O espaço cênico de Lina Bo Bardi: uma poética antropológica e ...

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Evelyn Furquim Werneck Lima Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Pesquisadora do CNPq e do grupo de pesquisa Recherches interdisciplinaires sur le monde lusophone, de Paris X, Nanterre. Autora, entre outros livros, de Arquitetura do espetáculo: teatros e cinemas na formação da Praça Tiradentes e da Cinelândia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000. [email protected] O espaço cênico de Lina Bo Bardi: uma poética antropológica e surrealista Cenário de Lina Bo Bardi para a peça Na selva das cidades, 1969.

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Evelyn Furquim Werneck LimaDoutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).Professora do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Estado do Rio deJaneiro (Unirio). Pesquisadora do CNPq e do grupo de pesquisa Recherchesinterdisciplinaires sur le monde lusophone, de Paris X, Nanterre. Autora, entreoutros livros, de Arquitetura do espetáculo: teatros e cinemas na formação daPraça Tiradentes e da Cinelândia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, [email protected]

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Pretendo discutir neste artigo, à luz das teorias de Patrice Pavis,que as práticas cenográficas de Lina devem ser interpretadas de formacrítica, pois ela subverte o espaço em seus projetos, primeiramente o es-paço cênico, lugar no qual “evoluem os atores e o pessoal técnico, ouseja, a área de representação propriamente dita e seus prolongamentospara coxia, platéia e todo o prédio teatral”, e em seguida, o espaço liminarque “marca a separação entre palco e platéia, ou entre o palco e a co-xia”1. Como afirma Pavis, tais espaços são descritíveis e mesuráveis ecorrespondem a usos historicamente atestados no palco. Sua imbricação,sua interação, a dinâmica de suas mudanças não trazem problemas para

O espaço cênico de Lina Bo Bardi:uma poética antropológica e surrealista*

Evelyn Furquim Werneck Lima

RESUMO

Este artigo pretende discutir as práti-

cas antropológicas e surrealistas nos

cenários concebidos nos anos 1960 por

Lina Bo Bardi. Aplicadas em maior ou

menor grau nas cenografias da Ópera

dos três tostões, de Brecht (1960), e de

Calígula, de Camus (1961), estas práti-

cas atestam a inspiração provocada

pelas raízes culturais baianas, mas não

impedem que Lina valorize o “distan-

ciamento brechtiano”, deixando à mos-

tra as paredes em ruínas do Teatro

Castro Alves. Na montagem de Na selva

das cidades, de Brecht, (1969), encenada

no Teatro Oficina, Lina utilizou lixo

reciclado, destruído a cada espetáculo.

Busco demonstrar que a dialética de

suas práticas denota uma poética fun-

damentada na dialética entre o an-

tropológico e o vanguardista.

PALAVRAS-CHAVE: cenografia; história

do teatro; história da cultura.

ABSTRACT

This article intends to discuss part of the

production of designer Lina Bo Bardi, in the

years 1969, demonstrating that the author

tries to destroy the Metaphysical borders in

the act of the glamour of the public. These

practices had been applied in greater or

lesser degrees in the stage designs of Ó p e -

ra dos três tostões, by Brecht (1960) and

Calígula by Camus (1961), when the inspi-

ration came from Bahia cultural roots in a

period in which the architect values the

question of abandoning illusion as taught

by Brecht, and she shows the construction

of the scene in the Castro Alves Theater. In

the work she did for Na selva das cidades,

also by Brecht, (1969), staged in the Oficina

Theater, she idealized one ring, where all

the used material was made out of recycled

garbage, destroyed in the scene during each

spectacle. I intend to demonstrate that the

dialectic of the practices of Lina denotes a

poetical manner based on anthropology and

the avant-garde.

KEYWORDS: stage-design; history of thea-

ter; history of culture.

* Este artigo divulga os pri-meiros resultados da pesqui-sa “Estudos do espaço tea-tral” (5ª etapa), apoiada peloCNPq, e contou com a cola-boração da bolsista de inicia-ção científica Tainá Barbosa.

1 PAVIS, Patrice. Espaço, tem-po e ação. In: A análise dos espe-táculos. São Paulo: Perspecti-va, 2005, p. 141.

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Fig. 0. Aquarela de Lina Bo Bardi esboçando a reconstrução do Teatro Castro Alves como teatro

popular. 1958. Fonte: Acervo do Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi.

o receptor, sendo a hierarquia desses espaços suscetível de se transfor-mar a qualquer momento2. Lina vai constantemente subverter estes es-paços, tanto nas cenografias que concebeu para o Teatro Castro Alvesem Salvador, como no Teatro Oficina em São Paulo e no Teatro JoãoCaetano, no Rio de Janeiro, nas montagens aqui analisadas.

A trajetória da cenógrafa, desde a Itália dos anos 1940 até 1992,revela sua complexidade como artista que transitava por todas as artes,da arquitetura ao design, da museologia à cenografia, da cultura popu-lar aos projetos da vanguarda3. Lina soube perceber no Brasil um poten-cial muito grande para a realização do trabalho de pesquisa sobre a pro-dução artesanal e a cultura popular. Fascinada pelos costumes locais,ela declarou que nunca esqueceria “o surrealismo do povo brasileiro,suas invenções, seu prazer em ficar todos juntos, de dançar, cantar”4 —a ponto de escolher o Brasil como pátria, naturalizando-se em 1951.

Na segunda metade dos anos 1950, Salvador fervilhava em ativi-dades artísticas, anunciando o Cinema Novo e a Tropicália, que na dé-cada seguinte significariam novas formas estético-intelectuais no cená-rio brasileiro. Em 1958, atendendo ao convite de Diógenes Rebouças,Lina foi para Salvador proferir uma série de palestras5 e iniciou o perío-do de sua produção baiana, no qual dirigiu o Museu de Arte Modernada Bahia e fez o projeto de recuperação do Solar do Unhão, mas, emespecial, cenografou as três peças que analiso a seguir.

O reitor da Universidade Federal da Bahia, Edgard Santos, perce-beu a demanda existente em sua cidade no campo da cultura, face aopanorama nacional, e solicitou a permanência de Lina em Salvador. Tra-tava-se de um momento em que havia urgência em revelar a identidadecultural daquele estado. Foi possível perceber a forte influência da artis-ta no movimento baiano, no qual a sua atuação, junto à de outros inte-lectuais, propiciou a formação de artistas responsáveis por movimentosfundamentais para a arte brasileira. A Universidade Federal da Bahia e

2 Cf. idem, ibidem.

3 Arquiteta pela Universida-de de Roma em 1939, Lina(Achilina) Bo muda-se maistarde para Milão, para traba-lhar com Gió Ponti, arquitetoe editor da revista Domus, naqual escreveria inúmeros arti-gos. Ao final da guerra, viajapor toda a Itália escrevendosobre as questões sociais. Ca-sa-se com o jornalista PietroMaria Bardi e transfere-separa o Brasil em 1946.

4 BARDI, Lina Bo. Na Pompéia:o bloco esportivo, apud OLI-VEIRA, Olívia de. Repasses:a depredação material e espi-ritual da obra de Lina BoBardi. Disponível em <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq068/arq068_01.asp >. Acesso em 26 jul.2007.

5 As conferências na Escola deBelas Artes e na Casa FrançaSalvador denotam a admira-ção pela obra do arquitetoAntonin Gaudi, que defendeua participação ativa do autorcom sua obra e até hoje des-lumbra pelo onírico e surrealque reveste suas obras demagia.

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seus cursos de Teatro e Música, embalados por um projeto erudito, desa-guaram nas águas da indústria cultural, de modo ambíguo em GlauberRocha, de forma plenamente assumida em Caetano Veloso e GilbertoGil.6

Nesse ambiente, Lina dedicava-se à cenografia, entre outras ex-pressões artísticas que oscilavam entre a estética popular e a erudita.Entrevistada por Leo Gilson Ribeiro, ela reafirmou sua posição sobre aspossibilidades de a arte de vanguarda interagir com a arte popular, poisdizia que esta divisão é apenas cômoda para os críticos de arte, mas, “seanalisarmos a arte chamada moderna, principalmente os diversos mo-mentos de criação artística de Picasso, por exemplo, logo concluiremosque ela contém elementos não só populares, mas eu diria até mesmofolclorísticos”.7

Enquadrando-se na concepção de Gianni Ratto de que o espaçocênico não tem limites e se multiplica pela dimensão do texto e suas per-sonagens, que não pode ser medido por metros quadrados ou cúbicos,que existe em sua infinitude, “onde uma palavra de poesia ressoa”8, osespaços cênicos propostos por Lina desconhecem limites, pois sua am-plitude vai além do tempo e torna-se referência para o desenvolvimentode outras atividades instigantes e inusitadas da sua contemporaneidade,tal qual o Cinema Novo e o Teatro Oficina, tornando-se estímulo a umaprática vanguardista que ultrapassava as fronteiras dos olhares estran-geiros, estabelecendo uma perspectiva que reafirma o espírito da arte doséculo XX.

No Brasil, principalmente durante a sua estadia no Nordeste, eladefendeu a arte popular e permitiu que essa técnica se fundisse com osconceitos de arte moderna. Em que pese ao fato de a obra A invenção docotidiano de Michel de Certeau só ter sido publicada em 1980, há indíciosde que Lina já pressentia as táticas sub-reptícias dos grupos ou dos indi-víduos face às estratégias da indústria de consumo, quando buscava in-tegrar a arte nordestina às suas criações artísticas. Como diz o antropó-logo francês,

Dos gregos a Durkheim, passando por Kant, uma longa tradição tentou precisar asformalidades complexas (e não de todo simples ou “pobres”) que podem dar contadessas operações [as operações quase microbianas]. Por esse prisma, a “culturapopular” (...) se formula essencialmente em “artes de fazer” isto ou aquilo, isto é, emconsumos combinatórios e utilitários. Essas práticas colocam em jogo uma maneirade pensar investida de uma maneira de agir, uma arte de combinar indissociável deuma arte de utilizar.9

O artesanato — “artes de fazer” mais próximas do público nordes-tino —, tornou-se uma referência em sua obra, somado ao seu contatocom o que havia de mais popular na região, porém, paralelamente, elatrabalhou com a cenografia de modo a produzir o “efeito do distan-ciamento”, que demanda uma explicação, pois os acontecimentos repre-sentados deixam de ser evidentes, como pregava o teatro realista10. Eporque entendeu que este cenário poderia atingir maior e melhor graude recepção do público, foi assim que elaborou as propostas cênicas aquiem estudo.

Ao se transferir para a Bahia, a artista trabalhou nesta dimensão

6 RISERIO, Antonio. Avant-garde na Bahia. São Paulo: Ins-tituto Lina e P. M. Bardi, 1995,p. 139.

7 Entrevista de Lina Bo Bardiao crítico literário Leo GilsonRibeiro. Jornal do Brasil – Su-plemento Literário, 17 dez.1970.

8 RATTO, Gianni. Antitratadoda cenografia: variações sobreo mesmo tema. 2. ed. SãoPaulo: Ed. Senac, 2001, p. 36.

9 CERTEAU, Michel de. A in-venção do cotidiano, v. 1: Artesde fazer. Petrópolis: Vozes, 4.ed. 2001, p. 42 (1. ed. france-sa: 1980).

10 BRECHT, Bertolt. Estudossobre teatro. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 2005, p. 97 (1.ed. 1970).

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roconceitual, inclusive porque conheceu o diretor teatral Martins Gonçal-

ves11, que a convidou para elaborar os projetos cenográficos de duaspeças, uma de Bertolt Brecht, A ópera dos três tostões, e outra, Calígula, deAlbert Camus. Ambos os espetáculos foram apresentados no que restoudo Teatro Castro Alves, que havia sofrido um incêndio cinco dias antesde sua inauguração em 1958.

A Ópera dos três tostões: por uma cenografia sintética

Acusado de fazer até então um teatro burguês, alienado, elitizadoe estetizante, Martim Gonçalves surpreendeu, tanto os admiradores quan-to os seus críticos, ao encenar A ópera dos três tostões, de Brecht, decidin-do-se a utilizar o Teatro Castro Alves, ainda que parcialmente em ruí-nas, e a aplicar seus conhecimentos do método Stanislavski e das van-guardas que conhecera em seus estudos no exterior.

Para possibilitar a encenação no amplo espaço desta casa de espe-táculos destruída, Lina projetou uma arquibancada com quatrocentoslugares para acomodar a platéia. A análise das fotografias desta monta-gem e os depoimentos coletados permitem perceber o estreito relaciona-mento que a arquiteta estabeleceu com Brecht, para quem a trama des-monta a ideologia da burguesia, “visto que espectador vê coisas que nãodeseja ver, como vê os seus desejos não apenas saciados, mas critica-dos”12. Idealizado numa perspectiva antiaristotélica13, esse cenário deLina eliminava qualquer possibilidade de ilusionismo, coerente com umaforma teatral que não é uma seqüência de fatos. Locais diferentes eramtranspostos ao palco de forma simultânea (Fig. 1), dispensando a trocade cenário durante a peça.

11 A fundação da Escola deTeatro da Universidade Fede-ral da Bahia por Martim Gon-çalves contribuiu para o pro-cesso modernizador da Bahia,pois ele divulgou sua variadaexperiência teatral, inclusive ométodo de Stanislavski paraa construção do personagem.

12 BRECHT, Bertolt, op. cit., p.39 e 40.

13 Peter Zsondi investiga a pro-funda mudança que sofreu omodelo de drama do Renas-ci-mento — fundamentado nateoria dos gêneros de Aristó-teles, desde o final do séculoXIX. Cf. ZSONDI, Peter. Teo-ria do drama moderno: 1880-1950. São Paulo: Cosac & Nai-fy, 2001.

Fig. 1. Ópera dos três tostões, de Brecht. Cenários de

Lina Bo Bardi. Teatro Castro Alves de Salvador.

Foto Armin Guthmann, 1960. Acervo do Instituto

Lina Bo e Pietro Maria Bardi.

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Raimundo Leão, que analisou essa montagem, esclarece que “osespaços simultâneos, a exposição dos refletores e do avesso do palco re-forçam a teatralidade antiilusionista” e ainda revela que “os recursosvisuais e a exposição de cordas, fios e faixas com letreiros enfatizam oconteúdo da ópera, mantendo o espectador ciente de estar diante deuma representação”14. Sábato Magaldi ratifica que Lina soube comuni-car com destreza o universo brechtiniano através do “emprego do cená-rio simultâneo, de inspiração medieval”.15

Lina interpretou bem a proposta de simplificação de Brecht quan-do utilizou uma cenografia sintética, com diferentes planos, telão paraprojeções, e uma simplificação da forma que só se tornava mais agressi-va quando se exibiam faixas, conclamando o público à reflexão. O usodo telão, onde se projetam imagens e palavras, incita o questionamentodo espectador.

O conceito de cenografia e de um teatro simples foi bem explicitadoquando, ao montar a peça A mãe, Brecht revelou, em carta ao TheaterUnion de Nova York, que eram suficientes apenas algumas alusões paraambientar o local da ação. Nessa mesma carta, Brecht declarou que adramática não aristotélica dos espetáculos que concebeu não está inte-ressada em produzir um “todo universal” na audiência, mas, pelo con-trário, deve dividir a opinião do público16. A construção cênica deve dei-xar à vista a aparelhagem elétrica e a aparelhagem musical, pois é dessaforma que Brecht sugere. Sem a quarta parede, desde que o próprio pal-co cênico começou a narrar, os telões com projeções revelavam ao públi-co outros acontecimentos simultâneos, ocorridos em algum lugar, justifi-cando ou refutando, através de documentos projetados, as falas das per-sonagens.17

Na montagem de 1960, esse código se explicitou pela faixa de gran-des dimensões suspensa sobre o palco com o nome da peça que estavasendo representada. Outras faixas menores permaneciam em cena du-rante todo o espetáculo, exibindo frases como: “Quem dá aos pobresempresta a Deus”, “Dá que te será dado”, e na cena final os atores apa-reciam segurando cartazes com frases do tipo: “Dei meu sangue”, “Víti-ma da arbitrariedade militar”, “Almoço de pobre é café”. Este projeto dearquitetura cênica seria o primeiro de vários outros.

Calígula: táticas oníricas e cruéis

Numa nova parceria com Martins Gonçalves, no ano seguinte, Linaassinaria a cenografia para Calígula, com texto de Albert Camus, tam-bém no Teatro Castro Alves. Inicialmente um imperador aceito pelo povode Roma, a partir da morte de Drusila, sua irmã e amante, Calígulaconclui que o “mundo não é mais satisfatório e passa a ter obsessão deser envenenado por desprezo e horror e a tratar dos assassinatos e daperversão sistemática de todos os valores, como fim de exercer a liberda-de (...)”18. Com as relações de amor e ódio o autor visa a discutir a loucu-ra, o absurdo e o destino. Lina repassou plasticamente a parábola conti-da em Calígula, na qual os ideais de crueldade e selvageria e os desviosde um poder desmedido refletem as atrocidades vivenciadas pelo escri-tor existencialista durante a Segunda Guerra Mundial.

Estabelecendo, a cada momento da peça, um diálogo entre público

14 LEÃO, Raimundo Matos de.Da cena amadora ao novoprojeto da Escola de Teatro.Revista da Bahia, n. 37. Funceb,2003.

15 MAGALDI, Sábato. A ópe-ra dos três vinténs. Estado deS. Paulo – Suplemento Literá-rio de 10 dez. 1960.

16 BRECHT, Bertolt, op. cit., p.60-62.

17 Cf. idem, ibidem, p. 66.

18 CAMUS, Albert. Camus’understanding of his play,translated by Justin O’Brien —from the foreword to Caligula& 3 Other Plays. New York:Vintage Books, 1961.

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roe atores, a cenógrafa concebeu uma ambientação inusitada para o dra-

ma, usando como matéria principal módulos de madeira de fácil mobili-dade, que se transformavam em diferentes ambientes de acordo com asnecessidades da movimentação cênica. Vários cubos de madeira comtratamento artesanal, ao redor da extensa mesa de iguarias improvisadacom uma toalha de tecido artesanal em fibra nordestina, mostravam ar-tefatos executados com artesanato da Bahia (Fig. 2), transportando oespectador para um ambiente simultaneamente onírico e cruel, que de-notava as táticas surrealistas da autora.

Percebi, pela fortuna crítica e pelo material iconográfico analisa-do, que Lina atuava num espírito de síntese entre as duas comunidades,ou seja, entre palco e platéia, em que ela destrói o espaço liminar talcomo conceituado por Pavis para promover o que pregava seu con-terrâneo Giani Ratto, quando aconselhava a não ver um projeto de umcenário (maquete ou croqui) como se se tratasse de uma obra de artesplásticas ou de um projeto de arquitetura, pois o que o público vê “é algoanônimo, até o momento no qual é absorvido por uma comunidade.Nesse momento, o projeto se identifica com um discurso coletivo, diri-gido obviamente a uma outra coletividade. Se o que for dito tem a forçade uma síntese, ela só poderá ser examinada depois de ter superado acatarse inevitável.”19

E há indícios de que foi esta síntese entre ambiente e trama, entreconsciente e inconsciente, que daria continuidade aos projetos ceno-grá-ficos de Lina. Assim, a investigação e o fazer artístico da arquiteta deno-tam a busca pela liberdade do indivíduo na utilização de elementos doinconsciente, na qual ela explora conceitos da arte povera20 e emprega,em seus trabalhos, elementos de fácil reconhecimento pelo público, tra-zendo a atenção deste para a realidade em que vivia.

Glauber Rocha, que conhecera Lina durante os trabalhos de cura-doria do Museu de Arte Moderna no foyer do Teatro Castro Alves, entãoem ruínas, define a cenografia de Calígula como “barroco-futurista”,construída como “palco de catacumbas”, provavelmente romanas, “coma liberdade neo-realista”21. Essa liberdade, a meu ver, indica um viés

19 RATTO, Gianni, op. cit., p.62.

20 Significando Arte pobre, ti-nha como objetivo desafiar ospadrões da arte vigente. Apre-sentando um acentuado cu-nho político, é uma arte coma intenção de interagir com opúblico através de instalações,esculturas e montagens comfotos, pintura e outros mate-riais não convencionais. Estadenominação surgiu na Itália,nos anos 1970.

21 Declaração de Glauber Ro-cha, apud GUIMARAENS, Ma-ria da Conceição. Dois olharessobre o patrimônio cultural bra-sileiro: Lina e Lygia. Disserta-ção (Mestrado em Comunica-ção) – ECO /UFRJ, Rio de Ja-neiro, 1993, p. 67.

Fig. 2. Calígula, de Camus. Cenários e figurinos de Lina Bo Bardi. Teatro Castro Alves, 1961. In:

BARDI, Pietro Maria. Profile of the new Brazilian Art. Rio de Janeiro: Kosmos, 1970, p. 143.

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surrealista, calcado também na cultura autóctone. Lina ansiava por “umamodernidade que pudesse se constituir como uma emancipação da cul-tura popular e não como o seu massacre pela industrialização”.22

Sobre a influência italiana nas obras de Lina, já percebida porGlauber Rocha, assim se expressou o estudioso baiano Antonio Risério:

Seu olhar, dirigido a artefatos e mantefatos populares, era denso. Sob esse aspecto,aliás, ela viveu num contexto italiano altamente propício. A busca ou o gosto daconcretude, da espessura cotidiana, das formas populares, dos “dialetos subculturais”,talvez possamos dizer, parece um dos traços mais marcantes da cultura italiana doimediato pré-e-pós-guerra. É o que se pode ver na região da arquitetura e do design,com Gió Ponti (e Lina ao seu lado, como assistente, nas trienais de Milão) liderandoo movimento pela valorização do artesanato italiano.23

Em consonância com suas crenças marxistas, Lina era contrária àmassificação trazida pela sociedade de consumo e valorizava aquilo queemanava das raízes culturais de um povo. Os estudos antropológicosque realizou no Nordeste possibilitaram a ela explorar uma nova poéticado espaço, na qual o surreal se obtinha por meio de uma fácil identifica-ção do público, a partir da exploração do inconsciente e do usoconcomitante de elementos do artesanato local. Por meio da imaginaçãoe dos elementos de que dispunha, buscados na arte popular, ou às vezesusando materiais como o lixo e os detritos encontrados na rua, a cenó-grafa criticava a sociedade cada vez mais impregnada pelo vício doconsumismo.

Mas o conservadorismo das tradições provocava pressões sobre aladas vanguardas universitárias, levando Risério a afirmar que “a medio-cridade suburbana e a velhacaria paroquial triunfavam provisoriamen-te, exorcizando e expelindo da Bahia o refinamento estético-intelectu-al”24. Com a saída do reitor Edgard Santos, Martim Gonçalves retornoupara o Rio de Janeiro e Lina Bo Bardi, colaboradora e construtora desseprocesso modernizador das artes na Bahia, deixou a direção do Museude Arte Moderna de Salvador e retornou à cidade de São Paulo.

Na selva das cidades: o irracional na cena

O trabalho de Lina para a montagem de Martins Gonçalves em aÓpera de três tostões chamou a atenção do cineasta Glauber Rocha que,em 1960, assistiu ao espetáculo na Bahia e impressionou-se com oafinamento entre o cenário da arquiteta e os aspectos políticos defendi-dos pelo dramaturgo alemão. Numa conversa com Glauber, o diretor dogrupo Oficina, José Celso Martinez Corrêa, declarou-se surpreendidocom a energia que emanava do cenário da Ópera dos três tostões e com aexposição paralela sobre o ambiente político cultural de Brecht — comcuradoria de Lina, no Museu de Arte Moderna da Bahia, instalado na-quela ocasião, provisoriamente, no Teatro Castro Alves. A própria cenó-grafa creditou o interesse de José Celso “às idéias sobre teatro pobre”, nosentido da simplicidade dos meios de comunicação, que “coincidiramcom o tipo de ‘montagem’ que ele queria para peça do jovem Brecht”.25

Buscando naquela ocasião uma experiência mais ousada, o Ofici-na realizou a montagem de Na selva das cidades, obra que marcaria uma

22 ANELLI, Renato Luiz So-bral. Lina Bo Arquiteto. Catá-logo de exposição realizada noMasp pelo Instituto Lina BoBardi, São Paulo, 2006, p. 31.

23 RISÉRIO, Antônio, op. cit.,p. 112.

24 Idem, ibidem, p. 24.

25 Declaração de Lina publi-cada em Lina Bo Bardi (coor-denação editorial de MarceloFerraz). São Paulo: InstitutoLina Bo e Pietro Maria Bardi,1996, p. 235.

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roruptura interna do elenco. O diretor José Celso convidou a arquiteta para

fazer o cenário desta nova montagem, estreada em setembro de 1969.Com texto teatral de Brecht, escrito em 1923, a peça aborda o conflitoentre um comerciante de madeira e um funcionário de biblioteca que,detonado por motivos pueris, termina tragicamente. Essa segunda peçaescrita pelo autor é considerada uma das mais líricas, enigmáticas e ra-dicais. A trama se passa na Chicago de 1912 e trata da luta entre doishomens presenciando a decadência de uma família que veio dos camposdo interior para a “selva” da cidade grande. Para o dramaturgo, nãointeressavam os motivos da luta, mas sim “julgar com imparcialidade osprocedimentos dos contendores e deixar a curiosidade para o fim”.26

Brecht pregava a necessidade de uma revisão de valores na socie-dade ao colocar em cena um embate sem quaisquer motivos que se justi-ficasse dentro da lógica ética e moral estabelecida pelos códigos sociais.Ele demonstrou a insuficiência e a ineficácia desses códigos e leis para acompreensão do homem moderno. Convidou o público a assistir umaluta que se constrói pela simples vontade de vencer. A divisão das cenasem rounds se traduz numa luta de boxe, esporte em que duas pessoas seenfrentam pelo prazer do esporte, metáfora para a luta de cada dia nacidade moderna.

No espetáculo do Teatro Oficina, a ação deslocava-se de Chicagopara a grande São Paulo, explorando as semelhanças entre a “selva” deBrecht em 1923 e a selva vivida no Brasil em 1968 — período deautoritarismo político da ditadura militar e do descontentamento deintelectuais e dos estudantes. Essa transposição era representada pelafaixa pendurada no alto do palco, na qual se lia: “São Paulo, a cidadeque se humaniza”, numa sátira acirrada à realidade. Já em crônicapublicada em 1958, Lina considerava a grande cidade cantada pela fan-tasia dos poetas como “sinônimo de dura negação da vida, retórica dosespeculadores (...) que aviltam os homens, na negação de tudo o que énecessário ao homem para viver”.27

O cenário de Na selva das cidades transpõs para o espaço teatralsignos visuais que realmente pertencem ao cotidiano paulista da época.A peça foi montada num período no qual ocorria no Brasil um confrontocom intensas contradições: a ditadura mostrava-se cada vez mais re-pressiva, lançando o Ato Institucional nº 5, a luta armada acirrava aviolência nas principais capitais e São Paulo estava sendo destruída numaextensa área urbana por onde se faziam obras para implementação deviadutos, ao mesmo tempo em que as ruas estavam repletas de passeatasestudantis. Os elementos cenográficos diziam respeito ao contextobrechtiano, mas também representavam uma crítica à situação em queSão Paulo se encontrava na época, em seu intenso processo de desuma-na metropolização, no qual se acentuava a migração de campesinos po-bres para a periferia da cidade, em busca de trabalho.

Novamente se percebe a sintonia entre a cenógrafa e o autor daobra dramatúrgica, pois Lina acatou a divisão cênica em rounds e proje-tou um espaço teatral, no qual as cadeiras foram retiradas e o palcogiratório desmontado, abrindo um amplo espaço cujo centro foi ocupa-do por um ringue de boxe. A plataforma elevada foi o palco predomi-nante na maior parte das cenas. O depoimento do diretor José CelsoMartinez Corrêa atesta a excelência da plasticidade deste trabalho da

26 BRECHT, Bertolt, op. cit., p.35.

27 BARDI, Lina Bo. Crônicasde arte, de costume, de cultu-ra da vida. Arquitetura. Pin-tura. Escultura. Música. Ar-tes Visuais, Diário de Notícias– Caderno Olho sobre a Bahian. 9, Salvador, 28 set. 1958.

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artista: “Na selva das cidades é uma das encenações mais lindas que eu jáfiz, e é a origem deste espaço, como está hoje. (...) Lina já começou noteatro com o ringue de boxe e a demolição. A peça tem 11 rounds. Emcada round ela destrói uma instituição, até destruir o próprio ringue. Nofinal, os atores estão tirando o chão do teatro e chegando na terra.”28

Como o tema da violência permeia toda a encenação de Zé Celso,Lina intensificou este aspecto cênico, projetando uma estética suja (Fig.3). Acumulou no palco uma grande quantidade de elementos aleatórios,muitos retirados do lixo, além de móveis e adereços que, ao final de cadaround, eram estraçalhados pelos atores em cima do ringue ao grito de:“quebra!”. José Celso conduzia cada round para a destruição de tudo, emóveis e objetos se iam amontoando, nas partes laterais do ringue, numaimagem de impressionante eloqüência.29

A atriz Ítala Nandi, a principal personagem feminina, tambémdescreve o cenário assinado por Lina, lembrando que, além da estruturado teatro, a arquiteta fez pichações nos muros, reproduzindo frases deseus operários de obras, como “Lua não dá pra índio!”, e outras falas dacidade30. Acredito que a noção contemporânea de fragmento já estavapresente no cenário de Lina para a montagem de Na selva das cidades dogrupo Oficina em 1969.

Em outro artigo, Anatol Rosenfeld louva a eficácia do projetocenográfico, alegando que o espetáculo que José Celso criou confere umavisão adequada do lado irracional, graças à movimentação frenética deque participam até as mudanças cênicas, integradas na ação em virtudedo projeto cenográfico de Lina. O crítico elogia o efeito gerado pela “vi-olência e crueldade com que é tratado o corpo humano feito objeto”,

28 CORRÊA, José Celso Marti-nez. Primeiro ato: cadernos, de-poimentos, entrevistas (1958-1974). Organização e seleçãode Ana Helena Staal. São Pau-lo: Editora 34, 1998.

29 Cf. MAGALDI, Sábato. Naselva das cidades. Jornal daTarde – Teatro, São Paulo, 17set. 1969.

30 Cf. NANDI, Ítala. TeatroOficina: onde a arte não dor-mia. Rio de Janeiro: Nova Fron-teira, 1989, p. 134 e 135.

Fig. 3. Na selva das cidades, de Brecht, dirigido por José Celso. Cenários de Lina Bo Bardi, Teatro

Oficina, 1969. Acervo do Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi.

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roalém da “radicalização extrema com que metáforas lingüísticas são trans-

formadas em imagens (por exemplo, a ‘comida de pedras’)” e o aspectoritual e solene de certas cenas de “áspera beleza”.31

Martim Gonçalves, criticando desfavoravelmente a encenação deNa selva das cidades montada no Rio de Janeiro, descreve o cenário proje-tado por Lina para o teatro João Caetano. Foi neste teatro carioca queLina criou um “sistema de passarelas que abarcava o público em todasas direções”. Nesta cenografia, Lina aplicou o conceito de “surpresa”,descrito por Jean-Jacques Roubine, que possibilita que o espetáculo nãoesteja nunca “lá onde é aguardado”32. Surge sempre nos lugares maisinesperados, “ao longe, lá nas alturas, no nível das cabeças, no chão,tudo ao mesmo tempo”.33

Em sua crítica para o jornal O Globo, Martim Gonçalves salientaainda que a presença de “um boneco enforcado na altura do balcão doteatro” manipulado por um rapaz que “movia ritmicamente o bonecosobre a cabeça dos espectadores, fazia supor a participação ativa dopúblico no espetáculo”, fato que parece não ter acontecido. Mas a pro-posta de Lina era integrar público e platéia, como se percebe neste mes-mo artigo, pois Martim descreve uma cenografia labiríntica que reforça-va a sensação de atores perdidos e sozinhos na cidade grande. No fim doespetáculo, “os atores se dispersam pelas passarelas”.34

Esta mesma prática de encenação há algumas décadas havia sidoproposta por Antonin Artaud, que buscava, em suas peças teatrais, li-bertar o espectador das regras impostas pela civilização e assim desper-tar o inconsciente da platéia. Uma das técnicas usadas pelo dramaturgofoi unir palco e platéia durante a realização das peças35. E como MartimGonçalves era um diretor culto e viajado, não acredito que a ácida críti-ca tenha sido dirigida diretamente à concepção cenográfica de Lina, masà concepção do próprio espetáculo por José Celso.

O crítico Yan Michalski elogiou a liberdade com que a arquitetadesintegrava o cenário diante do público, fazendo exalar “o seu cheirode cadáver diante de dos nossos narizes”, transformando o próprio ce-nário “no terceiro protagonista do espetáculo: as cadeiras quebradas, oslivros despedaçados, as roupas rasgadas participam literalmente da lutaentre Shilink e Garga”.36

Permito-me afirmar que o ritual contido nesse cenário de lixoreciclado, que aos poucos vai sendo consumido, em muito se assemelhaà estética dadaísta-surrealista, que aproxima a obra da cenógrafa simul-taneamente das vanguardas européias e da arte artesanal que ela haviaconhecido no Nordeste.

Disso tudo o que vimos, resta a conclusão de que, veiculada princi-palmente pela revista Habitat e em crônicas assinadas por Lina, publicadasno jornal Diário de Notícias, de Salvador37, a produção crítica da cenó-grafa pregou a defesa e o incentivo à cultura popular como manifesta-ção autêntica, artística e valiosa, e foi essa aproximação do público quefez Lina ser respeitada no cenário da história cultural brasileira. Digla-diando-se pela percepção da liberdade do indivíduo, ela vivenciou umadualidade profunda em seus trabalhos, pois extraía as idéias de sua cul-tura interior — bagagem européia e erudita na qual imperavam as pre-missas teóricas do Movimento Moderno — e de todas as expressões ar-tísticas artesanais emanadas da população. Esta dualidade se reflete

31 ROSENFELD, Anatol. Naselva das cidades. O Estadode S. Paulo – Suplemento Lite-rário. São Paulo, 8 de nov.1969.

32 ROUBINE, Jean Jacques. Alinguagem da encenação teatral.(1880-1980). Rio de Janeiro:Zahar, 1998, p. 96.

33 Idem, ibidem, p. 96.

34 GONÇALVES, Martim. Naselva das cidades: um touromanso. O Globo, Rio de Janei-ro, 20 out. 1969.

35 Cf. ARTAUD, Antonin. Oteatro e seu duplo. São Paulo:Max Limonad, 1987.

36 MICHALSKI, Yan. A selva-gem beleza da selva. In: PEI-XOTO, Fernando (org.). Refle-xões sobre o teatro brasileiro noséculo XX. Rio de Janeiro: Fu-narte, 2004, p. 147.

37 Ver Diário de Notícias, Salva-dor, Crônicas de arte, de his-tória, de cultura da vida, n. 1,7 set. 1958; n. 2, 14 set. 1958;n. 3, 21 set. 1958; n. 4, 28 set.1958, n. 5, 5 out. 1958; n. 6,12 out. 1958; n. 7, 19 out.1958; n. 8, 26 out. 1958; n. 9,2 nov. 1958; reproduzidas naíntegra por ROSSETTI, Edu-ardo. Tensão moderno/popularem Lina Bo Bardi, nexos de ar-quitetura. Dissertação (Mes-tra-do em Arquitetura) – FAU/UFBA, Salvador, 2002, p.99-127.

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nos ambientes de cena tão revolucionários, como conceituava Brecht,para quem o teatro não deveria ser “apenas uma reprodução do mundosuscetível de ser vivida”.38

Investiguei neste artigo o trabalho que Lina desempenhou na Bahiaentre 1958 e 1969 e a repercussão de suas idéias no panorama artísticobrasileiro. Por meio desse recorte temporal, percebi que o seu trabalho esuas concepções no campo da arte em muito contribuíram para osurgimento do Cinema Novo e do Tropicalismo. Ao chegar à Bahia, Linaintroduziu signos inovadores, através de sua intensa participação na vidaartística e acadêmica, contribuindo para gerar um ambiente intelectuale estético ainda inusitado naquele estado. Posteriormente, analisei suasrelações com o grupo Oficina e com o diretor José Celso Martinez Corrêa,e verifiquei que as noções da vanguarda italiana, trazidas pela arquitetapara o Brasil, fundiram-se com a arte autóctone no processo de criaçãocenográfica da artista.

Derrubando barreiras entre vanguardas e arte vernacular, Linafez de sua própria formação intelectual e de vivência seu método decriação e determinação estética de sua arte, sobretudo utilizando meioscuidadosos para poetizar a arquitetura cênica, em especial em suas prá-ticas no Teatro Oficina, práticas que seriam construídas simultaneamen-te com a vivência de seus espectadores e com as imagens por eles cria-das.

Naquele período de autoritarismo e repressão ideológica, para queuma representação teatral se tornasse uma vivência, era necessário queestivesse em diapasão com a vida. E isto foi exatamente o que os cenáriosde Lina permitiram, pois ela buscou nas artes a valorização da vida e aidentificação com o público ou, como ela mesma afirmou: “O teatro é avida e na ausência de dados pré-estabelecidos, uma cenografia ‘aberta’ edespojada pode oferecer ao espectador a possibilidade de ‘inventar’ eparticipar do ‘ato existencial’ que representa um espetáculo de teatro.”39

Artigo recebido em agosto de 2007. Aprovado em outubro de 2007.

38 BRECHT, Bertolt, op. cit., p.19.

39 Declaração de Lina publi-cada em BARDI, Lina Bo, op.cit., p. 260.