A cidade flutuante - primeiro capítulo

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A Cidade FLUTUANTE

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Todos os apaixonados por literatura estão convidados a ler o fantástico romance de Daniel Dias. Nele, os leitores conhecerão Urjuwani, a grande cidade do Império, que com auxílio da natureza flutua sobre todas as demais.

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A CidadeFLUTUANTE

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D A N I E L D I A S

A CidadeFLUTUANTE

São Paulo

2014

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Copyright © 2014 Daniel DiasCopyright © 2014 Editora Empíreo

Capa e projeto gráfico – Marina AvilaRevisão – Paula Passarelli e Adriana Chaves

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Dias, DanielA cidade flutuante / Daniel Dias. -- São Paulo :Empíreo, 2014.Bibliografia.

I S B N 978-85-67191-04-1

1. Literatura fantástica brasileira I. Título.

14-07485 CDD-869.9

Índices para catálogo sistemático:1. Literatura fantástica : Literatura brasileira 869.9

2014Todos os direitos desta edição reservados à

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Para Milu Leite

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1.Dança, descontrole e controle do corpo; entregar-se ao palco e à harmonia da melodia. Não havia nada de que Dominó gostasse mais. Desde pequena, enquanto o irmão brincava de explorador com os amigos, ela queria apenas igualar sua fluidez às notas que ecoavam atra-vés do salão em que praticava todos os dias. Havia sido a sua educação, ainda que tivesse frequentado os cursos de religião, matemática, geo-magnetismo, estudo das culturas estrangeiras e de sua própria cultura. Era a dança que fazia seu coração transbordar de êxtase e transportá-la de uma realidade a outra, a um plano que pertencia somente a ela.

Aos quinze anos, Dominó tinha realizado seu sonho: tornar-se a principal bailarina da Companhia de dança do Império. Seu nome voou através dos desertos com mais rapidez que uma etereonave, ecoando no ouvido de todo o povo. Afora a mãe e o irmão, não amava nada mais que a dança; era o ar que respirava, o alimento de que se nutria, seu sol particular. Agora, com dezenove anos, praticamente dona de si, continuava a não pensar em nada senão na interpretação corporal da música. Alheia ao resto, o mundo de Dominó se resumia a treinar, treinar e treinar. Essa obsessão tão solitária levou-a a cultivar poucos amigos. No fundo, gostaria de se divertir mais, rir e sorrir com mais frequência, ser menos rígida e inclusive um tanto menos orgulhosa, mas nada a convenceria de abrir mão da dança, nem um instante sequer.

– Imagino que a vista esteja muito interessante.No entanto, um aglomerado de casas brancas e o horizonte de

Urjuwani eram o que Dominó enxergava pela janela do quarto. Morava

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num dos complexos mais altos da capital e conhecia aquelas ruas como a palma da mão; agora as contemplava enquanto o pôr do sol alaranjado tingia um amontoado de nuvens e alterava os tons beges e claros das construções para algo mais quente.

– Nós duas sabemos que não há nada por aqui que eu já não tenha visto, mamãe – respondeu Dominó ao virar-se para a porta.

Por proibição da mãe, nunca descera de Urjuwani, de modo que o restante do Império permanecia desconhecido, a não ser em livros, páginas ilustradas, registros fotográficos e comentários de outras pes-soas. O argumento da mãe: não existir nada de importante lá embaixo, só pobreza e violência. Mas Dominó tinha vontade de descobrir a sua terra. Mesmo que de fato fosse tão miserável quanto as descrições, queria experimentá-la com os próprios sentidos.

– Acabei de chegar do Palácio – a mãe continuou. – Você nos com-praria meia dúzia de pães enquanto eu vou cortando os ingredientes?

Com um sorriso obediente, assentiu e beijou-a na bochecha. Pegou o montinho de moedas que a mãe lhe oferecia e afastou-se pela entrada do quarto com seu vestido esvoaçante. A mãe trabalhava como assistente do Conselheiro Real, no Palácio do Imperador, um domo prateado no centro da capital. Muitos consideravam uma honra ficar próximo do Imperador. Ele, apesar dos sessenta anos, mantinha o tônus e o vigor de tempos atrás. Assim como a maioria dos habitantes de Urjuwani, Dominó via-o como uma espécie de divindade. Ele costumava compa-recer às suas apresentações, especialmente depois que fora nomeada a melhor dançarina da Companhia.

Os habitantes do Império, em sua grande maioria, tinham a pele dourada e os cabelos clareados pelo sol, que nunca parava de arder sobre suas cabeças. As cores dos olhos variavam desde o verde mais translú-cido ao preto mais impenetrável. Para contrastar com as próprias bai-larinas, as vestes e sapatilhas da Companhia traziam sempre tons frios.

Saiu pela frente. Um véu ondulante separava seu lar da rua; desco-nhecia chaves de porta e ignorava a ideia de que alguém pudesse utilizar uma porta para se proteger de invasores. Trancar portas em Urjuwani era desnecessário, ali não havia perigo. A cidade flutuante reclamava para si o mérito de lugar mais seguro do Império. Ainda que crimes

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fossem raros, vigilantes faziam rondas de hora em hora, de sorte que mesmo o menor deles não saía impune. Pegando um atalho aqui e ali, Dominó passara pelas ruelas e encontrava-se diante da lojinha em que compravam pães, especiarias de terras distantes e produtos não comes-tíveis. Antes que pudesse entrar, um quarteto de meninas a interceptou.

– Disse que era ela! – uma das meninas se exaltou.– Você se importaria em nos dar um autógrafo? – enrubesceu outra.– Claro que não – disse Dominó com ar risonho. Deixou as jovens se

apresentarem e revelarem a ambição de um dia serem bailarinas tão admiráveis quanto ela, para então autografar seus pergaminhos de matemática, o material de estudo delas.

Ao entrar na loja, deu-se conta de que era a única cliente e percebeu, de súbito, ser também a única pessoa presente. O balcão vazio fez com que Dominó fosse adiante e analisasse as prateleiras. Entre geleias de frutas que nunca ouvira falar, pimenta das vilas dos piratas dos céus e registros fotográficos das cordilheiras do sul, ela se perdeu em deva-neios. E pensar que não me permitem nem visitar lugares por aqui.

– Minha freguesa preferida! – o vendedor brincou após surgir por trás de um pano ao fundo. – Vi quando as meninas cercaram-na. Então tive que ir ao depósito pegar uma coisinha para você.

– Que coisinha?Ele deixou escapar uma risada e logo tirou de debaixo do balcão uma

sacola de pétalas. Pétalas violetas e tão bem perfumadas que Dominó não teve dúvida de estar diante da dama-do-império.

– São pra você. – Entregou-lhe a sacola. – Só não saia contando por aí que agora as estou vendendo. A procura seria grande demais. Prefiro guardá-las apenas para fregueses, como você! A amostra é gratuita.

– O... ob... obrigada!Talvez se tratasse do presente mais especial que já ganhara. Conhe-

cidíssima pelo seu chá, a dama-do-império dava origem a um líquido nebuloso com propriedades medicinais capaz de purificar o organismo num só gole. Assim rezava o mito; nunca o provara. Achava uma pena as sementes não germinarem direito em Urjuwani. Além de a vegetação não vingar apropriadamente em nenhum canto do Império, a não ser

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nas regiões fronteiriças com as selvas ao leste e também à margem dos incomuns riachos ou do grande rio, a altitude da capital certamente não cooperava. Adoraria inspirar o ar de um bosque transbordante de árvores. Mas, por enquanto, precisava se contentar com fotos e histórias contadas pelo irmão, que retornaria a qualquer dia de uma expedição ao continente do oeste, ainda não completamente explorado.

– Sempre tive vontade de lhe perguntar uma coisa – admitiu o ven-dedor.

– Pode perguntar.– Seus brincos são de ouro puro?A orelha direita de Dominó era uma verdadeira joia. Vários anéis de

ouro maciço haviam sido colocados lado a lado, de cima a baixo. Juntos pareciam um brinco apenas, um delicado adorno que a completava. Desde os quinze anos, quando a mãe a presenteara com eles por ter sido nomeada a principal bailarina da Companhia, não os tirava.

– Sim. Mas não estão à venda – acrescentou em tom jocoso.Comprou os pães – e um pouco de canela e gengibre – com as moedas.

Cuidadosamente guardou as pétalas de dama-do-império para, em se-guida, despedir-se do vendedor e retornar às ruas. Às vezes parecia-lhe que jamais precisaria de nada além do que tinha em Urjuwani. O pôr do sol superava os tons alaranjados e aventurava-se no vermelho-escuro. Aos poucos, as pequeninas redomas de cristal se acendiam nas ruas, afugentando as sombras, sem jamais permitir que a capital se perdesse na escuridão.

Correu. Subiu e desceu escadarias, passou por pontes que, por sua vez, cruzavam vias em que circulavam bondes elétricos. Escondia o rosto para que não a reconhecessem. Não tinha nada contra fãs, mas às vezes não gostava de ser abordada. Finalmente viu-se nos mirantes do oeste da cidade, onde encontrou um lugar entre os curiosos que observavam os últimos raios de sol se deitando sobre o deserto. Ao longe, bem ao longe, vislumbrava-se o litoral do Império implícito no horizonte como uma finíssima linha azul-escuro. O grande rio não podia ser visto. Ele fazia uma curva sob a cidade e rumava ao sul, para, mais distante, de-sembocar no mar. Lá embaixo, aos pés de Urjuwani, as vilas e os edifícios se amontoavam em desordem, e suas luzes também começavam a se

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acender. Separava Dominó de uma queda a delicada película de vidro, resistente como o casco de uma etereonave.

– Quando é que você vai me levar até o litoral? – um menino pergun-tou ao pai.

– Um dia. Mas se você virar mesmo um explorador ou vigilante, como diz querer, a chance de você visitar o litoral e o que tem depois dele aumenta muito. O mar, as ilhas efêmeras e o que estiver além.

Dominó simpatizava com as razões que levaram seu irmão a tornar--se um explorador... Sair de Urjuwani, experimentar o que houvesse lá fora, desbravar as raras terras que não tinham sido estudadas apropria-damente. A despeito do perigo que os piratas dos céus representavam, interceptando navios, invadindo povoados de fronteira e os saqueando, era quase como se o risco valesse a pena. Para seu irmão, claro. Por sua vez, Dominó não colocaria em risco a posição de melhor bailarina, a mais talentosa e a mais dedicada. Seguiria com o espetáculo.

– Falta pouco para isso desabar – disse uma mulher ao seu lado, dire-tamente para ela. – Você não me conhece, Dominó. Eu me pergunto o que gente influente como você aguarda para fazer a diferença. Já ouviu falar das expedições submarinas? Tem gente do Templo doida pra pôr seus dedos nos pergaminhos. É só uma questão de tempo, entende, é só uma questão de tempo até a tensão estourar.

– Expedições submarinas? – Não dava relevância ao fato de nun-ca tê-la visto e de ela parecer bastante perturbada. Sua curiosidade superava a estranheza da situação. – Tais histórias são fruto de sua imaginação. É impossível se aventurar embaixo d’água. Não somos peixes, minha senhora.

– Assim como não somos aves.Antes que Dominó prosseguisse, a desconhecida se afastou como um

bicho receoso, desaparecendo no mar de rostos que – agora que o sol en-fim se deitara – distanciava-se dos mirantes. Sem ter o que fazer, e com um tanto de preguiça de persegui-la, Dominó voltou a admirar a vista. No passado, escutara um ou outro comentário do irmão sobre intrigas políticas, mas não entendera nem um décimo deles. Nunca os achara importantes. Desde criança também não se interessava pelo Templo, tinha frequentado os sermões dos guias somente durante os cursos

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de religião. Jamais sentira necessidade de rezar para Ela, a Estrela, a Criadora das condições para que o Império florescesse prosperamente. De acordo com a crença pregada pelo Templo, a Estrela tomara forma física e tombara sobre o mundo para que a história pudesse finalmente começar. O que existira até aquele momento havia sido insignificante, mera sucessão de acontecimentos. Da cratera formada pela primeira manifestação da Estrela, estabelecera-se uma conexão com o plano superior, um canal espiritual que ligava ambos os níveis. Abençoados por Ela, os desertos eram sagrados. Devia-se aprender lições mesmo na aridez, fome e miséria, assim como na riqueza e abundância. A segunda manifestação, o retorno Dela, a Mãe, a Autoridade Suprema, era o que o Templo aguardava desde então. Mas Ela ainda não tinha dado as caras.

– E o que isso significa, Rosso? – Dominó perguntou ao irmão na época em que os dois estudavam religião juntos, há mais de dez anos. Dormiam no mesmo quarto, e, enquanto a futura bailarina tinha seus sete anos de idade, Rosso já adentrava os catorze.

Ele tirou um tempo para pensar.– Não sei. Dia desses ouvi a mamãe falar que todo mundo precisa

buscar suas respostas. É o que eu quero fazer. Não quero só conhecer o mundo e representar o Império lá fora, quero entender as coisas. Em um ano e meio vou me inscrever na Escola de Formação de Exploradores. Você não quer se tornar uma exploradora?

– Acho que não.– O mundo é mais que Urjuwani, mais que o Império. Fiquei sabendo

que os povos nômades do leste têm cidades inteiras incrustadas em ár-vores do tamanho do Palácio! Também fiquei sabendo que os bárbaros do sul roem os ossos dos adversários que perdem batalhas.

O som inconfundível de passos de bota fez com que Dominó recobrasse a consciência e caísse em si. Permanecia no mirante. Anoitecera e os pães tinham esfriado. Virou-se para a cidade a fim de retornar ao lar, mas esbarrou em um vigilante, o dono das botas. O uniforme da tropa era escuro, preto como a noite, mas adornado de linhas amarelo-mostarda que espiralavam em volta do tronco. Com suas lanças afiadas e escudos anexados ao antebraço, aparelhos comunicadores na cintura e calçados

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pesados, os vigilantes sem dúvida estavam sempre equipados para a batalha, mesmo que não fossem frequentes.

– Está tudo bem, senhorita?– Perdi a noção das horas.– Se você quiser, eu a acompanho ao seu domicílio.– Não precisa. Não há perigo em Urjuwani, não é?– E acredito que nunca haverá, senhorita. Se bem que os tempos

estão mudando.Dominó delineou um sorriso de despedida e partiu. Incomodava-a

o fato de os vigilantes usarem aquele capacete que da face tanto lhes escondia, aproximando-os mais de máquinas do que de seres vivos. Em companhia da eletricidade das redomas de vidro, arrastou os pés até sua casa. A mãe a esperava, inquieta e com um comunicador nas mãos, no sofá da sala.

– Peço desculpas pelo atraso, acabei me desviando do caminho para ver o pôr do sol. Ah! Olha só com o que o vendedor me presenteou!

Ao deparar-se com a sacola de pétalas de dama-do-império, as faces da mãe enrugaram de alegria. Levantou-se e deu um abraço bem aper-tado na filha. Com a voz trêmula, admitiu que estava prestes a acionar as autoridades e dá-la como desaparecida. Dominó riu; para ela, era simplesmente absurdo alguém desaparecer de repente. Sentou-se à mesa enquanto a mãe lhe servia o cozido de legumes com gengibre.

Por não existir pasto na capital, ali não havia costume de comer carne, ao contrário de outras regiões do Império. As etereonaves importavam frutas, legumes, especiarias, vestes, água, matéria-prima e quaisquer itens de que a população necessitasse. No Império, comiam com as mãos nuas, por isso prezavam alimentos pouco gordurosos. Dizia-se que usar os próprios dedos na refeição era sinal de humildade, virtude muitíssimo bem vista por Ela. Já a água que Dominó e a mãe bebiam era servida em cálices de cobre, revestidos por uma casca de cristal, já que diversos estudos locais apontavam que, com o tempo, os metais liberavam suas partículas, prejudiciais à saúde se ingeridas.

Os desertos imperiais continham imensas jazidas de metais não preciosos, “além dos fragmentos Dela, que outrora se materializara e ali caíra” – assim completaria qualquer guia do Templo. Havia matéria

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-prima suficiente para experimentar o que quisessem com o geomag-netismo. A nação ergueu-se com metal e barro, sendo o último utilizado em grande escala como estrutura principal de casas e edifícios, o que dava às construções o costumeiro tom bege ou esbranquiçado.

– Hoje vi uma foto de casas verdes em vilas fora do Império – contou Dominó ao lembrar-se das imagens que contemplara na loja. – Acha que esses pigmentos serão importados?

– Não seria caótico se cada família pintasse seu lar de uma cor di-ferente?

– Talvez – disse devagar. – Mas começo a me sentir enjoada com Urjuwani, aqui isso é tão invariável. Não me parece natural.

– E desde quando você pensa a respeito dessas coisas? – Não sei... Bom, ao menos não temos somente roupas beges, certo?

Isso seria monótono.– Seria. – A mãe fez uma pausa. – A sua nova apresentação já é depois

de amanhã, não? Se bem a conheço, amanhã você acordará e passará horas treinando e repassando movimento por movimento, sentindo a melodia, como você mesma diz.

Por um par de segundos, a atenção de Dominó se prendeu ao pin-gente que a mãe trazia no pescoço. Nunca, mas nunca mesmo, a vira sem ele. Dotado de beleza ímpar, o delicado losango cristalino tinha um ar tão singular que quase parecia dotado de consciência. Nas vezes em que perguntara à mãe sobre a origem do adorno (queria um igualzinho), ela lhe respondera que o comprara há anos em uma feira no porto.

– Hoje você está realmente distraída.– Me desculpe. – Dominó caiu em si novamente. – Estou mesmo.

Deve ser por causa do retorno de Rosso. Querendo ou não, não o vemos há muito tempo. Sinto saudades. Mamãe... Podemos... Podemos ir ao Templo amanhã ao nascer do sol?

– Templo? – surpreendeu-se com o pedido. – Sim. Mas se você não se importa que eu pergunte: o que despertou esse interesse súbito nos cardeais?

Dominó mordiscou uma cenoura antes de responder.– Quero compreender algo além do meu mundo. Além de Urjuwani,

se possível.

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A mãe assentiu num suspiro de aparente tranquilidade, e logo retor-naram à refeição. Apenas batatas, repolhos, couves-flores e cenouras. Ao terminarem, Dominó a ajudou a limpar a mesa e a deixar tudo em ordem. Nada de sobras. Preparavam exatamente o que comeriam. Depressa, ela separou um punhado de pétalas de dama-do-império e preparou-as para a infusão. Aqueceu a água em um recipiente elétrico e lançou as pétalas sedosas líquido adentro.

Através das cortinas e do véu que cobria a abertura frontal, a brisa vinha ao seu encontro, de passagem. Mãe e filha se entreolhavam em silêncio; esperavam a bebida ficar pronta. Sua mãe era bonita, verdadei-ramente bonita, de uma beleza exótica. Caíam sobre os ombros desnudos e dourados – porém menos dourados que o habitual para os cidadãos do Império – os longos cachos negros. O passar dos anos não a afetava em nada. Dominó desejava envelhecer tão devagar quanto ela. Sob a acuida-de e a sagacidade do olhar investigativo da mãe, sentiu-se incomodada.

– Deve estar pronto – disse para ter um motivo para dar as costas. No líquido turvo, nenhuma pétala para se admirar, tinham se desfeito ao calor.

Dominó serviu dois cálices. Em seguida, foram ao terraço degustar a bebida e apreciar o panorama, acomodadas em poltronas. Para não queimar a língua, deixaram a infusão de dama-do-império esfriar. Levando a bebida aos lábios, uma espiral de sabores tragou Dominó. Ora doce, ora azeda, a dama-do-império descia garganta abaixo com tamanha suavidade que dava mesmo a sensação de lavar as impurezas para longe.

Sorriu para a mãe e ela lhe sorriu de volta.– Somos privilegiadas por termos acesso a uma iguaria dessas – disse

para a filha.Meia dúzia de etereonaves brilhou ao horizonte com suas poderosas

luzes.– É na adversidade que nos encontramos, que não podemos negar

aquilo que somos, mesmo que aquilo que sejamos permaneça sem nome. Não faz diferença... não faz diferença se o amanhã será mais alegre ou mais triste que o ontem. O importante é lembrar que os olhos

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jamais esquecem aquilo que miram quando miram para dentro. O im-portante é lembrar... Me perdoe, Dominó.

Era como se a mãe esperasse que ela compreendesse seu pedido de desculpas. As divagações não faziam nenhum sentido a Dominó. A mãe desviou o olhar, pediu licença e retirou-se em silêncio. De que Dominó poderia se lembrar? Que, apesar da inveja que começara a ter da cora-gem do irmão, não abriria mão da dança; lembrar-se da ausência de um pai que nunca conhecera e sobre quem nunca lhe fora permitido fazer perguntas; de que Rosso preferia se debruçar sobre terras inexploradas a ficar com a própria irmã; de que a mãe não a incentivava a interagir com o mundo fora de Urjuwani; e, por último, lembrar-se da certeza – era por esta certeza que ainda respirava – de que jamais deixaria de mover-se ao ritmo da melodia?

Duas etereonaves sobrevoaram a capital, silenciosas como de costu-me, silenciosas como a mãe. Mesmo ao passarem a poucas dezenas de metros acima, não produziram nenhum ruído a não ser pelo som do ar que deslocavam. Estavam certamente a caminho do pátio do Palácio.

Enquanto bebericava a infusão de dama-do-império, Dominó foi sendo preenchida por um sentimento vago e preguiçoso... Sono. As pálpebras pesavam. Aguardava-a no dia seguinte uma rotina agitada. Terminou a bebida e dirigiu-se ao seu quarto, mas bastou ver-se diante da porta entreaberta do quarto de Rosso para parar. Ele já tinha visitado o Império de canto a canto, do litoral às selvas, seguindo o grande rio e a expedição para determinar suas nascentes. E pensar que logo abaixo de Urjuwani descansa um porto que eu nunca visitei... Nem sequer vi um barco de perto.

Deitou-se na cama do irmão, onde as saudades a embalaram noite adentro.

Antes da alvorada, antes de os primeiros raios de sol abrirem os céus, Dominó foi acordada pela mãe.

– Se você quer ir ao Templo, a hora de levantar é agora.Prepararam o desjejum, pão preto com geleia de damasco. Após ves-

tirem as batas – vestes utilizadas nos sermões –, foram à rua. Dominó

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não era alguém de fé, e, por não frequentar os sermões há tempos, surpreendeu-se com a enorme quantidade de cidadãos que se dirigiam ao Templo em horário tão prematuro. Havia apenas um lugar de culto em Urjuwani, o santuário próximo ao Palácio do Imperador, de forma que Dominó, a mãe e os vizinhos pegaram o bonde que os levaria. Imponente, o Palácio apoiava-se lateralmente numa pirâmide, o Tem-plo, cuja entrada dianteira – uma ampla abertura triangular – forçava qualquer um a provar sua própria pequenez. Registrada nas paredes do santuário, a primeira manifestação da Estrela fora representada como um rastro ardente que veio de cima das nuvens e lançou-se destemido sobre o deserto.

Acomodaram-se bem à frente, próximas do tablado, no térreo. Os guias não demoraram e subitamente surgiram pelas passagens late-rais. Com seus longos roupões de seda, brancos e pretos – todos com a insígnia da estrela de quatro pontas, a representação Dela –, eles se posicionaram na parte traseira do tablado. Alguns cardeais adentraram o Templo, provocando suspiros de admiração.

– Sejam bem-vindos – começou o cardeal chefe.As vestes dele e as dos outros cardeais eram, de longe, mais elabora-

das que as dos guias. Cada uma parecia um pôr do sol distinto, de tão colorida e ornamentada. Havia ali uma hierarquia, mas seus detalhes Dominó jamais se dera ao trabalho de aprender. Perdia a atenção em algum lugar entre as mangas cintilantes e as golas banhadas a prata em diferentes alturas. Aqueles detalhes – que, vistos separadamente, de sutil nada tinham – serviam para distingui-los entre si, para saber quem ocupava um cargo superior ou inferior.

– Farei um discurso que todos já escutaram incontáveis vezes. Entre-tanto, nunca é tarde para relembrar do primeiro encontro com Ela. A Estrela nos abençoou, e a Ela devemos tudo o que temos. Tempos atrás, Ela tombou sobre este mundo. A primeira manifestação. Dizem que os privilegiados presenciaram no horizonte um clarão que lhes furtou a vista. A cratera formada pela primeira manifestação não podia ser vista de tão grandiosa a Sua magnitude. A Estrela moldou os desertos, moldou a nossa terra. O mar, atraído por Ela, derramou-se sobre as dunas e desenhou o grande rio. As comunidades que aqui passaram

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a viver, apoiadas no Seu majestoso coração, uniram-se e ergueram o início do Império.

“Embora o grande rio tenha ajudado com a agricultura local, nada transformava os desertos em terra abundantemente fértil, em terra habitável, ainda que fosse terra abençoada pela Estrela. No início dos tempos, a seca e a fome eram desafios constantes. Haveria terras mais agradáveis para sustentar uma civilização? De certo haveria, mas os antigos líderes se ampararam no avanço da fé e da ciência para descobrir o caráter fantástico do solo sobre o qual viviam. A Estrela abençoara-nos com quantidades inesgotáveis de uma substância divina, um metal com propriedades celestiais. Os esforços de nossos pensadores se voltaram para aproveitar ao máximo o presente que havíamos recebido Dela.

“A fé fez com que nos tornássemos rapidamente um Império, o Império. Com domínio sobre o geomagnetismo, como a ciência veio a chamar essa fantástica descoberta, logo desenvolvemos veículos capazes de fluir pelo ar como pássaros. Não são asas que os guiam, mas sim a fé que depositamos na Estrela e a fé que Ela deposita em nós. Assim, o Império, a nação maior, estendeu-se por todo o coração Dela, aceitando as outras comunidades que aqui existiam, fortalecendo-se.

– Aceitando... que tolice.Dominó estranhou o comentário afiado da mãe.– Como assim? – Shhh – censurou-a prontamente. O cardeal chefe prosseguia:– Não tardou para que aprendêssemos que as águas mais próximas

do litoral também haviam sido abençoadas por Ela, ainda que de ma-neira mais sutil, de forma que, quanto mais nos afastávamos da cratera, menos o chamado geomagnetismo funcionava. Era um sinal de que a Estrela não queria que abandonássemos Seu coração. Então se ergueu a capital da nação, uma capital digna de ser vista como a capital do Império, digna de representar nossa poderosa fé: Urjuwani, bendita estrela metálica, subiu aos céus, abaixo das nuvens e acima dos desertos. E Urjuwani permanece majestosa e firmemente equilibrada, um ponto de encontro entre o terreno e o divino! Até que Ela nos dê a graça de Sua presença novamente com a segunda manifestação.

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Assim o cardeal chefe continuou. Suas ideias traziam ininterrup-tamente a presença Dela, de um jeito ou de outro, e foi com certa dificuldade que Dominó escondeu a surpresa ao ver como as pessoas admiravam, quase obcecadas, as palavras daquele senhor. Sua mãe não parecia confortável tão próxima do tablado. O cardeal chefe falou a respeito do destino do Império e sobre como a Estrela sempre os guiaria, e no final fez um discurso bastante prolixo sobre a boa relação entre o Templo e o Imperador, sobre a fé andando lado a lado com a ciência, sobre como ele, o cardeal chefe, era o representante da fé, e o Imperador, da ciência.

– O que você achou? – a mãe quis saber em tom neutro.Agora as pessoas enchiam os corredores com seus passos miúdos e

apressados. Precisavam comparecer aos trabalhos e estudos, à rotina.– Foi... esquisito. E é esquisito acreditar que o Templo e o Império

andem de mãos dadas. Me parece... conflitante. A mãe esboçou o princípio de um sorriso no canto dos lábios. Or-

gulho?– Seu raciocínio faz sentido. Mas você sabe que não é da nossa com-

petência nos envolvermos em coisas sérias como um atrito entre religião e desenvolvimento da ciência. Nem eu, assistente do Conselheiro Real, ousaria interferir. Espero que você não faça nenhuma bobagem.

– Bobagem? – repetiu Dominó. – Como se eu fosse arriscar me colo-car no meio de algo. Já volto, mamãe, vou dar uma palavrinha com os guias. Pedir um conselho.

Ainda que Dominó não tivesse o hábito de pedir conselho, a mãe assentiu. A jovem bailarina, seguindo o fluxo de gente, adentrou um dos corredores laterais. Em uma ala paralela, o movimento era somente daqueles que desejavam ver os guias. Enquanto caminhava, Dominó refletia se devia mesmo ser aconselhada. Havia uma pergunta apenas, embora duvidasse que lhe dariam uma resposta satisfatória. Por que vivemos a vida que vivemos e não outra? Se nem ela tinha certeza do que queria dizer com isso, imagine então o pobre guia. Sem encontrar um quarto de aconselhamento vazio, ficou em fila para o último do corredor. Sentadas ao lado, no banco de espera, uma garotinha acompanhada da

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mãe. Reconheceram-na, sem sombra de dúvida; mas, mesmo assim, respeitaram sua privacidade. Ecoavam através do santuário todo tipo de som, de modo que era preciso uma boa dose de concentração para diferenciá-los. Será que as formas triangulares e piramidais contri-buíam para o jogo de rumores? Havia incontáveis pinturas, a maioria apenas com a estrela de quatro pontas. Ambas as desconhecidas ao lado traziam a estrela pendurada no pescoço, um pingente bastante usado pelos cidadãos de Urjuwani. Dominó não tinha o pingente e não se sentia à vontade: ficou de pé e foi se afastando dos quartos de aconselhamento, contemplando as pinturas repetitivas e a intimidante arquitetura angular. Andava distraída, e sem perceber passou para um corredor mais distante.

– Claro que esconde! – um resmungo cruzou os burburinhos e chegou aos ouvidos da bailarina.

Parou de imediato. Estava longe demais do tablado. Escondeu-se atrás de um pano que se derramava sobre as paredes.

– Alguém pode nos ouvir! – suplicou uma voz masculina, amedron-tada.

– Não fale asneiras. – Depois de um sermão tão extenso, Dominó reconheceria aquela voz em qualquer lugar. Tratava-se do cardeal che-fe. – Ninguém vem a esta parte do santuário. Olhe em volta, Félix, e me diga se você enxerga alguém!

Dominó prendeu a respiração. Ser a principal bailarina da Compa-nhia de dança não a pouparia de uma punição. Ouvira histórias sobre traidores condenados à morte. Ou pior: exílio.

– Eu n... não enxergo ni... nin... ninguém.– Claro que não enxerga, Félix – o cardeal chefe prosseguiu em tom

ácido. – Porque não há ninguém aqui! Não estamos conversando so-bre deslealdade, mas por que o Imperador se esforça tanto para não entregar os relatórios ao Templo? Ele descobriu algo nas expedições submarinas, tenho certeza.

– Será mesmo, meu senhor?– Aposto que ele encontrou um indício que comprova a segunda ma-

nifestação da Estrela. Ou pior, a própria Estrela submersa! Se é que isto

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é possível para a divindade. O Imperador se passa por um bom amigo do Templo, no entanto começo a crer que no fundo ele quer dissolver a fé do povo, quer se tornar a autoridade suprema. Não podemos permitir isso, custe o que custar.

– Mesmo que...? – Félix parecia satisfeito com o que tramava.– Sim – determinou o cardeal chefe. – E está na hora de resolver a

sua gagueira, Félix.Os passos se afastaram com um andar firme. Dominó aguardou

mais uns minutos para estar certa de que não haveria ninguém ali. O corredor devia ser reservado somente aos guias, cardeais e ao cardeal chefe. Onde estava com a cabeça quando decidira bisbilhotar?

Saiu detrás do pano e voltou em silêncio para reencontrar a mãe. Ia se despedir dela, quando lhe ocorreu perguntar:

– Mamãe, conhece um tal Félix?– Félix, o cardeal? – A mãe não fez esforços para ocultar a preocu-

pação. – Ele é famoso por ser bem influente no Templo, e também por razões menos gloriosas.

O assunto evidentemente não a agradava. Dominó ignorou o olhar desassossegado que a devorava e alegou um suposto atraso, logo dizen-do que tinha que correr até a Companhia de dança. A mãe sugeriu que se encontrassem no Palácio, depois, assim que o ensaio terminasse.

– No Palácio? – Dominó mal conteve o assombro; a mãe nunca lhe fizera esse convite.

– Só não traga outras bailarinas. Quando chegar, pergunte por mim. Os vigilantes vão lhe conduzir à minha sala. Tente não se perder nem propor questões inapropriadas, está bem? – Com a mão firme no queixo da filha, reforçou: – Tome muito cuidado com o que você fala por aí. Os tempos não são mais os mesmos.

Dominó fez que sim com a cabeça, embora não entendesse bem como os tempos podiam mudar tão subitamente. Era verdade que o movimento de vigilantes aumentara em Urjuwani... Seria isto motivo para tanta cautela? Meses atrás, as etereonaves repousavam sobre as pistas; atualmente, viviam em circulação nas proximidades da capital, como se aguardassem ordens ou temessem o pior. Do que o Império teria medo? Do que precisaria se defender?

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Azaleias. Ao adentrar a Companhia pela porta giratória, deu de cara com um arranjo novinho em folha de azaleias. Parou um instante para examiná-las. Sem demora, seguiu pelo carpete azul do saguão e nem sequer viu as escadas que se abriam às laterais, aos anfiteatros. Seguiu adiante, cumprimentou os seguranças e buscou os atalhos tortos rumo aos bastidores. As cortinas do palco mantinham-se fechadas. A coreó-grafa, Sra. Quindim, estava de cócoras diante das prateleiras de sapa-tilhas. Dominó reconheceria seu cabelo a distância, em qualquer praça lotada de gente, de qualquer ângulo. Anos atrás, a Sra. Quindim o des-colorira em uma experiência desastrosa. Ele jamais voltou à coloração natural, castanho-claro; ficaria eternamente semiarrepiado naqueles tons alaranjados. A despeito da cabeleira singular, a Sra. Quindim era a melhor treinadora que Dominó já tivera. Durante as práticas, não era somente severa, sabia também lidar com as frustrações das bailarinas e colocar cada uma no seu devido lugar sem ferir tanto os sentimentos.

– Ah! – a Sra. Quindim suspirou ao voltar-se para Dominó. – Minha doce dama-do-império! Até que chegaste cedo. Ontem passei dia e noite treinando o restante das dançarinas. Mas a tua rotina, minha querida Dominó, é o cerne do espetáculo!

Um punhado de bajulações mais tarde, Dominó trocou de roupa e escorregou para dentro do vestido branco e dourado que usaria no dia seguinte. Ao contrário das outras bailarinas, que dançariam sobre passado e presente, Dominó interpretaria a segunda manifestação da Estrela. Teria o palco inteiro só para si na segunda metade da apresen-tação. A Sra. Quindim a obrigou a se aquecer com alguns exercícios e assim ficaram por horas; intervalos apenas para se hidratar e comer alguma coisinha no almoço. Até que atingiram a parte do treino em que Dominó exercitaria a rotina do espetáculo.

Apresentar-se para o anfiteatro vazio, mesmo num treino, era frustrante. Ninguém para vê-la dançando... pouco importava que fizesse aquilo para si mesma. Sim, a dança era a sua paixão, mas seu sentido se completava diante da plateia. Quando pulava de lá para cá, rodopiando, saltando, alcançando, frente a uma multidão de olhos, o fazia com excelência e prazer. Ah! O maior dos prazeres! Era capaz de

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doar-se aos espectadores, pegando-os desprevenidos com sua técnica trabalhada, mas espontânea. Era isto que Dominó mais demonstrava quando dançava e isto que as bailarinas da Companhia tanto invejavam: espontaneidade.

A dança despertava nela alguém a quem talvez ela mesma ainda não conhecesse.

– Excelente! – A Sra. Quindim bateu palmas quando Dominó concluiu o passo final. – Absolutamente sublime! Nem tive que interferir. Estarás divina amanhã! Deverias descansar. A tarde de amanhã nos espera, minha doce dama-do-império.

Abraçou a Sra. Quindim e retirou-se do palco. Para não entrar no Palácio do Imperador suada e desarrumada, tomou uma ducha nos vestiários. Perfumada e com a boa aparência de sempre, pôs no corpo uma das blusas que deixava na Companhia. Ao sair, notou que havia um rastro vermelho-escuro no céu. Anoitecia. Tomou a direção do Palácio, atravessando pontes e escadarias. Urjuwani tinha vias exclusivas para circulação de pedestres e outras para a grande quantidade de bondes. Estas ficavam abaixo daquelas, justapostas; os transeuntes cruzavam passarelas para circular pela cidade. Devido às proteções nas fronteiras entre vias, acidentes eram raríssimos.

Enfim ergueu-se diante de seus olhos o domo prateado. Recobrou o fôlego devagar e aventurou-se no jardim palaciano. Ali, mais intensa que o habitual, a iluminação dava às cores uma qualidade vibrante. Con-trariando o padrão do resto da capital e do Império, as árvores e flores do jardim eram regadas diariamente para se manterem exuberantes e prosperarem. Salvo os espécimes contrabandeados que Rosso de vez em quando trazia de suas viagens, o jardim palaciano era o único lugar em que Dominó já vira vegetação viva. No entanto, nunca o atravessara por completo, nunca admirara o interior do domo. As portas de vidro deslizaram e deram passagem, um convite irrecusável. Pisou adiante, receosa. Dispostos rentes às paredes, nas entradas de cada corredor e, claro, no balcão da recepção, vigilantes imperiais. Todos trajavam o uniforme completo da tropa, incluindo o capacete com visor escuro, com exceção dos dois que estavam atrás do balcão; sua função era dar

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informações e, para tanto, é melhor olhar direto nos olhos. Ela recobrou a coragem e foi até eles.

– Boa noite, senhorita.– Boa noite.– Posso ajudar?– Minha mãe é Regina, a assistente do Conselheiro Real.O segundo vigilante colocou-se de pé, cumprimentou-a com um

aceno e prontamente lhe explicou que a mãe já havia comentado que ela a encontraria ali. Ele se voluntariou para levá-la à sala do Conselheiro Real. Dominó não hesitou em concordar e pôs-se a segui-lo com passos atentos. Lustres de cristal se sustentavam no teto e eram a principal fonte de luz; a luz se derramava no ambiente e fazia com que a superfície lisa da parede cintilasse; aqui ou ali, parecia que a parede brilhava por si só. Dominó não encarava as pessoas com quem cruzava nem ousava olhar pelas portas semiabertas. De repente, o vigilante congelou e ficou em posição de sentido. Um rosto familiar surgira.

– Dominó? Theodoro exibia um uniforme diferente. Fora nomeado primeiro-

-tenente havia pouco mais de um ano. O primeiro-tenente mais jovem da história, diziam por aí. Era a autoridade no comando da tropa depois do próprio Imperador e do Capitão, o que não o tornava nada, a não ser um possível candidato para tomar conta dos vigilantes caso algo aconte-cesse aos seus superiores. Dominó não o encontrara desde a cerimônia de nomeação. Conhecia-o da época em que o irmão trazia os amigos para casa. Mesmo após Rosso embarcar em longuíssimas viagens, os dois ainda mantiveram contato, apesar de tímido.

Sem pensar abraçou-o.– Theo! – Shh – ele brincou. – As pessoas aqui estão tentando se concentrar.Ela enrubesceu.– Desculpa. É a primeira vez que venho ao Palácio. Não me habituei

com o tamanho desses corredores, mesmo estando acostumada com o anfiteatro da Companhia. Ah! Venha à minha apresentação amanhã!

Ele sorriu.– Pode ser que eu vá.

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– Prometo que será um bom espetáculo. Não sou mais criança, você não precisa temer que eu caia do palco.

– Qualquer coisa eu te seguro.Seus olhares se encontraram, e no encontro de olhares Dominó foi

tomada pela certeza de que ele se sentia tão atraído por ela quanto ela se sentia por ele naquele instante. Mas ela não encontrou razões para levar o flerte adiante.

– Bom – disse com a voz arrastada –, preciso ir. Mamãe me espera e em breve estará tarde. Tomara que você realmente apareça amanhã. Seria bom ter mais um rosto conhecido na plateia.

Theodoro assentiu e abriu espaço para que a bailarina e seu acom-panhante passassem. Ela retribuiu a gentileza com um sorriso e novamente pôs-se a seguir o vigilante com passos atentos. Venceram outro corredor e repetiram o processo tantas vezes mais até o vigilante guiá-la através de uma escadaria em espiral. Na segunda vez em que o homem congelou em posição de sentido, ela estava diante da mãe e do Imperador. Caminhavam lado a lado e terminavam uma conversa, como velhos amigos, como confidentes. Dominó não sabia que eram próximos, acreditava que a mãe o via apenas de longe e enfrentava sua presença apenas quando estava na sombra do Conselheiro Real.

– Vocês ainda não foram propriamente apresentados – disse a mãe com uma satisfação incomum.

O vigilante petrificou de vez. Dominó, em compensação, segurou a ponta da saia e baixou a cabeça em reverência. Jamais estivera tão perto do Imperador. Ele comparecia à maioria de suas apresentações e inclusive mandava entregarem-lhe buquês de flores, mas nunca tinham sequer se falado. Enquanto acompanhava tudo pela visão periférica, ela percebeu que ele se aproximava até tocá-la no punho e tirá-la daquela pose. A mão do Imperador tremia.

– Não há razões para se esconder, Dominó.Ele sabe o meu nome... Minha Estrela... Ele sabe o meu nome! E a afirmação

se repetiu na cabeça da bailarina sem parar, embora fosse lógico que o Imperador soubesse o seu nome, especialmente após ter comparecido aos espetáculos tantas vezes. A confirmação a impressionava tanto quanto a impressionaria caso ela vivesse no outro lado do mundo e

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jamais tivesse saído de uma caverna. Nunca escutara a voz dele com tamanha proximidade. Suave... quase um canto. Engoliu em seco. Não conseguia se mover nem contornar a mudez.

– Boa noite – arriscou usar as cordas vocais.Ela se inclinou para beijar o dorso da mão dele; contudo, ele a tirou de

seu alcance. Dominó sentia o rosto arder de vergonha. Não era tímida, mas o fascínio que nutria pela lenda a um palmo de distância lhe cei-fara a naturalidade. O Imperador não estava oculto na plateia e ela não dançava para todos, não, enxergava-o com nitidez, as rugas, os cabelos brancos, seu olhar cheio de reconhecimento. Era enxergada por ele.

– Vamos? – a mãe perguntou a ela de sobrancelhas erguidas.Dominó fez que sim. As cordas vocais não davam resposta.– Até amanhã, Regina. – O Imperador perdeu-se por um par de

segundos mirando Dominó e prosseguiu: – E sobre o que estávamos conversando, não creio que haja motivos concretos para preocupações. Manteremos a mesma postura e exploraremos as alternativas.

Dominó não tirava os olhos deles. Havia cumplicidade entre o Impe-rador e a mãe. Por que ela nunca comentara nada? Como se esquecera de falar que desempenhava um papel tão caro ao Imperador? Agora, Dominó não tinha dúvidas de que a mãe não era tão somente a assis-tente do Conselheiro Real.

– Boa sorte na apresentação – disse o Imperador, vidrado nela. – Es-tarei no camarote como de costume.

– Boa n... noite, senhor Imperador. Espero que o senhor goste do espetáculo.

Colocou-se junto à mãe; voltaram pelo labirinto de corredores. Du-rante o caminho até a casa, ambas ficaram quietas e reflexivas, cada qual com seus pensamentos. Parte de Dominó estava estupefata por ter conhecido o Imperador em pessoa, ao passo que outra parte tentava perdoar a mãe por não ter esclarecido a real proximidade que tinha do homem. Ela não mentiu esse tempo todo, só ocultou bem a verdade. O ar des-preocupado da mãe dava a impressão de ela não ter feito de propósito.

Terminavam o jantar, um cozido de espinafre com canela, quando a bailarina não suportou a curiosidade:

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– Não sabia que você andava com o Imperador mesmo sem o Con-selheiro Real.

– Pois é... Não sabia? Curioso.Dominó semicerrou os olhos. – Eu não fazia ideia. Pensava que você só ajudasse a organizar os per-

gaminhos do Conselheiro Real, não que lidasse também com assuntos do Imperador. Porque é isso que você também faz, não é? Percebi o tom da conversa. Ele confia em você.

– Você acha? – A mãe riu. – De qualquer jeito, fico impressionada com a sua audição. No entanto, sempre tive certeza que você era especial. Que os seus sentidos eram delicados. Você sente a música como ninguém. E falando nisso, já está tarde, não quer descansar para a apresentação?

Em silêncio, Dominó concordou. O momento não era propício para terem aquela conversa; talvez nunca houvesse um momento propício. Independentemente da função da mãe no Palácio e da sua relação com o Imperador, Dominó não descobriria nada insistindo – aprendera essa valiosa lição após anos de convivência com a mãe, cujas espertas mudanças de rumo durante uma conversa faziam qualquer um desistir da teimosia – e, além do quê, precisava mesmo guardar energias para o dia seguinte.

Arrumou-se para dormir e não tardou a se perder em devaneios oníricos.

– Não! – Dominó gemeu ao despertar.Era dia e sua mãe já devia ter ido para o trabalho novamente. O som

de crianças brincando invadia o quarto, mesclado ao pio das aves que decidiram explorar as redondezas. A jovem pingava de suor. Já não se lembrava do pesadelo que acabara de ter. A primeira coisa que fez foi tomar banho, lavar-se lentamente. Passou uma loção de óleos vegetais no corpo. Jasmim. Pegou duas maçãs e dirigiu-se à Companhia. Comeu as frutas no caminho enquanto, à toa, se esforçava para reviver as ima-gens do sonho. Escaparam-lhe.

– Minhas daminhas, vamos nos alongar! – animava-as a Sra. Quin-dim.

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Nos dias de espetáculo era de praxe que as dançarinas se reunissem na Companhia já de manhã, antes do almoço, para que nenhuma se atrasasse. Praticavam exercícios de respiração e aquecimento para acostumar o corpo aos movimentos intensos que realizariam horas depois. Ouviam os discursos da coreógrafa e também do diretor da Companhia. Eram as palavras de sempre, sobre a importância da música e da dança, sobre a noção que deviam ter a respeito de sua influência no Império e na vida dos cidadãos. Dominó não se importava com me-tade daquilo, embora fingisse prestar bastante atenção. Pareciam-lhe discursos insossos, mesmo que os frequentes gritinhos de excitação da Sra. Quindim demonstrassem o contrário.

E se aquele fosse o último espetáculo?Nunca cogitara a possibilidade de a Companhia estar ameaçada. Se

até o Templo entrava em conflito com o Imperador, tudo podia acon-tecer. Se até o Império passava por tempos difíceis, quem daria valor à dança? Nem ela, mera bailarina, seria capaz de salvar a sua paixão. Só lhe restava esperar e ver. Só lhe restava dançar enquanto houvesse a dança.

Assim sendo, mais tarde, enquanto o sol começava a se pôr pelas janelas basculantes dos bastidores, recobrou por inteiro os sentidos. Recebera buquês de boa sorte no camarim: um do Imperador, rosas e tulipas; o outro, mais modesto, da mãe. A primeira metade da apre-sentação tinha terminado, as bailarinas saíam de cena em grupos. Sua hora havia chegado. Lá de baixo, a Sra. Quindim desejava algo com os lábios. O camarim agora estava longe. Dominó testou os cabos que a seguravam no alto para ter certeza de sua firmeza. À medida que as luzes passavam de tons frios para quentes, ela descia sem suporte para os pés, sustentada pelos fios invisíveis. Os holofotes apontaram inteiramente para ela, cegando-a. Afora fragmentos de vultos à plateia, ela não distin-guia ninguém, percebia apenas um anfiteatro lotado. Vivia por aquilo, pensava que era por aquilo que morreria. A dança era a sua religião.

Assim que a primeira nota ressoou, estendendo-se em um eco agudo, a bailarina assumiu a primeira posição, cruzando os pés e enchendo de ar os pulmões enquanto preparava os braços para o que viria a seguir. A música retornou em um ritmo frenético e ela a acompanhou sem vacilar. Entre saltos com ambas as pernas esticadas, arremessos de mãos para

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cima e piruetas que desafiavam a lei da gravidade, a bailarina se entre-gou. O palco estava ali para ela, e ela sem dúvida estava ali somente para o palco. Apresentaram-se em uníssono, cúmplices de passos delicados e emoções que se lançavam à plateia através dos gestos da intérprete.

A melodia ora exigia um compasso veloz, desequilibrado e arriscado, ora se fechava em burburinhos que, embora não exigissem tanto equi-líbrio, roubavam-lhe a força muscular em saltos e quedas feitos com a ponta dos pés. Como se ela mesma trouxesse o fulgor da Estrela ao espe-táculo, movimentava-se com mais destreza que os holofotes, unindo-se às luzes, às cores, ao todo. Enfim, reverenciou a plateia, dissolvendo-se, mantendo a posição com excelência até o descer das cortinas.