A CARICATURA DA MEMÓRIA: LUÍS CARLOS PRESTES … · 2020. 10. 16. · Luís Carlos Prestes...

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1 A CARICATURA DA MEMÓRIA: LUÍS CARLOS PRESTES BIOGRAFADO NOS TRAÇOS DE PAULO CUSTÓDIO E RENATO CANINI (1985) Bruno Rafael de Albuquerque Gaudêncio (USP) O comunista Luís Carlos Prestes (1898-1990) foi uma dos políticos brasileiros mais biografados durante o século XX e neste início de século XXI. Do escritor baiano Jorge Amado em 1942, a sua filha, a historiadora Anita Leocádia Prestes em 2015, é possível identificar no mercado editorial, tanto brasileiro como argentino, uma dúzia de biografias lançadas. Uma destas narrativas biográficas é o perfil “Luís Carlos Prestes, da autoria de escritor e jornalista Paulo Custódio (1985), contendo ilustrações do caricaturista Renato Canini. O livro foi publicado pela Editora Tchê, na coleção Esses Gaúchos, durante as comemorações do sesquicentenário da revolução farroupilha, em uma parceria com o Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Desta forma, a partir do debate entre biografia, historiografia e memória, pretendemos analisar como seu deu a construção biográfica de Luís Carlos Prestes realizada por Paulo Custódio, observando as relações que o autor criou através das chaves do cômico e da ironia, presentes tanto no texto como nas imagens contidas na narrativa (desenhos e caricaturas). O livro contém um conjunto de oito ilustrações, destas pretendemos analisar quatro da autoria do caricaturista Renato Canini (1936-2013). Para cumprir com tais objetivos, realizaremos um debate entre os campos da biografia, historiografia e memória, através de autores como Pierre Bourdieu (2006), em sua ilusão biográfica; Hayden White (2014), através dos trópicos do discurso (através das chaves cômica e irônica contidas na urdidura do texto); e Paul Ricouer (2007), sobre o tema da memória e esquecimento - além dos usos da caricatura, através dos estudos de iconografia presentes nos estudos do historiador Rodrigo Patto Sá Motta (2002). Discutiremos ainda a ideia de identidade gaúcha presente no conceito editorial da coleção através dos historiadores Sandra Jatahy Pesavento (1989) e Jocelito Zalla (2018). Palavras chaves: Luís Carlos Prestes, biografia, caricatura, memória, Paulo Custódio. 1. INTRODUÇÃO Luís Carlos Prestes (1898-1990) foi uma dos políticos brasileiros mais biografados durante o século XX e neste início de século XXI. É dedicada a ele a já clássica biografia O Cavaleiro da Esperança, do escritor baiano Jorge Amado, publicado inicialmente na Argentina em 1942 com o título Vida de Luiz Carlos Prestes: El Caballero de la Esperanza, com sucessivas edições

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    A CARICATURA DA MEMÓRIA: LUÍS CARLOS PRESTES BIOGRAFADO

    NOS TRAÇOS DE PAULO CUSTÓDIO E RENATO CANINI (1985)

    Bruno Rafael de Albuquerque Gaudêncio (USP)

    O comunista Luís Carlos Prestes (1898-1990) foi uma dos políticos brasileiros mais biografados durante o século XX e neste início de século XXI. Do escritor baiano Jorge Amado em 1942, a sua filha, a historiadora Anita Leocádia Prestes em 2015, é possível identificar no mercado editorial, tanto brasileiro como argentino, uma dúzia de biografias lançadas. Uma destas narrativas biográficas é o perfil “Luís Carlos Prestes”, da autoria de escritor e jornalista Paulo Custódio (1985), contendo ilustrações do caricaturista Renato Canini. O livro foi publicado pela Editora Tchê, na coleção Esses Gaúchos, durante as comemorações do sesquicentenário da revolução farroupilha, em uma parceria com o Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Desta forma, a partir do debate entre biografia, historiografia e memória, pretendemos analisar como seu deu a construção biográfica de Luís Carlos Prestes realizada por Paulo Custódio, observando as relações que o autor criou através das chaves do cômico e da ironia, presentes tanto no texto como nas imagens contidas na narrativa (desenhos e caricaturas). O livro contém um conjunto de oito ilustrações, destas pretendemos analisar quatro da autoria do caricaturista Renato Canini (1936-2013). Para cumprir com tais objetivos, realizaremos um debate entre os campos da biografia, historiografia e memória, através de autores como Pierre Bourdieu (2006), em sua ilusão biográfica; Hayden White (2014), através dos trópicos do discurso (através das chaves cômica e irônica contidas na urdidura do texto); e Paul Ricouer (2007), sobre o tema da memória e esquecimento - além dos usos da caricatura, através dos estudos de iconografia presentes nos estudos do historiador Rodrigo Patto Sá Motta (2002). Discutiremos ainda a ideia de identidade gaúcha presente no conceito editorial da coleção através dos historiadores Sandra Jatahy Pesavento (1989) e Jocelito Zalla (2018). Palavras chaves: Luís Carlos Prestes, biografia, caricatura, memória, Paulo

    Custódio.

    1. INTRODUÇÃO

    Luís Carlos Prestes (1898-1990) foi uma dos políticos brasileiros mais

    biografados durante o século XX e neste início de século XXI. É dedicada a ele

    a já clássica biografia O Cavaleiro da Esperança, do escritor baiano Jorge

    Amado, publicado inicialmente na Argentina em 1942 com o título Vida de Luiz

    Carlos Prestes: El Caballero de la Esperanza, com sucessivas edições

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    lançadas no Brasil; além das mais recentes biografias dos historiadores Daniel

    Aarão Reis (2014) e Anita Leocádia Prestes (2015).

    Outra narrativa biográfica dedicada ao comunista, desta vez menos

    conhecida, é o perfil “Luís Carlos Prestes”, da autoria de escritor e jornalista

    Paulo Custódio (1985), contendo ilustrações do caricaturista Renato Canini,

    entre outros ilustradores. O livro, que contém 85 páginas e dividido em cinco

    capítulos, foi publicado pela Editora Tchê, na coleção Esses Gaúchos.

    Assim, a partir do debate entre biografia, historiografia e memória,

    pretendemos analisar como seu deu a construção biográfica de Luís Carlos

    Prestes realizada por Paulo Custódio, observando as relações que o autor

    criou através das chaves do cômico e da ironia, presentes tanto no texto como

    nas imagens contidas na narrativa (caricaturas, principalmente). O livro contém

    um conjunto de oito caricaturas, destas pretendemos analisar quatro da autoria

    do caricaturista Renato Canini (1936-2013).

    Para cumprir com tais objetivos, realizaremos um debate primeiramente

    entre os campos da biografia, historiografia e memória, através de autores

    como Pierre Bourdieu (2006), em sua ilusão biográfica; Hayden White (2014),

    através dos trópicos do discurso (através das chaves cômica e irônica contidas

    na urdidura do texto); e Paul Ricouer (2007), sobre o tema da memória e

    esquecimento, além dos usos da caricatura, através dos estudos de iconografia

    presentes nos estudos do historiador Rodrigo Patto Sá Motta (2002).

    Discutiremos ainda a ideia de identidade gaúcha presente no conceito editorial

    da coleção através dos historiadores Sandra Jatahy Pesavento (1989) e

    Jocelito Zalla (2018).

    2. BIOGRAFIA, HISTORIOGRAFIA, MEMÓRIA: UMA BREVE

    CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA.

    A biografia produz um tipo de memória sobre os sujeitos, inserindo os

    indivíduos em cadeias de filiação indenitárias, distribuindo-os e diferenciando-

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    os em relação aos outros. Biógrafos, mesmo com todos os vícios, a exemplo

    da chamada ilusão biográfica, no dizer Pierre Bourdieu (2006), produzem um

    sentido histórico dos seus personagens.

    Pierre Bourdieu (2006) compreende como Ilusão biográfica a ideia de

    que “(...) a vida constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode

    e deve ser aprendido como expressão unitária de uma “intenção” subjetiva e

    objetiva, de um projeto (...) que constituiu “(...) uma ordem lógica, desde um

    começo, uma origem, no duplo sentido de ponto de partida, de início, mas

    também de princípio, de razão de ser, de causa primeira, até seu término, que

    também é um objetivo” (p.184). O sociólogo, na verdade, procura criticar um

    modelo linear e ortodoxo dos quais as biografias em sua maioria se amparam

    em narrativas.

    Esta imaginação que a vida é um conjunto coerente parece não ser o

    caminho de Paulo Custódio. Fragmentada, caótica, desorganizada, o perfil Luís

    Carlos Prestes não procura construir uma utopia da criação de significados

    totalizantes. Pelo contrário, a forma desordenada da narrativa de Paulo

    Custódio se baseia em uma não linearidade, nem em uma ordem lógica do

    sujeito Prestes, como veremos a mais frente nesta análise.

    Sabemos que a produção biográfica se insere em um processo de

    identificação, distinção, transmissão e sua interiorização como norma, sendo

    assim pode ser compreendido como uma forma de arquivamento do sujeito, o

    que pode acarretar um debate historiográfico de como a biografia é uma

    produção de uma memória como também o esquecimento do sujeito. Neste

    sentido, Paul Ricouer (2010) compreende que o retorno do sujeito na

    abordagem histórica é indispensável para a pesquisa que se pretende se aliar

    a um “trabalho de memória”. A historiografia, nesta lógica, está vinculada a

    duas mudanças: a primeira se relaciona à demanda social e política de revisão

    dos acontecimentos do século XX; e a segunda à reflexão epistemológica na

    qual os sujeitos, as testemunhas, antes escondidas atrás da estrutura,

    aparecem como peças importantes para a racionalidade e para a explicação

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    histórica. Tal reflexão se assemelha em grande parte ao debate sobre a

    narrativa biográfica, amparado na lógica de visibilidade dos sujeitos

    biografados.

    Hermione Lee (2009) em seus estudos identificou algumas regras para a

    escrita da biografia: 1) a narrativa deve ser verdadeira; 2) a narrativa deve

    cobrir toda a vida do personagem; 3) nada pode ser omitido; 4) todos os

    recursos devem ser revelados; 5) O biógrafo deve conhecer o assunto; 6) o

    biógrafo deve ser objetivo; 7) biografia é uma forma de história; 8) biografia é

    uma investigação da identidade; 9) a narrativa deve ter algum valor para o

    leitor; 10) Não há regras paras biografias. Temos aqui evidentemente um

    quadro irônico sobre o fazer biográfico, visto que é impossível dá conta de uma

    totalidade do sujeito e nem existe um modelo único e correto de construção

    biográfica.

    Sobre a relação entre biografia, historiografia e memória, podemos

    evidenciar primeiramente o ponto sete, elencado por Lee (2009), quando o

    autor afirma que a biografia é uma forma de história e, portanto uma produz

    uma memória sobre o biografado; e o ponto dez, quando Lee (2009) afirma que

    não há propriamente uma regra para se constrói uma biografia. Aspecto que

    pode ser observado no próprio Paulo Custódio (1995), que construiu uma

    forma própria de biografar, marcada pela não linearidade, pela colagem de

    informações e imagens, em um conjunto não coerente e até certo ponto

    desorientado do sujeito Luís Carlos Prestes. Neste sentido, se explica o título

    do nosso trabalho, chamado de caricatura da memória, como uma forma de um

    retrato exagerado ou propositalmente ridículo do sujeito, como veremos a

    seguir.

    O perfil de Paulo Custódio (1985) na realidade se constituiu em uma

    narrativa em que jogo das às categorias do cômico e do irônico, no dizer de

    Hayden White (2014), se sobressaem na elaboração do sujeito Luís Carlos

    Prestes, conhecido pela sua seriedade e rigidez de ideias e em posições

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    políticas. O que causa uma estranheza e um deslocamento dentro do jogo de

    construção biográfica.

    3. A PROCURA DO AUTOR E DO ILUSTRADOR: PAULO CUSTÓDIO E

    RENATO CANINI

    O leitor deve estranhar o pouco o título deste tópico. O motivo foi à

    dificuldade encontrada em conseguir dados do autor do perfil “Luís Carlos

    Prestes”, o escritor e jornalista Paulo Custódio. Até o momento o autor deste

    artigo não conseguiu encontrar dados pontuais como data de nascimento, local

    de nascimento, formação e experiência profissional1. O que encontramos foi

    um curto perfil feito cheio de ironia, publicado no próprio livro: “Aos trinta anos

    estrear em um livro-solo não é mal, e quando já consta no currículo do

    indivíduo duas obras escritas a quatro mãos, ele tem tudo para não se sentir

    um fracasso” (CUSTÓDIO, 1985, p.85). Há, portanto, duas sugestões aqui, que

    o Paulo Custódio teria supostamente nascido em 1955 e que antes publicou

    dois livros em parceria com Mário Goulart2.

    Na continuidade Paulo Custódio traz algumas ironias que me parecem

    demarcadas por certos preconceitos étnicos: “É o caso do autor que vos fala.

    Fracasso, para ele, é aquele negócio que o Woody Allen industrializou com

    muito mais talento que seu primo, o também semita Paulo Maluf, tentou vender

    a outra atitude, o sucesso” (idem). Fracasso/sucesso, judeu/semita, parece

    estranho essa relação construída entre Woody Allen e Paulo Maluf. No mesmo

    caminho a frase final do seu minibio: “Como Mandrake, o personagem do

    Rubem Fonseca, também ama as mulheres a um nível – pronto, está dito! –

    passível de ser catalogado de patológico; ainda não chegou ao ponto de

    estrangulá-las” (ibidem).

    1 Através das redes sociais encontrei dois amigos do escritor, um dos editores da Editora Tchê nos anos 1980, o escritor Airton Ortiz e o escritor Roberto Cohen. Ambos não souberam relatar nada sobre o escritor e jornalista Paulo Custódio. 2 Acredito que seja justamente Anedotas de Gaúcho, volumes 1 (1983) e 2 (1984), lançado em diversas edições pela mesma Editora Tchê.

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    Sobre o ilustrador gaúcho Renato Canini não tive problemas, devido a

    sua atuação consistente no campo do humor gráfico brasileiro nos anos 1970 a

    200, com páginas e páginas dedicadas a seu trabalho. Canini nasceu em 22 de

    fevereiro de 1936 e faleceu em 30 de outubro de 2013. Conhecido pelos

    trabalhos no Pasquim e ilustrações da Editora Abril e para a Disney, neste

    último destacou-se desenhando o personagem Zé Carioca. Além disso, em sua

    carreira, publicou alguns livros, entre eles o Um redondo pode ser quadrado, O

    Cigarro e o formigo. Pela editora Tchê colaborou em algumas obras nos anos

    1980.

    4. A COLEÇÃO ESSES GAÚCHOS: A CONSTRUÇÃO DE UMA

    IDENTIDADE GAÚCHA?

    A Coleção Esses Gaúchos, que saiu pela editora Tchê, dentro da

    comemoração do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha, uma iniciativa

    do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, com apoio da RBS e o Banco

    Europeu. Tal projeto exemplifica uma ideia de uma identidade gaúcha, uma

    gauchicidade. A coleção além de Luís Carlos Prestes, lançado em março de

    1985, como volume 15, foram perfilados e publicados biografias de Getúlio

    Vargas, Barão de Itararé, Lupicínio Rodrigues, Leonel Brizola, Tesourinha,

    Érico Verissimo, Elis Regina, Pinheiro Machado, Borges de Medeiros.

    A Coleção Esses Gaúchos saiu pela editora Tchê, dentro da

    comemoração do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha, iniciativa do

    Governo do Estado do Rio Grande do Sul, com apoio da RBS e o Banco

    Europeu. Tal projeto exemplifica uma ideia de uma identidade gaúcha, porém

    podemos perceber que há uma diversidade nesta ideia de ser gaúcho, contida

    na coleção, como veremos.

    Sandra Jatahy Pesavento (1989) compreende que a figura do gaúcho é

    uma fixação de imagens e conceitos sobre Rio Grande do Sul e seu

    personagem símbolo, o gaúcho, que reforça imagens, fixando hábitos e

    conceitos e exaltando comportamentos considerados típicos, criando um mito

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    ou de um estereótipo. Uma noção de história que procura legitimar uma

    posição de predomínio e certa hegemonia, considerada por ela como uma

    visão tradicional e conservadora.

    Para o historiador Jocelino Zalla (2018) as origens do gaúcho remetem

    ao século XVIII como o andarengo, errante, sem paradeiro e trabalho fixo,

    alguém excluído da ordem pela condição de “vagamundo”. Com o tempo o

    termo transformou-se, ganhando uma conotação positiva, com a organização

    da estancia e com a identificação como sinônimo de peão e guerreiro. A

    questão da consolidação da propriedade pecuária seria o motivo da mudança,

    com a subjugação dos gaúchos como mão de obra nas estancias de criação.

    Seriam os peões campeiros, que mantinham hábitos, vestimentas, linguajares

    e costumes herdados dos antepassados.

    Para Zalla (2018, p.62) “foram os homens e mulheres de letras, educados

    em padrões cosmopolitas e valendo-se de modelos narrativos europeus os

    responsáveis pela elaboração do gaúcho como símbolo da identidade coletiva

    do Rio Grande do Sul”. Um romantismo ingênuo presente em nomes de

    escritores desde o século XIX até recentemente. O Zalla (2018) cita o nome de

    José de Alencar, Alcides Maya, Simões Lopes Neto, Cyro Martins, como

    exemplos destes produtores.

    Entretanto, a Coleção Esses Gaúchos parece diluir essa ideia de uma

    identidade gaúcha fixa e estereotipada, o critério parece ser a ideia de

    notoriedade dos perfilados, não agenciando propriamente as noções podemos

    dizer folclóricos, presos a uma tradição, dos quais falam Pesavento (1989) e

    Zalla (2018), em seus trabalhos teóricos sobre o tema.

    5. ENTRE O CÔMICO E IRÔNICO: CARICATURAS DA MEMÓRIA

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    Imagem 1: Capa do perfil Luís Carlos Prestes.

    Comecemos por apresentar a capa do livro Luís Carlos Prestes. Como é

    possível observar o livro já traz nela uma caricatura do seu perfilado, feito por

    uma artista chamada Ronaldo3 (Imagem 1). Depois do título, uma espécie de

    subtítulo definidor do personagem: “O revolucionário. O conservador. O

    demônio. O crente. O militar. O antimilitarista. O guerrilheiro. O senador. O

    octogenário. O vigoroso. Prestes.”. É possível questionar algumas destas

    características enfatizadas pelo autor do perfil biográfico. Por exemplo: o

    conservador, o demônio, o crente. A ênfase em lado pelo menos negativo é

    evidenciada desde o início. Ainda sobre a capa, a caricatura de Prestes é

    demasiadamente negativa, além de velho, há certa ironia, visto que o

    personagem é colocado praticamente apenas com a cabeça e mãos. Em uma

    delas ele segura PCB, do qual Prestes havia deixado o partido desde 1980, em

    sua Carta aos comunistas, o que passo um teor de crença politica do

    personagem.

    3 Não encontramos informações sobre o caricaturista.

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    Imagem 2: Caricatura que antecede o primeiro capítulo

    Antes mesmo de iniciar a narrativa biográfica propriamente, o perfil

    apresenta uma primeira caricatura de Luís Carlos Prestes (Imagem 2). Da

    autoria do ilustrador Renato Canini, ela se configura como bastante

    representativa, pelo visto que o caricaturado apresenta características de um

    homem velho, com os dedos em riste, vestindo-se muito bem, porém trazendo

    pés em formato de caneta, ou seja, quando alguém se expressa impositiva e

    altivo. O termo o Velho, apelido inclusive que levou até o resto dos dias, trata-

    se, segundo Rodrigo Motta (2002), de uma ênfase conferida a Prestes, desde

    os anos 1950, quando este permanece na clandestinidade:

    Os retratos e reproduções dele que circulavam até então, inclusive na propaganda anticomunista, mostravam um homem jovem, na faixa dos quarenta anos. (...) De repente, o líder emerge das sombras de uma década de clandestinidade, e os jornalistas são apresentados a um senhor quase sexagenário, embora ainda vigoroso. A imprensa conservadora não iria perder a oportunidade de troçar da idade de Prestes, e partir daí ele passou a ser adjetivado de velho. (p.106-107)

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    Esta ênfase na figura do Velho permanecerá, como vemos nos anos

    1980, quando Prestes possuía os seus mais de oitenta anos, como é o caso da

    época da publicação do perfil biográfico “Luís Carlos Prestes”, da autoria de

    Paulo Custódio.

    Pensando mais alguns paratextos4 contidos no livro, observamos nos

    agradecimentos que o autor agradece a vários amigos que o ajudaram com

    fotos e livros, ou a acesso a arquivos e livrarias. Já nas epígrafes identificamos

    certos sarcasmos5.

    Antes de começar propriamente o perfil chama atenção uma nota do

    próprio Paulo Custódio: Luiz Carlos Prestes negou-se a colaborar na

    construção do texto:

    Prestes recursou-se a responder questionário para este livro argumentando que discordava de seu conteúdo, o qual estaria coonestando – o termo é dele – caso uma entrevista sua fosse nele publicada. Uma das afirmações que ele julgou equivocada foi a de que as mulheres, no comunismo primitivo, também eram repartidas, se não igualitariamente, ao menos de maneira bem mais comunal que a permitida pela nossa sociedade – excetuando as prostitutas.

    O texto realmente possibilitava uma má interpretação, por isso a frase “... era dividido igualitariamente...” foi substituída por uma mais apropriada “... eu usufruído por todos...”

    Como essa afirmação é ciência materialista clássica (mais precisamente, Engels em seu A origem da família, da propriedade privada e do estado, onde o companheiro de Marx afirma que a monogamia surgiu em decorrência da propriedade privada, a qual gerou o direito de herança, cujos legendários viram na posse exclusiva de uma mulher a única maneira de ter certeza que estariam legando seus bens a seus filhos legítimos) acredito que foi a linguagem um tanto dúbia e irreverente que desagradou Prestes.(CUSTÓDIO, 1985, p. 12)

    4 Paratexto “é aquilo que por meio do qual um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e, de maneira mais geral, ao público” (GENETTE, 2009, p.9). São exemplos: capa, anexos, página de rosto, prefácios, posfácios, entrevistas, dedicatórias, epigrafes, etc. 5 Primeiro por usar Paulo Francis, em uma frase conhecida retirada do seu O afeto que se encerra, que diz: “Pessoas que me conhecem no meu atual ceticismo se surpreendem que eu pudesse ser ou tenha sido, comunista na juventude (...) Respondo com outra pergunta: como é possível não ser, ou não ter sido comunista no Brasil (...)?” (p.7). Depois estranhamente coloca duas frases enigmáticas, uma de Anatole France: “Vou falar de mim a propósito de Shakespeare” e outra de sua avó (isso mesmo!): “Que guria ruim pra passar fome essa!”, além de justificar nas seguintes palavras: “Minha avó, lá pela década de 30, comentando a tremedeira de uma das suas filhas, às dez horas da manhã, com fome)” (idem)

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    Imagem 3: Ilustração do primeiro capítulo

    A lustração do primeiro capítulo “A Coluna da Esperança, é a última que

    morre?” (imagem 3) expressa em traços em primeiro plano o próprio Prestes

    sério, contendo em segundo plano outros dois militares, supostamente

    comandantes tenentistas como ele. Enquanto a ilustração possui traços sérios,

    o título do capítulo percebe-se traços de ironia, um das categorias que Hayden

    White (2014), que se apropria de Frye, para compreender as estruturas dos

    enredos dos textos de natureza literária ou histórico. Isso na analogia contida

    na ideia da esperança, do cavaleiro da esperança, com a Coluna, conhecida

    como Coluna Prestes e no dito popular da esperança que seria a última que

    morre.

    Antes mesmo de se deter a chamada Coluna Prestes, Paulo Custódio

    (1985) faz uma reflexão sobre o comunismo. “O Comunismo é antigo. Tudo

    que existia “antes”, de alimentos a peles, de frutas a mulheres – e homens –

    era usufruído por todos os membros da tribo. Se o chefe ficava com mais, é

    outra história.” (p.14). E continua: “O fato é que a igualdade é um dos sonhos

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    mais antigos da humanidade, tão antiga quanto à vontade de ter mais, e aqui

    começa o problema” (Idem). Percebe-se claramente que o autor não possui

    qualquer simpatia pelo comunismo, se utilizando de ironias e de certa forma,

    sensos comuns, sobre o que seria o chamado comunismo primitivo. Para o

    biógrafo, o capitalismo seria algo inerente ao homem desde o seu início

    enquanto espécie. Isso fica mais claro no mesmo parágrafo quando afirma:

    “Surgindo o capitalismo ressurgiu sua antítese inevitável, agora armado de todo

    um instrumental teórico e prático criado pelo próprio capitalismo, sistema que,

    segundo seus adversários, comunistas ou não, cria o veneno que o destrói”

    (p.14)

    Depois Paulo Custódio chega ao seu personagem: “No Brasil, falar em

    comunismo é falar em Prestes” (p.14). Há aqui uma vinculação direta entre a

    doutrina comunista e o sujeito Prestes, assim como ocorrerá em tantas outras

    biografias ou estudos, seja com a doutrina, seja com o Partido, no caso o PCB.

    O biógrafo apresenta o seu personagem em poucas linhas, aludindo à

    noção da identidade gaúcha, que já debatemos no tópico anterior, vinculado a

    ideia conservadora:

    Gaúcho ás antigas, às direitas, como se dizia, engenheiro por vocação e militar por necessidade – sua mãe viúva passava por grandes dificuldades para educá-lo e às suas quatro irmãs; o Colégio Militar era gratuito, dava prioridade para os órfãos de militares e ainda fornecia alimentação e vestuário para alunos pobres -, idealista no bom sentido, real, adotou uma doutrina que dá uma visão total do mundo, explicações brilhantes para o passado, presente, e previsão com boas possibilidades de acerto para o futuro da humanidade, e que exige uma disciplina de seus seguidores, disciplina física mas principalmente mental, de saber raciocinar com contradições sem perder o centro da questão” (CUSTÓDIO, 1985, p.14)

    .

    O biógrafo na verdade vai disparando informações e análises sobre seu

    personagem, de maneira desorganizada, misturando temporalidades e

    contextos, não seguindo uma linha linear. Em certo momento falando da

    origem das revoltas de 1924 afirma: “O velho começou cedo” (p.15). Confunde

    marxismo com revolta diante das injustiças sociais “(...) o comunismo de

    Prestes começou em casa, empírico, através da simples indignação contra

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    injustiças” (p.15). Tal afirmação não condiz em nada com os próprios

    depoimentos de Prestes, quando este avisa que seu primeiro contato politico

    com o marxismo se deu no exílio na Bolívia e na Argentina, no término da

    “Grande Marcha”

    Além de desorganizado, com trechos que exemplificam certos

    anacronismos, o texto em si é confuso, nos quais Paulo Custódio oscila

    diferentes vozes, trazendo citações não identificadas, que confundem mais do

    que esclarecem a trajetória política de Luiz Carlos Prestes. Às vezes o próprio

    Prestes fala, outras vezes parte dos autores em que o autor dialoga.

    Em certo momento do texto Paulo Custódio se apropria das reflexões do

    comandante tenentista João Alberto, um dos principais nomes da Coluna

    Miguel Costa Prestes, nos anos 1920, autor nos anos 1950 do livro “Memórias

    de um Revolucionário”. Percebe-se claramente que o biógrafo se apropria de

    certo ressentimento de João Alberto, quando coloca diversas citações do livro

    citado: “Ele era assim mesmo – dizia-me – cheio de caprichos, contraditório”

    (p.19) ou como este “(...) convertera-se em materialista dogmático” (idem) e

    neste “Aquele novo personagem que se estava apresentando em Prestes não

    me agradava” (Ibidem)

    A ênfase é no momento em que Prestes tenta convencer os antigos

    colegas da Coluna Invicta a não se apoiarem ao golpe getulista em 1930. Uma

    frase de João Alberto exemplifica o isolamento de Prestes nesta tentativa:

    “Parecia um fanático, transbordando de violência contra os adversários e

    amigos da véspera e colocando todos, sumariamente, na classe dos

    exploradores do povo” (p.20). Portanto, há uma ênfase demasiada nas

    memórias de João Alberto em certo teor anticomunista.

    Além de João Alberto, Paulo Custódio bebe na fonte de Jorge Amado,

    no seu clássico O Cavaleiro da Esperança, mas de forma tímida, o que nos

    leva a compreender o seu perfil biográfico de Prestes como uma espécie de

    colagens de textos, fragmentado, descontínuo. Em relação ao livro O Cavaleiro

    da Esperança, Paulo Custódio escreveu:

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    Este livro, publicado pela primeira vez em 446, como parte de uma campanha para tirar Prestes da cadeia, tem uma história própria, devido à fidelidade com que espelha uma época e um país, através do estilo do autor, representativo de um estado de espírito. Foi acusado de mistificador de Prestes, sendo material informativo de

    primeira qualidade. (p.26)

    Paulo Custódio (1985) compreende que “Prestes é um tipo de homem

    que só ascende ao poder em épocas de crise radical, tipo revolução russa,

    emergindo em meio aos escombros de um sistema agonizante” (p.26).

    Imagem 4: Ilustração do segundo capítulo

    No capítulo 2, chamado “Do “intento louco”, conluio”, temos mais uma

    ilustração de Canine (Imagem 4), que alude a prisão e julgamento de Luís

    Carlos Prestes. Na ilustração temos Prestes triste e abatido, sendo observado

    com atenção e certo espanto pelos presentes. A semelhança do capítulo 1,

    permanece a ironia do texto, que já começa mais uma vez procurando

    descontruir o marxismo e o comunismo. Vejamos: “Quando lhe pediram uma

    definição do comunismo como condição para apoiá-lo, no breve período

    6 Na verdade a primeira edição argentina é de 1942 e a brasileira é de 1945.

  • 15

    parlamentar do PCB, em 45/47, Prestes respondeu que se dissesse o que é

    comunismo ficaria mal, ou, simplificando, a ignorância política do povo é um

    prato cheio feito para o anticomunismo” (p.35). E continua comentando:

    Realmente: Imagine-se o leitor convencendo a massa da corrupção inerente ao capitalismo e da inevitabilidade de um regime popular, conseguindo o poder e sendo imediatamente obrigado a tomar atitudes que contradizem, a curto prazo pelo menos, o que no dia-a-dia pode significar muito, as belas promessas de paz e pão para todos” (CUSTÓDIO, 1985, p.35)

    O autor procura demostrar que o marxismo foi um erro, optando pela

    ironia: “Este foi o drama dos bolcheviques e tem sido em boa medida o que

    todas as revoluções socialistas, da chinesa à cubana, e continuará sendo

    enquanto permanecer teoria a maravilhosa tese do socialismo ser uma

    consequência natural da derrocada do capitalismo desenvolvido...” (p.35).

    Ironiza também o fato de Prestes ter aderido à doutrina marxista recebendo na

    Bolívia alguns livros, dentre eles Estado e Revolução, de Lênin: “Prestes era

    completamente ignorante o marxismo e hoje inveja a facilidade com que os

    jovens têm acesso à sua bibliografia” (p.35).

    A semelhança do primeiro capítulo persiste os mesmos problemas: texto

    quebrado, com ausência de continuidades, uma mistura de temporalidades e

    espacialidades, um jogo de citações, sem datas e páginas e muito menos

    autoria. Além disso, imagina respostas de Prestes a questões do passado e do

    presente da narrativa: “Nessa época, se alguém perguntasse a Prestes sua

    opinião sobre os julgamentos promovidos pelo PCUS é certo que ele apoiaria”

    (p.39). Paulo Custodio ensaia alguns elogios a Prestes, porém sua construção

    é uma visão caricatural, e mais derrotada. Um exemplo desta compreensão é o

    trecho seguinte:

    Prestes é um vitorioso diante da vida, manteve-se firme em vários terremotos, sempre consciente de suas limitações, apreendendo, e hoje, octogenário, é um dos políticos brasileiros mais respeitados e solicitados a dar opiniões. Num país dominado por tipos astutos, oportunistas e vaidosos, é um homem austero, derrotado politicamente, se visto de maneira superficial, e ganhador como indivíduo, vitória que só obtém quem viveu e vive intensa e coerentemente (p.41).

  • 16

    Entretanto, a ironia persiste por toda a narrativa: “É recomendável não

    falar mal do regime soviético na frente de Prestes. Seja a crítica da esquerda

    ou direita, ele reage” (p.42). O autor cita uma reportagem saída no jornal O

    Estado de São Paulo para exemplificar.

    Figura 5: Ilustração do capítulo 3

    No capítulo 3, temos na ilustração uma caricatura de Prestes, sorridente

    e velho, com uma sombra negra, que talvez remeta a um futuro “negro” quanto

    aos seus objetivos. Saído da cadeia, do qual esteve preso entre 1936 a 1945,

    solto, consegue eleger-se Senador da República, mas dois anos depois o PCB

    é cassado, voltando o partido e o próprio Prestes à clandestinidade. Paulo

    Custódio (1985) continua produzindo uma narrativa que procura descontruir o

    seu personagem. O autor afirma que Prestes “cansou de dar ‘coices’ em

    jornalistas que lhe faziam perguntas que ele achava idiotas ou mal

    intencionadas, capciosas” (p.48). E justifica: “Novamente a proximidade entre o

    tão-proclamado caráter desabrido gauchesco e a franqueza, preto no branco,

    proletária ou camponesa” (Idem). Custódio observa nessa franqueza também

    algo positivo, quando exemplifica o caso das críticas que fez a Maluf e

    Tancredo (segundo Prestes ambos eram do mesmo nível), durante a posse da

    nova diretoria do sindicato dos bancários de Porto Alegre, em 1985 ou quando

    chegando do exílio em 1979 no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, fez

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    duras críticas a ditadura, listando os nomes dos assassinados pelo regime,

    mesmo sendo ela responsável por sua anistia.

    Paulo Custódio vai ao caminho do psicologismo: “No dia-a-dia é outra

    coisa. Um tipo vil e bem educado agrada mais a muito mais pessoas por viver

    numa medida mais condizente com o cotidiano, do que o idealista que acredita,

    algumas vezes excessivamente na própria virtude, e descamba com relativa

    facilidade para a intolerância” (p.48). E arremata: “Psicologismo à parte. O fato

    é que a simpatia, ou habilidade para agradar, exerce papel importante na

    carreira dos indivíduos de qualquer ideologia; Stalin era tão ou mais cercado de

    bajuladores que Hitler ou Reagan ou quem quer que esteja por cima” (Idem).

    Além da franqueza, Custódio coloca o orgulho como outra característica da

    personalidade de Prestes: “Outro grande momento prestista foi quando recusou

    a defesa de Sobral Pinto após sua prisão, em 36” (p.49) e justifica ironizando:

    “O orgulho era necessário a Prestes, que teve a sorte de ganhar um advogado

    católico, religião com milenar experiência em lidar com orgulho da miséria

    humana” (Idem).

    Prestes, para Paulo Custódio, é um sujeito duro, quase insensível, do

    qual as fotos sorrindo são quase impossíveis de encontrar, como uma

    descrição de uma foto com as irmãs: “uma das raras fotos de Prestes foi tirada

    ao lado das duas, durante o exílio em Buenos Aires, logo depois da Coluna.

    Elas jogam no time ‘comunistas, graças a Deus’” (p.50). E segue na narrativa

    exemplificando em outras fotos, como no comício de Vargas: “Prestes, sorrindo

    contido, simples, sem populismo” (p.50) ou em momentos na época da Coluna

    Prestes ou quando junto da bancada do PCB em 1946: “ar austero,

    ligeiramente melancólico – ou será rigidez natural de quem está posando/”

    (p.51)

    Paulo Custódio insiste em um movimento que possa criticar a

    experiência comunista e demostra uma compulsão que as ideias de Prestes

    são fracassadas, visto que o capitalismo superou os limites do socialismo.

    Enfatiza as diferenças de modelos de industrialização dos Estados Unidos e da

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    URSS e em certo momento se pergunta: “Um Brasil Socialista diminuiria em

    quanto à remessa de lucros das empresas americanas para sede?” (p.51)

    No capítulo 4, chamado “O Materialismo, o comunismo, o capitalismo, o

    Brasil”, Paulo Custódio parte mais do contexto, do que o personagem. Todavia,

    em certo momento procura interpretar seu personagem que palavras mais

    sérias: “Prestes é um personagem de Shakespeare. As situações limite são

    comuns em sua vida: as batalhas da Coluna, a separação brutal de Olga, a

    tortura psicológica do isolamento, as derrotas – falando num nível superficial –

    políticas acachapantes, material precioso para dramaturgos” (p.60). O autor

    deve estar a remeter-se a figura dramática ou trágica de Prestes. E continua:

    “Seus exílios, clandestinidade, prisão, decepções, desaparecem diante de uma

    realidade maior, para a qual estes fatos menores certamente contribuíram

    decisivamente; a pujança de um ancião de 87 anos, sem rancores, pois

    considera tudo isso ‘fruto do processo histórico” (Idem).

    Custódio demostra que Prestes meio que justifica esses fatos trágicos

    em sua vida, como uma etapa de uma vitória futura do socialismo. A autocrítica

    também aparece, visto que o mesmo Prestes assim escreveu “Acho que cometi

    muitos erros, mas só não erra quem não faz. É o pior dos erros” (p.61). O

    biografo ensaia uma análise: “O materialismo tem um preço: a solidão. Não é

    agradável sentir que estamos sós. O comunismo, visões ufanistas à parte, se

    der certo talvez seja isso: um sistema feito para e por um ser incompleto,

    caminhando para o esclarecimento, consciente de si e da sua solidão” (p.61).

    O biógrafo de certa forma justifica a solidão de Prestes pelas opções

    políticas que ele seguiu. Não esconde o seu anticomunismo, mesmo

    admirando algumas das características morais do seu personagem. Cita Alceu

    do Amoroso Lima (o da década de 1930), quando afirma o crítico que o

    comunismo atrofia do conceito de justiça em detrimento da liberdade ou Paulo

    Francis, que preferia se jogar pela janela a morar na URSS. Tal movimento é

    justificado por Custódio, pois ele pretender tenta aprofundar o tema da

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    fidelidade de Prestes a URSS. O autor se pergunta qual o legado de Prestes?

    O responde: “o mesmo de todos nós: a luta” (p.64)

    É a suposta aridez de Prestes, acusado de ser um homem sem amigos, aqui mostrando o seu lado oculto: uma pessoa que mergulhou até o fundo da condição humana nas suas facetas mais trágicas, uma separação do mundo em comum comparável à dos monges mais ascetas, e que voltou à tona com uma clara consciência do relativismo do valor dos homens, na alma a certeza de que a morte é apenas um acidente fortuito na vida, certeza indispensável para se deixar de temê-la, e que esta vida merece ser vivida apenas enquanto for possível nela criar fatos. (p.65)

    No quinto e último capítulo, Depoimentos históricos, três documentos

    prestistas e depoimentos atuais, há como diz o próprio nome uma lista de

    depoentes, como Graciliano Ramos, Astrogildo Pereira, Lourenço Moreira

    Lima, Agildo Barata, Jorge Amado, Cordeiro de Farias, Plínio Corrêa de

    Oliveira, Juarez Távora, Mário de Andrade, bem como trechos do seu

    pensamento em discursos ou manifestos escritos pelo próprio. A arrumação

    dos depoimentos chama atenção. Muitas ex-lideranças da Coluna Prestes ou

    do PCB que se tornaram-se ao longo do tempo, não exatamente inimigos, mas

    ressentidos com o líder comunista. Há ainda depoimentos atuais, como Tarso

    Genro e Moacir Sclyir.

    6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Desta forma, ao analisar como seu deu a construção biográfica de Luís

    Carlos Prestes realizada por Paulo Custódio, observamos o anticomunismo do

    biógrafo em relação ao biografado, utilizando-se das chaves do cômico e da

    ironia, presentes tanto no texto como nas imagens contidas na narrativa

    (caricaturas, principalmente), como forma de elaborar um Prestes como um

    homem velho, sério, rígido, que cometeu vários erros em sua trajetória. As

    caricaturas e desenhos de Renato Canini dialogam também neste sentido,

    mesmo de maneira um pouco mais sútil. Por último, a forma como Custódio

    monta a biografia, de forma fragmentada, não linear e descontínua, é forma

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    moderna, que de certa maneira foge do que Pierre Bourdieu (2006) chama de

    ilusão biográfica.

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    AMADO, Jorge. O Cavaleiro da Esperança. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. AMADO, Jorge. Vida de Luiz Carlos Prestes: El Caballero de la Esperanza. Buenos Aires: Editorial Claridad, 1942. BARROS, João Alberto. Memórias de um revolucionário. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1953. BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FVG, 2006, pp.183. CUSTÓDIO, Paulo. Luís Carlos Prestes. Porto Alegre: Tchê, 1985. CUSTÓDIO, Paulo. GOULART, Maurício. Anedotas de Gaúcho, 2 volumes. Porto Alegre: 1984. GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Cotia, SP: Cotia, 2009. LEE, Hermione. Biography. Oxford University Press, 2009. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Batalha em torno do Mito: Luiz Carlos Prestes. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n34, julho-dezembro de 2004, p.91-115. Prestes, Anita Leocadia. Luiz Carlos Prestes: Um comunista Brasileiro. São Paulo: Boitempo, 2015. REIS, Daniel Aarão. Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. RICOUER, Paul. Memória, história, esquecimento. Campinas, SP: UNICAMP, 2007. WHITE, Hayde. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 2014.