A cidadania e a ética no discurso da mídia -...

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1 A CIDADANIA E A ÉTICA NO DISCURSO DA MÍDIA. Marcel J. Cheida, Faculdade de Jornalismo, Puc-Campinas, Campinas, São Paulo. [email protected] Resumo: Os termos cidadania e ética têm sido divulgado sistematicamente pelos meios de comunicação, num apelo em favor da formação de crianças e jovens nas instituições educacionais. Por influência dos jornais, a escola incorpora a terminologia no discurso pedagógico na tentativa de obter a adesão de públicos para programas de formação educacional nem sempre subordinados à profundidade e à precisão dos conceitos manuseados pelos jornalistas. Distancia-se deliberadamente a cidadania da política, em discursos moldados mais pela propaganda do que pela informação noticiosa ou pelas narrativas analíticas e pelas dissertações reflexivas. Este trabalho é um estudo do noticiário sobre a reprodução sistêmica de termos e expressões dos discursos institucionais que banalizam os sentidos da cidadania e da ética. A produção noticiosa fica comprometida eticamente à medida que os jornais são também recursos didáticos-pedagógicos. Palavras-chaves: ética da comunicação, deontologia do jornalismo, educação e comunicação social. Introdução Ao postular a investigação sociológica da imprensa e suas relações de poder durante o Primeiro Congresso da Associação Alemã de Sociologia, em Frankfurt, 1910, Max Weber (2005, p. 20) ressaltou a importância política e econômica dos jornais na sociedade capitalista e a necessidade de o mundo acadêmico se debruçar com maior densidade crítica sobre eles. Em particular, Weber propõe indagações pertinentes para a busca de respostas sobre como a imprensa influencia e conforma as idéias do homem moderno. Indagações que vão orientar vários estudos sobre os jornais nas décadas seguintes. Isso porque, segundo ele, A imprensa introduz deslocamentos poderosos nos hábitos de leitura e com isso provoca poderosas modificações na conformação, no modo e na maneira como o homem capta e interpreta o mundo exterior. (WEBER, p. 20)

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A CIDADANIA E A ÉTICA NO DISCURSO DA MÍDIA. Marcel J. Cheida, Faculdade de Jornalismo, Puc-Campinas, Campinas, São Paulo. [email protected]

Resumo: Os termos cidadania e ética têm sido divulgado sistematicamente pelos meios de

comunicação, num apelo em favor da formação de crianças e jovens nas instituições

educacionais. Por influência dos jornais, a escola incorpora a terminologia no discurso

pedagógico na tentativa de obter a adesão de públicos para programas de formação educacional

nem sempre subordinados à profundidade e à precisão dos conceitos manuseados pelos

jornalistas. Distancia-se deliberadamente a cidadania da política, em discursos moldados mais

pela propaganda do que pela informação noticiosa ou pelas narrativas analíticas e pelas

dissertações reflexivas. Este trabalho é um estudo do noticiário sobre a reprodução sistêmica de

termos e expressões dos discursos institucionais que banalizam os sentidos da cidadania e da

ética. A produção noticiosa fica comprometida eticamente à medida que os jornais são também

recursos didáticos-pedagógicos.

Palavras-chaves: ética da comunicação, deontologia do jornalismo, educação e comunicação

social.

Introdução

Ao postular a investigação sociológica da imprensa e suas relações de poder durante o Primeiro

Congresso da Associação Alemã de Sociologia, em Frankfurt, 1910, Max Weber (2005, p. 20)

ressaltou a importância política e econômica dos jornais na sociedade capitalista e a necessidade

de o mundo acadêmico se debruçar com maior densidade crítica sobre eles. Em particular,

Weber propõe indagações pertinentes para a busca de respostas sobre como a imprensa

influencia e conforma as idéias do homem moderno. Indagações que vão orientar vários estudos

sobre os jornais nas décadas seguintes. Isso porque, segundo ele,

A imprensa introduz deslocamentos poderosos nos hábitos de

leitura e com isso provoca poderosas modificações na

conformação, no modo e na maneira como o homem capta e

interpreta o mundo exterior. (WEBER, p. 20)

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Weber, um sociólogo já renomado e dos mais influentes no século XX, admitia o poder

exercido pela imprensa na sociedade contemporânea, e destacava os campos de interesses e

conflitos entre os jornais, jornalistas e os organismos ou instituições com os quais aqueles se

relacionam para manter o fluxo de informação para públicos e indivíduos. A influência da

imprensa sobre os homens e sobre a sociedade era preocupação intelectual de Weber, para quem

A constante mudança e o fato de se dar conta das mudanças

massivas da opinião pública, de todas as possibilidades

universais e inesgotáveis dos pontos de vista e dos interesses,

pesa de forma impressionante sobre o caráter específico do

homem moderno.(idem, p. 20)

Mais tarde, outro pensador alemão, Jüergen Habermas (1984, 213) desenvolve amplo

estudo sobre a formação do espaço público como conquista da burguesia, a qual constrói a mídia

jornalística como ferramenta de manutenção e transformação do Estado. A imprensa, segundo

Habermas1, não pode ser dissociada da evolução da esfera pública, a qual também não se

distingue mais da esfera privada no mundo contemporâneo. Na era moderna, os jornais se

confundiam, porém, com o campo político-partidário. Tanto Weber como Habermas observa que

na modernidade a imprensa servia de porta-voz de correntes político-partidárias e com elas se

misturavam. Era o jornalismo romântico, idealista. Mas o século XIX vai abrigar uma mudança

do modelo de produção noticiosa a partir dos Estados Unidos, onde a cultura industrial e urbana

recebe de braços abertos o paradigma da objetividade dos fatos. Weber ressaltava que o francês

se identificava com os jornais opinativos, uma tradição européia, enquanto que nos Estados

Unidos o público demandava informações, ou apenas a exposição dos fatos (WEBER, p. 18).

São dois modelos basilares de jornalismo praticados ao longo do século XX, ainda. O de viés

opinativo, encontrado em vários países europeus e no leste socialista, onde a imprensa era

controlada pelo partido comunista, e o de viés informativo, que vai se disseminar pelo continente

Americano. Ao final do século XX, porém, a fusão de grandes corporações com a aquisição de

empresas jornalísticas provoca a ampliação do modelo americano, o qual apregoa a distinção

clara entre notícia e opinião, entre o relato factual e a expressão dos juízos valorativos.

Nesse cenário de aceleradas mudanças, a influência dos conteúdos e das formas

editoriais dos jornais evidencia-se pela importância econômica e política numa sociedade

midiática ou da informação, reestruturada conforme os novos tempos. Entre as profundas

mudanças na estrutura social, a distinção entre o público e o privado sofre abalos que pulverizam

as fronteiras entre a intimidade individual e familiar e a publicidade dos atos de interesse

público. Se na modernidade o público e o privado se definiam com claras delimitações morais,

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no século XX a onipresença da mídia gradualmente absorve num processo hegemônico ambas as

esferas. As conseqüências podem começar a ser entendidas a partir da afirmação de Weber,

sobre como a imprensa é um poder de conformação das idéias numa dada sociedade.

A sociedade mercadológica coisifica idéias e pessoas e estas descobrem que podem

usar o próprio corpo e a imagem para a ascensão social e econômica. A mídia jornalística passa a

se alimentar de reportagens e notícias sobre o mundo privado, doméstico e íntimo das pessoas.

Assim, relatam uma nova sociedade na qual a mercadoria é caracterizada pela fugacidade; se as

pessoas se transformam em mercadoria midiática, também se expõe no efêmero do tempo da

televisão ou na limitação das páginas dos jornais e revistas. A lógica do mercado se estrutura na

renovação permanente e cotidiana das idéias e comportamentos, num ciclo acelerado de

substituição dos bens de consumo para manter a economia na dinâmica necessária para a

circulação da moeda e do enriquecimento ilimitado.

Os jornais se transformam ao longo do século XX e chegam ao seu final como

instituições que abandonaram o engajamento político-partidário para cumprir uma nova função

(MARCONDES Fº, 1993, P. 62):

O jornalismo da nova era está sintonizado com o novo papel

das comunicações e com a supressão dos fatos que

marcavam o calor, o entusiasmo, a determinação de nossos

antepassados. Ele hoje não traz mais o conflito, a polêmica,

a discussão, o choque de idéias. Sua função atual é

harmonizar como a freqüência modulada de consultórios,

mas sob a linguagem da inovação.

O autor realça o “poder monopolista” da mídia, que hoje não expressa os conflitos

como fenômenos sociais e políticos. Estes foram substituídos pelo conflito ou pela competição

entre grifes, entre personagens fictícios do cinema e das telenovelas. O jornalismo não é

impermeável ao novo mundo, faz parte dele, é protagonista desse tempo, e, segundo Marcondes

Fº,

para sobreviver apela para a indústria imaginária da

notícia. Criam-se fatos, forjam-se notícias, estimulam-se

polêmicas fictícias, constrói-se o conflito “em laboratórios”.

O estúdio de TV, a redação de jornal deixam de ser meios de

transmissão de fatos e tornam-se eles mesmos os produtores

de mundos. (idem, p. 63)

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A dura crítica de Marcondes Fº abriga um ceticismo inconoclástico sobre a imprensa

como organização mercadológica, consumista. Mesmo porque, se o autor está correto em afirmar

que os jornais compõem um sistema econômico muito mais do que uma instituição engajada

política e partidariamente, como antes, ele também admite que os jornais mantêm uma sincronia

com o mundo das tecnologias digitais, da virtualidade, do imaginário sobre o real.

As mudanças aceleradas são agravadas com a introdução da tecnologia digital em rede

que condiciona a produção jornalística num ambiente de maior competitividade entre as

empresas editoras. A tecnologia informatizada acelera os processos de produção na construção

de um processo de comunicação midiático em tempo real. Esses fatores contribuíram para um

novo modelo de produção noticiosa:

.... a prática jornalística torna-se, neste novo momento, a da

imprensa minimalista. Os grandes assuntos são tratados

como se se reduzissem a questões subjetivas de caráter

pessoal. A economia não é trabalhada do ponto de vista de

sua relação com o Estado, com a sociedade maior, da

perspectiva das tendências e rumos, enquanto organicidade

do sistema. As matérias desta editoria são hoje produzidas

apenas com vistas a darem informações aos leitores sobre

investimentos ou práticas de sobrevivência na selva

econômica. Há um reducionismo dos grandes temas a

assuntos de natureza subjetiva, individual ou particular.

(ibidem, p. 195)

A visão de Marcondes Fº reafirma a crítica sobre a função alienante exercida pelo

manuseio das informações de interesse público reduzidas a um trato de abordagem individual,

subjetivo, distanciado da esfera política, pública no sentido mais lato. Assim, os jornais

condicionam os conteúdos pela demanda mercadológica focada nas tendências de

comportamento do público como agentes de consumo de grifes e de informações minimalistas,

de serviços imediatos, de auto-ajuda.

O problema político e semiológico

A crise por que passa o Estado contribui para elevar o nível de credibilidade e adesão

aos jornais, que se tornam mais expressivos na medida em que dispõem de um aparato técnico e

estético de amplificação dos conteúdos de modo a provocar e estimular sensações diversas no

público leitor, ouvinte ou telespectador. Sob o impacto da dramatização dos relatos e da

expressão emocional dos conteúdos noticiosos, o indivíduo participa do simulacro construído

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pelo poder simbólico dos jornais, agora focados no comportamento e nas demandas pessoais. A

política como ação pública é substituída por relações comportamentais, individuais, as quais

demandam informações sobre qualidade de vida, sobre as relações familiares, amorosas, sobre

como conquistar e manter um emprego, como se relacionar com o chefe, como tratar do filho

adolescente, como prevenir doenças etc.

De certo modo, os jornais modificam os conteúdos que na modernidade pertenciam aos

legítimos agentes do poder político. Assim, o debate sobre a organização política gradualmente

foi substituído pela informação de serviços. O Estado, falido, não mais dá conta de importantes

tarefas e missões que foram delegadas a ele pela sociedade. A imprensa, ainda campo do debate

político, contribui para a mutação e o esvaziamento do sentido da política e do Estado:

(O Estado) ..., naturalmente, sobrevive, agora não mais

dentro do espírito do Estado Moderno, nascido dos

princípios iluministas, que dá conta de todo um

desenvolvimento social, apóia as ciências e trabalha para o

bem-estar humano, acreditando e apostando na

racionalidade técnica. Hoje, trata-se de um Estado destituído

desta amplitude de ação e de possibilidades e mais reduzido

devido á interferência mais radical da imprensa no seu agir

cotidiano. (ibidem, p. 116)

Desse modo, os jornais também substituem os agentes de governo num simulacro de

ação política em favor do público, do leitor, do indivíduo que se projeta no relato exposto como

parte de uma teia de relações nas quais ele se sente partícipe, mesmo que de maneira passiva. O

poder político é deslocado para o poder midiático, cujo capital simbólico (BORDIEU, 1998, p.

09) é estrutura e estruturador do sistema midiático. Os jornais integram o sistema simbólico

como produtores e operadores dos relatos noticiosos. Conforme Bourdieu,

O poder simbólico é um poder de construção da realidade

que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido

imediato do mundo (e, em particular, do mundo social)

supõe aquilo a que Durkheim chama de conformismo lógico,

que dizer, “uma concepção homogênea do tempo, do espaço,

do número, da causa, que torna possível a concordância

entre as inteligências”. (...) Os símbolos são os instrumentos

por excelência da “integração social”: enquanto

instrumentos de conhecimento e de comunicação (cf. a

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análise durkheimiana da festa), eles tornam possíveis o

consensus acerca do sentido do mundo social que contribui

fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a

integração “lógica” é a condição da integração “moral”.

Os jornais se projetam como demiurgos pós-modernos, os quais manuseiam o texto,

palavras e significados (BARTHES, 1985, 131), dando-lhes novos sentidos ao sabor dos

interesses nem sempre clarificados, e sim mantidos sob uma névoa discursiva ou anti-discursiva.

Segundo Barthes, o resultado dessa manipulação do verbo é a formulação de mitos semiológicos,

um sistema duplo de significações que induz as pessoas a perceberem os referentes ou objetos

significantes com outros sentidos. O mito se opõe à ideologia, porque aquele é “produto

colectivo e colectivamente apropriado” (BOURDIEU, 1998, p. 10). A ideologia, como modelo

polarizado entre capitalismo / liberalismo e socialismo, perdeu sentido político e partidário após

a derrocada Soviética, não perdeu o significado de manutenção ou conquista do poder via

propaganda ou retórica. Como capital simbólico condicionador de relações de submissão ao

poder político ou econômico, a ideologia se expressa pela mídia, numa incessante reafirmação de

instrumento da conquista ou da manutenção de poder. Na periferia do poder do Estado, por meio

de seus agentes governamentais, o poder econômico se manifesta nas organizações privadas que

dominam e controlam o capital. Há uma permanente e ansiosa manifestação de argumentos para

legitimar a concentração de riqueza.

O mito como sistema simbólico e instrumento de conhecimento e de comunicação

encontra em Barthes (1985, p 131) uma interpretação calcada em outro campo do conhecimento,

a semiologia. O mito é um sistema semiológico (idem, p. 133) construído na e pela fala. O

modelo barthesiano é aplicado neste trabalho para melhor entendermos a estruturação dos termos

cidadania / cidadão e ética no noticiário e nos textos opinativos do jornal Correio Popular, um

publicação da Rede Anhangüera de Comunicação (RAC), sediada em Campinas.

Na hipótese de Barthes, a construção mítica se referencia na cadeia semiológica

secundária. Barthes toma Ferdinand de Saussure2 como base para a revisão do conceito mito:

Para Saussure, que trabalhou com um sistema semiológico

específico, mas metodologicamente exemplar – a língua – o

significado é o conceito, o significante é a imagem acústica

(de ordem psíquica), e a relação entre o conceito e a imagem

é o signo (a palavra, por exemplo), entidade concreta. (

ibidem, p. 135)

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Signo, portanto, na concepção clássica, é a tridimensionalidade entre o 1) significante, o

2) significado e o 3) referente. O primeiro encontra-se no âmbito da língua, é a palavra ou

símbolos que expressem sentidos. O segundo encontra-se no âmbito da abstração, da memória ou

do imaginário. E o terceiro é o objeto percebido externamente como coisa concreta, mas

constituído na mente do indivíduo como significado.

O modelo clássico de Saussure não contempla, porém, aspectos psíquicos de recepção e

interpretação signíca. Nem mesmo atinge a preocupação sobre como o mito se comporta como

representação.

Quer se trate de grafia literal ou de grafia pictural, o mito

apenas considera uma totalidade de signos, um signo global,

o termo final de uma primeira cadeia semiológica. (op. cit. p.

136)

O mito, portanto, age de modo a deslocar o “sistema forma das primeiras significações”,

isto é, tomado o termo global, primário, cidadania, a fala mítica a transporta para um outro nível

lingüístico, numa meta-linguagem. Barthes indicado o esquema no qual essa transição ocorre:

1. Significante 2. Significado

3. signo

I. SIGNIFICANTE

II. SIGNIFICADO

III. SIGNO

No mito barthesiano, portanto, há dois sistemas semiológicos, no qual um se desloca em

relação ao outro. O mito é classificado como metalinguagem, “porque é uma segunda língua, na

qual se fala da primeira.”

Ao aplicarmos o modelo à leitura crítica do noticiário, o termo cidadania / cidadão foi

eleito como objeto de análise para validar a hipótese de como os relatos jornalísticos constituem

mitos semiológicos, num deslocamento do sentido original e formal do termo. Ao redigir, o

jornalista esvazia, esgota o sentido originário do termo para na forma preenchê-la com novo

conteúdo, num processo manipulador de conteúdos.

Diferente do conceito de significante de Saussure, Barthes afirma que no mito “o

significante ... apresenta-se de maneira ambígua: é simultaneamente sentido e forma, pleno de

um lado, vazio de outro” (op. cit. p. 139). A repetição de termos num cenário de transformações

profundas na perspectiva da individualidade competitiva provoca re-construções semânticas,

num processo de reafirmação de poder simbólico expresso pelo veículo institucionalizado numa

determinada comunidade.

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O problema econômico e as ONGs

Se o termo cidadania / cidadão (s) comporta toda uma significação primária, como

sujeito pertencente a uma sociedade politicamente organizada na forma de Estado, o advento da

globalização e do neoliberalismo como modelo econômico transpôs o conceito para designar

ações que mesclam atividades dirigidas à filantropia, à solidariedade entre indivíduos por força

das carências sociais detectadas nas mensagens midiáticas. É o ato da despolitização do sentido

originário do termo, mesmo com suas diversas ressignificações ao longo da história. O sujeito /

indivíduo global não é apenas vinculado a um espaço territorial governado, autônomo e

pretensamente soberano, mas é aquele que se comunica e se interliga com organizações

transnacionais, numa realidade em que o Estado sofre de profundo descrédito ao não prover o

cidadão como fim último que o justifica como organização política sustentada no princípio do

Direito. Esse Estado é submetido a organismos internacionais3 para direcionar as prioridades

econômicas, que determinam políticas diversas e condicionam os processos governamentais. O

modelo de Estado brasileiro durante décadas submeteu-se ao controle de organismos

internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Interamericano de

Desenvolvimento (BID), entre outros credores4.

Apesar de vários autores proporem a redução do Estado como organismo de pacificação

dos conflitos, o Brasil enfrenta o cenário das transformações globais com um Estado portentoso,

sustentado por mais de 37% do PIB nacional5, que vem na contramão das tendências mundiais

desde a década de 1990. Mesmo no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso6, a

elevação da carga tributária ocorreu em contraponto à política de desestatização, modulada pelo

discurso da livre-empresa e de estímulo à criação das organizações não-governamentais como

alternativa inevitável à incompetência governamental em atender as crescentes demandas sociais

num País cada vez mais urbano e escolarizado.

Ocorre, portanto, uma contradição entre o discurso pró-sociedade civil organizada como

instrumento de intervenção no universo político e o modelo de Estado provedor das classes

menos favorecidas por programas7 sociais mantidos pelo governo, como Bolsa Família, Fome

Zero, Auxílio Gás, ProUni, entre outros.

O cenário político-econômico reafirma o papel predominante do Estado e das ações de

governo na mediação dos conflitos sociais e na formulação de projetos de amparo à maioria da

população de baixo poder aquisitivo. Segundo Naves (2003, p. 563),

Em nosso país, a promoção da cidadania depende do poder

do Estado de implementar políticas públicas, assegurando a

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todos os brasileiros o exercício de seus direitos.

Compreender o sentido da cidadania significa, assim,

entender como se relaciona o indivíduo com o setor público.

A afirmação sublinha, sem dúvida, o papel e o significado da cidadania para o país como

o Brasil, no qual a recente democratização ainda não permitiu a expansão necessária dos serviços

do Estado para incluir grande parcela da população na esfera dos direitos básicos previstos na

Constituição. Apesar disso, a inevitabilidade do processo de globalização do campo das trocas

simbólicas e culturais projeta um Brasil interconectado e interligado aos eventos mundiais (idem,

p. 563):

A compreensão do ser cidadão no Brasil de hoje só adquire

sentido pleno quando confrontada às transformações

sofridas, nas últimas décadas, pela própria ordem mundial.

Dos estertores da colonização européia na África e na Ásia à

consagração da hegemonia norte-americana, os últimos

vinte anos se caracterizaram por um duplo movimento: a

crise do poder organizado como ‘Estado-nação’ e, por outro

lado, a valorização, de origem iluminista, de direitos comuns

a todos os seres humanos.

O Brasil apresenta um quadro histórico de contínua presença, a partir do século XIX, das

ações e organizações filantrópicas. Herança do direito Romano e da Igreja Católica, a filantropia

tomou corpo social no Brasil por meio das Santas Casas de Misericórdia, p. ex., as quais

serviram e ainda servem de modelo para a organização de outras sociedades voltadas a amealhar

recursos para destinar parte deles às camadas mais pobres da população. E isso sem a

interferência ou ajuda do Estado, pois boa parcela daqueles que se dedicam a essas organizações

o fazem de modo voluntário, com recursos próprios. Mas, a partir da década de 1960, os

movimentos sociais com nova modelagem começam a surgir no País. Naves (ibidem, p. 568)

observa:

Quanto aos movimentos sociais, para compreendermos suas

origens no Brasil é preciso voltarmos (sic) à década de 1960.

Com o golpe militar de 1964, a repressão sistemática de

todas as formas de contestação política e organização

sindical fez com que a vida associativa se deslocasse para as

comunidades e seus interesses localizados. Por não ser

encarada como desafio para o regime, o trabalho

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comunitário escapou aos controles e assim conseguiu

expandir-se.

Mas é a partir do final da década de 1970 que destacadas associações e entidades

sociais começam a romper com o assistencialismo tradicional expresso na filantropia, segundo

Naves (op. cit. p 569). A década de 1980 é tempo do estertor dos regimes e da utopia socialista,

evento político determinante para o surgimento das associações voluntárias que adotam o

discurso em favor da universalização dos direitos humanos. As várias organizações da sociedade

civil voltadas a intervir nas relações e processos sócio-econômicos de modo a ampliar o número

de indivíduos com melhor qualidade de vida compõem o que se denomina de terceiro setor. De

acordo com Naves, terceiro setor é

O conjunto de atividades espontâneas, não governamentais e

não lucrativas, de interesse público, realizadas em benefício

geral da sociedade e que se desenvolve independentemente

dos demais setores (Estado e mercado), embora deles possa,

ou deva, receber colaboração (op. cit. p. 574).

É importante destacar que o terceiro setor é composto por organizações com estruturas

e fins diferentes. Ainda na conceituação de Naves,

... são basicamente três as fontes originárias do terceiro

setor: filantropia e os movimentos sociais, aos quais

somaram-se as ONGs.

O conceito é necessário para melhor entender a forma como os jornais tratam ONGs e a

filantropia, com se fossem um mesmo modelo de atividade social voltada à cidadania, ou como

muitos afirmam, à “inclusão social”. As ONGs surgem como substitutas dos partidos políticos e

das instituições governamentais que não mais conseguiam atender às antigas e novas demandas

que surgem, entre elas a defesa ambiental. Essas organizações são geradas, portanto, num

ambiente político, mas a sigla passa gradualmente a ser adotada por entidades tradicionais que

atuavam e atuam no campo da filantropia e do assistencialismo.

A relação dessas organizações com o Estado nem sempre é marcada pela demanda

política, de fato centrada na construção da cidadania universal. Muitas entidades filantrópicas

agem dependentes de verbas oficiais, em muitos casos, mas distantes de projetos que

compreendam o debate político ou político-partidário. Apesar disso, cultivam o discurso da

inclusão social e cidadã. Deve-se ressaltar, porém, a diferença entre ONGs e entidades

filantropias. Enquanto as ONGs surgem, de fato, para substituir ações do Estado em diversas

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áreas, a filantropia permanece focada num modelo de iniciativa individualista, personalista,

calcada em doutrinas religiosas, invariavelmente (FERNANDES in NAVES, 2003, p. 570):

As associações promovem a sociabilidade num contexto

individualista. Em suas atividades, os fins coletivos e os bens

coletivos são percebidos como interesse individual dos que

estão envolvidos. A vida pública insere-se nas iniciativas

privadas. A cidadania é personalizada.

A ação individual e personalizada contrapõe-se ao conceito moderno de cidadania,

como fenômeno político, público e social. As ações voluntárias de indivíduos movidos por

tendências sociais e comportamentais dirigem-se a objetivos ambientais ou filantrópicos,

distantes do contexto político, no qual as relações de poder se manifestam. Ao delimitar a ação

filantrópica na expressão ação social ou de cidadania, manipula-se a terminologia que passa a ter

um caráter mitológico barthesiano. O termo cidadania é esvaziado para ser reconstruído

semanticamente pela repetição e pelo contexto discursivo cujo tema é a solidariedade social, a

filantropia, o assistencialismo.

Ressalto, porém, que este trabalho não tem objetivo de julgar ou opinar sobre as ações e

sobre as organizações filantropias ou assistencialistas, muitas delas com rico histórico de

contribuição social.

As ações voluntárias, individualistas, focadas no fim comportamental para que cada um

possa se projetar e se identificar com o coletivo e, assim, ser aceito socialmente, desprezam o ato

político, portanto, o próprio Estado. O discurso que enfatiza as ações desse tipo apresenta

enraizado desprezo pelas ações políticas e político-partidárias, necessárias à fiscalização e à

crítica aos governos. Bobbio (2000, p. 172) destaca como a formação da sociedade religiosa e da

sociedade econômica, burguesa, buscou delimitar o campo da política distante do campo social

(e religioso). A evolução da sociedade burguesa, urbana e estruturada na competição

mercadológica e individual, procurou e procura restringir e delimitar as ações políticas

(pertinentes ao governante) das ações sociais (pertinentes à sociedade civil). Assim, procura

realçar ideologicamente suas ações na busca de legitimidade, de credibilidade nos meios sociais,

onde a produção e a difusão discursiva são essenciais como elementos estratégicos para obter a

boa vontade dos públicos. Ao aproximar os sentidos de cidadania, ética e filantropia ou

assistencialismo, o discurso encontrado na mídia jornalística reafirma o modelo de ataque à

política como ato estranho aos ideais de solidariedade.

Para Bobbio, se constitui num reducionismo distinguir o campo da política do campo

social, como o discurso em torno da responsabilidade ou das ações de inclusão social e cidadania

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procura estabelecer. Ao usar a terminologia “social” como sinônimo de cidadania, os jornais

configuram uma semântica também orientada por uma relação ideológica.

(...) resumir ... a categoria da política à atividade que tem

direta ou indiretamente relação com a organização do poder

coativo8significa restringir o âmbito do ‘político’ em relação

ao ‘social’, recusar a plena coincidência do primeiro com o

segundo.

A afirmação expõe a tradicional conceituação sobre o Estado como agente que reclama

o poder exclusivo para o uso da força como meio de impor a ordem social via norma legal. O

Estado exerce outras funções, entre elas a de expandir os instrumentos de distribuição dos

direitos previstos numa democracia constitucional.

O problema da cidadania e do jornalismo

Ocorre que ao reiterar as expressões “social”, “ética” e “cidadania” como vinculadas à

busca de melhor qualidade de vida, os jornais reduzem o ato político a um ato de governo, cuja

credibilidade no Brasil é baixíssima, e distante das preocupações e ocupações sociais. Exemplo

que pode ser destacado encontra-se no Manual de Redação (2005, p. 07) da Rede Anhangüera de

Comunicação, publicadora dos jornais Correio Popular, Diário do Povo, que circulam em

Campinas, mais o Diário Notícias Já, que circula em Campinas e região, os jornais gratuitos

Gazeta do Cambuí (Campinas), Gazeta de Piracicaba e Gazeta de Ribeirão, além de ser

proprietária do portal Cosmo On Line e da Agência Anhangüera de notícias.

O Manual de Redação que orienta todos os veículos da RAC define o leitor,

inicialmente, como “nosso cliente mais imediato”. A concepção é mercadológica; leitor é

consumidor. E este é alguém que participa de uma relação de troca de um tipo especial de

mercadoria: a notícia. Os projetos editoriais da RAC, em especial o de maior influência em

Campinas, o diário Correio Popular, se orientam por um dedicado grupo de jornalistas

experientes e empenhados em produzir um bom produto, que, aliás, é merecedor de vários

prêmios na categoria. A projeção da RAC e, em particular, do Correio Popular não significa que

o projeto editorial não apresente problemas de ordem conceitual e semântica.

Tendo o leitor como cliente, a RAC chama para si a responsabilidade de pautar “a

agenda da cidade” (idem, p. 07, 2.1), a RAC estabelece:

Uma das missões de um jornal regional é pensar à frente,

antecipar tendências (sic), antever problemas e cobrar

soluções de quem quer que seja, Prefeitura, Estado, União,

empresa pública ou privada. Sob esse ponto de vista, cabe

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aqui a exploração de uma ferramenta que já vem sendo

usada com sucesso pelos jornais da RAC, com base em

orientação da Diretoria Editorial. Trata-se de pautar a

agenda da cidade, liderando na comunidade um esforço de

reflexão cujo objetivo final é melhorar a qualidade de vida

do cidadão. (grifo meu).

Ora, o que a RAC pretende com essas afirmações é exatamente a representação política

de modo a demandar reivindicações por meio da produção noticiosa. Pautar a agenda significa

estabelecer as prioridades políticas assim entendidas como tais pelo grupo empresarial. Se se

arvora na representação das demandas políticas e como protagonista autoral da agenda da cidade,

a RAC exerce e assume um papel político a rigor, numa clara contradição com o conceito de

cliente, um consumidor amparado por codificação jurídica própria. A afirmação da RAC é,

porém, explicada pela teoria da agenda-setting (BARROS Fº, 1995; SOUSA, 2002;

TRAQUINA, 2005). Isto é, o jornal é protagonista do agendamento das prioridades políticas e

assume o papel intervindo no espaço público ao usar de seu capital simbólico. A partir dessa

premissa, o conceito de cidadania é expresso no item 2.2 (idem, p. 08):

Os jornais da RAC são pluralistas9. Cobram quando devem

cobrar. São duros e críticos quando devem ser. Mas esses

veículos carregam uma filosofia que valoriza as boas

notícias, os bons projetos, o esforço cotidiano de um exército

de voluntários da cidade e região e todos os aspectos

relacionados com a responsabilidade social. O conceito é de

se fazer um jornal cidadão, ou seja, um jornal apenas de

notícias ruins não espelha de maneira homogênea o que

pensa esta comunidade. Se for sempre arauto do abutre, este

veículo estará contribuindo para a baixa auto-estima,

esquecendo de ver uma legião de pessoas que faz o bem,

anonimamente ou não. Esse conceito já está enraizado nas

redações, mas é bom salientar que ele deve continuar

sempre, pois o jornalista é acima de tudo um cidadão.

O parágrafo expõe a inconsistência dos conceitos de “cidadão”, “notícia jornalística” e

“jornalista”. A ênfase se dá em torno da ação voluntária já citada por Fernandes, num cenário em

que as iniciativas pessoais no âmbito das relações sociais buscam exprimir o conceito de

cidadania, sem que o Estado esteja presente ou se aproxime. A RAC chama para si a

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responsabilidade política de representar os cidadãos / clientes / leitores e de enaltecer as boas

ações voluntárias, mesmo que essas sejam na essência formas de filantropia.

A contradição maior está ainda na falta de conceituação do que a RAC entende por

“pluralista”. Termo que se opõe ao singular, plural passou a ser empregado pelo mundo na

década de 1990, na tentativa de reconhecer a diversidade da cultura e das manifestações políticas

no âmbito dos direitos humanos. Ser plural consiste antes de tudo em assumir uma doutrina de

convivência com a diversidade, aceitando-a de modo simétrico, algo ainda irrealizado pela

sociedade brasileira10. Ao grafar o termo “pluralista”, em seguida, no mesmo parágrafo, explica

o tom da cobrança condicionado ao conceito de jornal cidadão (aquele que divulga boas notícias

sobre atos e fatos relacionados com a responsabilidade social). Assim, a RAC envereda pelo

caminho da explicitação ideológica sobre como estabelece a política editorial. A condição de

cidadão está vinculada à auto-estima, um fenômeno psicológico e não político (Se for sempre

arauto do abutre, este veículo estará contribuindo para a baixa auto-estima, esquecendo de ver

uma legião de pessoas que faz o bem, anonimamente ou não). Cidadão, sujeito político, deixa de

ser um direito e obrigação do Estado para se tornar um problema comportamental. Além disso,

ocorre outra contradição ao pretender tornar notícia, portanto pública, a ação de voluntários que

atuam no anonimato. Revelar esse lado da sociedade implica em destacar as ações individuais,

personalizadas, herdeiras da filantropia e do assistencialismo católico. De fato, as diversas

reportagens pautadas e publicadas destacam ações de indivíduos que sacrificam tempo e dinheiro

em favor de entidades e comunidades. Tais sujeitos são descritos como fontes das boas notícias,

numa sistemática construção de um mundo social impermeável à política.

Outro problema de ordem conceitual e teórico é como o Manual de Redação qualifica o

termo notícia: jornal cidadão é sinônimo da boa notícia. Ao conceituar a idéia, o texto reitera

uma antiga confusão entre notícia e fato. Se o fato apresenta elementos de interesse público,

mesmo que cruéis ou degradantes, deve ser tratado na forma noticiosa, condicionada pelos

elementos subjetivos e referenciais da especialização, da profissão, como observa Karam (2004,

p. 46):

(O jornalismo), É, ao meu ver, uma construção política,

ideológica, cultural, que reflete, com sua técnica específica,

o mundo em andamento, sem concessões, a serviço da

sociedade ou da universalidade humana.

Ao conceituar o jornal cidadão como algo avesso ao “arauto do abutre”, o Manual traz

implícita uma crítica a outros veículos que, ao publicar “apenas (...) notícias ruins”, não

espelharia11 “de maneira homogênea o que pensa esta comunidade”. As notícias ruins

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confundem-se com a negatividade dos fatos que são relatados na forma de mensagens, cujo

receptor indignado prefere eliminar o mensageiro a aceitar o conteúdo do evento noticiado. A

pretensão de “espelhar” de modo “homogêneo” o que a comunidade pensa incorre num profundo

problema com a pluralidade pretendida. Ao tentar realçar a importância das boas notícias sobre

as ações anônimas e voluntárias, a RAC estabelece como premissa um projeto de

homogeneidade de conteúdo que negativamente qualifica toda notícia que estiver sob a guarda

do “arauto do abutre”. Isso, de fato, não ocorre no cotidiano do jornal que publica notícias

relativas a fatos bastante negativos, com tons lúgubres até.

Exemplo é a manchete de capa no dia 08 de março de 2007: Amor bandido leva

jovem universitária ao mundo do crime. A notícia trata da história da estudante de Direito,

Ana Paula Jorge Sousa, de 21 anos, detida sub a acusação de integrar uma quadrilha formada

assaltantes, um dos quais seria seu namorado. Além da manchete, a foto publicada em quatro

colunas expõe a jovem universitária apontando um revólver para o leitor.

Outro exemplo: Pulmão é achado diante de uma casa na Vila Industrial. O título

atrai para a notícia, publicada em 07 de junho de 2007, p. A9, Correio Popular, sobre um

“achado macabro” em frente a um portão de uma residência na Vila Industrial, tradicional e

histórico bairro de Campinas: “um pulmão ligado à traquéia e que aparenta ser humano.” O

relato é típico dos fait-divers, das notícias tachadas de sensacionalistas12, macabras até.

Se o jornal não assume a produção de notícias desse tipo de conteúdo, para não ser

“arauto do abutre”, numa tentativa de cumprir o princípio da pluralidade divulga informações

cujo conteúdo trágico, dramático e cruel contrasta com as reportagens sobre as ações aceitas

como positivas por parte dos cidadãos solidários.

A questão do espelho

A terminologia empregada pela RAC ressalta visões sobre um jornalismo não mais

assim compreendido, dado que a idéia de espelhar remonta ao modelo de objetividade e

neutralidade superada ao longo do século XX. Ora, se o jornal espelha, como quer a RAC, a

sociedade quando enfatiza as boas notícias, ao publicar os relatos sobre eventos como o que

envolveu a jovem universitária, o Correio Popular priorizou um fato alvo da fome de abutres. A

pragmática editorial para diversificar o noticiário é inerente ao jornal generalista, dado que a

sociedade é o campo da busca e da produção da informação noticiosa e nela se manifestam os

diversos protagonistas e antagonistas na construção ou re-construção dos processos simbólicos

divergentes, contraditórios, distintos e paradoxais. A pauta do jornal é voltada para uma

sociedade de extremos: da cidadania e dos abutres.

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Ao pertencer à sociedade, o jornal se expressa como instituição reveladora daquilo que

é conhecido por poucos para ser conhecido por muitos. Nessa mediação nem sempre isenta, o

jornal carrega elementos ideológicos, mitológicos e subjetivos, além dos preconceitos13 inerentes

à constante procura pelo ajuste do indivíduo ao meio social. Bucci (2000, p. 51) é um dos

estudiosos do jornalismo que ressalta a produção noticiosa como fruto da intervenção subjetiva

do repórter e dos jornais num processo de interpretação e construção de versões:

A verdade dos fatos é sempre uma versão (grifo do autor) dos

fatos. O relato, qualquer que seja ele, é um discurso e, como

tal, é inevitavelmente ideológico: mesmo quando sincera e

declaradamente não opinativo, o relato jornalístico é

encadeado segundo valores que obrigatoriamente definem

aquele que se descreve. A objetividade perfeita nunca é mais

que uma tentativa bem-intencionada.

Apesar dos termos orientadores das premissas, o Manual de Redação da RAC

reconhece o jornalista como “um observador” (idem, p. 10) que “não tem obrigação alguma de

agradar a ninguém”. Esse jornalista da RAC deve ter um compromisso, “acima de tudo, com o

leitor, não com sua fonte. A esta, basta dar o tratamento correto: ser fiel, no texto, àquilo que

ela disse, transmitindo com precisão e clareza o que foi apurado”. O jornalista observador

necessariamente é interventor, testemunho, sujeito cujo olhar demanda uma perspectiva própria,

uma sensação individual e característica, um perceber orientado por ideologia e preconceito, e

por valores e crenças. Observação não se reduz ao ato de ver apenas, mas compreende a

aplicação dos vários sentidos para obter informações sobre um determinado objeto. Assim, o

jornalista deve equilibrar os compromissos com os diversos atores da reportagem, desde o fato,

as fontes, a organização jornalística, ao leitor e à sociedade. Ao afirmar o prioritário

compromisso com o leitor/cliente “acima de tudo”, o jornalista incorre na armadilha de se

submeter ao senso comum nem sempre aferido com precisão, mesmo porque o repórter também

deve ser leal com as próprias convicções deontológicas e políticas. Caso contrário, cairá no

abismo do cinismo, pois ficará submetido a uma entidade abstrata: o leitor. A redação do texto

do manual incorre numa falha lógica, pois dar “tratamento correto” às declarações das fontes

implica num compromisso moral tão grave e responsável quanto ao compromisso com o leitor.

Mesmo porque, a produção do noticiaria não seria possível sem as fontes. O leitor (cliente), no

campo da abstração é composição do imaginário, e como indivíduo é agente da opinião pessoal,

personalizada. Se a RAC entende que o universo de leitores situa-se na pluralidade, a diversidade

de idéias e crenças compõe o referencial valorativo do que seja o leitor, coletivo diverso e

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destituído da homogeneidade. Contudo, o jornalista carrega valores, crenças e convicções que se

conflitam muitas vezes com a orientação editorial e com a opinião dos leitores, aferida por meio

de pesquisas quantitativas, direcionadas invariavelmente pelos interesses comerciais e

estratégicos da empresa. O ato de produzir notícias depende, inevitavelmente, da subjetividade

de quem observa e interpreta os fatos e as declarações, pois caso contrário seria cair na armadilha

de um compromisso apenas com um sujeito do universo da produção noticiosa.

O termo “fiel” surge nessa página após os itens 2.3 e 2.4, nos quais a RAC relaciona

um Decálogo da Qualidade, na qual orienta o comportamento ético e os deveres do jornalista,

bem como os fundamentos e valores para o exercício do “Bom jornalismo”. Para ser descrito,

porém, não são encontradas as palavras neutralidade, imparcialidade e objetividade, muito

menos fidelidade, que dão suporte conceitual ao modelo de espelho. Mas, sim, entre outras,

agilidade, coerência, compromisso (?), disciplina, ética, equilíbrio, exatidão, prudência, reflexão,

sapiência e seriedade. Esses valores apresentam amplitude semântica, e são necessários para

compor a base do debate editorial, que pode amadurecer na medida em que os significados são

refletidos conforme as experiências cotidianas.

Ao definir o jornalismo-cidadão como sinônimo das boas notícias, a RAC se distancia

do caráter crítico que tradicionalmente move o jornalismo a fim de se amparar na confiança do

público. Se é um jornal plural, deve admitir as diversas e diferentes versões produzidas pelo

universo social, o que implicaria numa revisão da política editorial. O bom / cidadão e o mau /

arauto do abutre, bipolarização dos extremos, não condizem com o modelo plural de sociedade

que recusa a partição do mundo em dois extremos. As versões são construídas por atores que são

diferentes em idéias e valores e que manifestam divergências num cenário de conflito social. A

pluralidade é um conceito que não se aplica, exclusivamente, àqueles a quem é dirigida a

informação, mas também à composição e à direção do projeto editorial.

O problema do bom e do mau

A RAC constrói um noticiário numa perspectiva do bom e do mau, à medida que realça

a divulgação das ações sociais praticadas pelo “exército de voluntários” e também aborda os

crimes na forma dos fait-divers14, modelo de notícia consolidado na segunda metade do século

XIX, com a expansão da imprensa de massa nos centros urbanos, industriais, cujo cenário ocorre

a consolidação da classe média, consumidora.

De certo modo, a RAC propõe fazer jornais que apontem os dois extremos da

sociedade, numa visão ainda ingênua de espelho, como se as relações sociais e a estrutura

político-econômica fossem naturais em suas diferenças e estas fossem objeto do noticiário numa

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ação jornalística de neutralidade. A lógica desse raciocínio sustenta a idéia de que os relatos

publicados nos veículos da RAC são sempre verdadeiros.

Barthes destaca que a formação do mito semiológico pelo discurso da mídia provoca a

sensação de que o mundo é assim, e as coisas são o que são. Os eventos sociais são naturais,

numa percepção de que a sociedade não pode ser mudada, transformada.

A pretensão da empresa em reafirmar o mundo no qual a política é estranha às ações

sociais ou às de responsabilidade social ou à cidadã é realçada, todavia, na afirmação de um

elenco de temas pautados (ibidem, p. 08) como agenda política como objeto que justifica “o

importante papel da RAC na mobilização de toda a sociedade (sic), pois com base nessa agenda,

o poder público passou a pautar suas ações de investimentos levando-se em conta este painel

exposto pela RAC”.

Ao chamar para si o papel de representação “de toda a sociedade” e das reivindicações

da comunidade, a RAC estabelece o viés ideológico alienante que separa a esfera política das

iniciativas de cunho social as quais são vinculadas à idéia de cidadania. Em editorial publicado

em 06 de junho de 2007, sob o título O resgate de alguns valores da cidadania, o Correio

Popular afirma que

Campinas é uma cidade que, de há muito, perdeu a sua

condição ideal de cidade organizada, bonita, de raízes

históricas interessantes, luminar na educação, saúde e artes,

além de um oásis de segurança e qualidade de vida. Por

anos seguidos, a decadência dos costumes sufocou essas

características, impondo aos campineiros uma realidade

ditada pela confusão social, pelo descalabro político-

administrativo e pela ausência de ações voltadas ao resgate

desses traços.

A ênfase crítica às administrações passadas coincide com períodos governados pelo

Partido dos Trabalhadores, da prefeita Izalene Tiene, e pelo PP, do prefeito Francisco Amaral.

Mais à frente, o editorial ressalta os valores resgatados:

Nessas questões, que não demandam investimentos maiores e

graves alterações estruturais, Campinas finalmente

despertou da letargia e deu início a um processo que tende a

trazer uma situação de normalidade. O Fórum de

Fiscalização, que engloba técnicos e funcionários de vários

órgãos públicos, foi a campo e lacrou 12 bares irregulares,

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atendendo às reivindicações de moradores que se

mobilizaram contra os abusos. Em outra frente, a Prefeitura

deu início à limpeza de pichações em paredes, muros e

estruturas de imóveis públicos, numa primeira ação contra

vândalos acostumados a deixar a marca de sua ignorância

em prédios e paredes. A isso, deve se seguir o estímulo a que

imóveis particulares também sejam limpos e pintados, além

da implementação de propostas restritivas várias.

É clara a defesa que o editorial faz da ação do poder público como instrumento das

vontades da comunidade cidadã contra os vândalos responsáveis pela pichação de prédios

públicos e privados. Sob a alegação do despertar da letargia ao limpar os edifícios públicos, o

jornal cobra iniciativa semelhante para aos imóveis particulares. O texto realça a significação da

ação da Prefeitura ao limpar pichações (muitas vezes confundidas pelo jornal como as grafites)

como elevada conduta de resgate da cidadania, bem como a fiscalização dos bares noturnos que

exageram no som e na ocupação do espaço público.

O editorial reduz o valor de cidadania à fiscalização da prefeitura, cujo dever, entre

outros, é intervir para impedir o conflito entre o público e o privado.

Se no editorial a cidadania decorre da atitude fiscalizatória e coativa da administração

municipal, outro sentido ocupa notícias como a publicada em 19 de abril de 2007, intitulada

Reciclagem vira ação de cidadania, no caderno Cidades. O evento relatado trata de um projeto

de reciclagem de latas de alumínio. A reportagem destaca a ação individual da aluna bolsista das

Faculdades Integradas Metropolitana (Metrocamp) que criou o projeto Amassalata, com o

objetivo de recolher e reciclar latas de alumínio para ampliar a rede de proteção ao meio

ambiente. A iniciativa da aluna é realçada pelo fato dela ser mãe e precisar completar a renda

para pagar os estudos.

Outro exemplo do modelo de ação individual, personalista, voltada à filantropia e

orientação comportamental é relatado na reportagem de 06 de Junho de 2007, sob o título

Projeto Cidadão15 - Um foco de luz para as jovens mães, publicado no caderno Cidades. A

reportagem relata trabalho de assistência social e amparo às mães menores de 18 anos pelo

Grupo Fraterno Foco de Luz, sediado em Valinhos. De crença espírita, a entidade apresenta

características filantrópicas e assistencialistas, mas se enquadra, para o Correio Popular, como

projeto de cidadania. Embora o valor solidário do projeto seja realçado, meritoriamente, a

abordagem do jornal peca pela confusa construção de sentidos em relação ao termo cidadania,

pois o projeto se enquadra no modelo descrito por Fernandes.

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A edição do dia 04 de julho deste ano traz a reportagem intitulada Projeto Cidadão -

Voluntário leva paz na hora da morte, publicada no caderno Cidades. O segundo parágrafo da

reportagem ajuda a esclarecer o tom favorável à ação solidária, filantrópica e “cidadã”:

Desde 1997, em função do aumento no número de óbitos e

para cumprir os ritos fúnebres, criou-se um movimento de

solidariedade por meio dos ministros extraordinários da

Igreja. Um curso de seis meses prepara o voluntário em sua

paróquia. A autorização para atuação é dada pelo bispo e a

ação ocorre na Pastoral das Exéquias (responsável pelas

cerimônias fúnebres). A licença vale por dois anos e pode ser

renovada. Atualmente, 60 pessoas se dividem em esquema de

plantões. No cemitério municipal Nossa Senhora da

Conceição, conhecido por Amarais, um voluntário por

período permanece no local.

O apelo religioso realça a distinção do universo social do universo político, ao afirmar

em título e texto a cidadania como sinônimo de solidariedade também religiosa, mística.

Considerações finais

Ao se consolidar como empresa capitalista, privada, focada na sobrevivência contábil-

administrativa, o jornal passa a priorizar os mecanismos e as metas econômicas e financeiras,

caso contrário pode naufragar em razão da competição mercadológica, da falta de adaptação às

tendências sociais e políticas, da ausência de renovação dos conteúdos, da incompetência

gerencial etc. Surge, nesse plano, uma situação paradoxal, até esquizofrênica. A quem prestar

serviço e informação? Aos interesses do cidadão que compõe o público ou aos interesses do

segmento que detém os recursos para investir em publicidade ou ao segmento governamental que

provê a receita das empresas jornalísticas com anúncios oficiais? A questão maior fica na dúvida

sobre quem mantém a empresa jornalística: a receita publicitária e governamental ou o leitor /

cliente? A quem dar prioridade numa perspectiva mercadológica? Se o leitor é cliente, deve ser

tratado como tal, como consumidor que demanda uma mercadoria para atender um determinado

fim utilitário. Ele deixa de ser cidadão, alguém que demanda informações para se orientar sobre

o processo político, sobre as demandas sociais, sobre os conflitos partidários, sobre as ações de

governo, sobre seu papel eleitoral, entre outros interesses. Um rico conflito enfrentado pelas

empresas jornalísticas é o de se definir como serviço voltado à cidadania ou organização

mercadológica voltada ao cliente / consumidor. Como referência deontológica, Karan (2004, p.

121) destaca a aprovação, em 1993, pela Assembléia Parlamentar do Conselho Europeu, na

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França, do Código Europeu de Deontologia Jornalística, concebido para ser aplicado pelos

países da União Européia. O artigo 15 do Código estabelece:

... nem os editores ou proprietários nem os jornalistas devem

se considerar donos da informação. A informação não deve

ser tratada pela empresa informativa como mercadoria, mas

como direito fundamental dos cidadãos. Em conseqüência,

nem a qualidade das informações ou opiniões nem o sentido

delas devem ser mediados pelas exigências de aumentar o

número de leitores ou de audiência ou pelo aumento de

arrecadação em publicidade”.

A medida para fazer com que essa norma se realize foi a proposta no artigo 37, que

prevê a criação de organismos de autocontrole, compostos por editores, jornalistas e associação

de cidadãos usuários da comunicação, e representantes de instituições como universidades e até

magistrados.

O Código Europeu Deontológico reafirma os conceitos de bem público ou social da

informação tratada jornalisticamente, pois seu caráter público condiciona a função de serviço

prestado pela empresa jornalística. Isso porque, a informação noticiosa tem caráter social,

público, tecida pelas relações entre indivíduos e coletividades no espaço comum, sem o qual

seria impossível de ocorrer a informação destinada ás organizações jornalísticas. Estas, por sua

vez, dependem da credibilidade pública para quem presta serviço ao apurar, investigar, redigir e

publicação informações que trafegam ao encontro das demandas sociais e políticas. O Código

Europeu, de certo modo, é um documento normativo que prevê deveres a serem implementados

com base em valores definidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, em especial o

artigo 19:

Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e

expressão; este direito inclui a liberdade de, sem

interferências, ter opiniões e de procurar, receber e

transmitir informações e idéias por quaisquer meios,

independentemente de fronteiras.

Karam, porém, esclarece com um exemplo a contradição entre os termos normativos e

o pragmatismo da empresa midiática. Robert Hersant, conhecido como Robert, o Conquistador,

controlava trinta e três porcento da imprensa diária da França. Foi deputado da Assembléia

Parlamentar do Conselho Europeu e logo depois de adquirir um dos mais tradicionais jornais

franceses, Lê Figaro, na década de 1970, afirmou:

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Considero que adquiri o Le Figaro para ganhar dinheiro,

não para outra coisa; se não houvesse jornalistas, os

editores seriam felizes. (Op. cit. p. 122)

A afirmação do empresário resume de maneira universal o objetivo maior da empresa

midiática que convive com contradições entre a sobrevivência lucrativa que a justifica como

arsenal capitalista e a responsabilidade cívica e crítica do jornalismo como meio pelo qual a

sociedade política pode conhecer a sim mesma.

As distorções semânticas ou a planejada conceituação ideológica da terminologia

empregada no noticiário compõe o cenário de reprodução da injusta estrutura social na qual o

preconceito contra a política e as iniciativas político-partidárias reafirma o discurso e o desprezo

do brasileiro pelas ações de governo, pelos partidos e pelo fenômeno eleitoral. A distância do

Estado em relação ao cidadão e ao excluído dos direitos de cidadania é encontrada no noticiário

que reitera esse abismo construído ao longo da história do País. O esvaziamento das palavras

cujo sentido se origina no universo político é o esvaziamento do próprio universo político, num

processo de ressignificações inconsistentes e mitológicas.

A RAC e o jornal Correio Popular experimentam, assim, a contradição inerente entre s

discurso propagandístico em favor da sobrevivência mercadológica e o compromisso político do

jornal com a sociedade, o público e o leitor cidadão. Ao considerar o cliente, em vez do leitor, a

RAC incorre num conflito semântico e valorativo típico das empresas capitalistas cujo produto

está comprometido com a satisfação do consumidor em detrimento da formação da opinião

pública a partir dos conflitos sociais característicos de uma sociedade que ainda não realizou a

democracia de fato, mas apenas a tem na norma jurídica.

Bibliografia ANGRIMANI, Danilo. Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa. São Paulo: Summus Editorial, 1995. BARROS Fº, Clóvis de. Ética na comunicação: da informação ao receptor. São Paulo: Moderna, 1995. BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1985. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a Filosofia Política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000. ________________. As ideologias e o poder em crise. Brasília: UNB/Polis, 1988.

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BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. KARAN, Francisco. Jornalismo e Interesse Público. MEYER, Philip. Periodismo de precision: nuevas fronteras para la investigación periodistica. Barcelona: Bosch / Casa Editorial, 1993. MARCONDES Fº, Ciro. Jornalismo fin-de-siècle. São Paulo: Scritta Editorial, 1993. PINSKY, Jaime & PINSKY, Bassanezi (orgs.). História da Cidadania. São Paulo: Editora Contexto, 2003. PONTE, Cristina. Para entender as notícias – linhas de análise do discurso jornalístico. Florianópolis: Insular, 2005. SOUSA, Jorge P. Teorias da notícia e do jornalismo. Chapecó: Argos, 2002. TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo – porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular, 2005, v. I. WEBER, Max. Sociologia da imprensa: um programa de pesquisa, in Estudo em Jornalismo e Mídia, Revista Acadêmica, Universidade Federal de Santa Catarina, v. 2, nº 1, julho de 2005. 1 Habermas trata do conceito de público no primeiro capítulo da obra, ao observar a contraposição entre publicus e privatus durante a Idade Média. Se nesse período da história, a dominação feudal desconhecia “a antítese entre esfera pública e esfera privada, segundo o modelo clássico antigo (ou moderno)”, os conceitos de dominium (domínio privado) e imperium (autonomia pública, autoridade pública) já eram conhecidos desde os gregos e romanos. Mais tarde, na formação burguesa e do estado moderno, a distinção jurídica é encontrada nas diversas sociedades européias, as quais vão delimitar o bem público e o pertencente à esfera do particular. Este é dotado de privilégios, intocáveis, sob seu domínio. Enquanto que o bem comum se revelava nos atos da autoridade representante do público, do povo, da nação. E os jornais eram tidos como veículos para a divulgação ao público dos atos e decisões da autoridade governamental A esfera pública, portanto, se caracteriza pela sua gênese e dimensão política, centro de convergência e divergência dos interesses privados expostos na arena da negociação em que o agente representante, o governo, formula normas de superação e convivência entre as partes conflitantes. (HABERMAS, p. 36) 2 Ferdinand de Saussure é considerado pai da lingüística moderna. Falecido em 1913, deixou póstuma a obra referência Curso de Lingüística Geral, redigida e editada pelos ex-alunos do curso por ele ministrado em Genebra, Suíça. 3 Para melhor compreensão das mudanças ocorridas a partir da década de 1980, com a expansão do modelo neoliberal e dos mecanismos da globalização financeira regida pelas novas tecnologias, ver NAVES, Rubens, in PINSKY, J. & PINSKY, B (orgs.) História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003. 4 Para uma leitura mais esclarecedora, ver COGGIOLA, Osvaldo, Autodeterminação nacional, in PINSKY & PINSKY, op. cit. 5 Para melhor compreensão dos fatores macro-econômicos, em especial em relação à carga tributária registrada no País, ver http://www.receita.fazenda.gov.br/Publico/EstudoTributario/cargafiscal/CTB2005.pdf. 6 Ver http://www.receita.fazenda.gov.br/Historico/Arrecadacao/Carga_Fiscal/default.htm. 7 Para melhores informações, ver http://www.senado.gov.br/web/comissoes/cas/es/ES_ProgramasSociais1.pdf. 8 Bobbio se refere ao conceito weberiano de Estado como organização detentora, legítima, do monopólio da violência para empregar o poder coativo.

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9 A afirmação não encontra conceituação. Ao longo do Manual de Redação, porém, é descrito um modelo de jornal típico das premissas liberais, ou neoliberais. Talvez a publicação de artigos de colaboradores na página 03 do Correio Popular apresente uma tentativa de difusão e reafirmação de um princípio pluralista, que se confunde com a essência do termo aplicado a todo o jornal. O conceito de pluralismo é antigo, segundo Bobbio, mas o termo é utilizado após a crise do socialismo soviético. “Que uma sociedade é tanto melhor governada quanto mais repartido for o poder e mais numerosos forem os centros de poder que controlam os órgãos do poder central é uma idéia que se encontra em toda a história do pensamento político”.No caso de uma empresa privada detentora legítima da propriedade sobre a produção e difusão noticiosa, a hierarquia administrativa fundada em uma estrutura de poder piramidal, vertical, é a negação da pluralidade. Não se deve desprezar a gênese política do termo pluralidade, mesmo quando aplicada a uma política editorial. Para melhor compreensão, ver BOBBIO, Noberto. As ideologias e o poder em crise. Brasília: UNB Polis, 1988. 10 Para melhor compreensão dos fatores de tensão nos processos de convivência plural, no qual as minorias disputam os direitos políticos, ver DEMANT, Peter, in PINSKY & PINSKY (op. cit. 2003) 11 O termo espelhar designa uma visão doutrinária predominante do jornalismo na segunda metade do século XIX, em particular nos EUA. A idéia de que o jornal é espelho da sociedade deriva da visão de neutralidade que o jornalista deveria possuir para apurar e divulgar as informações sobre o fato, como se este pudesse ser lido e publicado sem qualquer intervenção de subjetividade. 12 Um importante estudo sobre sensacionalismo e fait-divers pode ser encontrado em ANGRIMANI, Danilo. Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa. São Paulo: Summus Editorial, 1995. 13 Ver MEYER, Philip. Periodismo de precision: nuevas fronteras para la investigacion periodística. Barcelona: Bosch / Casa Editorial, 1993, em especial o primeiro capítulo. 14 O termo, de origem francesa, designa as notícias sobre crimes, roubos, escândalos. Segundo Ponte (2005, 142), “a origem histórica do fait-divers ajuda a perceber como é construído como objecto marginal. O século XIX, tempo de novos territórios, urbanidades e comunidades aparentemente desagregadas e encaradas como lugares privilegiados de perigo, é designado como época de ouro na imprensa. Roubos, crimes passionais, assassínios, violações, tomam lugar na primeira página muito superior à sua dimensão estatística.” No caso dos jornais da RAC, os fait-divers estão presentes cotidianamente, na forma de notícias que expõem o crime em especial praticado pelos personagens oriundos de classes sócio-econômicas de baixo poder aquisitivo. 15 Projeto Cidadão é uma proposta editorial de divulgar as ações positivas da sociedade, por iniciativa de organizações civis e religiosas, por voluntários que assumam responsabilidades solidárias e filantrópicas. Reportagens sobre essas ações e projetos são publicadas nas edições das quartas-feiras, no Correio Popular.