A Cibercultura de Pierre Lévy

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Educação e Sociedade em Rede Atividade 2 1 Neologismo desenvolvido pelo físico espanhol Alfons Cornellá para relacionar intoxicação com a imensa e rápida quantidade de informação que recebemos no dia-a-dia com as novas tecnologias. Cibercultura Pierre Lévy, filósofo francês da cultura virtual contemporânea, foca a sua visão na pesquisa e análise da cibernética, desenvolvendo a obra Cibercultura em três partes: Definições (clarificação de conceitos e questões fundamentais para a compreensão do fenómeno da cibercultura); Proposições (caracterização e análise das implicações do ciberespaço e da cibercultura); Problemas (exploração dos conflitos e das críticas que se levantam à cibercultura). O autor procura, nesta obra incitada pelo Conselho Europeu sobre Educação e Desenvolvimento, desvendar implicações culturais promovidas pelo advento das tecnologias de informação e comunicação. Este é o grande objetivo de Lévy, que só poderá ser entendido com o reconhecimento de que este fenómeno resulta da busca incessante de novas formas de comunicação, diferentes das patrocinadas pelos meios de comunicação tradicionais, e pela evidenciação das potencialidades destas, que cada um de nós deve explorar em diferentes perspetivas. Desta forma, Lévy inicia a sua indagação sobre esta temática analisando a infoxicação 1 atual, um segundo dilúvio que a humanidade enfrenta, que é comparado com o dilúvio bíblico de Noé. Neste novo dilúvio, a tarefa de reunir toda a informação é impossível, uma vez que esta ganhou uma configuração infinita e ilimitada. Neste oceano de informações, as arcas dançam entre si e trocam sinais, gerando uma universalidade sem totalidade. Essa universalidade deve-se à interconexão generalizada, mas sem totalidade, tendo em conta a diversidade de sentidos que abarca. Assim, cabe a cada um de nós, enquanto seres livres que somos, a responsabilidade de escolher a informação, conferindo-lhes o significado que pretendemos. Desta feita, Lévy define ciberespaço, comummente designado de rede, como o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial de computadores. De notar que este ciberespaço não se confina à infraestrutura material, mas também todo o universo oceânico de informação que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. É neste ciberespaço que se expressa e manifesta a cibercultura. Este conceito, que envolve a conjugação dos termos cibernética e cultura, contempla os fenómenos culturais que resultam a partir da utilização da rede de computadores. Podemos dizer que Lévy perspetiva a cibercultura

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Educação e Sociedade em Rede

Atividade 2

1 Neologismo desenvolvido pelo físico espanhol Alfons Cornellá para relacionar intoxicação com a imensa e rápida quantidade de informação que recebemos no dia-a-dia com as novas tecnologias.

Cibercultura

Pierre Lévy, filósofo francês da cultura virtual contemporânea, foca a sua visão na pesquisa e

análise da cibernética, desenvolvendo a obra Cibercultura em três partes: Definições

(clarificação de conceitos e questões fundamentais para a compreensão do fenómeno da

cibercultura); Proposições (caracterização e análise das implicações do ciberespaço e da

cibercultura); Problemas (exploração dos conflitos e das críticas que se levantam à cibercultura).

O autor procura, nesta obra incitada pelo Conselho Europeu sobre Educação e

Desenvolvimento, desvendar implicações culturais promovidas pelo advento das tecnologias de

informação e comunicação. Este é o grande objetivo de Lévy, que só poderá ser entendido com

o reconhecimento de que este fenómeno resulta da busca incessante de novas formas de

comunicação, diferentes das patrocinadas pelos meios de comunicação tradicionais, e pela

evidenciação das potencialidades destas, que cada um de nós deve explorar em diferentes

perspetivas.

Desta forma, Lévy inicia a sua indagação sobre esta temática analisando a infoxicação1 atual, um

segundo dilúvio que a humanidade enfrenta, que é comparado com o dilúvio bíblico de Noé.

Neste novo dilúvio, a tarefa de reunir toda a informação é impossível, uma vez que esta ganhou

uma configuração infinita e ilimitada. Neste oceano de informações, as arcas dançam entre si e

trocam sinais, gerando uma universalidade sem totalidade. Essa universalidade deve-se à

interconexão generalizada, mas sem totalidade, tendo em conta a diversidade de sentidos que

abarca. Assim, cabe a cada um de nós, enquanto seres livres que somos, a responsabilidade de

escolher a informação, conferindo-lhes o significado que pretendemos.

Desta feita, Lévy define ciberespaço, comummente designado de rede, como o novo meio de

comunicação que surge da interconexão mundial de computadores. De notar que este

ciberespaço não se confina à infraestrutura material, mas também todo o universo oceânico de

informação que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse

universo.

É neste ciberespaço que se expressa e manifesta a cibercultura. Este conceito, que envolve a

conjugação dos termos cibernética e cultura, contempla os fenómenos culturais que resultam a

partir da utilização da rede de computadores. Podemos dizer que Lévy perspetiva a cibercultura

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de uma forma segundo a qual as novas tecnologias e a sua influência na sociedade geram

subculturas ao expressar o aparecimento de um novo universo, com traços distintos, mais atuais,

mais globais, mais conectados e mais competitivos. Assim, a cibercultura é entendida pelo autor

como o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de

pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço.

Não obstante, à semelhança de outros marcos históricos com invenções tecnológicas, também

neste as críticas emergem, mas a cibercultura não deve ser encarada como cura de problemas

sociais, mas antes analisada sob o foco das mudanças qualitativas inerentes a este processo de

(r)evolução e renovação.

As comunidades virtuais permitem extrapolar o confinamento territorial para uma inteligência

coletiva e é urgente que cada um de nós mergulhe neste oceano de transformações radicais, no

qual se manifesta, difunde e (re)produz a cibercultura, para dele retirar as potencialidades mais

positivas deste espaço nos planos económico, político, cultural e humano. Essa inteligência

coletiva ocorre quando todos partilham, somam, dividem e multiplicam conhecimentos, até

porque ninguém sabe tudo, todos sabem alguma coisa e todo o saber está na humanidade.

Considerada pelo autor como herdeira da filosofia das Luzes, a cibercultura leva a repensar

também novas formas de relação com o saber, evidenciando a necessidade de mudança de

paradigma educativo ao desvendar a obsolescência dos processos educativos tradicionais. É

então necessário educar para a cibercultura, promovendo uma participação ativa. Aqueles que

se excluem da participação na inteligência e memória coletivas acabam por se excluir do próprio

ciclo atual e célere de desenvolvimento social e cultural, o que lhe confere em simultâneo,

segundo Lévy, a conceção de remédio, para os que acompanham, ou de veneno, para os que

não participam.

É neste palco de interatividade, de intercomunicação rápida e do imediato, que a cibercultura

se promove e patrocina. Deve ser encarada como algo superior a um cibermercado, algo que

democratiza o acesso à informação e ao conhecimento.

Após a leitura e análise da obra, podemos, numa perspetiva sobremaneira influenciada por Lévy,

definir com breves e humildes caracteres a cibercultura: conceito complexo em crescendo e

mutação permanente, que reflete a virtualização cultural da atualidade humana, constituída em

rede, promovida pelas TICs, e o seu reflexo na construção colaborativa de um marco coletivo

ilimitado, de uma comunidade mundial.

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Neste contexto, podemos elencar três exemplos significativos de cibercultura:

Ambientes virtuais tridimensionais – O Second Life;

Wikis – A Wikipédia;

Cursos Online Abertos e Massivos – Os Mooc.

No que respeita ao Second Life, um dos exemplos mais conhecidos dos ambientes virtuais

tridimensionais, permite, a partir da configuração de um avatar, simular a vida real e social de

um ser humano. Criado em 1999, e desenvolvido em 2003, reflete em

grande escala a necessidade do ser humano criar outros “eu”. A gamificação2

do processo de aprendizagem torna-o motivador e viciante, a sua dimensão

social torna-o real e próximo do utilizador e a sua característica interativa e

dinâmica gera um manancial de oportunidades de elearning e de difusão do

conhecimento altamente significativas. De entre os seus inúmeros destinos, vários são aqueles

ligados a instituições académicas, nos quais a partilha de informações se revela altamente

cibercultural.

Quanto aos Wikis, etimologicamente associados à rapidez e à velocidade, englobam a coleção

de informação em hipertexto ou em plataformas de construção colaborativa. Dos exemplos mais

significativos, citamos a enciclopédia livre Wikipédia. Lançada em 2001, é

uma enciclopédia multilíngue, online, mundial e gratuita. Configurada de

forma colaborativa, permite à comunidade virtual desenvolver conteúdos

e informações, que são disseminados numa escala global, interagir com

essa informação, aperfeiçoando-a e limando-a a todo o momento. Com

este exemplo, procuramos demonstrar a impressão de constante mutação e de co-construção

tão características da cibercultura, que se evidencia com este exemplo de desenho coletivo do

conhecimento.

Os Cursos Online Abertos e Massivos, os conhecidos MOOC, do inglês Massive Open Online

Course, são um evidente, atual e significativo exemplo de cibercultura. Estes cursos abertos na

Web levam a cabo a missão de democratizar o conhecimento, no espaço onde ele está mais

presente, mais distribuído e mais participativo – o ciberespaço.

Mais do que uma escola, mais do que um curso online, um MOOC

é uma forma conectada, colaborativa e de envolvimento no processo de aprendizagem. Com

um número indefinido de participantes, independentemente da sua localização geográfica, é

um evento no qual a comunidade virtual reflete, participa e desenvolve um determinado

2 Neologismo desenvolvido para relacionar jogo – game – com a intenção de se incrementar a participação e motivação dos intervenientes.

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assunto. Ao romper com o ensino tradicional e ao promover um ensino conectado e colaborativo

em rede, mais do que um exemplo significativo, é uma forma de difusão e progresso da

cibercultura.

Em suma, o apelo de Lévy, que se intitula de verdadeiro otimista, reporta-se à nossa postura

face à cibercultura. O que nos propõe é estarmos abertos, benevolentes e recetivos em relação

a este novo momento e a esta novo espaço de comunicação, pois só desta forma será possível

conceber este advento tecnológico numa perspetiva humanista e humanizada. Este novo dilúvio

rompeu com as conceções tradicionais das relações sociais e das manifestações culturais, que

na atualidade se definem grandemente pelas comunidades virtuais em constante renovação e

mutação. Este espaço virtual deixa assim de ser uma oposição ao real, ganhando uma dimensão

universal e presente, que amplia e altera a própria noção de evolução do ser humano. Estamos

assim a viver um período de reconfiguração cultural, a construir coletivamente a cibercultura,

que inclui o universo de todos os utilizadores da rede sem barreiras espaciais e temporais, mas

que, dada a imensidão de informações, nunca poderá ter pretensões em ser totalizante.

Lévy, P. (2000) Cibercultura. Lisboa: Piaget.

Hélder Pereira