A Casa Das Sete Mulheres - Leticia Wierzchowski

314
Leticia Wierzchowski A CASA

description

A Casa das Sete Mulheres

Transcript of A Casa Das Sete Mulheres - Leticia Wierzchowski

  • Leticia Wierzchowski

    A CASA

  • DAS SETE

    MULHERES

    2003

  • Romance brasileiro

    Editora Record

    2003, 12a Edio

    ISBN 85-01-06330-4

    Digitalizado por SusanaCap (PDL)

    Formatado por LeYtor

  • A Guerra dos Farrapos, ou Revoluo Farroupilha (1835-1845) a mais longa guerra civil docontinente , foi uma luta dos latifundirios rio-grandenses contra o Imprio brasileiro.

    As complexas razes do levante esto nos livros de Histria.

    O que no est nos livros de Histria sobre essa guerra brasileira est neste livro de Letciawierzchowski. Porque A casa das sete mulheres um exerccio totalizador sobre a violncia daguerra - de qualquer guerra - e sua influncia malfica sobre o destino de homens e demulheres.

    O lder do movimento, general Bento Gonalves da Silva, isolou as mulheres de sua famlia emuma estncia afastada das reas em conflito, com o propsito de proteg-las. A guerra que seesperava curta comeou a se prolongar. E a vida daquelas sete mulheres confinadas na solidodo pampa comeou a se transformar...

    Somente um talento literrio instintivo e visceral poderia conduzir essa narrativa claustrofbicae ntima com o sopro pico que varre as pginas do livro. As mulheres daquela casa viviamnaturalmente na expectativa das notcias da guerra, que demoravam e eram lentas como asestaes que se sucediam. Cartas, recados, bilhetes escritos s pressas trazidos por solitriosmensageiros com meses de atraso no bastavam para redimir da solido. A solido sufoca. Asolido enlouquece.

    As mulheres adoecem de solido. As mulheres rezam. As mulheres esperam.

    Para contar essa histria, Letcia transpe todas as fronteiras.

    Histria e fico, realidade e fantasia, o natural e o sobrenatural se interpenetram no cotidianodas sete mulheres, cada dia mais violento e sufocante e imutvel.

    Para contar essa histria, Leticia assume a grandeza dos acontecimentos e os transforma emliteratura fundadora, edificando um livro sem igual no panorama da literatura brasileira.

    O leitor sair desta experincia transfigurado, tocado pela dor e pela verdade que gememnestas pginas e pela sutil beleza que a cada momento nos desconcerta.

    Tabajara Ruas

  • Esta histria para ti, Marcelo

    todas as histrias de amor so para ti...

    E para Joo. Pois ele a escreveu comigo

    nas longas tardes em que tambm se fez.

  • ''Aprenderam os caminhos das estrelas, os hbitos do ar e do pssaro, as profecias das nuvensdo Sul e da lua com um halo.

    Foram pastores do rebanho bravio, firmes no cavalo do deserto que domaram esta manh,laadores, marcadores, tropeiros, homens da partida policial, s vezes, matreiros; um, oescutado, foi o cantador.

    Cantava sem pressa, porque a aurora tarda a clarear, e no alava a voz. (... )

    Certamente no foram aventureiros, mas uma tropa levava-os muito longe, e mais longe asguerras (... )

    No morreram por essa coisa abstrata, a ptria, mas por um patro casual, uma ira, ou peloconvite ao perigo.

    Sua cinza est perdida em remotas regies do continente, em repblicas de cuja histria nadasouberam, em campos de batalha, hoje famosos.

    Hilario Ascasubi viu-os cantando e combatendo.

    Viveram seu destino como em um sonho, sem saber quem eram ou o que eram.

    O mesmo acontece, talvez, conosco."

    Os gachos Elogio da sombra

    Jorge Lus Borges

  • No dia 19 de setembro de 1835 eclode a Revoluo Farroupilha no Continente de So Pedro doRio Grande. Os revolucionrios exigem a deposio imediata do presidente da provncia,Fernandes Braga, e uma nova poltica para o charque nacional, que vinha sendo taxado pelogoverno, ao mesmo tempo em que era reduzida a tarifa de importao do produto.

    O exrcito farroupilha, liderado por Bento Gonalves da Silva, expulsa as tropas legalistas eentra na cidade de Porto Alegre no dia 21 de setembro.

    A longa guerra comea no pampa.

    Antes de partir frente de seus exrcitos, Bento Gonalves manda reunir as mulheres dafamlia numa estncia beira do Rio Camaqu, a Estncia da Barra. Um lugar protegido, dedifcil acesso. l que as sete parentas e os quatro filhos pequenos de Bento Gonalves devemesperar o desfecho da Grande Revoluo.

    Cadernos de Manuela

    O ano de 1835 no prometia trazer em seu rastro luminoso de cometa todos os sortilgios,amores e desgraas que nos trouxe. Quando a dcima segunda badalada do relgio da sala denossa casa soou, cortando a noite fresca e estrelada como uma faca que penetra na carne tenrae macia de um animalzinho indefeso, nada no mundo pareceu se travestir de outra cor ouessncia, nem os mveis da casa perderam seus contornos rgidos e pesados, nem meu paisoube dizer mais palavras do que as que sempre dizia, do seu lugar cabeceira da mesa,olhando-nos a todos ns com seus negros olhos profundos que hoje j perderam h muito oseu vio, a sua luz e a sua existncia de olhos de homem do pampa gacho que sabiam medir asede da terra e a chuva escondida nas nuvens. Quando o relgio cessou de soar o seu grito, avoz de meu pai se fez ouvir: "Que Deus abenoe este novo ano que a vida nos traz, e que nestacasa no falte sade, alimento ou f." Todos ns respondemos: "Amm", erguendo bem altonossos copos, e nisso no houve ainda nada que pudesse alterar o curso dos acontecimentosque nos regiam to dolentemente os dias naquele tempo. Minha me, em seu vestido derendas, os cabelos presos na nuca, bonita e correta como era sempre, comeou a servir afamlia com os quitutes da ceia, sendo seguida de perto pelas criadas, e poucos segundosdepois, quando do relgio no mais se ouvia um suspiro ou lamento, tudo em nossa casarecobrou a antiga e inabalvel ordem. Risos e ponches. A mesa iluminada por ricos candelabrosestava farta e repleta da famlia: minhas duas irms, Antnio, meu irmo mais velho, o pai, ame, D. Ana, minha tia, acompanhada de seu marido e dos dois filhos barulhentos e alegres,meu tio, Bento Gonalves, sua mulher de lindos olhos verdes, Caetana, a prima Perptua emeus trs primos mais velhos, Bento Filho, Caetano e, minha frente, olhando-me de soslaiode quando em quando, com os mesmos pequenos olhos ardentes do pai, Joaquim, a quem eufora prometida ainda menina, e cuja proximidade me causava um leve tremor nas mos,tremor este que eu conseguia disfarar com galhardia, ao segurar os pesados talheres de prataque minha me usava nos dias de festa. Os filhos pequenos de meu tio Bento e de sua esposaestavam l para dentro, com as negras e as amas, decerto que j dormiam, pois essas coisas deesperar o Ano no eram l para os que ainda usavam fraldas.

  • Foi exatamente assim que o ano de 1835 veio pousar entre ns. Havia no ar, fazia j algumtempo, um leve murmrio de insatisfao, umas queixas contra o Regente, umas reuniesmisteriosas que ora sucediam-se no escritrio de meu pai, muito escusas, ora arrancavam-node nossa casa por longas tardes e madrugadas. Porm, como disse, naquela noite tenra etpida de princpios de janeiro, nenhum dos presentes quela mesa parecia carregar qualquersombra que lhe turvasse os olhos. Joaquim, vindo do Rio, juntamente com os irmos, pararever a famlia, deitava-me longos olhares, como a dizer que eu no me esquecesse que erasua, que o tempo por ele passado para as bandas da Capital fora bom para comigo: eu via emsuas retinas negras um brilho de satisfao a prima que lhe cabia era bela, a vida era bela,ramos todos jovens, e o Rio Grande era uma terra rica, terra da qual nossas famlias eramsenhoras. Distante de mim, tio Bento e meu pai riam e bebiam solta, homenzarres de vozestrovejantes, de alma larga. As mulheres ocupavam-se com seus assuntos menores, seusanseios, no reles em tamanho, pois dessa delicada fmbria feminina que so feitas as famliase, por conseguinte, a vida; falavam dos filhos, do calor do vero, dos partos recentes; tinhamum olho posto nas conversas, os risos doces, a alegria; porm, com o outro fitavam seushomens: tudo o que lhes faltasse, de comer ou de beber, do corpo ou da alma, eram elas queproviam.

    Assim seguia a noite, estrelada e calma. A prima Perptua e minhas irms no se cansavam defalar em bailes, em passeios de charrete, em moos de Pelotas e de Porto Alegre. Vieram osdoces dar vez s carnes, a ambrosia brilhava feito ouro em seu recipiente de cristal, a comilanaseguia seu ritmo e seu passo, o ponche era bebido aos sorvos para espantar o calor dasconversas e dos anseios. O ano de 1835 estava entre ns como uma alma, a barra de suas saiasalvas acarinhava minha face como um sopro; 1835 com suas promessas e com todo o medo e aangstia de seus dias ainda sendo feitos na oficina da vida. Nenhum dos que ali estavam sequerviu o seu vulto ou ouviu sua voz de mistrios, abafada constantemente pelo rudos dos talherese pelos risos. S eu, sentada em minha cadeira, ereta, mais silenciosa do que de costume,somente eu, a mais moa das mulheres daquela mesa, pude ver um pouco do que nosaguardava. A minha frente, Joaquim sorria, contava um caso do Rio de Janeiro com sua vozalegre de moo. Sob a nvoa dos meus olhos, eu mal podia perceb-lo. Via, isso sim, agarradoao mastro de um navio, um outro homem, mais velho, de cabelos muito loiros, no negroscomo os de meu primo, de olhos doces. E via as ondas, a gua salgada comprimia minhagarganta, afogando-me de susto. E via sangue, um mar de sangue, e o minuano comeou entoa soprar somente para os meus ouvidos. O vulto do novo ano, plido e feminil, estendeu entosua mo de longos dedos. Pude ouvi-lo dizendo que eu fosse para a varanda, ver o cu.

    Est to quieta, Manuela a voz de minha irm Rosrio levou embora de meus ouvidos osopro cruel do vento de inverno.

    No nada disse eu, sorrindo um riso dbil.

    E sa da mesa, fazendo uma mesura discreta, qual Joaquim retribuiu com um largo sorrisoque, de to puro, me trouxe lgrimas aos olhos. Deslizei ento para a varanda, donde podia vera noite calma, o cu estrelado e lmpido que se abria sobre tudo, campo e casa, derramando nomundo uma luz mortia e lunar. De onde estava, podia ainda ouvir o vozerio de todos l dentro,e mais ainda seus risos alegres, as frases soltas e despreocupadas, no se falava em gado nemcharque, pois era noite de festa. Como no percebem?, foi o que pensei com toda a fora daminha alma. E, no entanto, o campo minha frente, mido de orvalho e florido aqui e ali,parecia ser o mesmo de todos os meus anos. E foi ento que vi, para as bandas do oriente, aestrela que descia num rastro de fogo vermelho. E no era o boitat que vinha buscar meusolhos arregalados, era sangue, sangue morno e vivo que tingia o cu do Rio Grande, sangue

  • espesso e jovem de sonhos e de coragem. Um gosto amargo inundou minha boca e tive medode morrer ali, postada naquela varanda, aos primeiros minutos do novo ano.

    Dentro da casa, a festa prosseguia, alegre. Eram quinze pessoas em torno da mesa posta, enenhuma delas viu o que eu vi. Foi por isso que, desde essa primeira noite, eu j sabia de tudo.A estrela de sangue confidenciou-me este terrvel segredo. 1835 abria suas asas, ai de ns, ai doRio Grande. E eu, fadada a tanto amor e a tanto sofrimento. Mas a vida tinha l seus mistrios esuas surpresas: nenhum de ns naquela casa voltaria a ser o mesmo de antes, nem os risosnunca mais soariam to leves e lmpidos, nunca mais aquelas vozes todas reunidas na mesmasala, nunca mais.

    "Do mesmo sonho que se vivia, tambm se podia morrer", ocorreu- me isto naquela noite, numsusto, como um pssaro negro que pousa numa janela, trazendo sua inocncia e seus agouros.Muitas outras vezes, nos longos anos que se seguiram, tive oportunidade de me recordar dessaestranha frase que ouvi outra vez, algum tempo mais tarde, na voz adorada de meu Giuseppe,e que repetia o que eu mesma j tinha dito ao ver uma fresta do futuro... Talvez tenha sidoexatamente nessa noite que tudo comeou.

    Manuela.

  • 1835

    A Estncia da Barra era de propriedade de D. Ana Joaquina da Silva Santos e do seu esposo, osenhor Paulo, que na noite de dezoito de setembro de 1835 reunira-se, juntamente com seusdois filhos, Pedro e Jos, s tropas do coronel Bento Gonalves da Silva. A Estncia da Barraficava na ribeira do Arroio Grande, s margens do Camaqu, a doze lguas da Estncia do Brejo,esta de propriedade de D. Antnia, irm mais velha de Bento e D. Ana. A Estncia do Brejotambm situava-se s margens do Rio Camaqu e possua um imenso laranjal, famoso entretodas as crianas da famlia Silva.

    Na manh do dia dezenove de setembro daquele ano, sob um cu to azul e plcido onde, oraaqui, ora ali, finssimas nuvens de renda branca repousavam, isto formando um conjunto todelicado quanto o de uma rica toalha de mesa bordada por hbeis dedos e estendida sobretudo, arvoredo, rios, audes, bois e casario, a Estncia da Barra estava em polvorosa. Naquelamesma tarde, chegariam para longa estada as sete mulheres da famlia, carregadas com suasmui extensas bagagens, com as suas negras de confiana, criadas e amas-de-leite, pois juntovinham, em alegre confuso, os quatro filhos pequenos de Bento Gonalves e Caetana, sendoque Ana Joaquina, a mais pequenina de todos, estava para completar seu primeiro ano poraqueles dias, e ainda mamava na teta da negra Xica.

    Na manh daquele dia, D. Antnia, tendo recebido por um prprio a notcia da chegada de suasparentas, e tendo tomado tambm conhecimento dos intentos de seu mui amado e estimadoirmo, que marchava para tomar a cidade de Porto Alegre, acordou mais cedo do que decostume e foi at a estncia vizinha dar as ordens necessrias a D. Rosa, a caseira, e mandarque se fizesse de um tudo de comer e de beber, pois decerto que Ana, Maria Manuela eCaetana, mais as quatro moas e os pequenos, vindos de viagem desde Pelotas, tirante asangstias que por certo lhes aoitavam as almas, haveriam de chegar casa varados de fome,at porque os moos e as crianas tm mesmo muito apetite, ao contrrio de gente j maisvelha, como ela mesma, a quem basta um bom prato de sopa e um assado hora da ceia.

    D. Antnia contava, naquele ano de 1835, a sua quadragsima nona primavera, era apenas trsanos mais velha do que seu irmo Bento e, como ele, tinha tambm aquela consistncia firmede carnes, os mesmos olhos negros, espertos e doces, a mesma voz calculada, e idnticacapacidade de rejuvenescimento. Era uma mulher alta e magra, ainda de rosto liso, cabelosnegros sempre presos no mesmo coque de trs grampos, vestia-se sempre em tons discretos,mas seus vestidos eram campeiros: nunca fora afeita das cidades, vivendo sempre em suaestncia, com seus cavalos, seus pomares e seus pssaros, isso desde que ficara viva docasamento com Joaquim Ferreira, moo a quem amara com todo o seu esprito, advogado, eque morrera numa carreira de cavalos, tendo cado da montaria e, com a espinha partida, vindoa falecer assim, na mesma hora. D. Antnia tinha ento vinte e sete anos e nenhum filho, eassim continuara a sua vida inteirinha. De Pelotas, onde fora viver aps o casamento, voltarapara a Estncia do Brejo e l ficara gastando seus anos; dos filhos que no parira, quase nosentia qualquer falta: tinha para mais de doze sobrinhos e com isso se bastava muito bem.

    Enquanto a pequena charrete vencia as milhas necessrias, sob o agradvel sol de setembro, D.Antnia media uma certa felicidade em seu peito; vinham as duas irms e a cunhada, e vinham

  • as sobrinhas moas e os pequenos, teria boas companhias por uma temporada, ou pelo tempoque durasse a guerra. Guerra, essa palavra teve a fora de causar-lhe um longo arrepio. Oirmo comeava uma guerra contra o Imprio, contra a tirania do Imprio, contra os altospreos do charque e o imposto do sal. Bento comeava uma guerra contra um rei, e isso aenchia de aflio e de orgulho. Recebera a sua carta ainda naquela alvorada, e lera-a enquantosorvia o seu mate. A erva e as palavras do irmo tinham lhe deixado um gosto amargo e umcalor morno no corpo. E ento, enquanto mandava servir po e mate para o portador dobilhete, um gacho calado e de longos bigodes que a fitara com o respeito devido irm de umcoronel, pegara da sua pena e escrevera: "Que Deus e a Liberdade lhe acompanhem, meuirmo. Pode deixar Caetana e as outras sob os meus cuidados e os de Ana. A Estncia do Brejo eos meus pees so seus quando precisar. Sua Antnia." Depois disso, recobrara alguma paz.Bento nascera para as guerras. E ela, como as outras, sabia esperar com pacincia. Bento tinhaestado nas guerras quase a maior parte da sua vida, e sempre voltara. No era um homem feitopara morrer, como o seu pobre Joaquim.

    D. Rosa era uma cabocla de idade indefinida, carnes enxutas e sorriso cordial. Trabalhava paraos Gonalves da Silva desde que se vira em p, assim como sua me, e ali naquelas terras beira do Camaqu passara os ltimos trinta anos de sua vida, sovando o po, mexendo a tinade marmelada, a tina de pessegada, o doce de abbora, zelando pela casa da estncia, pelosjardins, pelos bichos do quintal, pelos empregados e pelos negros de dentro. Era ela quemcuidava da cozinha e dos quartos, era ela quem conhecia os gostos de D. Ana e dos seusmeninos, os jeitos de servir o mate para o senhor Paulo, o tempero das comidas que o senhorBento mais apreciava quando vinha ali a caminho das suas cavalhadas ou para rever a famliada irm.

    Quando D. Antnia surgiu, ainda muito cedo, com a notcia da chegada dos outros, D. Rosa nose inquietou: estava tudo arreglado, os quartos todos limpos; os cinco quartos destinados svisitas tinham os lenis alvos ainda cheirando a alfazema, as cortinas abertas para deixar o solda primavera entrar nas peas ainda ressentidas do mido inverno, as jarras com gua fresca elimpa repousavam sobre cada cmoda. O quarto da patroa tambm estava ao seu gosto, poisD. Rosa tinha sempre em mente que o dono da casa podia aparecer quando bem lheaprouvesse, e D. Ana tinha muita satisfao na primavera da estncia, no perfume dos jasminse das madressilvas, no canto dos curiangos que rasgava o cu das noites estreladas.

    So treze que chegam, contando com as trs negras, D. Rosa. Me arrume acomodao paraelas tambm, no quarto grande do quintal, junto com as outras da casa. Antnia depoispensou um pouco, se no faltava ningum, recordando mentalmente a lista que Bento lhefizera com toda a sua gentileza, para que ela no fosse pega em despreparo, e disse: Vemcom eles tambm o Terncio, mas esse no sei se fica ou se volta para as terras do Bento. Ah, etem os pequenos, preciso um quarto para os dois meninos de Caetana, e outro para asmeninas pequenas. Acho que a negra Xica fica com elas noite, veja bem isso.

    D. Rosa assentiu, tranqilamente. Com um seu chamado, Viriata e Beata apareceram, vindas dacozinha. D. Rosa deu-lhes algumas ordens: arrumassem os quartos dos pequenos, pusessem osdois beros que ficavam l na despensa num outro quarto, para as meninas de D. Caetana. Emandassem Z Pedra cortar mais lenha, as noites ainda eram bem frias por ali e precisavamaquecer a casa toda.

    D. Antnia achou tudo por resolvido, depois disse:

    Vou l para a varanda da frente. No demora elas chegam, e quero receb-las. Mande

  • algum me levar um mate.

    Saiu em passos rpidos, adentrando o corredor da cozinha. Conhecia bem aquela casa, desdemeninota, tudo ali era um pouco seu tambm. D. Rosa saiu para dar jeito nos seus afazeres,no sem antes avisar Viriata que levasse o mate para a patroa. E que cozinhasse mais feijo,mais arroz, mais aipim. Tinham tambm de pr outro assado no forno.

    Passava do meio-dia quando a pequena procisso de charretes apareceu na porteira daestncia. O dia estava claro e sem nuvens, e o cu de um azul muito puro parecia alargar aindamais a paisagem sem fim. Soprava uma brisa fresca que vinha dos lados do rio. D. Antnia, dasua cadeira na varanda, reconheceu o vulto de Terncio a cavalo, decerto que Bento o mandarapara dar segurana s mulheres. No que o pampa estivesse convulso, pois tudo ainda nopassava de um suspiro, um espasmo, um assunto para as rodas de chimarro, para as comadressussurrarem de olhos arregalados; de Porto Alegre, naquela manh de vinte de setembro,nenhuma notcia ainda tinha chegado, fosse ela boa ou ruim. Mas Terncio, forte e impvido,carranca protegida pela sombra do chapu de barbicacho, as esporas de prata presente deBento rebrilhando ao sol da primavera, vinha guiando o pequeno comboio, e foi ele mesmoquem pulou do cavalo para abrir a porteira, antes que um dos pees da casa tivesse tempo defaz-lo.

    D. Antnia ficou esperando sem erguer-se: ainda tinham um bom caminho para chegar frenteda casa, mas j se sentia feliz por rever as irms e a cunhada, as sobrinhas e os sobrinhos. Dosmoos, nem sinal. Decerto tinham ido com os outros para a cidade, o sangue aventureiro corriaem suas veias, era impossvel que ficassem em casa enquanto tanto acontecia sob suas barbasainda to discretas. Os filhos de Caetana, os trs mais velhos, esses andavam para o Rio deJaneiro, l para perto do Imprio. D. Antnia tinha plena certeza de que se a guerra fossemesmo coisa certa, Bento, Joaquim e Caetano haviam de voltar para o Rio Grande.

    Viu a primeira charrete subindo a pequena estradinha de terra, conduzida por um negro: lestavam D. Ana, vestida de azul, muito ereta, e Caetana, com uma das filhas no colo deviaser Maria Anglica, a maiorzinha , Caetana, to bela, mesmo de longe, com seus negroscabelos a brilharem sob o sol. Vinha com elas a negra Xica, trazendo nos braos Ana Joaquina,um volume rosado, de bracinhos curtos e rolios. Sorriu, acenando-lhes. A mo enluvada de D.Ana ergueu-se no ar, alegre e inquieta. Caetana acenou com mais resguardo. D. Antnia aconhecia muito bem; numa hora dessas, com toda a certeza, devia estar pensando em Bento,no peito de Bento, desafiando as espadas, as carabinas e as adagas, conduzindo seus homens eseus sonhos. Sim, Caetana devia estar abatida, e ainda tinha os filhos pequenos a lhe darem aspreocupaes rotineiras. Mas amar Bento era conviver com essa sina, e Caetana sempresoubera disso.

    A segunda charrete trazia Maria Manuela e sua filha Manuela, que tanto crescera desde ooutono, e que j estava uma moa viosa e muito bonita, Mil, a criada de D. Ana, e os doisfilhos de Caetana, Leo e Marco Antnio, que j vinham apontando isto e aquilo, naquela nsialouca que os meninos tm de sair a correr e subir nas rvores. D. Antnia pde ver que MariaManuela tentava acalm-los sem muito xito, enquanto a negra Mil apenas ria seu riso dedentes muito brancos, o rosto retinto de preto contrastando com o leno amarelo que lhecingia os cabelos de carapinha. Maria Manuela reconheceu-a e acenou, D. Antnia ergueu altoo brao e retribuiu longamente o aceno da irm mais moa.

    Por fim, vinham as outras sobrinhas, numa conversao alheia a tudo. D. Antnia recordou asua prpria mocidade ao v-las, pssaras alegres, pulando e rindo na sua charrete. Perptua,

  • Rosrio e Mariana, as trs primas, vinham entretidas em falastrinas que duravam j desde asada de Pelotas, enquanto um negrinho mido, impvido, guiava o par de cavalos rumo casa.D. Antnia sabia que Manuela, a mais moa, preferira vir com a me no outro carro,mergulhada em seus silncios. D. Antnia tinha muitas simpatias pela bonita Manuela, poistambm fora moa de longos pensamentos, calada e misteriosa. A filha de Bento e Caetana,Perptua, que herdara o nome da av paterna, j era feita de diverso barro, como as outrasfilhas de Maria Manuela: estavam alheias a tudo, nem tinham acenado para a tia na varanda, aconversa devia estar boa e decerto falavam de bailes e moos. Apenas Zefina, a criada deCaetana, que vinha calada ao lado das sinhazinhas, encolhida num canto do carro, olhandopara tudo com uns olhos vidos.

    A um sinal de Terncio, as trs charretes pararam em frente grande casa branca de janelasazuis com cortinas de veludo cinzento. D. Antnia desceu os cinco degraus da varanda e foireceber as irms e a cunhada. Ladeando a casa, duas carroas carregadas de malas e pacotesforam para os fundos do terreno. Terncio seguiu-as, para ordenar o descarrego das malas daspatroas.

    Sejam bem-vindas disse D. Antnia, e tratou de abraar D. Ana. Est mais viosa, irm falou, sorrindo. Espero que a sua casa esteja a gosto. Eu mesma vim hoje cedo, dar ordens D. Rosa. Os quartos esto todos prontos, e se no se atrasaram l na cozinha, a mesa deveestar posta.

    D. Ana sorriu um riso amplo e alegre, e seus olhinhos midos e escuros cintilaram de satisfao.Apertou com fora a irm, sentindo-lhe o volume das costelas sob o pano claro do vestido.

    Tive saudades de vosmec, Antnia. Nem no inverno mais rigoroso vosmec se afasta daqui,hein, cabreira?

    Minha alma s tem sossego nesta terra, irm. Devia j saber disso.

    D. Ana cortou o ar com a mo enluvada:

    No tem problema, Antnia. Agora estamos aqui. E, quem sabe, talvez fiquemos por umbom tempo... suspirou e, por um segundo, seus olhos ficaram nebulosos, mas ela voltou logoa sorrir. Vamos a ver, isto com Deus e com os nossos homens... Depois se fala na guerra, se que teremos mesmo uma guerra pela frente. Por hora, h muito o que fazer. precisoacomodar essa gente toda. E subindo os degraus da varanda, foi chamando: D. Rosa! D.Rosa, chegamos e trouxemos crianas famintas! D. Rosa, fez um vaso com jasmins para o meuquarto?

    A voz enrgica perdeu-se dentro da casa. D. Antnia abraou Caetana e deu-lhe as boas-vindas.Caetana segurava pela mo a filha de cinco anos.

    Est bonita, Maria Anglica! Logo ser moa, hein? Crescem como o capim, essas crianas... D. Antnia acarinhou os cabelos dourados da menina, que sorria. E vosmec, como vai,cunhada?

    Caetana abriu um sorriso doce e algo cansado. Seus olhos verdes cintilavam uma luz que davamgica ao seu rosto.

    Estoy mui bien, Antnia. E muito bem ficarei at que me chegue uma carta do Bento...Vosmec sabe, quando elas chegam, meio que morro, antecipando o contedo, quando elastardam, o medo... Mas sempre foi assim, desde que me casei. At j estou acostumada com

  • essas campanhas todas. Desta vez, ao menos, estamos juntas, cunhada.

    Teremos bons dias disse a outra.

    De cierto, querida Antnia, de cierto.

    Caetana tornou a pegar na mo da filha e foi ver como tinham ido de viagem os meninos.Movia-se entre todos com uma leveza de gara, alta e ereta como uma rainha. Caetana era,sem dvida, uma das mais belas mulheres do Rio Grande. Nos bailes, nenhuma das moasconseguia fazer melhor figura que ela, quando valsava pelo salo guiada por Bento Gonalves.

    D. Antnia abraou por ltimo a Maria Manuela, que lhe falou da amena viagem.

    A estrada esteve deserta por quase todo o tempo. Parece que o Rio Grande est emcompasso de espera... Meu marido foi com Bento, faz dois dias... S de pensar baixou a voz, estremeo. Se vier a guerra, compadre lutar contra compadre e fez o sinal-da-cruz.

    Fique tranqila, Maria. Vosmec conhece: eles sabem bem o que fazem. Deixemos a elesesses assuntos...

    Est certa, irm... No momento, tenho mesmo vontade de comer alguma coisa e beber umsuco fresco. A poeira me entrou pela garganta como o diabo.

    Subiram juntas as escadas da varanda, onde uma criada j servia de beber para as moas e osmeninos. D. Antnia gastou algum tempo com os filhos de Bento, mas logo eles entraram paraexplorar a casa numa correria desabalada. As quatro sobrinhas vieram ento abra-la. D.Antnia disse a Perptua que ela estava uma moa bonita, parecida com o pai.

    Est j para casar, Perptua. preciso que le achemos um bom marido, menina.

    Perptua enrubesceu um tanto e foi logo respondendo que em tempo de guerra era tarefaingrata achar um pretendente. Tinha a pele acobreada da me, mas os olhos eram os mesmosde Bento, embora o olhar fosse mais dolente, e seus cabelos eram de um castanho muitoescuro.

    Esto todos se juntando ao meu pai e aos outros, tia. Enquanto durar esta guerra, ficareisolteira por certo.

    No imaginava ela o que o futuro estava reservando provncia, nem nenhuma das mulheres oimaginava naquele princpio manso de primavera nos pampas. Perptua Garcia Gonalves daSilva tinha esperanas de que o vero j lhes trouxesse a paz. A paz e a vitria. E os baileselegantes onde desfilaria os vestidos vindos de Buenos Aires e os sapatos de veludo quemandara buscar na Corte. D. Antnia tomou-lhe a mo:

    O tempo s vezes pode se arrastar muito nestas paragens, minha filha... Mas tenha calma, seo seu marido est para vir, no h de ser a guerra que vai tir-lo do seu caminho. Essas coisasesto programadas todas. Confie em mim, que eu sei desses assuntos de destino, pois aprendida forma mais dura: vivendo.

    Perptua sorriu e deu um leve abrao na tia a quem sempre recordara como viva. Pareciamuito remoto que um dia D. Antnia, to recatada e solitria, houvesse tido um homem ao seulado na cama.

    Rosrio achegou-se, era a sua vez de abraar D. Antnia. Pediu desculpas pela poeira. Estava

  • querendo um longo banho morno. Rosrio era a mais citadina de todas: quando a me fora lhedizer que deixariam Pelotas para ficar uns tempos na Estncia da Barra, trancara-se no quartopor uma tarde inteira e chorara amargas lgrimas. Queria conhecer Paris, Buenos Aires, o Riode Janeiro, queria os bailes da Corte, as danas e a vida alegre que as damas deviam levar, eagora, enquanto os homens pelejavam por sabe-se l que sonhos, ela tinha de retirar-se aocampo, ao silencioso e infinito campo onde tudo parecia eternizar-se junto com o canto dosquero-queros. Rosrio de Paula Ferreira no tinha amores s paragens do pampa, e agoraestava ali, com as outras, destinada a um exlio cujo fim desconhecia.

    Antes do almoo, se vosmec quiser, uma das negras prepara o seu banho. Agora me d umabrao, que faz muitos meses que no l vejo, menina. E vosmec sabe que a poeira a mimnunca fez medo. D. Antnia cercou-lhe a cintura fina com os braos fortes de montar esorriu. Rosrio era de consistncia frgil, pele clara, olhos azuis, cabelos claros e muito lisos.Tinha umas mos delicadas de segurar cristais. Imaginou-a sobre uma sela e sorriu um risoalegre: Rosrio tinhas ares de salo, isso sim. Agora v ao seu banho e empurrou a moapara dentro da casa.

    Mariana beijou a tia no rosto, e alegria da chegada dava um brilho aos seus olhos castanhos.

    Tia, quanta saudade! Fiquei feliz que vnhamos estar com vosmec.

    E logo, no mesmo alvoroo, j entrava na casa, buscando Perptua. Era uma moa de estaturame, pele morena e rosto forte, cuja graa maior estava nos oblquos olhos castanhos de longaspestanas negras. Olhos de ndia, dizia a me. E era alvoroada como uma criana.

    Manuela, a mais moa, abraou a tia com sincero afeto. Estava um tanto descabelada, poistirara o chapu a meio caminho para sentir a brisa nos cabelos, e seu rosto bem-feito, os olhosverdes muito claros, tudo tinha um vio de coisa nova e misteriosa, e a boca cheia abriu-se numsorriso. Usava um vestido amarelo, com peito de rendas, que lhe acentuava a graa.

    Tia Antnia disse somente, e suas mos mornas apertaram as palmas ossudas de Antnia.

    Vosmec est uma moa, Manuela. A ltima vez que le vi, no vero passado, ainda era umamenina.

    O tempo passa, tia falou Manuela, por falar. E aspirou o ar cheio de jasmins que pairavasobre a varanda e o jardim. E bom estar aqui.

    D. Antnia sorriu para a sobrinha preferida. Mandou-a entrar, ento. Fosse ter com as outras,tirar a poeira, preparar-se para o almoo; afinal, estavam todos famintos.

    At eu, menina, que hoje acordei ao raiar do dia e quase nada comi. No vejo a hora de veras travessas na mesa!

    Ficou espiando Manuela adentrar a casa, pisando leve no cho de madeira, e ir seguindo pelocorredor j conhecido, em direo ao quarto que uma negra lhe indicara. E sentiu um levearrepio lamber suas carnes, ao ver a sobrinha assim, flanando pela casa feito uma fada, mascreditou-o brisa da primavera, que, naquelas paragens dos pampas, ainda enregelava.

    Restava sozinha na varanda. As mulheres todas e as criadas tinham ido tratar da chegada, abriras malas, preparar-se para o almoo. D. Antnia sorriu: a casa estava cheia como nas frias, euma alegria nova e buliosa ardia em tudo. "Por quanto tempo?", no pde deixar de seperguntar. "Por quanto tempo, meu Deus?"

  • D. Ana sentou na cama e acarinhou o colcho de molas. No lado esquerdo, podia apalpar, maiscom a alma do que com os dedos, as marcas do corpo do seu Paulo. Deitou-se por um instante,mas encontrou a cama vazia do calor e do cheiro do marido, cheiro forte, de tabaco com limo.Em tudo, pairava um aroma de limpeza que doeu em seu peito. Paulo no era mais um moo,embora tivesse a compleio robusta dos cavaleiros, alto, espduas largas, a barba espessa, avoz forte, as mos calejadas e firmes de segurar o lao. J tinha l seus cinqenta anos, emboraos cabelos estivessem negros como na juventude e ele ainda sonhasse os mesmos sonhos dequem tem a vida pela frente. Gostava do imperador, da Corte, da rotina calma alternada pelasinvernadas que fazia questo de comandar, mas agora estava l, assim como Bento, desafiandoo Regente e tudo o que ele significava, com a arma em punho contra tudo que sempreconhecera. Nos ltimos tempos, a coisa andava brava para os estancieiros, e D. Ana via nosolhos do esposo uma crescente angstia, que se traduzia nuns gestos secos, numas noites semsono, quando sentia-o rolar ao seu lado, na cama, tentando acalmar os pensamentos. Quandoele a chamara ao escritrio, ainda na semana passada, e contara que marchariam sob ocomando de Bento para tomar Porto Alegre, D. Ana j sabia de tudo, porque aprendera desdemenina a pescar nos silncios as respostas para as suas dvidas. Olhando o marido pitar seupalheiro, o rosto fingindo uma calma que no sentia de todo, os olhos verdes tomados de umafebre misteriosa, D. Ana quisera apenas saber:

    E Jos e Pedro?

    O marido mantivera firme o olhar.

    J falei com eles. Disseram que vo conosco. E antevendo o medo nos olhos de Ana,acrescentara com voz decidida: So homens, so rio-grandenses, sero donos destas terras,tm o direito de ir e de lutar por aquilo em que acreditam.

    E agora D. Ana estava ali. Seus trs homens, tudo de seu, estavam talvez nos arredores de PortoAlegre, na Azenha, conspirando, afiando as adagas, limpando as baionetas, comendo ochurrasco assado nas fogueiras, aspirando aquele cheiro de terra, de cavalos e de ansiedadeque devia pairar em todos os acampamentos de soldados.

    D. Ana acarinhou outra vez o colcho, sob a colcha de matelass branca. Um sol douradoentrava pela janela de cortinas abertas, um sol tnue e aconchegante. Precisava se ajeitar parao almoo; afinal de contas, no era causo de tristezas, no ainda. Teriam pela frente muitosdias de angstia, espera de uma notcia, de boa sorte ou de malogro, e ento, s ento, sefosse o caso, viria a tristeza estar com elas. A tristeza serena que era companheira constantedas mulheres do pampa. Sim, pois no havia uma mulher que no tivesse passado pela esperade uma guerra, que no tivesse rezado uma novena pelo marido, acendido uma vela pelo filhoou pelo pai. Sua me conhecera a angstia de espera, e antes dela sua av e sua bisav... Todasas mulheres na estncia estavam na mesma situao, e ela, Ana Joaquina da Silva Santos, era adona da casa. Levantou, abriu o armrio de madeira escura e tirou dali um vestido. Foi aotoucador e, pegando da jarra, derramou um tanto de gua na bacia de loua. Lavou-serapidamente. Mil, como uma sombra, adentrou o quarto trazendo uma toalha branca. Secou apatroa com gestos delicados e geis, ajudou-a a trocar as saias, vestir a roupa limpa e refazer atrana do cabelo. Mil tinha uns dedos longos e dourados que corriam pelas melenas de D. Anacomo asas, quase voando. A trana foi presa no coque perfeito.

    Est timo, Mil D. Ana presenteou a criada com um sorriso. Avise na cozinha que jestou indo.

  • Mil tinha uma voz suave, condizente com seu corpo mido de negrinha adolescente. Disse um"est bem, senhora", e saiu ventando do quarto, mas sem bater a porta, coisa que D. Anaexecrava.

    Sentadas em torno da mesa, eram dez pessoas. As duas meninas pequenas de Caetana jtinham ganhado a sopa e o leite, e agora dormiam um soninho exausto de viagem sob o olharatento da negra Xica. O almoo teve ares festivos: a carne assada, a galinha com molho, ofeijo, o arroz, o pur e o aipim cozido na manteiga espalhavam-se em vrias travessas sobre amesa recoberta com a toalha bordada a mo por D. Perptua, muitos anos atrs.

    Um pequeno e inquieto silncio se fez apenas quando, antes da refeio, como era o costumena casa, D. Ana juntou as mos em orao e pediu "pelos nossos maridos e filhos, que Deus osguie com a Sua prpria mo, e que logo retornem, vitoriosos, a casa". A voz das mulheresrespondeu em coro um amm; Leo e Marco Antnio estavam mais ocupados em mastigar.

    Caetana Joana Francisca Garcia Gonalves da Silva fez fora para conter o leve tremor queassaltou suas carnes, mas foi em vo. Baixou os olhos para a mesa, e em suas retinas danavaainda o vulto de seu adorado Bento, montado no alazo, usando o dlm, espada na cintura, asbotas negras que cutucavam o cavalo com as esporas de prata. E reviu ainda o seu adeus,naquela alvorada em que partira de casa com Onofre e os outros, para tomar a Capital. Sob aluz tnue do amanhecer, pareciam figuras de mgica, vultos dourados pelos primeiros matizesdo dia. E fora assim que o guardara no ltimo instante, as costas eretas, o cavalo troteando,uma mancha negra que ia diminuindo pouco a pouco. Ficara na varanda, enrolada no xale de l,com o corao acelerado querendo escapar-lhe pela boca. Dentro de casa, a filha pequenachorava.

    D. Ana, cabeceira da mesa, comeou a servir-se, um pouco de tudo, porque nada melhor doque um estmago cheio para acalmar as nsias da alma, e uma sesta, isso sim, na sua cama,sentindo entrar pela janela o perfume de jasmins e a brisa fresca do pampa. Notou que, ao seulado, Caetana era a nica de prato vazio, vazio como seus olhos verdes que vagavam perdidosentre uma travessa e outra, como que a contemplar velhos fantasmas.

    Vosmec no tem fome, cunhada?

    A voz morna arrancou Caetana de seu torpor, e ela sorriu um riso triste.

    Desculpe, Ana. que no pude deixar de pensar em Bento. E em onde anda ele a uma horadessas...

    D. Ana abriu um sorriso, tinha ainda muito alvos os dentes. Estendeu o brao e tocou na moda cunhada. Seus olhos eram um lago de paz e de conforto.

    Esteja calma, Caetana. Numa hora dessas, se bem imagino, Bento e os outros devem estar serefestelando com um bom churrasco. Vosmec conhece o apetite que tm os valentes...Comem um boi pela perna.

    As moas riram da graa da tia. D. Antnia, sentada outra cabeceira, ainda disse:

    Se vo tomar Porto Alegre, seja esta noite ou amanh, decerto que estaro com o estmagocheio. E se eles comem, no h por que deixarmos ns de nos regalar. Afinal, j dizia minhame: saco vazio no pra em p.

    Caetana sorriu um riso leve e ps tambm alguma comida em seu prato, comida esta que

  • venceu aos bocadinhos, embora estivesse de gosto bom e muito bem temperada, porque aindaBento, seu Bento, espaoso e forte como um touro, ocupava cada palmo de seu esprito. Mas oalmoo transcorreu com leveza, e as moas trataram de falar de coisas alegres, pois para elas atemporada na estncia era nada mais do que frias, logo deveriam voltar para Pelotas, para oschs domingueiros com as amigas de bordado, e para os bailes. Isso mesmo, para os bailes, queelas tanto desejavam.

    A cor desta primavera o amarelo disse Rosrio. Pena que para mim no caia bem,pois sou toda clara, de pele e de cabelos. Vestida de amarelo, ficarei igual a uma gema de ovo.

    E D. Ana riu com vontade, deitando seus olhos castanhos naquela mocinha citadina, de pulsosfinos e olhos azuis como o cu que brilhava l fora. Considerou que Rosrio era frgil, noherdara a fora dos Gonalves da Silva, talvez ainda sofresse muito nessa vida campeira. No RioGrande, os jogos da Corte eram brincadeiras dos tempos de paz, e a fronteira quase nuncatinha paz, quase nunca... Ela recordou sua velha me e as muitas madrugadas em que a virapedalando a mquina de costura para espantar o medo da cama vazia. Nunca a vira chorar,nem na paz nem na guerra, no a vira chorar nem quando enterrara os filhos, um pequeno, ooutro j moo, ferido de bala numa batalha que nem um nome deixara para lembrana. D.Perptua da Costa Meirelles no entendia de modas, vestia- se sempre de cinzento ou azul.Branco, usara apenas no dia do casamento. Morrera calada, de velhice, naquela casa mesmoem que se encontravam, quando viera visitar a filha num vero, havia tempos.

    D. Ana fitou Rosrio com o canto dos olhos; havia nela alguma coisa dos traos da av, a testaalta, a boca delicada, mas Rosrio tinha uns olhos midos, afeitos ao pranto, e os olhos de D.Perptua foram sempre secos, at na hora da morte.

    A moda nada mais do que um passatempo, Rosrio disse D. Ana, sorrindo, ao cruzar ostalheres. O azul, o branco, o verde, o amarelo e o cinzento sempre existiram e sempre foramboas cores para uma mulher de bem vestir e quando acabou de falar, vendo alguma mgoano rosto frvolo da sobrinha, pareceu-lhe que o vulto da me a espiava de um canto da sala,perto da cortina, e que lhe sorria o mesmo riso comedido de toda a sua vida.

    Comeram a sobremesa num silncio cansado da viagem. Apenas Maria Manuela e D. Antniaprosearam um tanto sobre a rudeza do inverno passado fazia pouco, sobre flores, coisa da qualambas entendiam deveras. D. Antnia despediu-se no final da refeio: precisava voltar para aEstncia do Brejo, cuidar dos afazeres da casa, da venda de uma ponta de gado.

    Mas amanh venho estar com vosmecs para mais uma prosa disse ela, e saiu em buscado cocheiro, que devia estar de assunto com os pees da casa.

    Logo depois, cada uma das mulheres recolheu-se ao seu quarto. Manuela e Mariana dividiam altima pea do corredor, que dava vistas para a figueira do quintal; Perptua e a prima Rosrioganharam o quarto ao lado do pequeno escritrio que tambm servia de biblioteca o senhorPaulo tinha muitos livros em espanhol e francs, lnguas da qual tinha um bom conhecimento.

    Lerei um livro em francs disse Rosrio prima, antes de fechar os olhos, j decombinao, deitada na cama. Sei um pouco do idioma, pois tive algumas aulas com asenhorita Olvia, no ano passado. O resto, adivinharei. um bom jeito de passar o tempo poraqui...

    Perptua nem chegou a responder: antes de Rosrio acabar de falar, j ressonava. Talvezsonhasse com um noivo de olhos azuis, talvez.

  • Em seu quarto, Caetana olhava o teto, em vo, o sono no lhe vinha, apesar do cansao quesentia pesar nos seus membros. Ouviu um leve arrastar de passos no corredor, decerto ascriadas botavam a sala em ordem outra vez. No quarto ao lado, pelo silncio que lhe chegava,as filhas dormiam calmamente.

    Ergueu-se da cama aps alguns minutos de inquietao. Era uma alcova simples: a cama larga,de madeira escura, um rosrio preso parede, sobre a cabeceira, janelas altas com cortinas develudo azul, um pequeno toucador com as coisas de higiene, a jarra de loua branca e a baciacom florezinhas azuis, um espelho de cristal com bela moldura de prata escalavrada. Umarmrio pesado, de duas portas, ficava assentado em frente cama. Ali, Zefina j tinha dispostoos seus vestidos, xales e chapus. No outro canto do quarto, perto da janela, uma pequenamesinha segurava um mao de folhas, pena de metal e tinteiro.

    Caetana puxou a cadeira e sentou. Tomou da pena, mergulhando-a no lquido negro do tinteirode cristal, e ps-se a escrever numa faina louca que deixava irregular a sua letra sempredelicada.

    "Amado esposo,

    Estamos aqui na estncia da sua irm, Ana, todas as mulheres reunidas para esta espera que,rezo, seja breve. Ainda no tive notcias suas, e sei o quanto cedo para isto; sei tambm quevosmec se preocupa comigo e com os nossos filhos, fazendo o possvel para que tudo nos sejaleve. Mas eu sofro, Bento. E sofro por vosmec. A cada instante, somente em vosmec quepenso, se est bem, se ter xito, e se voltar para a sua casa e para os meus braos. Semusted, no sei viver, e at mesmo um simples dia se torna custoso como um inverno... Masespero, e rezo.

    Desculpe esta sua esposa to fraca, que, de tanto viver esta angstia, j desaprendeu asuport-la. A espera um exerccio duro e lento, meu querido, que s os fortes logram vencer.Venc-la-ei, por usted. Nunca ignorei a sua fibra, nem a fora dos seus sonhos, e luto para estareu altura da sua companhia e da grandeza dos seus atos.

    Quando um seu vier dar aqui, com notcias da sua pessoa e das suas tropas, creio estar trmulademais para responder-lhe a contento, e por isso que j me desafogo nestas linhas ansiosas...Saiba que seus filhos esto bem, e que Leo perguntou j muitas vezes do seu paradeiro, queriaele estar com usted, lutar ao seu lado. um menino que j nasceu com gosto pelas batalhas,anda sempre com a espada que usted talhou para ele enfiada na cinta da calola, ento desdej vou preparando minha alma para sofrer tambm por ele quando for o tempo. Maria Anglicadisse-me que sonhou com usted a tarde, e seus olhinhos verdes brilharam de contentamentoao recordar o pai. A pequena Ana Joaquina, Marco Antnio e Perptua le mandam seuscarinhos. Dos mais velhos, ainda no tive notcias, mas decerto esto a salvo na Corte. E suairm Antnia veio nos receber com a doura de sempre. H algo na serena fora dela que meremete a usted e que me conforta.

    Por tudo isto, pode, meu caro Bento, acalmar seu corao no que tan- ge a ns, sua famlia.Saiba que tenho pedido Virgem por usted, fervorosamente, e que em cada gesto meu h umapalavra de orao sussurrada. Que a glria le acompanhe, esposo, onde quer que vosmec pise.Esse desejo no apenas meu, mas das suas parentas todas. Aqui na Barra, rezamos muito porvosmec e pelos nossos.

  • Que Deus cavalgue ao seu lado,

    Com todo o amor,

    Sua Caetana

    Estncia da Barra, 20 de setembro de 1835"

    Dobrou com cuidado e lacrou a carta com cera. Depois, guardou-a numa gavetinha, com o zelode quem guarda no cofre uma jia de muita estima.

    Sem mais o que fazer, voltou para o leito; deitando-se, fechou os olhos e rezou para dormir umtantinho que fosse. Suas costas estavam doridas da viagem, e ela tinha ganas de chorar. L fora,comeou a soprar um leve vento de primavera. A tardinha, rezaria no oratrio. S a Virgempoderia sossegar-lhe a alma.

    Cadernos de Manuela

    Estncia da Barra, 21 de setembro de 1835.

    Nosso primeiro dia na estncia passou sem acontecimentos especiais. Claro, no pude deixarde notar a angstia que se enreda nos olhos de Caetana feito um gato, arredia como um gato.Estranho, Caetana minha tia, pois casou-se com meu tio Bento, e no entanto, mesmo a tendoconhecido assim, ao lado do tio, desde que nasci, no posso cham-la de tia. H uma dignidadeestranha nela, em cada gesto seu, cada olhar. E mulher, apenas, e tanto. Seus suspiros exalamsuave fragrncia, e imagino que Bento Gonalves tenha por ela se apaixonado ao primeiroolhar, quando por acaso conheceu-a em alguma tertlia uruguaia, na casa de seu pai ou de umoutro estancieiro chegado seu. Meu tio Bento tambm um homem marcante, de fora.Quando pisa no cho, como se a madeira tremesse um tanto a mais, mas no por seu peso,nem que pise forte, que tem nos olhos, nas carnes, no corpo todo um poder e uma calmados quais no se pode escapar. Meu tio, mesmo no estando entre ns, marca-nos a cada umacom a fora de seus gestos: por um ideal seu que estamos aqui, esperando, divididas entre omedo e a euforia. Caetana, por certo, com sua digna beleza e seu esprito ao mesmo tempo tofrgil e to forte, deve ter-se rendido a essa aura que de Bento Gonalves exala. Aura deimperador, mesmo que nesse momento esteja ele lutando contra um.

    Caetana, ao almoo, mal comeu. E pouco disse, apenas olhava tudo inquietamente, e tanto,que me pareceu estar vendo o nada, decerto retida entre suas lembranas. Tive vontades desentar ao seu lado e de dizer-lhe que tambm eu sei do que ela sabe. Sim, pois ela sabe...Ficaremos aqui muito tempo. Mais tempo do que qualquer uma de ns possa imaginar.Ficaremos aqui esperando, esperando, esperando. Da estrela de fogo que vi na noite do novoano, no falei a ningum, mas tenho seu recado marcado a ferro em minha alma. Minhas irms,por certo, ririam de mim. Dizem-me densa. Densa como a cerrao que cobre estes campos ao

  • alvorecer, um manto opaco de gua condensada, um manto, talvez, de lgrimas, lgrimaschoradas pelas mulheres daqui por Caetana, quem sabe.

    Acordei hoje antes ainda da alvorada, e, como imaginei, l estava a bruma cobrindo tudo, umabruma mida e glida, e tambm um silncio aterrador, um silncio digno da pior espera.Demorou muito tempo para que um primeiro pssaro cantasse e, com seu canto, quebrasse abarra da noite, com seus pressgios e sonhos angustiantes. Caetana chorou esta noite, tenhocerteza. Eu no chorei: ficaremos muito tempo reunidas nesta casa, unidas nesta espera, e algome diz que as minhas lgrimas tero serventia apenas mais tarde...

    Hoje o dia marcado.

    Ainda no so sete horas, e pergunto-me se Porto Alegre j amanheceu dominada pelo exrcitode meu tio. No tivemos ainda qualquer notcia, e tudo l fora parece aguardar, at os pssarospiam menos, em seus galhos, ainda derreados pelo frio que esta noite nos trouxe; at afigueira, parece fitar-me com perguntas terrveis para as quais no tenho resposta. Sei que, aocaf, uma nova inquietao vir juntar-se a ns, ter seu lugar mesa e, talvez, a sua xcara.Mas ningum ter coragem de formular a pergunta, a terrvel pergunta, e os segundos passaropor ns com suas lminas afiadas de tempo, sem que ningum interrompa o bordado ou aleitura por mais de um momento que seja, um momento imperceptvel. A arte de sofrer inconsciente... E preciso fingir que se vive, preciso. No pensar em meu pai, no seu cavalodourado, do qual tanto gosto, no pensar em sua voz, e em seu grito. Ter ele ainda a suaespada presa cinta? E meu irmo, Antnio, que vive a incomodar minhas leituras com suaalegria buliosa de homem novo, e meu irmo, com que olhos receber esta manh, e onde?Ter vitrias e faanhas para contar aos filhos, ou cicatrizes? Ningum sabe, e os pssarosteimam em fazer silncio nos seus ninhos.

    Batem porta. Mariana, em sua cama, est para despertar. Mariana sempre gostou que adeixassem dormir at mais tarde. a negra Beata, com sua voz esquisita, metlica, que noschama do corredor, dizendo que a mesa do caf est pronta e que nos esperam. Vamos todas,com nossos vestidos rendados e nossas angstias. Mas preciso. Pisar o cho com a leveza quede ns esperam, sorrir um sorriso primaveril e estar feliz, principalmente, estar feliz como amais tola das criaturas... Mariana reclama um pouco, lava o rosto na gua fria, escolhe umvestido qualquer, pela manh no liga nem para as modas.

    Deixo aqui estas linhas, D. Ana gosta de todos reunidos mesa e no hei de me fazer esperar.Um pssaro piou l fora, um canto morno como um alento ou uma xcara de ch.

    Manuela.

    As primeiras horas da manh gastaram-se lentamente. Um sol, a princpio tmido, comeou adourar os campos. Havia feito muito frio na noite anterior, mas no pampa, mesmo emmadrugadas primaveris, o frio mostrava-se intenso, e as camas recebiam muitos cobertores. noite, nas salas de famlia, a lareira era acesa. No seu crepitar, as conversas mansasembalavam-se, e o mate passava de mo em mo, enquanto o luzio dos palheiros se fazia ver,exalando o cheiro acre do fumo de rolo.

  • Mas no naquela casa. Na casa branca da Estncia da Barra havia um nmero to alto demulheres, que a voz delas que ditava os modos. E as mulheres no pitavam, no tomavam omate noite. L fora, beira do fogo, dois ou trs pees, enquanto a carne assava respingandogordura, lambiam seus palheiros. Terncio pernoitara na estncia aquela noite, era mais um navolta do fogo, um vulto alto, calado, de olhos firmes e dedicao canina a Bento Gonalves.Mas, ao alvorecer, ainda quando o mundo estava frio e nebuloso, tomara o caminho daEstncia do Cristal, onde deveria esperar quaisquer ordens do patro, enquanto zelava pelo seugado e pelas suas terras. Com a partida de Terncio, ficara Manuel, capataz da Barra, mais osseus pees, o negro Z Pedra, muito querido de D. Ana, e o resto dos escravos que cuidavam daterra e das coisas dali.

    Era, desde ento, uma casa de mulheres. A noite anterior fora beira do fogo que crepitava nalareira, nisso sim uma casa igual a outras; mas pouco se falou, nem se viu o brilho dos palheirosqueimando: bebeu-se um tanto de ch, quando Beata apareceu com o bule e um prato de bolode milho; os rostos baixos ocupavam-se com bordados delicadssimos, a cor que se via, alheiaao intenso brilho do pinho que ardia sob as chamas, era vivida cor de seda: o verde, overmelho, o azul que traava nos panos flores, arabescos e outras maravilhas de finoartesanato. Uma ou outra das moas se ocupava de ler sob a luz de um candelabro, mexendoos lbios vagarosamente, imperceptivelmente at, como as preceptoras lhes tinham ensinadonas longnquas tardes de lies.

    L pelas tantas, quando o sono j as assaltava, ou coisa pior rondava seus espritos, quandoCaetana mal podia acertar o fio de seda no buraco da agulha, quando Maria Manuela comeoua pensar no marido e no filho, enquanto ouvia zunir o vento l fora no capo, D. Ana ergueu-seda sua poltrona e foi para o piano. Levantou a tampa envernizada com um nico gesto, e asmos brancas e geis correram pelas teclas, fizeram brotar uma, duas, trs valsas. As moasalegraram-se bastante: fecharam os livros, ficaram pensando nos bailes. Maria Manuela abriuum tnue sorriso, o marido gostava de valsar aquela, dava passos largos, queria dar voltas pelosalo, exibi-la aos outros, mostrar que era um bailarino de monta. Caetana tambm pensou emBento Gonalves. Bento, que amava as msicas, que no perdia um baile, que valsava com amesma faina que tinha para guerrear.

    Toca uma polca, tia! pediu Perptua, com os olhos brilhando.

    D. Ana abriu um sorriso farto. Deu nova vida aos dedos no teclado. As moas reconheceram amsica, riram, bateram palminhas. Rosrio ergueu-se de um pulo, deixando o livro escorregarpara o tapete, e, fazendo gestos com o brao, declamou:

    "Eu plantei a sempre-viva,

    sempre-viva no nasceu.

    Tomara que sempre viva

    O teu corao com o meu."

    As mulheres aplaudiram em coro. Caetana tinha os olhos verdes ardentes, seus ps, sob a saiaazulada do vestido, acompanhavam o ritmo da melodia. Manuela largou o bordado com o qualse entediava e tambm ergueu-se, para responder irm. Testou a voz e, com graa, disse:

    "Tu plantaste a sempre-viva,

    sempre-viva no nasceu.

  • porque teu corao

    No quer viver com o meu."

    Palmas outra vez. Rosrio deu o brao irm e seguiram as duas danando pela sala que alareira iluminava de maneira inquieta, como se fossem um par de noivos num baile. Mariana ePerptua juntaram-se a elas. D. Ana tinha uma alegria to vivida em seu rosto, que pareciaremoada. As outras sorriam. Manuela dava voltas pela sala, e seu pensamento voava: no eraa irm que ela via, era um outro homem que lhe dava o brao, e um calor morno e acolhedordele emanava para a sua pele, enquanto faziam giros loucos pela sala cheia de convivas. Ah, eela se sentia to bonita, bonita como uma jia, e feliz, explodiria de felicidade bem ali, no meiode todos... E a msica, a msica enchia seus ouvidos e seu corao

    D. Ana parou de tocar, de repente.

    As moas riram, jogaram-se com estardalhao nas suas poltronas, rostos afogueados. Manuelaestava atnita. Olhou a sala vazia de visitantes, olhou as outras mulheres, Viriata parada numcanto da sala, com seu vestido velho, torcendo os dedos pretos e encaroados, emocionadacom a msica que ouvira.

    Vosmec ficou tonta, Manuela?

    A voz da me fez-se ouvir. Manuela negou, abriu um sorriso, sentou no seu lugar, pegou obordado do cho e ajeitou-o um pouco, sem vontade. D. Ana ergueu-se do seu posto ao piano.

    Est tarde disse. J bem hora de irmos dormir... Amanh ser um longo dia.

    E, meno do dia seguinte, o rosto de Caetana ganhou outra vez ares misteriosos, e umasombra nublou o verde agreste dos seus olhos. Foi ela a primeira a recolher-se, alegando que iaver como estavam passando os filhos pequenos.

    E depois as outras recolheram-se.

    E a noite fria esgotou-se nas claridades da aurora.

    E j estavam sentadas mesa do caf, D. Ana cabeceira, naquela manh do dia vinte e um desetembro do ano de 1835, quando Zefina adentrou a sala correndo e, tendo esquecido todas ascerimnias e jeitos de tratar as senhoras, gritou, com uma voz aparvalhada:

    Vem chegando um homem a! E t usando um leno encarnado no chapu! Deve t trazendoas notcia que as senhora tanto espera, Deus do cu!

    Caetana Joana Francisca Garcia Gonalves da Silva no achou foras para repreender a atitudeda escrava. Ergueu-se da mesa num pulo, lvida como um fantasma. Seu rosto plido confundia-se com o vestido de seda marfim que ela usava. As mulheres pararam todas. Mariana tinha naboca um pedao de bolo que esquecera de mastigar por muitos minutos. Caetana saiucorrendo para a varanda. D. Ana seguiu-a, e todas as outras foram atrs, a trmula Zefina porltimo: estava ninando Ana Joaquina quando espiara pela janela e vira o homem galopandopros lados da casa. Deitara a menina em seu bero e sara correndo para a sala. Ana Joaquinaficara ali deitadinha, de olhos abertos, resmungando alguma coisa que a ama no chegara aouvir.

    Caetana desceu a escada da varanda, sentindo que as parentas a seguiam. Viu o homem apear,desmontar do cavalo, que entregou para um negro, e, dando uns passos rpidos, postar-se

  • sua frente, fitando-a com o respeito que lhe devia por ser uma dama e esposa de quem era.

    Buenos dias, senhora Caetana. A voz do homem era forte e cerimoniosa.

    Buenos dias respondeu Caetana.

    Trago aqui uma carta que o coronel Bento Gonalves mandou para a senhora. E tirandodo bolso do colete um pequeno papel amarelo, com o selo de cera vermelha de BentoGonalves, estendeu-o para Caetana. Permisso, senhora.

    Caetana arrancou da mo do homem a carta. Desculpou-se depois pela ansiedade. O soldadodevolveu-lhe um sorriso de compreenso.

    Z Pedra surgiu por ali. D. Ana convidou o homem a tomar um mate e comer algo na cozinha,ao que ele agradeceu: cavalgara desde o alvorecer para estar ali com a carta do coronel, eaceitava de muito gosto o que havia de comer e de beber. Tambm tinha preciso de descansarum pouco, antes de voltar para Porto Alegre, onde estava o resto das tropas. Z Pedra, umnegro atarracado e com cara de poucos amigos, mas que tinha um corao de manteiga e quecarregara no lombo, brincando de cavalinho, os dois filhos de D. Ana, fez sinal para que osoldado o seguisse at os fundos da casa principal.

    Caetana correu para a sala, sentando numa poltrona, com a carta em seu colo. Estava trmula,mas aguardou que as outras se acomodassem ao entorno, uma a uma, as cunhadas e assobrinhas, a filha ao seu lado, e que a negra Zefina, que tinha homem arreglado para servir comNetto na causa, se postasse perto da janela, discretamente. S ento soltou o lacre ondevinham as iniciais do marido. Na sala, nenhum som se ouvia, nem mesmo a brisa sacudia asrvores do quintal. A voz de Caetana tremeu levemente quando ela comeou a ler.

    "Minha cara Caetana,

    Escrevo estas linhas breves do gabinete do antigo presidente desta nossa provncia, AntnioRodrigues Fernandes Braga, que, provando a sua total incapacidade e falta de coragem, fugiude Porto Alegre num navio antes mesmo da chegada das nossas tropas. Entramos na cidadeainda nesta madrugada, o que sucedeu sem muitas pelejas e quase sem derramamento desangue. Peo ento, a usted, s minhas irms, e s outras todas que fiquem calmas e tranqilase que tenham f em Deus, pois ele est do lado dos justos e nos guia nesta empreitada.

    As coisas, minha Caetana, esto em bom p, mas h muito a ser feito. Rio Pardo ainda resiste,mas nossas tropas logo vencero mais esta prova. Esta cidade de Porto Alegre, at o momentoem que le escrevo, permanece deserta e medrosa, decerto que Braga e os seus andaramespalhando as piores mentiras sobre nossas intenes para com o Rio Grande e o seu povo.Mas tenha f, Caetana, que logo dar-le-ei mais boas notcias.

    Sinto muito a sua falta, esposa. Quisera estar ao seu lado, mas os deveres para com a minhaterra aqui me seguram. D um beijo longo nos meninos, outro nas meninas. E pea para quePerptua reze por mim tambm, que suas oraes so fervorosas. Alcance um abrao meu acada uma das minhas irms, e diga-lhes que todos da famlia esto bem e a esta horadescansam da longa noite que tivemos.

    Com todo o meu afeto,

  • Bento Gonalves da Silva

    Porto Alegre, 21 de setembro de 1835"

    Quando Caetana acabou a leitura, tinha lgrimas nos olhos. D. Ana tambm chorava, de alvio eemoo. Tivera uma longa noite insone, pensando nos filhos e em Paulo, mas agora sabia,agora tinha certeza de que todos estavam bem, que a Capital era deles e que tudo acabaria empaz.

    Graas ao bom Deus! exclamou Maria Manuela, que pensava mais em Antnio, que nuncaestivera em batalha, do que no esposo, to hbil com o sabre, que fazia lenda na sua terra.

    Manuela, Mariana, Rosrio e Perptua abraaram-se com alegria. Perptua, mais do que todas,estava radiante por ter o pai falado em suas oraes. Sim, rezaria por ele e pelos seus exrcitoscom toda a fora da sua alma. Rosrio abraou a me, ficou feliz pelo tio, pelo pai e pelo irmo,mas chegou-se a D. Ana e, numa voz de conchavos, quis saber:

    Esta carta significa que podemos voltar para casa, tia?

    Esta carta, minha filha, significa que nossos homens esto vivos, ou estavam vivos at estaalvorada. Bento disse que h muito para ser feito, e que Rio Pardo ainda resiste... Numsuspiro, D. Ana acrescentou: Vamos esperar. No foi para isso que fomos feitas, paraesperar, minha filha?

    Rosrio concordou lentamente.

    Voltaram todas para a mesa e foram aos poucos retomando a refeio do p em que a haviamlargado. O peito de Caetana era aquecido por um novo calor. Refletiu que quando acabasse decomer, iria brincar um pouco com Leo e Marco Antnio, e contar-lhes que o pai vencera maisuma batalha e que era um valoroso soldado.

    L pelo meio da manh, chegou D. Antnia, e Caetana releu para a cunhada a carta de Bento.D. Antnia ouviu as palavras do irmo com o rosto impassvel. Eram boas notcias, sem dvida.Haviam tomado Porto Alegre. Ela abriu um tnue sorriso, ao qual Caetana retribuiu com gosto.Depois virou os olhos para os lados do campo. Um peo tentava domar um potro xucro; a terravermelha, escalavrada pelas patas inquietas do animal, subia ao ar em violentas golfadas. Opeo resistia, sabia que tinha de ter mais pacincia do que o cavalo, sabia que venceria oanimal no cansao. D. Antnia ficou contemplando o sutil espetculo. Alguma coisa ardia emseu peito, um mau pressgio talvez. Ou talvez, quem sabe, fosse a velhice. Sim, estava ficandovelha, e os velhos, todos sabiam, esperavam sempre pelo pior.

    Resolveu afogar aquela angstia.

    Caetana pediu ela , me faa a gentileza de mandar uma criada me trazer um mate, porfavor... Vim cavalgando l da estncia e, no sei, acho que o p me entrou pelos pulmes. Estoumeio seca por dentro.

    Caetana dobrou a carta com todo o cuidado, guardando-a no abrigo do colo. Ergueu-se e foipara dentro da casa, pedir que Beata providenciasse o tal mate.

  • A tarde descia mansamente sobre o pampa, uma luz rosada, brilhante, abria suas asas sobre oparalelo 30, e tinha essa luz uma mgica. Tornava as coisas mais belas, maiores.

    Da janela da pequena biblioteca, onde entrara para pegar um romance francs que estavadecidida a ler, Rosrio espiava a tardinha. Nem mesmo o seu esprito, to afeito s cidades, aosprdios brancos, imponentes, s ruas, sales e trios das igrejas, nem mesmo a sua alma, queamava a pompa e as coisas construdas pelo homem, podia passar imune quela luz. As rvores,as madressilvas que subiam pelo corpo lateral da casa com suas flores lilases, tudo pareciaganhar outra dimenso sob o toque misterioso daquela luz poente. Rosrio apoiou o rosto comas mos, deitou o corpo para a frente, sentindo que do cho emanava aquele cheiro de terra,de final de dia, que entrava pelas narinas e ia acalmar as nsias mais secretas de um vivente.Por um nico segundo, uma frao mnima de tempo, teve raiva de si mesma e daquela sbitapaz. No gostava do campo. Mas ento alguma coisa afrouxou-se em suas carnes, um cadeadoqualquer rompeu-se, e ela se entregou quele gozo simples. Desde menina, no apreciavaassim um entardecer.

    Pelo campo, uns ltimos pees troteavam, findavam as lides do dia. Logo, as primeiras estrelas,as mais brilhantes de todas, surgiriam no cu. Os pees fariam o fogo, poriam um bom naco decarne a assar. E ento um deles puxaria de uma viola, talvez um daqueles inditicos, comoViriato, que cuidava dos cavalos do seu pai, traria para a roda uma flauta e, com sua msicatriste, encheria de pressgios a noite.

    Rosrio deu as costas ao entardecer, j recuperava o seu senso, o sol se punha l fora e era sisso: um sol morrendo, mais um dia, alguns homens fedendo a cavalo e suor que voltavam paraa casa, e ela ali, perdida no meio daquele pampa infinito, sob aquele cu imutvel, espera deum destino que nunca vinha. Pensou no pai e na promessa que lhe havia feito, de lev-la Europa quando completasse dezoito anos. Bem, estava j com dezenove, tinha-os feito haviapouco menos de um ms, e o pai lhe havia dito que deviam esperar, que agora coisas maisurgentes sucediam, negcios srios, de guerra talvez, e que suas obrigaes de rio- grandense,de gacho dos pampas, de estancieiro e homem de palavra impeliam-no a ficar e a lutar. Assim,o pai dera por findo o seu maior sonho. Quando as coisas serenassem, poderiam outra vezpensar na viagem, em Paris, em Roma, nos navios elegantes, nas casas de ch e nas modaschiques. Mandara-a ento para a estncia da tia com um beijo na testa, pedindo que secomportasse bem e que zelasse pela me e pelas irms.

    Ela olhou pela janela. Agora um manto vermelho ardia l fora.

    Que se ponha esse maldito sol! gritou, com raiva.

    Sabia que nenhuma das tias, nem a me, a ouviriam. Estavam na varanda, aproveitando osltimos momentos do dia. Fazia pouco que o homem de Bento ganhara a estrada rumo a PortoAlegre, com duas cartas de Caetana na guaiaca, mais os bilhetes que D. Ana e sua me tinhamenviado aos seus prprios maridos. E as mulheres, nesse momento, deviam estar caladas,pensativas, saudosas.

    Pensou nas irms e na prima Perptua; havia algo que a diferia das outras, e era, ela tinhacerteza, uma certa finesse. Perptua era bonita, claro, mas no tinha a mesma elegncia deCaetana, nem seu porte de rainha. E Manuela? Manuela tambm tinha graa, mas era calada,

  • pensativa, que homem se apaixonaria por uma criatura assim, de to poucas palavras,estranha? E era ainda muito moa, com seus misteriosos quinze anos. Mariana tambm tinhaseus encantos as mulheres da famlia sempre gozaram de certa beleza , mas era maisdolente, gostava do campo, estava feliz na estncia, em companhia das outras. As trspoderiam esperar esta guerra, e mais outra e outra ainda, mas e ela? Ela estava madura para ossales, valsava elegantemente, tinha talentos sociais. Recordou um oficial do Imprio, umjovem de vinte e quatro anos, com quem valsara seguidas vezes num baile em Pelotas, faziapouco tempo. Chamava-se Eduardo. Ah, e quantas graas lhe dissera... Que era digna, com seuporte delicado, seus cabelos da cor do ouro, de valsar nos sales do imperador, de quem porcerto ganharia todos os favores. Eduardo Soares de Souza, assim se chamava o rapaz, tinhabelos olhos verdes, serenos. Imaginou que ele deveria estar fazendo cerco a Porto Alegre, quelutaria contra os rebeldes, contra seu tio Bento, contra seu prprio pai e seu irmo, Antnio. Eteve raiva, ento, no do oficial to terno e romntico que lhe fizera tantos galanteios, mas dopai, da barba negra e espessa de Bento Gonalves, teve raiva do charque, do sal, de todasaquelas pequenezas que agora a faziam sofrer. E rezou uma Ave apressada por seu queridoEduardo. Se Deus quisesse, se Nossa Senhora rogasse por ela, logo estariam ambos valsandonum salo, num salo elegante e rico, repleto de damas e de gentis cavalheiros. Quem sabe atna Corte, quem sabe at na Corte...

    A noite comeava a derramar lentamente as suas sombras. Ela sentou na poltrona de couronegro e ficou olhando a escurido descer sobre a pea, reduzindo os dourados de antes asimples sombras cotidianas; os livros na estante eram agora pequenos vultos tristonhos e semnome, apertados naquele mvel, espera de que algum os salvasse dali.

    Correu os dedos longos pela capa do volume que segurava. Achou muito bonita a escrita daspginas, que agora apenas adivinhava, por causa da penumbra. No corredor, ouviu os rudosdas negras passando. Estavam acendendo os lampies, espalhando os candelabros. Um toqueleve na porta.

    Entre. Sua voz saiu desprovida de pacincia.

    Da rua vinha uma cantoria distante. Ela pensou nos mestios sem camisa, em volta do fogo.Sentiu um certo asco.

    Quer luz, sinh? Viriata olhava-a com seus olhinhos midos. Preta, mal podia ser divisada,era quase uma dentadura branca lhe sorrindo.

    E por que eu haveria de querer ficar no escuro, criatura?

    Adesculpa, sinh... Viriata fez uma mesura desengonada e tratou de acender os lampiesde querosene. D licena pediu, e saiu ventando da sala, porque tinha um certo receiodos olhos frios daquela mocinha plida.

    A luz morna aquecia a pea. Rosrio decidiu-se a ler um pouco. Faltava ainda um pouco para ojantar, e muito teria de esperar pelo sono. Abriu o livro, acarinhando o papel macio, papeleuropeu. Comeou a ler com certa dificuldade, mais adivinhando do que compreendendo anarrativa, mais saboreando o som misterioso das palavras do que o seu sentido.

    Principia a soprar um vento l fora, um vento que traz cheiro de flores e de descampado. Pelajanela aberta entra uma lufada que faz tremer a chama dos lampies.

    Rosrio ergue os olhos azuis.

  • A parede branca est a sua frente, a estante de mogno, rente parede. Um frio de gelo invadeRosrio. Suas mos brancas esto desmaiadas sobre o livro, mais brancas ainda, como pombassonolenta seus olhos azuis vem, encostado estante, o vulto do jovem oficial. Ele no semexe. Uma bandagem ensangentada cobre sua testa, e ele est plido feito as mos deRosrio, feito a parede que segura a estante. Est lvido, mas sorri. Pela janela aberta, vem ocheiro de mato, o cheiro de noite, de sonho. O soldado veste um uniforme azul, tem o peitocoberto de medalhas. Na verdade, Rosrio s percebe isso agora: no um soldado, umoficial. E sorri. Tem uns olhos verdosos e febris, e uma boca fina, bem delineada no sorrisoesttico. Ele suspira. O cheiro de flores torna-se mais forte, quase insuportvel. De muito longe,cada vez mais baixo, vem a msica dos pees.

    Rosrio de Paula Ferreira tenta mexer-se, mas suas mos repousam sobre o livro, alheias aqualquer vontade. Um grito prende-se sua garganta, mas no sai. Os olhos azuis se arregalamde pavor.

    Tienes miedo?

    A voz do homem sua frente parece vir de muito longe, e quente e suave, mansa feito umaflauta daquelas fabricadas pelos ndios. Uma flauta doce.

    Tienes miedo, Rosrio?

    No, ela quer dizer, no tem medo. Est assustada, seu corpo no a obedece, o cheiro de floresa sufoca, um homem entrou no gabinete sem que fosse convidado, um estranho, um jovemestranho, verdade, um belo oficial de algum exrcito desconhecido que lhe fala emcastelhano. No, temer no teme, pensa em dizer isso, mas sua boca permanece muda.

    O jovem oficial parece mover-se, no entanto seu vulto permanece encostado estante. Brilhamseus olhos de selva, brilham de febre. Ele tem um ferimento srio na cabea. bom que chameD. Ana... D. Ana conhece as ervas, poder ajud-lo, ou as negras. Sim, as escravas tm boasreceitas para essas coisas. Rosrio quer dizer-lhe que ir buscar ajuda. So de posses, podemmandar trazer um mdico de Pelotas. Se vier a galope, chega ainda na madrugada, cuida doferido, troca a sua bandagem suja, sangrenta, tira a febre daqueles oblquos olhos verdes.Tenha calma, oficial, quer dizer, mas no diz. "Tienes miedo?", a pergunta sem resposta parecepular pela pea. Responda, responda. Mas Rosrio no consegue responder. Lgrimas assomamaos seus olhos. Ela quer chamar a me, quer chamar D. Ana, quer chamar Rosa, que dizem boabenzedeira.

    Faz um esforo descomunal, todas as clulas do seu corpo, juntas, na nica ordem de erguer-se. Agora est em p. O livro escorregou para o cho, caiu desconjuntado, pginas abertas.Rosrio nem pensa mais no livro. Tem os olhos fitos no oficial, que ainda sorri. Atravessa apequena sala, est tremula. "Vou chamar D. Ana", o que pensa. Est lvida. Recostado naestante, o jovem a fita. A bandagem agora est empapada de sangue. "Tienes miedo...", a vozdele agora soa afirmativa, triste, e ecoa nos ouvidos de Rosrio, enquanto ela sai em correriadesabalada pelo corredor.

    Quase derruba uma negra pelo caminho.

    Chega sala. D. Ana, Maria Manuela e Perptua esto por ali, as outras andam l para dentro.D. Ana tira os olhos do bordado e v a sobrinha parada no meio da sala; ela treme e tem o rostobranco feito a geada. Ela tem um brilho estranho nos olhos azuis.

  • O que foi, menina? D. Ana fita a sobrinha. As outras tambm esto olhando Rosrio.

    Est doente, minha filha? Maria Manuela vai abraar a filha mais velha. Toca-lhe a fronte,est febril.

    Rosrio desvencilha-se da me. Est olhando fixamente para D. Ana, e diz:

    Tia, vem c comigo. Tem um moo l no escritrio, est muito ferido. Deve ser coisa de bala.

    As mulheres se alvoroam. Beata, que estava por ali arriando as cortinas, faz o sinal-da-cruz.Ser que j comeou? Gente ferida chegando na casa?

    Como isso, menina? Um homem baleado? Vamos l agora! D. Ana ergue-se e toma asobrinha pela mo. Tem os olhos preocupados, mas est serena e decidida. Ser que estoguerreando por ali, ser?

    Vo em procisso pelo corredor. Perptua fica imaginando se o soldado jovem e bonito.Sente pena, sente medo. Rosrio tenta controlar os passos, quer sair correndo porta afora,fugir dali, voltar para Pelotas. Esquecera de dizer para a tia que o moo fala castelhano, masno importante. Est ferido, muito ferido. Deve arder em febre, e to garboso.

    D. Ana abre a porta do escritrio com o corao a saltar-lhe pela boca. Corre os olhos pelapequena pea: est tudo calmo, os livros arrumados na estante, a cadeira no seu canto, aescrivaninha de Paulo com o tinteiro e os papis. As cortinas tremulam ao sabor da brisacampeira. No tem ningum ali.

    No tem ningum aqui diz, surpresa.

    Mas tinha, tia. Eu juro.

    Rosrio tem os olhos arregalados. Toca na estante, bem onde o homem estava encostado. Eleficara ali uns bons minutos, fitando-a com seus olhos verdes. E sangrava.

    Minha filha, o que isso? Maria Manuela est confusa. A filha parece estranha, doente. Tinha mesmo um homem ferido aqui?

    Rosrio derrama-lhe um olhar ardido, lacrimoso.

    Tinha um moo aqui! Eu vi, eu juro! Estava muito ferido, com uma bandagem na cabea,coitadinho... Sangrava muito... Acho que vai morrer suspira. Ele falou comigo, tia Ana.

    D. Ana pega a sobrinha pelos ombros, delicadamente. Faz com que ela olhe dentro dos seusolhos, dos seus olhos negros como os de Bento Gonalves, dos seus olhos firmes e bondosos.

    Falou o qu, Rosrio? Diz direitinho, menina... Se tem um homem aqui, seja l quem for,temos que encontr-lo.

    Rosrio se derrama nos olhos da tia. O homem falara com ela. Tinha voz doce e olhos tristes.Falara em castelhano.

    Em castelhano? D. Ana no entendia mais nada. E disse o qu, menina?

    Perguntou se eu estava com medo... S isso. Perguntou se eu tinha medo dele... Rosriocomea a chorar. E eu no tinha, tia... S fiquei assustada, juro, e no podia me mexer..

  • D. Ana troca um olhar de estranheza com a irm. Maria Manuela abraa a filha, enquantoPerptua espia pela janela: quem sabe o homem pulara para a rua? D. Ana leva todas para asala, onde j aparecem Caetana, Manuela e Mariana. Numa casa de mulheres, as notciascorrem rpido.

    Rosrio chora muito, diz que no est mentindo, tinha l um oficial ferido, e era jovem. D. Anasente pena da menina. Vai ver, est adoentada, pensou. Quem sabe a angstia fizera-lhe isso?Sim, vira muitas vezes as pessoas delirarem de angstia... E Rosrio no era forte, no herdara asolidez dos Gonalves da Silva, era frgil, delicada.

    D. Ana vai para o lado da sobrinha e lhe acaricia os cabelos. Sua voz muito doce, quando diz:

    Fique sossegada, Rosrio... Vou mandar o Manuel e uns homens darem uma olhada por a.Se o moo fugiu, no deve estar longe. Traremos ele para a casa e vamos cuidar do seuferimento, est bem? Rosrio concorda lentamente, e seu choro esmaece um pouco. Agora, menina, melhor que vosmec se deite... Sua me le leva para o quarto. Depois, eumando a Beata le levar uma sopinha... Pode deixar que a gente cuida disso, est bem?

    Ele estava muito ferido... o que sabe dizer. Maria Manuela estende a mo:

    Vem, filha. Vamos deitar um tantinho...

    As duas vo saindo da sala. As outras mulheres esto ao redor de D. Ana, cheias de perguntasno olhar.

    Manda chamar o Miguel e o Z Pedra, Beata. E diz para eles virem rpido. A voz de D. Anaecoa pela sala.

    Beata sai correndo, arrastando as chinelas de pano.

    Jantaram numa muda expectativa. Rosrio contara uma histria estranha. Se um castelhanoestava ferido por aquelas bandas, devia ser briga de bolicho ou coisa parecida. No estavam emguerra com o Prata, estavam comeando uma guerra contra eles mesmos... Mas o que faria umoficial de fora por ali?

    Ela dormiu rpido.

    Maria Manuela chegou atrasada para o jantar. Ficara cabeceira da filha, zelando seu sono.Tinha feito com que tomasse um ch de folha de tlia, para acalmar os nervos.

    Se acharem esse homem, temos que avisar o Bento. Ele nos dir o que fazer Caetanaduvidava muito que Manuel voltasse com alguma notcia, aquela histria estava mal contada.

    O que eu no quero ver essa menina se adoentar disse D. Ana. Se o tal aparecer,tratamos dele, depois o enviamos para Porto Alegre. Mas se o Manuel no o encontrar por a,deixem comigo; eu conto uma histria para sossegar Rosrio e no se fala mais nisso.

    D. Ana comia calmamente. No fundo, sabia bem que nenhum castelhano andava por aquelas

  • terras. Talvez a menina estivesse apenas assustada demais cora tudo, com a perspectiva deuma guerra.

    Manuela estava em silncio. Pensou na irm frente a frente com o tal oficial. No duvidava denada, quem sabe no fora uma briga de amor, um duelo? Quem sabe, o coitado, ao ver as luzesna casa, no fora pedir um alento? No entendia era aquela fuga assim, antes do socorro. Elepodia at morrer no mato, as noites ainda estavam muito frias.

    Ficaram ali, sem respostas. L fora comeava a soprar um vento inquieto que fazia cantar asrvores do capo. Talvez chovesse durante a noite.

    Depois da janta, quando Caetana j tinha se recolhido para ver as crianas pequenas, foi queManuel e Z Pedra voltaram. Suas botas estavam embarradas, e as roupas, midas; tinhacomeado a cair uma chuva fina e gelada. D. Ana foi ter com os dois na cozinha.

    No encontramos nada, D. Ana. Manuel j se arrumava para comer. Le digo quevasculhamos tudo, at o rio. Fomos at na estncia da Si Antnia, e nada. Se esse moopassou mesmo por estas bandas, ento se escafedeu como o diabo.

    Est bem, Manuel. Mas no me comentem essa histria com ningum, nem com a peonada.

    Z Pedra mastigava furiosamente o feijo com arroz. D. Ana sabia que da sua boca no sairiauma palavra, no era toa que o chamavam de Pedra: era um tmulo para guardar segredos.Manuel tirou o chapu de barbicacho e sentou mesa, pedindo licena patroa.

    A senhora acha mesmo que tinha castelhano ferido por aqui? perguntou Manuel em vozbaixa.

    D. Ana sorriu. Estava enrolada num xale de l preta e parecia menor e mais frgil do quequando estava ataviada com suas saias e rendas.

    No acho nada, Manuel... Minha me sempre dizia que em cabea de moa e vespeiro agente no deve remexer. Um cheiro bom de lenha queimando ocupava o ambiente. E amocidade uma poca esquisita mesmo, o melhor deixar passar, no ms... Foi saindo dacozinha. Buenas noches.

    Buenas, patroa responderam em coro o negro e o capataz.

    Em seu quarto, Rosrio dormia um sono agitado onde os olhos verdes e febris do oficial aperseguiam como borboletas. Acordou no meio da noite, e o silncio aterrador da madrugadacampeira encheu-a de medo. Enrolou-se na coberta e, vencendo um pnico ancestral,atravessou o corredor quase s escuras e foi bater no quarto da me.

    Posso dormir com vosmec?

    Maria Manuela sorriu no escuro. Foi para o lado, abrindo espao para a filha e, com a vozpastosa de sono, disse apenas:

    Deita aqui, meu anjo. Dormiram de mos dadas.

  • Cadernos de Manuela

    Estncia da Barra, 2 de dezembro de 1835.

    Ningum soube explicar o causo do tal castelhano que viera ver Rosrio naquele dia, nemnunca mais tocou-se no assunto. Lembro que, no dia seguinte, D. Ana trancou-se com ela noescritrio e ali ficaram um par de horas. Rosrio deixou o encontro com os olhos ardidos dechoro, mas D. Ana acalmou-nos a todas com sua voz de certezas.

    Eu tambm j fui moa. Isso passa logo... Quando os homens voltarem, faremos uma baile.At l, Rosrio ter esquecido essa histria toda.

    E foi assim. No se falou mais no causo.

    D. Antnia tambm pouco fez do acontecido. Tinha l seus pensamentos e suas certezas.Preocupava-se com gente de carne e osso. Olhou- me, quando acabei de lhe narrar o encontroque a mana tivera, e me disse: "Vosmec tem bom senso, Manuela. Esquea esse assunto.Temos aqui mesmo muitos rio-grandenses que de ns necessitam... E quanto sua irm, deixeque fique assim... Essas tolices se curam com o tempo."

    Mas, nos dias subseqentes, Rosrio tornou-se mais calada e esquiva, at hoje tem sido assim...Passa lendo por tardes inteiras trancada no escritrio do tio, e como se l fosse um canto sseu, um outro pas, que ela freqenta por uma graa divina. s vezes, passa muito tempo aotoucador, penteando os cabelos, tranando-os, at mesmo se lava e se perfuma para essesmomentos... A me anda cabreira, coitadinha, mas tem l outras angstias. Parece que Antniose feriu numa escaramua na Azenha, um imperial o teria cortado com a adaga. O pai e Bentose apressaram em nos escrever, dizendo ambos que fora coisa pouca, que Antnio estava beme j curado. Apenas um arranho no ombro, disseram ambos, que lhe custara uma noite defebre; com umas compressas e pacincia, j fora sanado. Mas a me no acredita, quer ver ofilho com os prprios olhos. Sonha que Antnio est muito ferido, gangrenando at, e acordaem prantos, os olhos riscados de veias vermelhas. D. Ana tem de servir-lhe um ch, e depoisdisso gasta muito tempo para demov-la de tomar uma sege e ir para Porto Alegre por estasestradas, atrs do seu Antnio.

    Ontem chegou um prprio trazendo extensa carta de Bento Gonalves. Como acontece sempre,Caetana leu-a na sala, em voz alta, para todas ns. Contava a carta que o novo presidente daprovncia, indicado pelo regente do imperador, chegara no dia anterior ao Rio Grande, vindo doRio de Janeiro. Ouvimos apreensivas a voz de Caetana soprar o seu nome: Jos de ArajoRibeiro. Filho de uma famlia daqui, um rio- grandense contra outros. E fiquei pensando se seriaesse homem, esse sulista imperial, que traria em sua esteira todas as desgraas que enxerguei.Mas um nome? O que um nome apenas, um indcio de alguma sina? Ser que nossos nomestraam o futuro que nos cabe, ser que Bento Gonalves da Silva, quando ainda era um beb,ao receber na pia batismal esse nome que lhe foi dado, recebia tambm a herana decomandar este povo? Ser de Arajo Ribeiro a mo que empunhar a espada da nossadesgraa?

    Bento Gonalves vir ver-nos em breve. Caetana chorou ao ler esse trecho. Choramos todas.Minha me ficou imaginando se o irmo traria Antnio para estar com ela... No sabemos. Mastio Bento vir, e isto j nos alegra. Com ele, notcias; com ele, verdades. Aqui nesta casa, o

  • tempo passa lentamente, embora a primavera tenha trazido novas cores a tudo, e os camposestejam floridos e belos como um salo preparado para o baile. Apenas Rosrio, imbuda doseu novo distanciamento, pareceu no se alegrar com a chegada de Bento Gonalves: talveznem ouvisse direito o que Caetana nos lia.

    Fugi pelos fundos, enquanto as mulheres permaneciam na sala comentando a carta e seuspormenores. D. Antnia estava conosco, pois mandaram busc-la na estncia para que tambmtivesse notcias: sua voz pausada e firme ouvia-se sobre todas as outras, e ela tomavaprovidncias para esperar com glria o irmo coronel.

    No quintal, em torno do mate, Manuel, Z Pedra e o vaqueano que trouxera a carta do coronelBento trocavam frases esparsas enquanto sorviam a bomba, cada um a seu turno. Aqui no sefala muito, a gente do Rio Grande tem o peito fechado como um cofre. E um jeito de se alegrarpara dentro, diz sempre D. Ana, quando falo da sisudez de ns todos, pois at eu tenho esseesprito controlado, essas palavras medidas que s vezes me deixam a boca com custo.

    No entanto, apesar dos longos silncios de chupar o mate, os homens pareciam muitocontentes da vida, e tinham um certo brilho de orgulho nos olhos de sobrancelhas cerradas. Eeu, fingindo que ia buscar um dos cachorrinhos de Nega, a cadela que deu cria na semanapassada, pude ouvir da boca do mensageiro:

    Porto Alegre nossa, estou les garantindo. Eu vi os imperiais fugirem como passarinhos.Logo teremos todo o Rio Grande.

    Um calor de jbilo tomou-me. Escolhi um dos filhotes a esmo a alegria at me turvava osolhos , estavam todos numa grande caixa cheia de panos, Nega dormindo exausta, e tomei-ono colo. O bichinho tinha uma cara linda, e eu estava contente.

    Vosmec vai ser meu, cozinho. E vai se chamar Regente.

    Regente agora anda no meu encalo, mas D. Ana no o quer na casa. Detesta bichos pelas suassalas, porque diz que trazem doena e pulgas. Pedi, e Mariana deixou que ele ficasse em nossoquarto, contanto que no chorasse. Regente no chora, sabe bem o que lhe convm. Enquantoescrevo estas linhas, ele est aqui ao meu lado, olhando-me com seus olhinhos pretos ealegres: uma bolinha gorducha e luzidia, de plo baixo, grosso e negro, tem a cabecinhapequena e uma mancha branca escorre de entre seus olhos at o focinho. Tem estado comigotodos estes dias, e bom ficar ao seu lado, porque no me pede assuntos, segue-me apenas.Tomamos banho na sanga, ontem tarde, Regente nadou como se fosse um peixe, depoisdormiu longas horas, deitado sobre a colcha velha que lhe serve de cama.

    Amanh, Bento Gonalves chega estncia. As mulheres esto todas em polvorosa. D. Ana foipessoalmente fazer a pessegada de que o irmo tanto gosta. E as negras no param, andam deum lado a outro, areando a prataria, arrumando a casa como um brinco, trocando as toalhasdas mesas, arejando as cortinas de veludo, lavando de escovas o cho da salas. At os cavalosforam escovados, e a peonada ganhou de D. Ana mate e carne para um assado. Estamos quaseem festa, como se fosse Natal... Espero que esta noite no nos seja longa.

    Manuela.

  • O dia ainda no tinha clareado de todo, quando um vaqueano veio avisar negra Beata: ocoronel Bento Gonalves, mais um grupo de cavaleiros, chegava na estncia. Com eles, vinhaAntnio, o filho de Maria Manuela, e usava no brao uma tipia ou coisa que o valesse.

    Ainda no atravessaram a porteira disse o gacho, coando a barba. Mas usted j podeavisar D. Ana: os homens chegaram para o mate da manh.

    Beata deu um pulinho de contentamento, abriu um riso largo e saiu ventando para dentro dacasa.

    Um sol tmido e dourado rasgava as nuvens da manh, o passaredo cantava nas rvores, e ocheiro de mato, que o sereno carregava, ainda se fazia sentir naquele princpio de manh dedezembro. O campo j tinha ares de vero. Ao longe, o gado pastava. O peo deu uma boaolhada em tudo estava na mais perfeita ordem, seu Bento iria aprovar o andamento dascoisas , depois deu uma virada com o cavalo e saiu prs lados do celeiro. Manuel andava porl, arrumando umas montadas. Precisava avis-lo da chegada do coronel.

    A casa despertara mais cedo. De c e de l, as escravas andavam carregando bacias com gua,toalhas, panos de fralda. Beata foi dando a notcia para todos com quem cruzava no corredor.Chegou na cozinha. Z Pedra tomava um mate, encostado na soleira da porta.

    O coronel Bento chegou.

    A voz de Beata era esganiada feito taquara. O negro forte e espadado no moveu ummsculo do rosto. Acabou de sorver o mate bem amargo e retrucou em voz baixa, como falavasempre:

    Pois t fazendo o qu a, sua negrinha da peste? Vai avisar D. Ana agora mesmo, em vez deficar por a botando alarido na negrada.

    Beata ventou cozinha afora. Todos tinham medo de Z Pedra, que, diziam, tinha sido feitor lpara os lados de Cerro Largo, e que era de toda a confiana de D. Ana. Tambm falavam queera alforriado, que comprara sua liberdade, mas Z Pedra no comentava sua vida, nem paramentir, nem para desmentir a boataria.

    Beata saiu arrastando as chinelas pelo corredor. Na ltima porta, parou, ajeitou as saias. Bateude leve. A voz de D. Ana se fez ouvir:

    Entra, Beata. Conhecia os passos ligeiros e o jeito afobado da negra.

    D. Ana acabava de aprontar-se. Mil prendia os seus cabelos no alto da cabea, e Beata viu comgosto