A Carta de D. Luis: acerca da metodologia de organização de arquivos de família

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1 A CARTA DE D. LUIS Pedro Abreu Peixoto Arquivo Municipal Vila Real Director in OS ARQUIVOS PESSOAIS E FAMILIARES Da representação da informação ao acesso 01 Jun 2013, Casa de Mateus | Vila Real Permitam-me antes de mais agradecer o benévolo convite que nos foi feito pela organização, apresentando os nossos parabéns pela pertinência dos assuntos que se estão a abordar e que não poderiam ter melhor coordenação nas pessoas do Sr. Dr. Abel Rodrigues, nosso caro colega, e do Sr. Prof. Armando Malheiro da Silva, distinto amigo e privilegiado interlocutor de há tantos anos, no que concerne a estes assuntos dos Arquivos de Família. É também com especial satisfação que decorre este encontro na Casa de Mateus. Se é ela própria uma pérola da arquitectura portuguesa, faz-se a cada dia uma fonte de cultura, enriquecedora desta região e do país, ultrapassando com mestria as fronteiras, como só a música e a poesia o sabem fazer. Bem-haja pois à Fundação da Casa de Mateus que, com o Instituto Arquitecto José Marques da Silva e com o CITCEM da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, deram a oportunidade de aqui nos reunirmos. Cumprimentamos todas as colegas e todos os colegas presentes, a quem pedimos uns breves minutos de resistência, para deambularem pelas nossas diatribes acerca de alguns aspectos sobre os arquivos de família. Prometemos debruçarmo-nos apenas sobre o coração da organização dos mesmos. Propusemo-nos falar sobre “A Carta de D. Luís”. Fizemo-lo pela importância que esta missiva assumiu na proposta que, em inícios da década de noventa, realizámos no contexto do Instituto Português de Arquivos (IPA), para a organização dos Arquivos de Família, vertida então para o primeiro manual português acerca desta temática. Foi então solicitado pelo Sr. Prof. José Mattoso, pela Srª Drª Madalena Garcia e pelo Sr. Dr. José Mariz, a elaboração de um manual que orientasse os proprietários de arquivos de

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A CARTA DE D. LUIS

Pedro Abreu Peixoto

Arquivo Municipal Vila Real Director

in

OS ARQUIVOS PESSOAIS E FAMILIARES

Da representação da informação ao acesso

01 Jun 2013, Casa de Mateus | Vila Real

Permitam-me antes de mais agradecer o benévolo convite que nos foi feito pela

organização, apresentando os nossos parabéns pela pertinência dos assuntos que se estão a

abordar e que não poderiam ter melhor coordenação nas pessoas do Sr. Dr. Abel Rodrigues,

nosso caro colega, e do Sr. Prof. Armando Malheiro da Silva, distinto amigo e privilegiado

interlocutor de há tantos anos, no que concerne a estes assuntos dos Arquivos de Família.

É também com especial satisfação que decorre este encontro na Casa de Mateus. Se é

ela própria uma pérola da arquitectura portuguesa, faz-se a cada dia uma fonte de cultura,

enriquecedora desta região e do país, ultrapassando com mestria as fronteiras, como só a

música e a poesia o sabem fazer.

Bem-haja pois à Fundação da Casa de Mateus que, com o Instituto Arquitecto José

Marques da Silva e com o CITCEM da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, deram a

oportunidade de aqui nos reunirmos.

Cumprimentamos todas as colegas e todos os colegas presentes, a quem pedimos uns

breves minutos de resistência, para deambularem pelas nossas diatribes acerca de alguns

aspectos sobre os arquivos de família. Prometemos debruçarmo-nos apenas sobre o coração

da organização dos mesmos.

Propusemo-nos falar sobre “A Carta de D. Luís”. Fizemo-lo pela importância que esta

missiva assumiu na proposta que, em inícios da década de noventa, realizámos no contexto do

Instituto Português de Arquivos (IPA), para a organização dos Arquivos de Família, vertida

então para o primeiro manual português acerca desta temática.

Foi então solicitado pelo Sr. Prof. José Mattoso, pela Srª Drª Madalena Garcia e pelo

Sr. Dr. José Mariz, a elaboração de um manual que orientasse os proprietários de arquivos de

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família, no sentido de fornecer os conhecimentos básicos para organizarem os seus próprios

acervos.

Antes e após a publicação do mesmo, numa edição policopiada do próprio IPA, muitas

foram as pessoas com quem procurámos reflectir sobre o conteúdo das propostas ali

apresentadas.

Foi neste contexto que, em 2 de Junho de 1992, recebiamos uma carta do Sr. D. Luis

de Lencastre e Távora, Marquês de Abrantes e de Fontes, com quem haviamos partilado

assento num grupo de trabalho da Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos

Portugueses, relacionada com os arquivos dos descobrimentos, e a quem tinhamos pedido

uma leitura crítica do manual.

Da reflexão atenta sobre o conteúdo da carta – e de posteriores conversas com o seu

autor – relevavam-se algumas questões superiormente importantes sobre o objectivo principal

do manual. Eram elas, entre muitas outras:

1ª – A importância que para este tipo de arquivos tinha a história da família em

Portugal;

2ª – A relevância de considerar cada família como um caso concreto de estudo;

3ª – A realidade concreta da História de Portugal que faz com que poucos

arquivos de família cheguem até nós com os seus cartórios intactos.

4ª – A necessidade de uma nova abordagem por parte das instituições públicas a

este tipo de acervos seja na sua importância informacional, seja na sua relação

com os proprietários.

A primeira questão avisava desde logo sobre a estrutura da família em Portugal. Este

aspecto permitia que estivéssemos alerta para o que desde logo chamámos o “Arquivo de

Arquivos”, ou seja, que até determinada época o Arquivo de Família dificilmente deixaria de

ser um repositório de vários arquivos sedimentados por uniões matrimoniais, económicas,

políticas, sociais ou outras. Permitia ainda avaliar as razões porque com o decorrer do tempo,

particularmente a partir de inícios do Séc. XIX, aos arquivos de família iriam lentamente

sobrepor-se os arquivos pessoais, com um forte acento tónico nos arquivos de função.

No que respeita à segunda questão, partíamos da base objectiva de que nenhuma

família será temporal, geográfica, morfológica, espacial e informalmente igual a outra família,

pelo que se torna absolutamente necessário proceder ao estudo da genealogia de cada

realidade familiar, como forma de chegar o mais perto possível da história da família em si.

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Foram estas algumas das questões que mereceram uma explicação mais exaustiva,

inclusive graficamente, na monografia: Arquivos de Família: Organização e Descrição, editada

em 1996 pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e pelo Arquivo Distrital de Vila

Real, que publicámos em co-autoria com os colegas Manuel Silva Gonçalves e Paulo Mesquita

Guimarães.

No ponto que nesse trabalho se refere à classificação documental é referido logo de

entrada – como aliás já o tinha sido no Manual de Junho de 1991 editado pelo IPA – que no

caso dos arquivos de família a classificação não deve ser pré-definida devido à complexidade e

heterogeneidade da sua documentação, o que não permite qualquer previsão tipológica ou

temática.

Tendo a consciência da importância da classificação na organização dos arquivos e na

recuperação da informação, bem como nos arquivos que tratávamos ao debruçarmo-nos

sobre o tema do “Quadro de Classificação” fomos peremptórios: «O tratamento arquivístico

de um arquivo de família, como já referimos, não deve nunca ser realizado tendo como ponto

de partida uma classificação pré-existente. Na realidade, o quadro de classificação no que diz

respeito a este grupo de arquivos, não é nunca um ponto de partida como pode acontecer

para um arquivo empresarial. A existência de quadro de classificação de outros arquivos de

família deve servir apenas como referência para o estudo da documentação e como auxiliar

para a ordenação do novo quadro de classificação, que só se dará por completo quando se

proceder ao estudo e recolha de dados de todos os documentos constitutivos do arquivo que

se está a tratar.

Assim, a inclusão desta matéria num manual desta natureza – e continuamos a citar –

é dado apenas a título de exemplo para a explicação da formação de um quadro de

classificação. Não existindo em Portugal um estudo sistemático dos quadros de classificação de

arquivos de família, nota-se a tendência para o recurso à proposta que Olga Gallego fez para o

caso dos arquivos espanhóis. Note-se contudo que a história da família é diferente de país para

país o que se reflectirá ...na documentação que constitui o arquivo de família...». Fim de

citação.

Em relação a esta questão da classificação documental, fomos então muito claros na

nossa proposta, ao observar que na constituição das unidades de classificação propostas por

Olga Gallego, tomaram-se apenas critérios documentais, subvalorizando-se o contexto em que

essa mesma documentação foi produzida.

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Quisemos mostrar como a carta do Sr. D. Luis foi importante para compreendermos

que certas questões eram fundamentais de serem esclarecidas de forma cabal seja em termos

científicos, seja junto dos proprietários de arquivos de família.

Hoje, aqui, junto de vós, quisemos falar desta missiva porque ela nos transporta para

uma outra dimensão da organização dos arquivos de família.

Prometemos falar apenas do coração da organização destes arquivos e assim

pretendemos fazê-lo.

E o coração da organização destes arquivos - como de qualquer outros arquivos -

sempre tem sido a classificação e a ordenação dos documentos, tem no modelo proposto no

manual editado pelo IPA em 1991 e reafirmado com convicção na monografia citada de 1996,

para o que concerne aos arquivos de família, uma base de sustentação inequívoca nos

princípios da história geral da família e na especificidade dos agregados familiares e nos

contextos que os enformam.

É preciso, contudo, que não confundamos o que a história nos trás como realidades de

“Arquivos de Família” ou como realidades de “Arquivos Pessoais”, que resultará em termos de

instrumentos de acesso à informação em produtos necessariamente diferentes, que como tal

devem ser analisados.

Nos últimos anos temos estudado com a amplitude possível e com o rigor que merece

a proposta de um novo Paradigma aplicado à organização dos arquivos de família.

Esse novo Paradigma, que vemos assumir diversas designações conforme os autores e

os estudos que lemos, parecem enquadrar-se em termos gerais numa proposta genericamente

apelidada de: “Paradigma Científico”.

Compreendemos e tomamos para tal as palavras de um querido amigo, que é uma

proposta em que a classificação é “orgânico - funcional” e na qual as categorias devem estar o

mais possível próximo da especificidade da família que tratamos o que resultará num quadro

de classificação orgânico com um grau de especificidade muito apreciável, não se podendo

admitir nenhum padrão de classificação universal.

É, pois, esta a razão porque não vemos que tenhamos chegado a um ponto de viragem

para um novo paradigma na organização dos arquivos de família.

Quiçá, se chegarmos à conclusão - como o temos vindo a testar - que a tecnologia que

hoje nos é colocada à disposição, nos permitir dispensar a fase de classificação e ordenação

dos documentos, atingindo o mesmo objectivo a que nos propomos de recuperação da

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informação, possamos partir para um novo paradigma da organização dos arquivos de família

e, por maioria de razão, para muitos outros grupos de arquivos.

Assim possamos responder às necessidades de informação dos nossos utentes e às

interrogações que a nós próprios fazemos, para que possamos dormir todos os dias um sono

descansado.

Por nós penso que será difícil, pelo menos enquanto não descobrirmos a metodologia

para o "Paradigma Puro", aquele em que entre a documentação e o utente não precise da

intervenção do arquivista.

Pedro Abreu Peixoto

Junho de 2013