Porto Flutuante

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A vinda dos "Ferreira da Silva" para a Amazônia

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Literatura Familiar

Manaus - Amazonas2012

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Roteiro dos Capítulos

1. Apresentação – Alberto Nunes Lopes2. Introdução – Alberto Manauara3. Raízes pernambucanas de Itambé – Fátima Cristina3.1 A Proa – Alberto Manauara4. Chegada a Manaus – Alberto Manauara4.1 Os igarapés e o rio – Alberto Manauara5. Hermes e os irmãos – Alberto Manauara6. Osmarina e os irmãos – Simey Maria e Pedro Américo7. A Família de Alberto – Alberto Manauara7.1 Núcleo Viana Lopes (do pai)7.2 Núcleo Pinheiro Nunes (da mãe)7.2.1 A tartarugada e a Cachoeirinha7.2.2 O Comandante Elpídio Nunes7.3 Rio Negro da cidade8. Desaguando nos dias de hoje – Alberto Manauara8.1 Porto de Lenha – Alberto Manauara9. Consultas bibliográficasMeus Poemas Preferidos, 1966 – Manoel Bandeira.Contos do Camelô eletrônico, 1992 – Alberto Manauara.A Pena d’ água e a revelação do negativo, 1993 – Alberto ManauaraManoa-Mixtu, 1995 – Alberto Manauara.Humor da Vazante, 1999 – Alberto Manauara.Poesias – Manaus, 2.008 – Alberto Manauara.A Flauta da água doce, 2.008 – Alberto Manauara.10. ExtrasI – Inclusão de fotos com as respectivas anotações sobre o conteú-do, núcleos de Itambé, Manaus, Rio de Janeiro e São Paulo.

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II - Anotações sobre os dissertadores.PosfácioTemas: “As redes de dormir”; “Flutuantes e outros negócios”; “A procissão fluvial”; ”Anjos da Madrugada” e “A caldeirada”; textos de Alberto Manauara.Ilustração de Bapiá.

Bapiá 1980 - A Floresta Encantada

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1. Apresentação

Quando as cortinas bordadas se abriram logo surgiu no banho de luz o ho-rizonte líquido revelando as margens do rio-mar e, junto às espumas da água doce, todos os corpos foram submetendo-se ao ritmo das correntezas.

Verificara-se, então, que muitas dessas espumas, além de outros motivos que ali apareciam, como por exemplo, os lava-pés, ilustravam os remansos; e todos os detalhes se dedicavam tranquilamente horas e horas rodopiando na-quele leito morno, até cansar a vista.

Não havia dúvida! O navegador estava frente a frente com as intimidades do caudaloso rio Amazonas; além do que, ao seu derredor florescia a exuberância da selva verde. Subto, tocado pelo respingo da água no rosto, não saberia preci-sar se o sonho já teria acabado naquele reinício de manhã ou, se estava se inau-gurando na confirmação da continuidade das horas da tarde. De novo tudo aqui-lo - água e floresta - se apresentava na subida monótona da correnteza, sempre pesada, cada vez mais pesada vencendo o turbilhão das águas barrentas.

A chata conhecida como “Vapor” insistentemente singrava no leito do rio e daqui a pouco os passageiros estariam desembarcando no porto da cidade de Manaus, bem ao Norte do Brasil, atualmente destacada pela importância junto à preservação da biomassa do planeta Terra. Mas, que, naquele momento tudo parecia incomensurável, apenas preenchível por uma contrita manifesta-ção íntima e sentimental.

Foram estas as impressões registradas com a vinda dos representantes da família “Ferreira da Silva” de Itambé – Pernambuco em 1.924, destacando-se na delimitação das páginas deste livro a saga dos personagens da vida real Joaquim (Quincas) e Elvira (Nesinha), que um belo dia, em sua terra de origem, antes da grande viagem houveram por bem se unir em matrimônio.

E, daqui pra frente, seguirá a descrição de mais uma jornada amazônica, a partir do primeiro contato firmado por eles com a realidade dos rios Amazonas, Negro e o Solimões; bem como, tantas outras distinções, se levado em conta

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ainda as características geográficas e culturais da cidade de Manaus à época do látex da árvore da seringueira.

Também será descortinada, mesmo sendo limitados os registros familiares, mais uma página desta imensa nação brasileira. No caso concreto, construída com a participação dos pioneiros que vieram para o Brasil. Destacando-se ainda a participação daqueles que aqui já estavam e, que, na coexistência da bravura e no empenho dos trabalhos modelados pelos laços afetivos entre brancos, ne-gros e índios projetaram a formação cultural desta nação.

A migração dos povos, hoje habitantes do território da região Norte e do Nor-deste, formulou na imensidão da abstração amazônica o aprimoramento da sua própria gênese. E este é o traçado inicial de uma sensibilidade sempre crescen-te a ponto de não mais ser possível separar indivíduo e natureza.

A contemplação da gigantesca selva, ladeada ora pelas barrentas águas, e também pelas águas aparentemente escuras, emoldura o presente mistério fazendo com que nos acompanhe, até mesmo, tempos e tempos depois.

O clima é úmido e quente. Chove bastante! O rio de seis em seis meses trans-borda. A natureza sempre é exuberante em seus tons e semitons, com a prepon-derância vista de longe da cor verde e seus matizes. Tudo isso faz parte de um momento que se tornou muito especial para a região – O Ciclo da Borracha.

Assim sendo, a proposta desta leitura segue esta mesma linha do tempo reaproximando passado e futuro.

Manaus-AM, 08 de agosto de 2011.

Alberto Nunes LopesOrganizador.

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2. IntroduçãoAlberto Manauara

Antes de conhecer o rio Amazonas, um novo sonho invadira a alma de Quin-cas, sem abandoná-lo um só instante.

O motivo que até então o fazia sonhar, espécie de sonho coletivo do povo nordestino, alimentado pela cultura da cana-de-açúcar, havia se transformado para ele, dia após dia, no flagelo das terras áridas, agora quase desérticas.

O novo sonho, pelo contrário, era novamente a expectativa de fartura, abun-dância de água e a incidência de outros motivos capazes de entusiasmar Quin-cas para as aventuras em que estava sendo levado; muito embora este novo horizonte estivesse situado muito longe de sua terra natal.

E ele vinha se preparando paulatinamente para evitar que na partida se en-chessem os olhos de lágrimas em copiosa saudade. E com as doloridas lem-branças de todos os parentes e demais amizades que constituíam em sua cabe-ça e no seu coração a paisagem do velho canavial, assim ele pudesse sempre ficar cada vez mais forte e que nada o fizesse esmorecer dos seus sonhos.

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Continuava sentindo pena do gado emagrecido, confinado, cercado pelo curral e outros tantos alarmes com que se apregoava o castigo da seca; mas, também, ele mantinha-se alerta para o sopro do vento tocando o seu destino. O seu coração estava voltado para posição de uma vela que se dirigia mais e mais para o Oeste.

Joaquim Ferreira da Silva era seu nome de batismo e de certidão civil de nas-cimento. Seu apelido era carinhosamente “Quincas” no meio familiar. Nasceu na Paraíba em 14 de julho de 1.891 e faleceu em Manaus em 25 de junho de l.946. Seus pais se chamavam João Ferreira da Silva e Laurinda Ferreira de Lima.

A trajetória dos seus dias de desbravador na Amazônia será revelada por três dissertadores: Alberto Manauara, Fátima Cristina e Pedro Américo, com a colaboração de depoimentos de parentes e amigos que conheceram as situa-ções enfrentadas e que conviveram no íntimo cotidiano compartilhando todos os momentos desse caminho de trabalho, existência e conquista.

No mais se destaca a cidade de Itambé na Paraíba, Manacapuru e Autazes no Amazonas. Todas essas reverberam suas influencias culturais nos aconte-cimentos que serão a seguir projetados; além do que, através da inclusão de textos de Alberto Manauara no perfil do posfácio deste livro, muitas paisagens e sentimentos também ficarão registrados de forma a dar mais realce a trajetória que começa com o casal, mas que supera a individualidade e se manifesta em uma prole cada vez mais conquistadora de vitórias.

Por fim, vale destacar a idéia de flutuação. O Porto da cidade é flutuante e fora construído pelos ingleses. Ao mesmo tempo, o empreendimento de Quin-cas, o seu comércio na “boca” do rio Manacapuru, também era flutuante.

Flutuava na flor da água do rio graças a uma madeira de flutuação, encon-trada nesta região, cuja propriedade era a de que quanto mais dentro d’água permanecia muito mais resistia ao tempo, sendo denominada na região, vul-garmente, como “açacú”; inclusive, é possível verificar seu detalhamento no dicionário das palavras brasileiras.

Necessário registrar, ainda, que na margem esquerda do rio Negro em frente à cidade conhecida como a “cidade do Teatro Amazonas” – Manaus, ali havia até a década de sessenta uma verdadeira cidade flutuante, cujos ha-bitantes foram transferidos para os conjuntos habitacionais construídos pelo poder público nos bairros da periferia; e, essa cidade construída em cima de bóias de açacú guardava o segredo de como viver na flor d’água, sempre na perspectiva de um horizonte líquido.

─ Então vamos ao início dos acontecimentos!

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3. Raízes pernambucanas de ItambéFátima Cristina

Dizem os sonhadores:─ “Quem lê viaja! Tem a oportunidade de descobrir e conhecer o desconhecido”.Ao reconstruir o caminho percorrido de Itambé até a Amazônia, mais especifica-

mente até a cidade de Manaus, a idéia é mesmo induzir o leitor a refazer a viagem e conhecer a história que começou anos atrás. Espera-se que este relato possua a mesma vibração do passado, tanto quanto seja possível emprestar essa mesma vi-bração-emoção ao presente, pois este é o empenho da dissertação que ora se inicia.

Ao chegar a uma pequena cidade brasileira, localizada na Mata Norte do es-tado de Pernambuco - Brasil, a qual tem seu nome oriundo da Língua-geral dos Tupi-Guaranis, se ouvirá alguém repetir o quase sagrado nome Itambé.

Este nome, enquanto tal foi escolhido para fazer a representatividade de um núcleo populacional, cuja expressão no rosto, no coração e na palma da mão traduz, de algum modo, o significado de “Pedra amolada”, “Pedra afiada” ou “Pedra de fogo” na linguagem geral dos povos indígenas do Brasil.

Ribeirinhos

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Nesta leitura, se faz gosto levar o leitor também a viajar por seus recantos. Conhecer a importância deste chão que bebeu o suor de muitas famílias e, que, pela característica limítrofe, tornou-se importante para a história do estado de Pernambuco tanto quanto ao da Paraíba.

Nessas circunstâncias é uma aventura caminhar na divisa dos dois esta-dos sem maiores divisores aparentes; bem como, sentir que a sua popula-ção tem comungado de igual modo com os desafios cotidianos do Nordeste brasileiro. E ao mesmo tempo o sonho e a realidade se convergem para a projeção das histórias de família. E, dentre outras, destaca-se a família Fer-reira da Silva, de Itambé - PE.

No seu início, por volta de 1.789, Itambé era um povoado do Desterro. As-sim ficou reconhecido por haver seu núcleo populacional sido desenvolvido em torno da Igreja de Nossa Senhora do Desterro. Hoje se verifica que quanto à referida igreja restam apenas suas ruínas. E todos os anos a população itam-beense e o pároco realizam a procissão que sai das ruínas e percorre a cidade. Ao final do cortejo é celebrada uma linda e emocionante missa campal. E por todas essas homenagens Nossa Senhora do Desterro hoje aclama o título de padroeira da cidade.

Em 1.879, Itambé conheceu a sua emancipação política. Com uma área geográfica de 316 Km2 tem um clima agradável, que faz com que aquele que chegue à cidade pela primeira vez queira um dia estar de volta.

Historicamente Itambé é conhecida mundialmente como “o berço” da Maço-naria brasileira, por haver construído (ou constituído) a primeira Loja maçônica no Brasil. O Areópago de Itambé, conhecido popularmente como “pirulito” - de-vido ao seu formato - dizem guardar relíquias da história do nosso país.

Os Itambeenses têm orgulho de poder apontar dentre outros vultos impor-tantíssimos o nome do Capitão General André Vidal de Negreiros – fundador da cidade-freguesia; Dr. Manoel de Arruda Câmara – criador da primeira loja maçônica; e do monsenhor Júlio Maia, colaborador e padre por muitas décadas do instalado município.

Talvez você esteja indagando o porquê deste detalhamento a respeito de uma cidade longínqua, encravada no sertão pernambucano. Nosso objetivo é o de fazer o leitor entender os acontecimentos que se desenrolarão na presente saga do casal emigrante. Conhece-la e desejar visitá-la.

Cercada por monumentos históricos do fim do século XIX, a cidade chega a ostentar um passado de glória e luta. Politicamente, tratava-se de uma oligar-quia, e seu desenvolvimento sempre fora precário. Porém, sempre trouxe nas suas aspirações e nos seus sonhos a vontade de ver instalada uma fábrica em seu território. Esta era a simbologia da visão de progresso.

Outrora, a cidade abrigou engenhos de açúcar como Lajes Figueiredo e ou-tros mais. Contudo, hoje no século XXI, Itambé é uma cidade praticamente ur-bana, com mais de 40 mil habitantes. E continua com a sua monocultura, a qual

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já não tem como se manter em grande prosperidade, muito embora continue sobrevivendo da mesma base econômica.

Rica em jovens sonhadores, Itambé desaponta bastante seus filhos, que ao se tornarem jovens não conseguem sua independência financeira por falta de políticas sociais e de absorção de mão-de-obra.

Mas, foi nesse cenário que nasceu uma linda e sofrida história de amor compondo assim uma família trabalhadora, a qual recebeu o sobrenome de Ferreira da Silva.

E essa família foi a que juntando o sonho e o amor se propôs a escrever este livro no seu cotidiano, no qual ficasse registrado o conhecimento sobre o comportamento e a atitude de quem ama e quer vencer. Deste modo, este livro foi escrito primeiramente com a pena da vida real, com todos os caprichos do destino. Talvez seja possível, agora, apenas repetir o seu realce emocionante.

Em 1.891 nasce em Campina Grande - estado da Paraíba, Joaquim Ferreira da Silva (Quincas). Seus pais foram João Ferreira da Silva e Laurinda Ferreira de Lima; Em 1.894 nasce em Itambé - estado de Pernambuco, Elvira Ferreira da Silva meigamente apelidada de “Nesinha”, filha de Francisco (tio Chiquinho) e Francisca (tia Chiquinha). Eram primos legítimos.

O destino traçou o encontro desses dois, despertou neles o sonho da união e logo no início do convívio sentimental a dor da separação. O Nordeste brasileiro estava passando por momentos de dificuldade econômica, isto acontece até hoje, parece ser de praxe. Joaquim veio a Itambé ver Elvira e lhe prometeu amor; mas, como realizar este sonho sem as condições financeiras necessárias para começar a vida?

Nessa mesma época o bando de cangaceiros de Lampião estava amedron-tando algumas cidades do interior. O medo e a fome provocaram uma espécie de êxodo para os nordestinos, que tantas vezes deixavam suas famílias e iam a busca de uma vida melhor.

No Norte do país o Ciclo da Borracha estava atraindo muitos trabalhadores, e Joaquim foi um deles, pois queria realizar seu sonho: casar com Elvira. Antes de partir, disse que voltaria dentro de quatro anos para levá-la consigo. Partiu, contudo não o fez sem que tivesse deixado seu compromisso mais do que apalavrado.

Enquanto o tempo passava, a prometida Nesinha assim chamada na intimi-dade familiar continuava sua vida pacata, pois assim viviam as “moças de famí-lia”, trabalhando, fazendo o que os pais determinavam e se preparando para ser esposa. Papel reservado para a mulher naquela época. Pensar em estudar, ela sabia que não havia chance.

O tempo passava lentamente. Naquela época a diversão do nordestino era o mês de Maio, pois tinha a oração do Terço todas as semanas. Esta era a única maneira de se distrair, sair de casa e conhecer outras pessoas.

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Numa tarde ensolarada, quatro anos depois, bate à porta da casa de Nesi-nha um moleque com a mala que alguém tinha mandado. Todos ficaram surpre-sos, mas nesse tempo a hospitalidade superava o “mau caratismo” e os pais de Nesinha guardaram a bagagem que chegara sem dono.

“À boquinha da noite”, expressão muito usada pelos nordestinos, ouviu-se palmas frente a porta da casa de Nesinha, seu pai e toda a família foram até a sala para ver quem era. Lá estava Joaquim para cumprir a promessa que fizera a Elvira. Voltara para pedir a mão dela em casamento.

Em pouco tempo o casamento se realizou e os noivos partiram para a ci-dade de Manaus. Nessa altura dos acontecimentos a moça não podia namorar por muito tempo, pois poderia ficar falada, quer dizer, imaginavam que ela já estivesse praticando muito antecipadamente o sexo. Outro tipo mexeriqueiro da conduta nordestina naquelas plagas!

Joaquim e Nesinha deixaram para traz todos os parentes e foram construir sua família em Manaus. Trabalharam muito e conseguiram juntar uma pequena fortuna. Joaquim participava do crescimento da nova cidade e, no fim da década de 1930, já era considerada uma família muito próspera.

Tiveram oito filhos; um deles, o Hermes, este se casou com a bela Osmarina e dessa linda e duradoura união nasceu uma bela filha – Simey Maria, mulher valente, determinada e que desde menina não perdia contato com a família de seus parentes que viviam em Pernambuco.

Cresceu, tornou-se moça cobiçada pelas belas qualidades e aos 21 anos co-nheceu o felizardo Alberto, pessoa sem outra igual; começaram a flertar e com três anos de namoro e noivado foi marcado o dia de suas vidas e uniram-se.

Os nubentes escolheram a cidade de Manaus como cenário para o enlace. O ano abençoado foi 1.980, no mês de Outubro e o dia daquele momento tão esperado por todos foi o dia 25, o qual coincide com o dia do aniversário do pai de Simey Maria. Assim, ela e o Alberto uniram-se em Manaus e conseguiram montar sua aconchegante residência, pois ambos trabalhavam na mesma cida-de; ele na Procuradoria de Justiça e ela na Assistência Social da Assembléia Legislativa, também do Amazonas.

Para eles olhar Manaus é ver o trabalho de construção de seu povo e por cada canto tem uma história a ser contada. O Teatro Amazonas inaugurado em 1896, com a admiração do mundo inteiro, é uma relíquia de arquitetura para embevecer os olhos dos seus visitantes e, ainda hoje, continua despontando como pólo de cultura.

Logo no começo do governo de Eduardo Ribeiro (negro maranhense) fora construída a famosa ponte da Avenida 7 de Setembro, obra que historicamente conta um pouco dos desafios amazônicos quanto a sobrevivência nos muros da cidade, apontando a existência da segregação racial na complexidade da ambiência de culturas contraditórias.

E tantos outros locais-monumentos também foram construídos, como por exemplo, a Caixa d’água do Mocó, que as mãos calejadas dos operários ne-

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gros, índios e arigós, porém cheias de determinação, ajudaram a esculpir e a soerguê-los. Significa ainda, talvez esses operários não chegassem a usufruir dessas obras monumentais, deixando para seus descendentes as concretas lembranças, memoráveis.

Simey Maria e Alberto têm um lindo filho Rafael, dono de uma presença ad-mirável, sucessor de uma linda história.

Ao mesmo tempo, não posso deixar de mencionar nessa história tão envol-vente, pessoas especiais como a tia Rosa, Neném e Carminha. Parentas que vivem no Recife, mas que sempre se fizeram presente na vida dos manauaras. E tantas vezes elas vieram passar férias em Itambé. Itambé, doce Itambé! Berço aconchegante para se curtir a infância.

No ano de 2.010, especialmente no dia 18 outubro, houve em Recife um acontecimento social e histórico para a família “Ferreira da Silva”, que foi a come-moração dos “cem anos” de vida de Rosa, carinhosamente chamada de tia Loló.

Parentes de todos os lugares do Brasil vieram prestigiar essa magna data. Todos os acontecimentos agradáveis no encontro de gerações e gerações ocor-rido naquela noite ficaram registrados na mente e no coração dos parentes e amigos que participaram alegremente do evento do Centenário de Rosa.

Alberto, Simey Maria e Rafael além de rever toda a “parentada”, foram des-pertados pela emoção para resgatar a história dessa família, que com a disper-são vivem em vários estados do nosso país e, até, em países estrangeiros.

A partir desse grande encontro e dessa vontade de Alberto e Simey Maria em reaproximar toda a prole Ferreira da Silva, começou o trabalho de busca sobre a vida e sobre o percurso que foi trilhado pelos personagens reais.

Em 2.007, Simey Maria presenciou a partida do seu pai para a eternidade; anos depois, em 2.009, se deu a partida de Osmarina, sua mãe, a qual foi ao encontro do amor eterno. E, assim, Simey Maria, Alberto e Rafael ficaram sem a companhia física dessas pessoas maravilhosas; mas, que, espiritual-mente sempre estarão presentes.

Em 2.011 tornou-se apropriado para o início do trabalho de resgatar a histó-ria de seus pais fazendo com que a família de Simey Maria conhecesse a cidade de Itambé – PE, local de origem desta especial história familiar.

E no mês de Janeiro chegaram a Itambé e visitaram os parentes, tias e primos, e fotografaram tudo que lhes chamava atenção: monumentos, praças, a igreja matriz, a linha divisória entre o estado da Paraíba e Pernambuco, os parentes e tantas outras paisagens geográficas relevando as lembranças dos canaviais e tantos outros costumes da terra.

Ouviram das tias Carminha, Loló e Neném, contos e fatos que marcaram a vida de Nesinha e Joaquim, passagens de acontecimento da vida dos “Ferreira da Silva”, até então desconhecidas para Simey Maria. Foram momentos ines-quecíveis e que deram subsídios para a montagem do roteiro deste livro. Uma história que encanta fazendo o leitor viajar em águas rasas e profundas.

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Pois bem, para o feliz casal de nordestinos – Quincas e Elvira, intimamente chamada de Nesinha, quando para Manaus decidiram partir desde então os cenários foram mudando.

Eles viajaram do porto do Recife até o porto de Belém em quatro dias, em navegação de cabotagem.

De Belém para Manaus, cuja distância é maior do que o trajeto anterior, eles viajaram em barco regional, conhecido como “chata”, a qual era movida a vapor; e essa trajetória consumiu mais de uma semana de estirões e paradas para o abastecimento de lenha que alimentava as caldeiras.

A perspectiva das vidas no cenário da natureza e dos sentimentos, em ebulição, pode ser descrita no tópico-quadro a seguir projetado, no gozo das seguintes palavras.

“A proa”

Quem estivesse indo a algum lugar, naquelas paragens, deparava-se com a proa do barco que cortava a água do rio fazendo beiço, um de cada lado. O impacto da água na proa fazia um ruído característico que se misturava com o compasso cadenciado do motor de centro. Quem não estivesse vendo o contato da água com a proa de madeira, pintada a óleo, compararia com o ruído de uma lixa. De vez em quando o banzeiro mais forte ao se chocar nas paredes do barco parecia, finalmente, gotas d’água pingando. Logo em seguida novamente ouvia-se apenas o lixar, a fruição contínua e passageira. A cadência de uma respiração monótona e unívoca.

Carminha

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O barco avançava cortando a água em duas enormes fatias o tempo todo. As margens sempre se distanciavam na medida em que o barco avançava, parecia que as curvas tinham desistido de suas irreverências, nem para direita nem para esquerda. As margens no infinito acompanhavam constantemente a ponta que correspondia à proa do barco dando a impressão de uma cena imóvel. Mas, não era possível estar o barco parado. Não era possível que as margens não fossem terminar. Nada era impossível até que uma vontade mais forte se convencesse ao contrário. Contudo o mundo todo parecia trepidar. Uma trepidação monótona e constante transmitindo a sensação de que o bar-co mais cedo ou mais tarde poderia se desintegrar.

Parecia que as largas tábuas pregadas nas costelas de amarração a cada segundo se distanciavam milímetro a milímetro. Afastavam-se para logo em se-guida retomarem ao mesmo lugar original. E quando as tábuas se deslocavam a água barrenta do rio invadia os porões no que podia. A seguir, como por várias vezes as águas invadiam os espaços era de se esperar que logo o barco se enchesse d’água, porém não acontecia. O barco apenas avançava pressionado pelas continuas margens e no mesmo mono-ritmo, assim a água invasora podia ser expulsa através de uma bomba elétrica.

A cena parecia continuar imóvel. Mas, o barco avançava na sua monotonia de quem vai consumindo gota a gota, palmo a palmo, uma estranha correnteza.

Ao olhar as tábuas secas que cobriam o chão superior da proa percebia--se algumas delas corroídas pelo efeito do apodrecimento causado pelas águas. Os imperceptíveis respingos se acumulavam no assoalho durante toda a viagem. O vento era quem podia controlá-los, enxugá-los, mas sendo o caminho abafado, longe das correntes de ar, os respingos permaneciam por oras e oras sobre o assoalho.

A cena abafada e parecendo imóvel apenas trepidava inexorável. O ruído não silenciava. Nem mesmo se a palavra acabasse para quem estivesse con-versando admirando a paisagem em conjunto. Nem mesmo quando nas mar-gens apareciam as cabeleiras das árvores mais altas em contraste com a es-pessa folhagem das mais baixas, reunidas por detrás de uma cortina de cipós.

Apenas serviria para auxiliar, muito mais, a mesmice da paisagem em derredor. Da ponta da proa do barco para frente tudo parecia igual, para sempre uma monotonia. Algum súbito espanto era afastado pelo ruído do motor. Quando a paisagem da proa estava enlouquecida, absurda, porque o barco avançava sempre com a mesma regularidade, era de se esperar que surgisse de qualquer direção da margem algum sinal diferente, uma coisa diferente! Mas, as margens sempre se faziam opostas e nenhum detalhe diferente acontecia. Por algum instante alguém talvez imaginasse o surgi-mento de seres estranhos, animais selvagens, trazendo novo motivo para o ambiente. Era de se esperar tão somente, por que era pouco provável que algo de diferente efetivamente acontecesse.

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De se esperar... Uma espera que não combinava com o avanço regular, com a trepidação, com as duas margens eqüidistantes, com a proa, com o ruído que não saia de dentro da cabeça como o martelar de um compasso. Com tudo isso, com tudo aquilo, com aquele ritmo mórbido, repetia-se a mesma coisa, com este; um destino certo, infalível, costumeiro, o qual, muitos seres já o trazia consi-go decorado em suas mentes e nos seus corações desde que nasciam.

O destino cortado em caminhos. Caminho de águas cheias, aparentemente calmas, mas que somente aqueles que lá trafegavam sentiam na monotonia o poder da força contrária. Ao ruído então ensurdecedor cederia a tranqüilidade dos nervos reatando a impessoalidade da angústia. Porém, muito mais irritaria uma picada de inseto do que saber se aquele era um destino digno de aventura. Bastava desvia o olhar. Passasse qualquer coisa flutuando um tronco de árvore, uma plataforma de capim, sementes de frutas selvagens, nada importaria em se saber a que destino tudo aquilo estava sendo levado.

Bastava desviar o olhar para reencontrar a mesma paisagem querendo ser capaz da sua própria expressão através de seu contexto vivo - morto, mesmo assim, sem esperar pelo gesto a ser transmitido, o barco avançava e deixava aquela eventual oportunidade ficar para trás. A angústia permitia que o ambiente violento do anonimato se apoderasse de tudo aquilo res-tando apenas a vagueza da contemplação. Quando amanhecia uma densa fumaça cobria as margens como se alguém zeloso com o seu estofado da sala de visita o cobrisse com um lençol branco contra a poeira. Assim acontecia quando pela manhã o sol rapidamente esquentava antes que desse tempo de que todos os passageiros pudessem lavar a cara. O outro dia pressupunha uma nova expectativa, porém o estirão da água do rio apresentava-se mais longo ainda.

E o dia que começaria límpido com o azul estrelar da noite anterior inicia-va a emoldurar-se na mesma paisagem na medida em que o lençol de vapor ia desfazendo-se. Minutos depois acabava revelando-se com suas austeras margens. Por pressuposto, imaginar a noite feita de descanso é a sentinela dos sentidos que ao acordar faria com que nada daquilo fosse esquecido. Repetia-se a monotonia. O barco avançaria na sua mesmice. A proa continu-aria empinada cortando a água.

A contemplação recorre aos seus elementos de beleza para persuadir. Assim o tronco maciço da árvore da margem cujas raízes aparentes se entrelaçam à beira do rio como uma geometria poética assume aos olhos e ao interior a pos-sibilidade de alguma explicação.

Uma explicação que acontece juntamente com o suspirar profundo é a possibilidade de locomoção do ser, o seu translado, sem o ritual dos passos meio tombados, das braçadas fortes arrastando-se nas águas do rio. Tudo isso encontra guarida na alma dos mais sensíveis, cujo sentimento tenha se tornado uma bela vitória-régia. Pois a simplicidade da contemplação, aconte-

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cida depois que várias vezes o olhar é desviado, depois que a racionalidade cansada dormita e, então, o olhar se irradia numa expressão vaga, confunde--se naturalmente com o nudismo da paisagem.

Sem querer fica a impressão como sendo a de uma ave que levanta vôo de uma das margens, vai seguindo o rumo do barco até se perder de vista, restan-do apenas da sua imagem a sensação de um compasso quaternário esculpido pelos movimentos de suas asas longas.

De repente um grito de alerta de um outro pássaro escondido nas copas despertaria a todos. Muda-se novamente o olhar. O olhar distraído foge. Os acontecimentos desse momento sutil se desfazem no cenário das mesmas paisagens instaladas.

Vem pelos ares o alerta da vida ao próximo enxame de insetos. Iguais a ou-tros saqueadores estes se apoderam da perna exposta e novamente sangram--lhe em minuciosos furos. Alguns morrem esmagados pela defesa das mãos. Outros, fartando-se da vítima, desaparecem.

Tudo novamente retoma o ir e o voltar. O ruído do motor continuaria o mes-mo em seu mono ritmo. Com pouca pressa, com pouco caso, com pouca paci-ência, o desespero é o mais convincente, até o ponto de fingir que já esqueceu a monotonia por tudo parecer estar em silêncio.

Porém a trepidação continua monótona. A memória dentro da cabeça com o passar dos dias parece estar oca. O nó apertado do fio da malhadeira acaba sentido na garganta e a malhadeira de fios sujos pelo limo das águas do rio está ali, na proa, embolada, a mercê do foco do sol depois que o barco, de vez em quando, emerge das sombras das árvores plantadas nas margens.

A malhadeira escura serviria para dar a impressão de uma armadilha des-feita. O perigo de uma emboscada que se dissolveu com aquele amontoado de linha e nos, mas que, dentro dela, de outra maneira e numa outra oportunidade, poderia estar um animal preso com a sua corrupção, com o seu destino, com sua fúria, com seu medo afinal.

E as pazadas da longa hélice transversal feriam a água a cada momento que se aprofundavam. Deste modo, mexiam com os cipós que escorriam dentro d’água puxados pela correnteza, mesmo que estivessem presos às raízes dos caules mais fortes. O peso do barco remove a água que transfor-mava o leito do rio. Por cima do leito se formam as marolas no vai e vem das águas, as quais se tornam em roedoras do barro junto às barrancas. A sen-sação de estar perdido poderia invadir o ambiente quando aquilo tudo, pela sua repetição, contrastasse com a determinação das explosões do motor de centro que abafava os rangidos das tábuas.

Em derredor da máquina a água e o óleo convivem aquecidos pelo mes-mo calor e cheiro que se caracteriza diferente do lá de fora. Na proa, com a predominância do húmus em putrefação, conseqüência de milhões de folhas acumuladas no chão das margens, o cheiro é insípido, pouco volátil, demora a

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caracterizar-se. Com isso, acaba disfarçando-se, deixando predominar o cheiro secundário que chega de imediato mais ativo porque inusitado.

Assim, se tem a impressão de que o ambiente possa estar exalando o per-fume de uma flor selvagem; mas, tão logo quando se procura no ar essa fra-grância, para encher os pulmões com um aspirar profundo, não se encontra a tal fragrância no mesmo ambiente. Volta a prevalecer o embaraço naquela atribulada confusão de cheiros.

Na sala de máquina, pelo contrário, a qualquer momento o ar do ambiente pode ser reconhecido até mesmo de olhos fechados. Este invade todos os re-cantos com uma pertinência ácida. E logo vicia como um inebriar que se mistura com a trepidação provocada pelas contínuas explosões do motor. Este também é constante, está entranhado no âmago do madeirame, acaba se tornando jus-tamente com o resto das coisas, tão somente monótono.

O ambiente se manifesta igual ou superior ao ser. Diferente do discurso da contra-razão o ambiente não faz questão de ser lógico ou irracional. Simples-mente é quase impossível reunir as idéias dentro de uma cabeça, que por sua vez faça parte de um tronco e membro.

É quase impossível distinguir a realização da vontade. O que acontece, acontece sem nenhuma intervenção da vontade. Não acontece como no aquá-rio, com suas paredes de vidro, o borbulhar do oxigênio no interior da água, o súbito pressentimento da chegada do dono da sala. A luz que ele acende ou apaga, na chegada ou se ele já estiver de saída. O desejo de poder ficar es-preitando para que, pelo menos como no caso do peixinho dourado, este possa acabar morto pelo esquecimento da comida. E que o dono do aquário depois se arrependa, se lastime, e compre outro aquário.

Não, o avanço gradativo de dias e dias com a proa cortando as águas nada de improvisado poderá acontecer. A água começaria a pesar. Parecia que ia solidificar-se. Deixar de ser maleável. Água e mais água invadindo o interior, o íntimo. Continua a lavar e escorrer arrastando a ponta de qualquer acúmulo. A ponta que permanece em sua monotonia é a quilha da proa que não para de repartir uma única vez, com a mesma ordem, em um único tempo.

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Osmarina - normalista

Hermes em Manacapuru - AM montando no famoso cavalo ”canário

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4. Chegada a ManausAlberto Manauara

A cidade não tinha o nome com esta grafia atual - assim como está escrito acima. Perdoem à má intenção; mas, escrito desta maneira, com o “us” no final isto lembra a sigla United States ou a palavra inglesa traduzida como “Nós”. O escritor pode até aceitar a sua paranóia; mas, vejamos que a bandeira atual do estado do Amazonas lembra bem de perto a bandeira dos Estados Unidos. Coincidência? Ou, qualquer vexame? A cidade do início do século XX tinha seu nome grafado desta maneira: MANÁOS.

Manaus, capital do estado do Amazonas, situada à margem esquerda do rio Negro hoje contabiliza em torno de quatro milhões de habitantes. Naquela época esta cifra não passava de duzentos e cinqüenta mil habitantes. O que contava mesmo naquela época eram os acontecimentos que os ingleses traduziram como “Rubber Boom Time”.

Rio Amazonas

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“Os igarapés e o rio”

A cidade se projetava entrecortada por igarapés. Assim, as águas do rio Ne-gro separavam de um modo geral os bairros de São Raimundo e Aparecida. Este ficava mais próximo ao centro da cidade, ao passo que o outro era o mais distante. Por esta razão das distâncias, acreditava-se que o bairro de Aparecida era tido como um lugar privilegiado de se morar, o bairro em que todos aque-les que se achavam ascendentes sonhavam ali residir. E o próprio bairro mais antigo, talvez o primeiro, decorrente do tempo áureo da borracha dos seringais nativos, início do século XIX, conhecido como “Bairro do Céu”, acabou sendo tragado pelo bairro de Aparecida tido como o bairro de famílias tradicionalistas, de acordo com o costume da época.

Ao mesmo tempo, este mesmo afamado bairro possuía um cotidiano vio-lento, quase sempre motivado pelo excesso de bebida alcoólica, entornado da moringa sempre do mais moço, ou nem sempre. Um bairro, por certo, por estas e outras razões, ainda tido como de uma pronunciada ambiência boêmia que um dia viria a ser revelada, por ser bastante promissora já naquela época.

Porém, esta faceta esculpida nos acontecimentos de terra-firme não se compa-ra em nada com a alegoria das aventuras tidas como os acontecimentos do “hori-zonte líquido”. Explicitamente, diria o poeta, em frente a essa antiga cidade existia uma outra cidade flutuante a balouçar no perfil das águas de cada banzeiro.

Assim, tanto um bairro quanto o outro tinha em comum a circunstância de que seus quintais ficavam direcionados para dentro d’água do igarapé, que é uma espécie de braço de rio, no caso originário do caudaloso rio Negro, com as suas águas de uma coloração intrigante. Verificava-se que sob o sol radiante as águas do rio variavam da cor dourada até se concentrar em uma cor escura, talvez poeticamente explicitada como “petróleo”; mas que, se retirada em uma vasilha, simplesmente será límpida e transparente.

Com as suas águas límpidas, no seu conjunto, a sua reafirmada negritude fazia acreditar que em suas profundezas poderia haver monstros aquáticos. A começar por piranhas que apesar de relativamente pequenas eram sem-pre traiçoeiras e vorazes. Quase beirando á fábula, acreditava-se ainda na existência de uma tartaruga gigante, a qual estaria encalhada no fundo das águas há quase um século e meio.

Contudo, o mais espetacular dessas crendices e especulações era o comen-tário, sempre dos mais antigos, de que naquelas imediações havia uma imensa cobra conhecida muita das vezes como a “cobra Norato”, por certo encantada e, que, não se mexia causando a destruição dos barrancos do fundo do rio e da superfície porque na matriz de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da cida-de, a posição de seus pés de estátua estava aprisionando firmemente a cabeça da cobra grande, há muito tempo.

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Assim, quando se aproximava o temporal em que o céu ficava completamen-te escuro, metia medo, como se os deuses aborrecidos quisessem escurecer o céu e a terra, na expressão do volume das águas daquele imenso rio-mar.

Eu costumava a expressar-me, naquela ocasião, com o registro da ira de um céu plúmbeo, como se o mundo fosse acabar, por causa de tantas e tantas vilanias em terra firme perpetradas pelos homens. Desse jeito, eu sempre me socorria com a idéia que alguém já tivesse tido antes, ou seja: que lá no meio do rio, de repente, se levantasse uma tromba d’água, a qual inundaria em grande parte a cidade.

Mas, isto nunca aconteceu ou eu não cheguei a presenciar, apesar de haver desabado tantos temporais violentos, os quais com a sua ventania impiedosa afundavam os barcos regionais, construídos de madeira, que estivessem atra-cados nas margens, usualmente referidas como a “beira do rio”.

Assim como, tinha ano em que a enchente encobria grande porção de terras. E do rio Solimões, do qual o rio Negro está próximo, vinha à notícia de que esse continuava a demolir barrancos e mais barrancos em suas margens.

Como se fora um passe de mágica, mais dia ou menos dia, em algum ponto não muito distante, talvez na curva do rio apareceria uma ilha formada por aque-las terras caídas, arrastadas pelo grande volume d’ água da correnteza fluvial.

Na trágica lembrança sobre os acontecimentos motivados pela natureza ou pelo homem envolvendo o patrimônio aqüífero ficara ainda registrado: primeiro construíram as “galerias inglesas”; depois, se acumulou o esgoto das casas de moradia, das repartições públicas, quartéis, comércio, enfim de toda cidade; com isto todo o volume da sujeira produzida pela concentração populacional fora sendo despejada paulatinamente, anos e anos, nas águas do rio Negro, sem nenhuma preocupação com qualquer tipo de tratamento.

Ainda mais, do outro lado do igarapé, pelo bairro da Glória ficava o “Curro” e o curtume. E subindo a margem direita do mesmo, perto da localidade desde há muito conhecida como Bariri, ficavam as serrarias e a olaria.

Entretanto, naquelas margens, a única construção imponente comparável a um castelo medieval era a fábrica de cerveja conhecida como “Miranda Corrêa”, a qual ficava bem mais próxima do bairro de Aparecida.

Mesmo assim, o que havia em comum nessa bucólica paisagem, era que, desde há muito tempo, as águas límpidas do rio Negro vinham paulatinamente se transformando em um rio de lama, esgoto a céu aberto, de igual modo como já se transformaram muitos e muitos igarapés.

E hoje pode ser constatada esta deformação até mesmo daqueles braços de rio que cortavam o então longínquo interior da cidade. E um desses igarapés chama-se “Ponte da Bolívia”, e o outro, dos que agora eu me recordo o nome, chama-se cachoeira do Tarumã. Outros, mais próximos do centro da cidade, de-sapareceram soterrados à maneira como aconteceu com o igarapé do Espírito Santo e o igarapé do “Quarenta”.

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É o que se tem como notícia! A triste notícia!Quanto aos núcleos de habitação e outras localidades, diferente da coloniza-

ção ocorrida no Nordeste, com a cultura da cana-de-açúcar, onde os escravos negros ficaram concentrados no canavial e nas senzalas, na região Norte a migração foi residual e por período curto.

Por não ter havido uma atividade econômica, nesta região, com a extensão de mais de duas décadas, enquanto se tem notícia apenas do “Rubber Boom Time”, o ciclo inglês da borracha, final do século XIX começo do século XX (1.890 – 1.910), a disseminação da população tornar-se-ia abrandada pela falta de uma cultura extrativista-produtiva mais duradoura.

Diferente das circunstâncias intensificadoras que ocorreram no modelo nordestino de produção, bem como no ciclo da exploração mineral para as bandas das Minas Gerais e, finalmente, com a cultura do café; a época da borracha, vertida para o inglês como Rubber Boom Time, não foi propícia à escravização, muito embora o breve período entre o final do século XIX e começo do século XX, fosse o bastante para marcar a influência da cultura negra na região amazônica.

Ao mesmo tempo, outro motivo concorrente é o de que, as terras da antiga Província do Grão-Pará que englobava os atuais Estados do Maranhão, Pará e Amazonas, à época do Império, haviam se esfacelado em face das disputas inter-nas sobre a exploração das riquezas. E, por força da proximidade com o mar e da caudalosa foz do rio Amazonas, a cidade de Belém, nesse período, se tornara o principal porto de entrada de todos os negócios para a Amazônia Oriental.

Os navios vinham por Belém e a foz do rio Amazonas era a grande via de penetração. A migração de negros para a cidade de Manáos aconteceu pela via do Nordeste, não vinham do além-mar, não estavam ligados em direto de um destino a outro, como aconteceu com o povoamento do litoral brasileiro. E ain-da, na cidade de Manáos, o fluxo migratório de chegada logo ficara diluído em tão curto espaço de tempo, correspondendo ao breve ciclo da borracha.

─ E onde estão esses imigrantes?Os negros se não tivessem vindo para esta região, Manáos seria muito mais

triste, sempre açoitada pelo marasmo imposto pelo ambiente selvagem e iso-lado. Circunstancialmente se instalaram nos bairros distantes, mas que, logo foram conjugados ao antigo centro da cidade, cujo ponto de referência passou a ser o majestoso Teatro Amazonas. A partir desse momento, o bairro da Praça 14 de Janeiro e o da Cachoeirinha, ambos se tornaram bairros alegres, festivos e dançantes noite à dentro e pelas madrugadas, ao som das batucadas.

Nessa mesma oportunidade, a população negra estendeu-se do boulevard Amazonas até a subida do bairro de São Jorge. E o núcleo expressivo, no início do boulevard Amazonas ficara conhecido como Seringal-mirim, o qual se unia com o núcleo da subida do São Jorge, à margem do igarapé da redondeza, cujo endereço chamava-se “Rua da Cachoeira”; neste se instalara um dos mais

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famosos terreiros de macumba, o da Mãe Joana, muito embora simplesmente através da aparência do nome se confunda com o lugar comum.

O outro terreiro, com não menos fama do que esse era o terreiro da Mãe Efigênia, o qual ficava lá para as bandas da Praça 14 de Janeiro. Assim como, para as bandas da Cachoeirinha ficaram conhecidas as duas mães Marias, mui-to embora essas não se caracterizassem pelo uso do terreiro de candomblé.

Retomada a direção anterior que compreende - do boulevard Amazonas até a subida do bairro de São Jorge - também era possível conhecer o negro ancião de cabelos brancos, muito querido, chamado de Duca Brito, o qual morava no bairro de São Geraldo. Enquanto que para as bandas da Cachoeirinha ficavam localizados ainda os recantos da igreja do Pobre Diabo e o porão da Negra Alice.

Ao chegar à cidade é preciso saber aonde se vai habitar. Pela primeira vez, sozinho em solo amazônico, o mais novo manauara - Quincas recebeu a hospi-talidade de se abrigar na casa de um português, o qual havia muito simpatizado com ele. E esta gentileza iria até quando pudesse providenciar o seu próprio endereço, o que aconteceria meses depois.

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Praça São Sebastião, Monumento à abertura dos Portos - Manaus

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Boulevard Sá Peixoto 134, Educandos ─ ManausChalé construído em 1.912 – Residência dos “Ferreira da Silva”

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4. Chegada a ManausAlberto Manauara

O casal Quincas e Elvira teve sete filhos naturais. Eles são: Irene, Valder, Hil-da, Francisco, Hermes, Adalto e Helena. E mais um filho acolhido com carinho chamado Siqueira Campos.

• Irene da Silva Ferreira casou com Elias Ferreira Filho e tiveram quatro fi-lhos: Aluísio, Adalberto, Antonio e Joaquim.

• Aluisio casou com Raimunda Gomes da Silva e tiveram cinco filhos: Leina, Lílian, Lana, Leno e Larissa.

• Adalberto, falecido quando criança.

• Antonio, falecido quando criança.

• Joaquim casou com.... e tiveram quatro filhos: Elias, Márcia, Michael e Marcondes.

• Valder Ferreira da Silva casou-se com Áurea, com quem teve seis filhos, são eles: Vânia Maria, Graça Maria, Ana Maria, Antonio Francisco, Joaquim Carlos e Walder Júnior.

• Vânia Maria casou com Evaldo Luiz de Souza e tiveram quatro filhos: Maurílio Luiz Ferreira de Souza, Maurício Luiz Ferreira de Souza, Marcus Luiz Ferreira de Souza e Marcio Luiz Ferreira de Souza. Maurílio casou com Renata Manzi e tiveram o filho João Vitor Manzi de Souza. Maurício casou com Maria Antônia Rodrigues e tiveram os seguintes filhos: Rafae-la Rodrigues de Souza, Rafael Rodrigues de Souza. Marcus casou com Adrea Lavor e tiveram os seguintes filhos: Rodrigo T`alacqua de Souza e Miguel Luiz Lavor de Souza. Marcio casou com Daniele Santos, com quem tem uma filha: Isabela Santos de Souza.

• Graça Maria casou com Osvaldo Pereira da Silva e tiveram dois filhos: Edu-ardo Pereira da Silva e Walder Pereira da Silva.

• Ana Maria casou com o Antonio Silvado de Souza Capelo e tiveram os

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seguintes filhos: Roberto Ferreira Capelo, Eduardo Ferreira Capelo e Lu-ciana Ferreira Capelo

• Antonio Francisco casou com Suzi Saldanha e tiveram o Rodrigo Saldanha Ferreira da Silva.

• Joaquim Carlos casou com Sonia Pontes e tiveram os seguintes filhos: Bru-no Pontes Ferreira da Silva, Caroline Pontes Ferreira da Silva,

• Walder Júnior casou com Suzana Bravo Jabulka e tiveram os seguintes filhos: Amanda Jabulka Ferreira e Bernardo Jabulka Ferreira

• Hilda Ferreira da Silva casou-se com o Adauto com quem teve quatro filhos: Indiana Mara, Mauro Jorge, Marcos Antonio e Maurílio Sérgio.

• Indiana casou com o Paulo Almeida e tiveram dois filhos: Aline e Paulo Adalto.

• Mauro Jorge (falecido)

• Marco Antonio casou com Maria Raimunda e tiveram dois filhos: Maura Regina e Marcos Jr.

• Maurílio Sérgio casou com Cristina e tiveram dois filhos: Maurílio Sérgio Filho e Maurício.

• Francisco Ferreira da Silva casou-se com Julieta Valente Ferreira e tiveram os seguintes filhos: Francisco Raimundo, José Geraldo, Maria Cristina e Ana Cristina.

• Francisco Raimundo casou com.?.. e tiveram os seguintes filhos: Jussara de Fátima, Marcelo Luis, Nádia Julieta, Luciane, Érica e Francisco Raimundo Jr.

• José Geraldo casou com ?... e tiveram os seguintes filhos: Charles Jones e Renata.

• Maria Cristina (falecida) e Ana Cristina (sem filho)

• Hermes Ferreira da Silva casou-se com Osmarina e com esta teve uma fi-lha chamada Simey Maria, que se casou com Alberto Nunes Lopes e tiveram um filho: Rafael da Silva Lopes.

• Adauto Ferreira da Silva casou-se com Alzelides Alexandre Ferreira com quem teve sete filhos: Marigese, Maria Celeste, Adauto, Modesto, Antonio Alberto, Luís Antonio e Ângela Maria.

• Marigese Alexandre Ferreira nasceu em 11.05.1.952

• Maria Celeste Alexandre Ferreira nasceu em 24.01.1.954

• Adauto Ferreira da Silva Jr nasceu em 19.09.1.955; faleceu em 11.01.2.007

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• Modesto Barroso Alexandre Neto nasceu em 19.09.1.956

• Antonio Alberto Alexandre Ferreira nasceu em 28.02.1.961

• Luiz Antonio Alexandre Ferreira nasceu em 21.06.1.962

• Ângela Maria Alexandre Ferreira nasceu em 29.07.1.964

• Helena Ferreira da Silva casou-se com o Américo, com quem teve cinco filhas, são elas: Selene, Selma, Samara, Silvana e Silvia.

• Selene nasceu em 03.11. 1959

• Selma nasceu em 21.06.1960

• Samara nasceu em 03.07.1961

• Silvana nasceu em 20-07-1962

• Silvia nasceu em 03-10-1963

• Siqueira Campos, apesar de não se tratar de um filho natural se tornou integrante da família pela via do coração, no cenário do drama que envolvia o ciclo da borracha.

Retomando os registros quanto ao personagem Joaquim Ferreira da Silva, o desbravador de alcunha “Quincas”, seus méritos e suas realizações nesta parte da Amazônia serão a seguir projetados através do relato das pessoas que con-viveram com ele nesses tempos.

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Entrevista com Rosa Ferreira da Silva

Rosa Ferreira da Silva é sobrinha de Elvira, desta que fora mãe de Hermes Ferreira da Silva. O pai de Rosa chamava-se Josino e era irmão de Elvira. Rosa ainda hoje reside em Recife, com 101 anos de idade.

Conta que a mãe de Elvira se chamava Francisca e o pai Francisco. El-vira casou-se com Joaquim Ferreira da Silva, eram primos legítimos. Elvira nasceu em Itambé – Pernambuco. E Joaquim nasceu no sítio em Campina Grande – Paraíba.

O motivo que levou Joaquim imigrar para o Amazonas foi à necessidade de ganhar dinheiro. Ele bem jovem, determinado para vencer na vida e motivado pelo 1º Ciclo da Borracha, atendeu à notícia de que em Manaus as pessoas faziam charuto com cédula de dinheiro e o queimava, tanta era a prosperidade naquela cidade da cobiçada Amazônia.

Então, motivado pelo espírito de vencer na vida e necessitando de trabalho, pois naquela época sua cidade natal não oferecia opção de trabalho para os jovens, Joaquim imigra para Manaus; mas, antes de viajar foi visitar os tios em Itambé e comunicar o seu propósito.

Nesta visita encontrou a prima Elvira que estava com 14 anos de idade. Então, os dois se apaixonaram e ele prometeu aos tios e a Elvira que venceria na vida, no Amazonas. A partir daquele dia se passaram 4 anos até que ele voltasse para casar com Elvira.

Quando se completaram os 4 anos, conforme havia prometido, Joaquim che-gou a Itambé de forma bem singular. Enviou a sua maleta através de um men-sageiro (garoto) para que fosse entregue na residência do seu tio; porém, fez a seguinte recomendação:

─ Diga que foi um cidadão que mandou deixá-la!

Então, ao final da tarde, Joaquim se apresentou ao tio dizendo que a maleta era sua. Que havia trazido nela algumas roupas para passar uns dias com eles em Itambé. Porém, não comentou nada neste primeiro dia sobre o compromisso que havia assumido com a família quanto ao casamento com Elvira.

Mas, no dia seguinte, Joaquim convicto de sua decisão disse aos tios que tinha retornado, conforme havia prometido há 4 anos atrás, para se casar com Elvira. Então, chamou Idalina, irmã mais velha de Elvira e disse:

─ Vá com Elvira até o Recife para fazer o enxoval, compre tudo o que for necessário para uma noiva.

Elvira assustada com a determinação do jovem noivo disse:

─ Eu não sei disso, não!

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Então se casaram!Joaquim ainda passou alguns dias em Itambé. Vale ressaltar que mesmo

depois de casados continuaram separados. Elvira permaneceria dormindo com sua mãe na cama e Joaquim na sala em uma rede.

Já havia passado alguns dias... Certa noite Joaquim pediu um copo d’água de sua mulher Elvira e ela relutou em atendê-lo dizendo que não ia providenciar, não! Porém, sua mãe Francisca, conhecida como Chiquinha, disse:

─ Vai levar o copo d’água a teu marido!

Elvira relutou dizendo que não ia. Então, sua mãe reiterou dizendo:

─ Vai levar o copo d’água, estou mandando!

Assim, ela obedeceu. E no encontro dos dois aconteceu a primeira noite de núpcias. Contudo, depois de algumas horas Elvira retornou para cama da mãe e com veemência disse:

─ Mamãe, eu vou dormir aqui no meu canto, com você!

Transcorridos alguns dias o jovem casal foi para outro município de Pernambu-co chamado Santa Rita, onde passaram um mês, daí é que foram para Manaus.

A família de Elvira era assim constituída: seus pais Francisco e Francisca chamados carinhosamente tio Chiquinho e tia Chiquinha; suas irmãs Idalina e Eustáquia; os irmãos José, Eduardo, José (Jusa), Alcilino e Josino.

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Entrevista com Edgar Fernandes

Edgar Fernandes é afilhado de Hermes, o qual conviveu e trabalhou com a família “Ferreira da Silva” por 27 anos.

Atualmente reside em Manaus, no boulevard Sá Peixoto nº -... Educandos, bem próximo a antiga residência dos “Ferreira”.

Trabalhou no ramo do comércio, ofício que aprendeu com seu padrinho Her-mes e com a família Ferreira. Com o passar dos anos tornou-se proprietário de um mercadinho e loja de motores de popa e peças, localizados na Boulevard Sá Peixoto, no mesmo bairro. Ele está hoje com 74 anos de idade.

Edgar conheceu e conviveu com Joaquim Ferreira da Silva por muitos anos. Portanto, trata-se de memória viva, o qual fará a narração de tudo quanto se lembra sobre a vida de Joaquim, o que será lavrado nestas páginas seguintes.

Conta que Joaquim chegou à Manaus na época do 1º Ciclo da Borracha, atraído pela fama da cidade de que naquela época se fazia charutos com cédula de mil réis.

Jovem determinado em vencer na vida, cheio de sonhos e esperanças, mas acima de tudo com muita vontade de trabalhar, visto que a terra natal Campina Grande - PB não oferecia nenhuma opção de trabalho, chegou à Manaus por volta de 1912 e foi morar no bairro chamado Praça 14 de Janeiro.

Começou a trabalhar com a comercialização de carvão, ou seja, vendia car-vão. Vale ressaltar que durante toda trajetória de sua vida, mesmo trabalhando com outros tipos de mercadorias, sempre continuou vendendo o carvão, nunca deixou de oferecer este produto aos seus fregueses.

Como bom comerciante, nato, Joaquim depois de algum tempo expan-diu seus negócios e passou a comercializar, além do carvão, produtos de estiva em geral (açúcar, café, arroz, feijão, cereais e até mesmo o pirarucu--salgado), no bairro de Educandos, no Boulevard Sá Peixoto, onde ele era proprietário de uma venda.

Tanto cresceu que adquiriu no final da mesma rua em um local chamado Ponta Branca a sua residência, uma bela casa em madeira de dois andares; e um local para instalar o seu comércio. Então, ele transferiu a venda para o novo endereço, mas continuou vendendo o carvão.

Com a inteligência que lhe era peculiar, Joaquim projetou o primeiro flutuante da localidade, e o construiu na beira do rio, local onde residia no final do boule-vard Sá Peixoto, em Ponta Branca.

O 1º flutuante, o qual era denominado de “paiol” servia para estocar e ven-der o carvão. Era uma casa de palha muito grande construída em cima de duas bóias de açacú que é uma madeira típica da região amazônica, cuja proprieda-de é ter vida longa dentro d’água. A idéia foi de Joaquim. Foi ele quem construiu o primeiro flutuante por aquelas redondezas. A partir de então foram surgindo

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outros flutuantes. Inclusive, a ponto de se formar uma verdadeira cidade flutuan-te, em frente à cidade de Manaus. Assim, Joaquim Ferreira da Silva tornava-se o bem sucedido comerciante de Educandos.

No ano de 1.916 ele pôs em prática aquilo que havia prometido aos seus tios Francisco e Francisca e retornou a Itambé para casar com sua amada Elvira. Exatamente na data prevista na promessa feita ele chegou a Itambé para cum-prir a promessa e realizar o seu sonho de se casar com Elvira.

Retornou para Manaus, com sua esposa, no mesmo ano, em 1916, ao ende-reço Boulevard Sá Peixoto em Educandos, antiga Ponta Branca.

Trabalhava muito, pois o seu desejo agora era construir uma família. Comenta-va a sua companheira que quando ia visitar o marido no paiol (flutuante) “somente enxergava o branco dos seus olhos, pois o corpo era só fuligem de carvão”.

Idos os tempos, os negócios do comércio continuavam crescendo fazendo com que ele se destacasse como grande empreendedor.

Por primeiro, Joaquim adquiriu os flutuantes localizados em Terra Preta, na boca do rio Manacapuru, de Valdir de tal. Depois, ele expandiu o comércio acrescentando outras mercadorias; por este motivo construiu o quarto flutuante.

Sendo assim, se formaram quatro flutuantes conjugados, dois na frente e dois atrás, abastecidos de uma grande variedade de mercadorias.

Nesse comércio podiam ser adquiridos os artigos da estiva alimentícia (açúcar, café, arroz, feijão, farinha, leite, óleo, azeite etc.); e outras mercado-rias do consumo doméstico: (redes, tecidos, variados utensílios de cozinha etc.); além de produtos regionais: (pirarucu-salgado, juta, borracha, sorva, balata e cuquirana, dentre outros).

Os moradores do município de Manacapuru vinham em canoas a remo com-prar no flutuante do seu Joaquim, que se chamava “Valde”. Ele tinha um empre-gado em quem muito confiava e que se chamava Inácio Marques. Este era o seu guarda-livros. Ele fazia as anotações de toda a movimentação de mercado-rias dos flutuantes. E, para que o guarda-livros pudesse residir com sua esposa ao lado dos flutuantes do seu Joaquim, conforme a necessidade do seu ofício de “contador” providenciou-se a construção do quinto flutuante. Então, passou a ser cinco flutuantes, sendo que um era para armazenar juta, três com merca-dorias diversas e, o outro, a residência de Inácio.

Joaquim permaneceu nesta atividade por 15 anos. Também, neste perío-do, contribuiu para o desenvolvimento da cidade de Manacapuru, ajudando na construção das primeiras escolas da cidade.

Vítima de malária, Joaquim veio a falecer em 1946, com 55 anos de idade, em Manaus.

Com este grande homem se foi também o sonho de formar Valder, seu filho mais velho, na Escola de Engenharia do Exército, no Rio de Janeiro, como engenheiro civil. Até chegou a matricular o filho e preparar o enxoval. Também desejava que o Hermes fizesse medicina, em Campina Grande – Paraíba. To-

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dos os seus filhos homens estudaram no Colégio Dom Bosco em Manaus e as mulheres no Patronato Santa Terezinha.

Além de ser um grande comerciante, Joaquim era também um sonhador. Dentre outros sonhos, sonhava o melhor para os filhos que muito amava.

Depois do falecimento de Joaquim os quatro filhos Valder, Francisco, Adalto e Hermes assumiram o patrimônio deixado pelo pai, ou seja, os quatro flutuan-tes juntamente com os conhecimentos do comércio adquiridos do próprio pai. Desta forma tiveram que abandonar o estudo colegial.

Além dos flutuantes seu Joaquim deixou dois barcos, o “Mané Magro” e o “Tatuzinho”; e, para a viúva – Elvira, ele deixou uma bela casa, estilo chalé, a qual tinha sido construída com gosto e com o padrão de uma arquitetura de requinte, localizada no Boulevard Sá Peixoto - Educandos, com vista para o rio Negro.

Conta-se, também, que Joaquim foi o primeiro morador de Educandos a possuir um automóvel.

Depois de 6 meses de seu falecimento, seu filho Valder se casou com Áurea. Mesmo assim continuou com os irmãos no comércio dos flutuantes, na boca do rio Manacapuru. Prosperaram tanto que resolveram investir na construção naval de dois barcos. Tiveram mais oitos barcos. Foram estes seus nomes: Peri, Tupi-nambá, Tartaruga, Timbira, Ferreirinha, Daia, Ferreirão e Nobre Filho.

Então, a atividade dos “Ferreira” além de ser o comércio dos flutuan-tes passou a ser a construção naval e o frete desses barcos. Mas, depois de aproximadamente 3 anos, Valder decidiu ir para Manaus. Ele recebeu sua parte na herança e, bem em frente ao Mirante do Educandos, cujo nome é “baixa da Hélga, mas, que, os populares a chamam de “baixa da égua”, Valder instalou seu próprio flutuante e passou a vender juta, borracha e castanha.

Nesta época também Francisco se casou e a escolhida foi a Julieta. Rece-beu a sua parte da herança indo morar em Manaus, no Educandos.

Um pouco mais tarde Adauto se casou com Auzelides e recebeu sua parte da herança, passou a morar em Manaus, na Cachoeirinha. Adauto, igual ao pai, também foi vender o carvão, na sub-Usina da Cachoeirinha, bem no início da ponte que liga o bairro da Cachoeirinha ao Educandos.

Depois de ter passado algum tempo casa-se Hermes com Osmarina, sendo o último dos homens a se casar.

O encontro dos dois aconteceu na praça Eliodoro Balbi, mais conhecida como “Praça da Polícia” em Manaus e, por força do destino Osmarina fora morar em Manacapuru, pois havia se formado em professora normalista e necessitava passar certo tempo no interior para poder conseguir uma “cadeira” definitiva na capital, como professora.

Então, ela assumiu a direção da Escola “Carlos Pio” na cidade de Manaca-puru - AM. Passou a residir na casa do prefeito Manuel Barroso que era dentista, casado com Aracy Barroso, os quais acolheram Osmarina com muito carinho.

Conta que Hermes apaixonado por Osmarina ia ao seu encontro para na-

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morá-la em um belo cavalo de sua propriedade que se chamava “canário”, todas as noites.

O namoro continuou por muito tempo, pois o único que permaneceu no flu-tuante, com o comércio que o pai havia deixado, foi Hermes. Este não desejava vende-lo, pois muito valorizava o que seu pai havia construído ao longo de mui-tos anos, com muito trabalho.

Como bom empreendedor Hermes decidiu expandir a construção naval, construindo um estaleiro para fabricação de barcos para venda sob encomenda e progrediu ainda mais.

Vale destacar que com o fim do ciclo da borracha os “Ferreira” diversificaram seus negócios comerciais, implementando a movimentação da construção naval.

A firma comercial crescia tendo na direção Hermes que com muita competên-cia administrativa e tino comercial tocava para frente o comércio dos flutuantes e o estaleiro. Em sua subordinação tinha os seguintes empregados: (1º grupo, no flutuante): Pacheco e Sebastião Viana; (2º grupo, na compra da mercadoria em Manaus fazendo a entrega no flutuante em Manacapuru): Edgar Fernandes, Joaquim, Raimundo Paz e Manuel Ribeiro; (3º grupo, trabalhando no estaleiro na construção de barcos): Severino, Mestre Chico, Manuel Picanço, Antonio Chato, Hermes Viana e Bento. Destaca-se entre esses o José – cozinheiro, maranhense, o qual permaneceu com a família por todo esse tempo até o fim, por 6.0 anos. As atividades eram realizadas da seguinte forma: o primeiro grupo permanecia no flutuante vendendo as mercadorias; o 2º grupo comprava as mercadorias em Manaus e reabastecia os flutuantes durante todo ano. Para o transporte dessas mercadorias eram utilizados dois barcos e dois batelões. Os barcos eram o “Timbira” e o “Ferreirão”; os batelões o “Pery” e o “Tupinambá”.

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Com amor e carinho!

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Os noivos Osmarina e Hermes - 1952

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A firma continuava crescendo com a fabricação e venda de barcos. Foi quan-do Hermes casou-se com Osmarina em Caxambu - Sul de Minas, em 16 de fevereiro de 1.952. E por que razão tão longe de sua terra natal? Porque Os-marina, que nessa época já estava noiva de Hermes, viajara para Campos do Jordão acompanhando seu irmão Ozanes que estava muito doente. Assim, per-maneceu nessa cidade por um bom tempo, até a recuperação da saúde de seu irmão. Como se via uma das características da personalidade de Osmarina era a generosidade, sempre era prestativa e grande era o amor que sempre mani-festou pelos seus irmãos e pela sua família.

Hermes foi ao seu encontro, pois também necessitava operar as duas vistas de catarata. Casa-se com Osmarina em Caxambu - MG, em seguida viajaram para Campinas – SP, para que Hermes operasse as duas vistas.

Ao retornar Hermes continuou administrando sua firma que ia muito bem. Quando, a pedido de sua esposa Osmarina, prestou ajuda aos irmãos dela - Orlando e Ozanes.

Hermes vendeu para o Orlando, conhecido como “Tupi”, o barco “Nobre Fi-lho”; que em seguida foi vendido para o Ozanes, irmão de Orlando. Por este motivo Hermes foi até Itacoatiara, município do Amazonas, com o Edgar no “Ferreirinha” e comprou um motor Yamaha de 40 cavalos para Orlando, em substituição do “Nobre Filho”, pois assim procedendo desejava beneficiar os dois cunhados, os quais no momento estavam necessitando de ajuda para que também pudessem prosperar.

Passados alguns anos, em 1.955 nasceu a filha do casal Hermes e Osmarina - Simey Maria.

Este acontecimento tornou-se muito importante para a vida do casal. Por esta razão Hermes permanecia mais tempo em Manaus do que em Manacapu-ru, pois desejava acompanhar o crescimento da filha muito amada. Com o pas-sar do tempo seus planos sobre o comércio mudaram. Agora ele sonhava poder oferecer o melhor para a filha e, até quem sabe, morar no Rio ou em Santos, Campinas - em São Paulo!

Todos os seus empregados já haviam também manifestado o desejo de te-rem seu próprio negócio e assim aconteceu. Somente três dos onze empre-gados disseram que queriam permanecer com o Hermes. Foram eles: Edgar Fernandes, José – o cozinheiro e Manuel Picanço.

Nesta passagem, Hermes comunica para Edgar que irá trazer de volta seu irmão Adauto para ficar no flutuante (comercializando) e Edgar (compraria a mercadoria em Manaus) para manter o comércio do flutuante. E Manuel Pican-ço, casado com Diva - irmã de Edgar ficaria responsável pelo estaleiro.

Permaneceram trabalhando juntos ainda por mais 3 anos.

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Foi então que Hermes decidiu vender o flutuante e os barcos para Rafael Maguí; pois, com a descoberta do petróleo em escala nacional Hermes decidiu aplicar seu capital nas ações da Petrobrás. Tinha certeza que seria um bom negócio, ao mesmo tempo em que tinha outros sonhos para a família, queria estar perto da filha e oferecer oportunidade para que ela pudesse viver em outra cidade mais desenvolvida.

Então comunicou a Edgar que iria lhe dar o “Ferreirinha” (o barco) para que ele pudesse ter o seu próprio negócio, trabalhando com fretes, visto ter desem-penhado esta atividade por 26 anos para a família Ferreira.

O cunhado de Edgar - o Manuel Picanço, também recebeu ajuda para ter seu próprio negócio. E José, o cozinheiro, por algum tempo trabalhou no flutu-ante de Valder, pois não queria separar-se da família que a tinha como se fosse a sua própria família. Depois de alguns anos este ficou sendo cuidado por Her-mes e Osmarina até os últimos dias de sua vida.

Adauto retornou para Manaus, novamente passou a vender o carvão na sub--Usina, bairro de Cachoeirinha - Manaus.

Entrevista com Julieta Valente Ferreira

Julieta Valente Ferreira casou-se com Francisco Ferreira da Silva e tiveram 3 filhos, sendo 2 biológicos: Francisco Nonato e Geraldo e, uma do coração - Ana Cristina. Portanto, Julieta é nora de Joaquim e Elvira, hoje está com 83 anos e reside em Educandos – Manaus.

Julieta que conheceu e conviveu com Joaquim declarou o seguinte:

─ Joaquim era um homem que tinha muito talento para o comércio. Na época as pessoas que conviviam com ele usavam a seguinte expressão: “Joaquim é comerciante até debaixo d’água”.

Determinado dia ele visitou o meu cunhado José Justino que, como ele tam-bém possuía um flutuante. Era exatamente as 15h00 quando Joaquim chegou ao flutuante que ficava localizado em Campinas, comunidade acima de Mana-capuru, e disse a José Justino que ainda não tinha almoçado porque não tinha gostado da comida.

O amigo ofereceu que se sentasse à mesa e iriam almoçar. Então, José Justino indagou se Joaquim estava de partida para Manacapuru. Ele respondeu que sim. E complementou a conversa dizendo que partiria para aquela cidade tão logo fosse possível, queria dizer: logo, logo, quase um agora. José Justino pediu do amigo:

─ O amigo deixa a minha irmã lá na cidade de Manacapuru e também a mi-nha cunhada Julieta?

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─ Sim. Respondeu Joaquim, que em seguida colocou a mão no ombro de Julieta e disse:

─ Você é tão bonita! Quanto eu queria que você fosse minha nora!

E o pedido foi realizado, pois, seja por força do destino ou não, Julieta depois de muito tempo tornou-se sua nora porque casou com o Francisco Ferreira, filho de Joaquim.

Joaquim era uma pessoa muito simpática, agradável, magrinho, bonitinho, distinto e muito educado.

Eu até hoje não conheço pessoa tão educada quanto era o Joaquim. Eu la-mento pelos meus filhos não terem conhecido o avô, pois eu ainda não conheci pessoa tão trabalhadora como era o Joaquim.

Então, ele foi prosperando até que se tornou o comerciante mais rico da boca do rio Manacapuru. Rico e respeitado, pois era um homem que sabia se rela-cionar e com isso tinha boas relações de amizade com autoridades ou pessoas comum do povo, tanto com os habitantes de Manacapuru quanto os de Manaus.

Ele conservava as boas relações com as pessoas de destaque, tanto na sociedade amazonense quanto em Manacapuru.

Como um grande e muito bom comerciante Joaquim também era muito oti-mista, tudo que ele fazia dava certo.

Julieta também disse que todos os filhos de Joaquim nasceram em Educan-dos. Portanto, em Manaus.

Julieta afirma mais uma vez a personalidade marcante desse homem - Joa-quim Ferreira da Silva, qualificando-o como uma pessoa maravilhosa. Ninguém poderia lhe ofender, lhe querer mal, pois era maravilhoso!

Dona Elvira também era uma pessoa maravilhosa! Ela era muito alegre, sempre sorridente. Ela nunca falou de nenhuma nora. Era amiga de todas. E se falava era para elogiá-las.

Justificava-se dizendo:

─ Assim meus filhos serão bem tratados! Estarão sempre arrumados!

Julieta conta que certa vez seu Joaquim estava conversando com seus ami-gos, comerciantes, e eles diziam que os homens tinham medo de suas esposas. Pois bem, eu não tenho medo da minha esposa, eu sou amigo da minha esposa – disse Joaquim.

E continuou seu raciocínio:

─ Se eu chegar em casa e disser que pau é ferro, ela confirma. E desafiou os amigos. Vamos lá em casa!

Ao chegar, Joaquim falou para Elvira:

─ Elvira eu disse a eles que não tem quem tire esse anel de brilhante do

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teu dedo. Mas, querida, tire! Pois eu já vendi a este homem. E na mesma hora, calada, sem nenhuma reação de resistência ela tirou o anel do dedo e entregou ao seu marido.

Joaquim e Elvira tiveram 8 filhos, são eles: Irene, Valder, Hilda, Francisco, Hermes, Adalto, Helena (falecida com 2 anos) e a outra Helena, que recebeu este nome para homenagear a irmã, a qual havia morrido tão precocemente.

Joaquim era dotado de uma inteligência brilhante e gozava de muito prestígio.Certo dia, ao chegar a Manaus com suas embarcações (2 barcos os quais

rebocavam os batelões), todos com bastante mercadoria, pois nesta época Jo-aquim já era um homem rico - além dos quatro flutuantes na boca do rio Ma-nacapuru, possuía barcos, batelões e uma bela casa em forma de chalé no Educandos - recebeu da esposa o seguinte aviso:

─ Joaquim, a Capitania esteve aqui em casa para comunicar que você não poderá mais ancorar os barcos aqui no porto de Educandos, porque irá atrapalhar os catraieiros.

Na realidade, tratava-se de perseguição política dos catraieiros contra quem tinha barcos. E sabe qual foi a resposta do Sr. Joaquim?

─ Elvira, me conta novamente esta história! Quer dizer que eu não posso mais ancorar as minhas embarcações aqui na beira do rio Negro, em Educandos?

Elvira permaneceu calada sem saber o que responder e deu de ombros.Por volta das 16h00, do dia seguinte, a embarcação dos “Ferreira” vinha che-

gando de Manacapuru e já estava no local costumeiro de atracação, na margem do rio Negro, em Educandos, quando o comandante indagou:

─ Sr. Joaquim aonde vamos ancorar?

─ No mesmo local, o de sempre!

─ Mas, seu Joaquim! A Capitania proibiu atracar o barco aqui em Educandos.

Joaquim, de sua parte, indagou ao seu comandante:

─ Ô seu Mané Leite, o senhor encosta ou não encosta?

─ Não, seu Joaquim! Eu não posso encostar! São ordens da Capitania.

─ Mané Leite, o senhor é homem ou não?

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Então, seu filho Francisco que já era rapaz disse:

─ Papai, o senhor se lembra, a mãe lhe disse que a Capitania determinou que não se pode mais encostar aqui!

Com tanta adversidade para com o seu raciocínio Joaquim Ferreira da Silva bradou:

─ Encosta seu Mané Leite, encosta. O senhor é homem ou não é homem?

Como Joaquim era um homem íntegro, de nobre caráter, por este motivo respeitado por todos, o comandante do barco obedeceu e ancorou o barco. E nada aconteceu!

Muito pelo contrário, quando vieram os guardas da Capitania esses recua-ram em sinal de respeito.

Este episódio foi contado no bairro de Educandos pelos seus moradores mais antigos: Nonato Pereira e Nonato Freitas.

Portanto, Joaquim foi um homem de um bom caráter. Julieta, a entrevistada, finaliza:

─ “Ele não fazia nada que comprometesse o seu caráter. Era respeitado por todos, tanto pela família quanto pela sociedade. Também foi um bom patrão, tratava muito bem os seus empregados”.

“Ele também teve uma excelente companheira. Dona Elvira era amiga do marido, dos filhos e das noras. Não tinha defeito, era uma boa sogra, era uma avó carinhosa. E eu Julieta convivi com a Dona Elvira 16 anos.”

Lembro ainda que Joaquim comercializava além de estivas em geral, a juta, castanha, farinha de mandioca, pirarucu e os vendia na rua Barão de São Do-mingos, onde hoje é a “Feira da banana”.

Ele comercializava estes produtos com os turcos, era muito bem relacionado com os grandes comerciantes daquela época, que estavam com seus comér-cios instalados na rua Barão de São Domingos, em Manaus.

Ele trazia esses produtos, vendia para os turcos e depois abastecia os bate-lões com estiva em geral e levava para vender nos seus flutuantes da boca do rio Manacapuru. Por esta razão tornou-se o maior comerciante da boca do rio Manacapuru, no Amazonas.

Além de rico comerciante também era um grande pai, pois amava os seus filhos, amava a sua esposa e toda aquela família - que por certo incluía as espo-sas e os filhos de seus empregados, tanto quanto gostava e respeitava aquela comunidade ribeirinha.

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Entrevista com Carlos Valente (primo de Julieta)

Trata-se de morador do município de Manacapuru que também conviveu com a família Ferreira e teve a oportunidade de muito visitar os flutuantes do Sr. Joaquim. Apesar de ser criança naquela época lembra muito bem dos flutuantes que eram tão bem abastecidos de mercadoria que quando os barcos provoca-vam o banzeiro a água chegava a cobrir o assoalho dos mesmos.

Conta que, além de estivas em geral Joaquim vendia couro de jacaré, juta, borracha, castanha, cernambi, cuquirana que é um leite tirado de árvore nati-va parecido com o leite de sorva e, que, com este se faz placas utilizadas na fabricação de chicletes.

Além dos moradores da cidade de Manacapuru, Joaquim também atendia a todos os barcos que por ali passavam, vendendo seus produtos, pois ofere-cia uma variedade de mercadoria que correspondia muito bem às necessida-des dos clientes.

Deste modo sua freguesia era composta por aquelas pessoas que trabalha-vam nos interiores da cidade de Manacapuru, que se tornaram seus fregueses, os quais se relacionavam da forma que o comércio de Joaquim aviava a eles todas as mercadorias básicas de sobrevivência.

Eles compravam o que necessitavam da estiva e, em troca, ofereciam os seus produtos regionais: juta, castanha, borracha, couro de jacaré, a cuquirana, sorva, cernambi entre outros. Assim, eles levavam do comércio feijão, arroz, café e tecidos, além de outras utilidades mais específicas.

O aviamento era garantido pelos produtos regionais provenientes do extrativismo. Esses trabalhadores quando compravam no flutuante do Joaquim coloca-

vam seus nomes no “borrador”, espécie de livro-caderno de folha pautada, um livro grande, onde constavam todas as anotações de quem estava devendo.

Era anotada a relação das mercadorias que o trabalhador estava levando e este trabalhador colava seu fio de bigode se comprometendo desta forma em efetuar o pagamento com seus produtos, dentro de determinado prazo, no má-ximo de trinta dias ou o da safra colhida de determinado item regional.

Ou seja, o fio do bigode era uma garantia com o mesmo valor de uma assi-natura e que ajudava a honrar a palavra empenhava. E honrava!

De posse dos produtos regionais Joaquim os comercializava em Manaus, na rua Barão de São Domingos, com os turcos que na época eram os compradores desses produtos para a exportação.

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Entrevista com Eurídice

Eurídice é neta de Manuel Francisco Rocha e de Rosa de Lima da Silva Ro-cha. Eurídice é paraibana de Campina Grande - PB.

Sua avó Rosa era irmã de Joaquim, portanto Eurídice é sobrinha (2º. Grau) de Joaquim. Sua avó nasceu em Pedra de Fogo, na Paraíba.

─ Eu sou filha de Iracy Rocha e minha mãe contava que minha avó Rosa ti-nha um irmão que morava no Amazonas. Naquela época o Amazonas era muito distante e não se tinha idéia de como seria Manaus, a capital, e muito menos a região Amazônica.

Eurídice é sobrinha (2º. Grau) de Joaquim, porque sua avó Rosa é irmã de Joaquim Ferreira da Silva. A avó Rosa foi quem contou esses acontecimentos para Iracy ─ mãe de Eurídice, filha de Rosa, portanto sobrinha de Joaquim.

Eurídice narra que sua mãe Iracy, portanto sobrinha de Joaquim, contou a seguinte história: ─ A sua avó Rosa dizia para Iracy, quando ela era ainda crian-ça, que tinha um irmão que morava no Amazonas. Naquela época o Amazonas era muito distante não se tinha noção de como seria Manaus. Certa vez Joa-quim esteve em Campina Grande, sua mãe Iracy, sobrinha de Joaquim era bem jovem. Então, ao chegar a Campina Grande procurou o bispo, pois estas perso-nalidades de destaque em cidade pequena é quem conhece todo mundo, e deu certo. Na oportunidade Joaquim indagou do bispo se ele conhecia e se sabia o endereço de Manuel, seu cunhado.

O bispo no mesmo instante disse:

─ Sei quem é, conheço e posso lhe dar o endereço. Este senhor mora no “sítio Covão”, perto do “Jenipapo” que é a outra localidade mais próxima.

Joaquim foi ao encontro da irmã. Ao chegar ao sítio ele se dirigiu até a bode-ga de propriedade do cunhado Manuel, localizada no mesmo sítio e encontra a irmã que se chamava Rosa. E diz:

─ Você poderia me dar um copo d’água?

Sentou-se em um tamborete e começou a conversar com Rosa. Pediu um lanche e continuou a conversa. De repente, Joaquim perguntou da sua irmã que até então não havia lhe reconhecido:

─ Como se chama seu esposo?

Ela disse:

─ Chama-se Manuel!

Joaquim perguntou ainda onde ele estava no momento.

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─ Ele está trabalhando no roçado.

─ A que horas ele chega? Eu gostaria tanto de conversar com ele!

Então, Rosa esclareceu:

─ Ele não vai demorar. Ele chegará para o almoço as 12h00.

Daí, na continuação da conversa, Joaquim acaba dizendo para Rosa, em tom de desabafo, que era seu irmão.

Neste momento, o ambiente ficou emudecido, sem palavras. Joaquim abra-çou com bastante emoção a sua irmã.

Passado algum tempo chega Manuel. E Rosa diz:

─ Manuel, este é Joaquim, conhece? Teu cunhado! Meu irmão!

Aconteceu no encontro uma explosão de alegria! Todos ficaram emocionados por alguns minutos e continuaram emudecidos.

A situação era a de que já havia se passado muitos anos da ida de Joaquim para o Amazonas e nunca mais tinham se reencontrado.

Então, se alegraram, e foi aquela felicidade por todo o resto do dia.

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