    Figura 28 - Detalhe da tubulao aparente do Sesc Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

    Figura 29 - Detalhe das trelias do galpo de atividades gerais

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

  • 47

    Figura 30 - Retirada do reboco das paredes originais do Galpo de Atividades gerais. Abril/80

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

    2.1.1. Os galpes e suas atividades

    O eixo principal de circulao do Sesc Pompia se d por uma antiga rua

    interna de paraleleppedos da fbrica que permeia os galpes restaurados. Uma

    evocao dos primrdios da vida urbana em So Paulo e das vilas operrias, onde

    as ruas, com o calamento de paraleleppedos,41 eram o ponto de abrigo de aes

    coletivas urbanas, a conexo entre um lugar e outro, o ir e vir de crianas, velhos,

    homens mulheres. Lina procura preservar esse valor democrtico na entrada da

    fbrica de lazer. Muitas atividades e brincadeiras acontecem nos caminhos da

    cidadela. A arquitetura aqui definida pelo efmero, pelo cotidiano.

    41 O calamento de paraleleppedos foi introduzido em So Paulo entre 1870-73, tornando-se freqente a partir de 1910. C.f. YZIGI, Eduardo. O mundo das caladas. So Paulo: Humanitas/FFLCH6/USP; Imprensa Oficial do Estado, 2000.

  • 48

    Figura 31 - Atividade na rua interna. Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

    Os paraleleppedos possuam para Lina a conotao de elogio ao povo. A

    arquiteta se rebelava com a madame de salto alto que fosse entrar no Pompia, ou

    desquitadas que pretendiam fazer cursos nos atelis, mas fez questo de incluir o

    deficiente fsico. Depois de pronto o projeto a arquiteta acabou por delinear uma

    passagem plana entre as pedras aos usurios.

    Os paraleleppedos so um dos calamentos mais sublimes da histria da humanidade, documentos seculares de pedras cortadas e alisadas com as mos, por homens, mulheres, crianas, documentos de civilizao da qual os deficientes no devem ser excludos. 42

    Medindo 134 metros de comprimento e oito metros de largura, a rua foi

    mantida com o revestimento de paraleleppedos original. A areia empregada para

    assent-los foi substituda por terra, propiciando o crescimento de grama em seus

    vos, o que produziu um aspecto interiorano. margem da rua segue uma larga

    vala de concreto e alvenaria revestida com seixos rolados para o escoamento das

    guas. O revestimento, de textura belssima, foi concebido para produzir sonoridade

    ao chover.

    42 BARDI, Lina Bo. Esboo de carta a ser endereada ao professor Luiz Carlos Zanolli. So Paulo, Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, sem data.

  • 49

    Ela [Lina] dizia que aquilo quebrava a chuva, quando vinha a chuva, a gua violenta, e fazia barulhinho tambm, ela tinha essa ligao com a natureza. Aquela soluo de acmulo das pedrinhas; vi os caras fazendo artesanalmente. A Lina ia l, e, puxa pra c, puxa pra l, era muito legal de ver. Ela cuidava daquilo como se fosse a casa dela, como se fosse uma escultura, ou um jardim que ela estivesse regando.43

    Figura 32 - Incio das obras na rua interna

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

    43 Entrevista com o artista plstico Rubens Gerchman. So Paulo,13/10/06. Anexo.

  • 50

    Figura 33 - Calha de concreto e alvenaria revestida com seixos rolados

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

    A rua torna-se o ponto de encontro obrigatrio dos diversos galpes. A nova

    proposta do Sesc para o espao de lazer adotou o aproveitamento do espao

    horizontal, o que possibilitava uma utilizao funcional e polivalente.

    A preservao do prdio acrescentaria muito ao trabalho social que l se desenvolve, em funo do dado esttico e de funcionalidade. A construo de rara beleza, e sua horizontalidade facilita a integrao de pessoas estimulando o convvio grupal informal. A horizontalidade, eliminando o constrangimento das estruturas verticais, oferece, ainda, alm das j citadas, outras inegveis vantagens sobre a verticalidade. Possibilita a integrao e informalizao das atividades, dotando-as de colorido que nasce de espontaneidade, dos espaos abertos, da luz natural e da vegetao prpria para o nosso clima. 44

    So quatro os principais plos de atividades culturais que ladeiam a rua

    central na fbrica de lazer; as atividades gerais, o teatro, os atelis e o restaurante-

    choperia.

    44 REQUIXA, Renato. Proposta de preservao do prdio do centro cultural e desportivo Pompia. So Paulo, Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 21/jan./1977.

  • 51

    Alm desses principais galpes existe um espao destinado ao almoxarifado

    e apoio s oficinas, situado em frente ao galpo das oficinas, o qual a arquiteta

    intencionava utilizar ainda para uma rea de jogos para crianas, e a Administrao,

    uma rea de 700m situada na entrada do conjunto ao lado direito. Esse espao no

    sofreu muitas alteraes, houve apenas a construo de algumas alvenarias. O

    layout das salas foi definido pela arquiteta, assim como o seu mobilirio, mesas de

    vidro com a base funcionando como arquivo.

    Na administrao, porta de entrada para o conjunto do Pompia, foi colocada

    uma carranca feita por artesos de Pirapora, Minas Gerais; presente do professor

    Bardi ao Sesc. Segundo a tradio, a carranca afastaria os maus espritos ou o mau

    olhado e nesta ocasio foi colocada como smbolo de proteo.

    Galpo de Atividades Gerais

    Nos primeiros estudos de Lina para o interior do galpo de Atividades Gerais

    ela props a insero de pisos elevados de madeira laminada de diferentes ps

    direitos, unidos por rampas sinuosas, cercadas de vegetao. A arquiteta procura

    trazer movimento, vida ao espao. As solues do projeto foram modificadas, mas

    essa questo central a ser projetada no espao foi preservada.

    Figura 34 - Primeiros estudos para a restaurao da fbrica

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Desenho Lina Bo Bardi

  • 52

    O galpo de atividades gerais o mais amplo do conjunto. Livre das paredes

    internas abriga variadas atividades; exposies, biblioteca, rea de leitura, estar,

    jogos. A iluminao acontece pelos sheds, e pela insero de cobertura de telhas de

    vidro em uma das guas da estrutura. Em estudos existe a proposta de se cobrir

    todo o galpo com telhas de vidro, o que no foi possvel devido ao conforto trmico

    do espao.

    As interferncias no espao foram singelas, a dignificao da posio humana

    aparece no sentido criativo e recreativo materializado. A arquiteta colocou o fogo, a

    gua, pequenas alegrias, como ela as batizou, arranjadas para a fbrica de lazer:

    uma lareira e um grande espelho dgua revestido internamente por pedras do

    tringulo mineiro. Lina no queria um desenho racional, pensado. Seu contorno foi

    definido in loco, livre de composies. O Rio So Francisco, trao de unio de

    diversas atividades, idades e tipos.A arquitetura no precisa ser romntica no

    sentido pequeno, domstico da expresso. Ela pode ser potica. 45

    Lina criou volumes de concreto aparente suspensos com 1,20 metros de

    altura no guarda corpo para leitura e salas com sesses de vdeo abaixo. O concreto

    apresenta textura bruta, evidenciando as marcas do madeiramento vertical utilizado

    na concretagem da forma. Todo o piso foi trocado, utilizando-se pedra gois. O

    bloco integra-se no ambiente com naturalidade; um ambiente reservado para leitura

    de jornais e revistas e biblioteca situou-se logo na parte inferior. O espao era

    percorrido com muita liberdade e circulao, sem grandes interferncias nas reas

    de diferentes funes. O lazer colocado com liberdade, sem muitas regras ou

    imposies. Lina encontrou muitas oposies para realizar essa idia:

    Mas existiu essa briga da Lina com as bibliotecrias. Elas queriam organizar a biblioteca de tal forma que a pessoa no tivesse a menor chance de roubar um livro. Acho que iam distribuir vrias cmeras. E a Lina brigava: Ento os homens vo roubar os livros? Jura? Mas que timo! Ah, se um dia me disserem que acabou a biblioteca porque roubaram todos os livros! Temos que dar uma festa!. E as bibliotecrias arrancavam os cabelos! 46

    45 BARDI, Lina Bo. A Oficina da Criao: Lina Bo Bardi conseguiu transformar num ousado centro de lazer os galpes tradicionais de uma antiga fbrica de geladeiras. Revista VEJA. So Paulo, 14/abril/1982. 46 Entrevista com a sociloga Celene Canoas. So Paulo, 30/01/2007. Anexo.

  • 53

    Figura 35 - Concretagem do contrapiso do leito do rio. Dezembro/1979

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

    Figura 36 - Rio com a forrao de seixo rolado e piso do galpo com revestimento de pedra mineira. Janeiro/1980

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

  • 54

    Figura 37 - Montagem das formas da sala de leitura e biblioteca

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

    Figura 38 - Salas de leitura e piso prontos

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

  • 55

    O Teatro

    O Teatro do Centro de Lazer da Pompia situa-se na seqncia do Galpo de

    Atividade Gerais, ladeando a rua central pela direita. Seu foyer corresponde

    originalmente a uma das entradas da fbrica. O espao foi planejado para abrigar

    exposies e demais atividades ao ar livre.

    As telhas da cobertura foram trocadas por telhas de vidro e um volume

    suspenso, que leva aos camarins e ao acesso da galeria do teatro, foi construdo em

    concreto bruto aparente. O piso original foi substitudo por paraleleppedos, seguindo

    o padro da rua principal. Suas duas extremidades foram fechadas com grandes

    esquadrias em trelia de madeira. O jogo de texturas empregado no espao muito

    atraente. Com elementos rsticos e o concreto spero marcando as intervenes do

    conjunto de galpes existentes, Lina construiu uma linguagem forte e impactante.

    Figura 39 Foyer teatro

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Desenho Lina Bo Bardi

  • 56

    Figura 40 Foyer teatro

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

    O Teatro, rea que mais sofreu modificaes na interveno, conformado

    por duas platias opostas, mais duas galerias superiores de trs metros de

    comprimento.O palco e sua iluminao foram projetados em conjunto com o artista e

    cengrafo Flvio Imprio. Ele desmontvel, composto por pranchas de pinho. So

    55 mdulos de 2m x 1m. O espao nem sempre foi utilizado na sua forma integral.

    Lina se referia ao Teatro como auditrio, o que evoca a imagem de uso mais

    informal e variado. A arquiteta procura desenvolver em todos os mbitos o lazer

    descomprometido no espao.

    O programa que melhor utilizou o espao foi o Fbrica do Som, realizado em

    parceria entre a direo do Sesc Pompia e a TV Cultura. O programa, de grande

    sucesso, foi ao ar pela primeira vez no dia 12 de maro de 1982, com apresentao

    de Tadeu Jungle. Contava com a participao ativa do pblico, apresentando carter

    revolucionrio: lanou nomes importantes na cena do rock e punk nacionais, como o

    Tits, o Premeditando o Breque, o Ira! A comunho do espao com o programa se

    deve ao carter de novidade e movimento do espao.

  • 57

    Figura 41 Teatro-auditrio

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

    Figura 42 Apresentao do Fbrica do Som no teatro do Sesc Pompia

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

  • 58

    Oficinas

    O galpo de oficinas o ltimo bloco voltado para o lado direito da rua de

    paraleleppedos. So seis as atividades que compe o espao: marcenaria,

    cermica, cinzelamento, gravura e serigrafia, tapearia, grfica. O ateli foi

    idealizado para o desenvolvimento de atividades manuais, aberto ao pblico em

    geral. Flvio Imprio participou na concepo do programa das oficinas com forte

    base ideolgica. A idia inicial do Sesc era constituir ateli de artistas, o que

    contradizia o iderio concebido por Lina para o espao. Inicialmente, muitos artistas

    renomados ministraram cursos nos atelis para atrair o pblico para as atividades.

    Figura 43 Estudo para disposio dos atelis

    Fonte Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. S/ Crdito

    A disposio dos atelis foi inspirada na obra do arquiteto holands Aldo Van

    Eyck, conhecido pelos seus projetos de parques infantis ldicos. Seus limites so

    marcados por blocos de concreto, com 2,20m de altura, dispostos em volumes

    circulares e retilneos com aberturas desencontradas, favorecendo um percurso que

    promove mais um jogo, uma brincadeira no espao. A arquiteta batiza os segmentos

    de muros labirinto. O assentamento desses blocos favorece a idia do inacabado,

    mostrando o cimento escorrendo pelas superfcies externas. A arquiteta brinca com

    a textura dos materiais intencionando tambm deixar a superfcie sempre mostra,

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    sendo que, com a rugosidade formada, no se consegue pendurar ou colar objetos.

    Um outro bloco ao fundo do galpo abriga um laboratrio fotogrfico no trreo e o

    sistema de ar condicionado para o teatro.

    No ateli, ela quis fazer uma homenagem ao Aldo van Eyck. Ela tinha em mente um projeto do Aldo, um playground formado por labirintos de bloco, e ela achou que deveria usar uma coisa similar, de certa maneira mostrar como aquilo era uma obra da verdade. O material estava o tempo todo colocado no prprio sentido da restaurao, sem recuperar o tijolo de maneira certinha e formalmente adaptada. O olhar de restaurao dela foi de materiais que pudessem ir se sucedendo. Existem muitas paredes em que o tijolo est co