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A CIGARRA E A FORMIGA Texto de Denise Crispun Adaptação a partir da obra de La Fontaine 1 O que é que tem esse tal de La Fontaine? “As fábulas são como um quadro, onde cada um de nós se acha descrito” palavras de la Fontaine, que, inspirado em fontes antigas, fez de suas Fábulas, uma fonte inesgotável de sabedoria e ensinamentos. São histórias muito simples, algumas com final trágico, outras com fino humor e um leve traço de esperança, e que revelam a essência da alma humana, representada pelas diferentes características de cada animal. Muitas vezes a força bruta vence o mais frágil, em outras circunstâncias a inteligência prevalece. Tudo depende do momento, e das oportunidades. Afinal, às vezes “As uvas estão verdes”, como disse a raposa, antes de partir, sem dar o braço a torcer. Após ver o teatro onde iriam estrear sua peça invadido pelas chuvas, Aurora e Julieta, duas atrizes desempregadas com aluguel atrasado e contas a pagar, decidem montar o espetáculo usando somente os parcos recursos que sobraram da enchente. Com a cumplicidade da plateia e a promessa de passar o chapéu no final do espetáculo, elas dividem os papéis e atuam com muita verdade, recontando história da Cigarra e a Formiga, uma das fábulas mais conhecidas de La Fontaine. Os dados estão lançados, e a plateia terá que ser conquistada pela atuação e emoção que elas evocam. Num misto de tragédia e comédia, as duas eventualmente interrompem a encenação e questionam seus papéis. E assim como na fábula exemplar, elas terão que encontrar um jeito de se apoiar mutuamente, vão precisar aprender a conviver com suas diferenças. “A leitura dessas obras espalha na alma, sem que se sinta, as sementes da Virtude, ensinando -nos a nos conhecer, sem que disso nos apercebamos, crendo até que estejamos fazendo outra coisa inteiramente diversa...” afirmou La Fontaine sem saber o quanto essas histórias iriam permanecer no nosso imaginário até os dias de hoje. E dentre as inúmeras fábulas escritas por la Fontaine, talvez, a mais conhecida seja a história da Cigarra e da Formiga. - Como é possível, criaturas tão diferentes, viverem na mesma árvore? Cada uma do seu jeito - Uma não vive sem trabalhar e a outra não sabe viver sem cantar - , elas terão que descobrir uma forma de conviver. A dificuldade de aceitação dessas diferenças é que torna essa fábula tão rica e atual. Cada um de nós tem uma porção “formiga” e uma alma “cigarra” que muitas vezes convivem, mas em outras não se toleram. Aprender a aceitar essas diferenças, conviver na mesma árvore, muitas vezes com valores tão desiguais, é a essência da história que vamos contar. Personagens CIGARRA: Aurora, a atriz otimista FORMIGA: Julieta, a atriz pessimista NARRADORA: as duas atrizes alternam no papel Cenário Um quintal e o tronco de uma grande árvore, uma mala com adereços e muitas folhas espalhadas. Os vagalumes podem ser feitos com lanternas.

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A CIGARRA E A FORMIGA Texto de Denise Crispun

Adaptação a partir da obra de La Fontaine

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O que é que tem esse tal de La Fontaine? “As fábulas são como um quadro, onde cada um de nós se acha descrito” palavras de la Fontaine, que,

inspirado em fontes antigas, fez de suas Fábulas, uma fonte inesgotável de sabedoria e ensinamentos. São histórias muito simples, algumas com final trágico, outras com fino humor e um leve traço de esperança, e que revelam a essência da alma humana, representada pelas diferentes características de cada animal. Muitas vezes a força bruta vence o mais frágil, em outras circunstâncias a inteligência prevalece. Tudo depende do momento, e das oportunidades. Afinal, às vezes “As uvas estão verdes”, como disse a raposa, antes de partir, sem dar o braço a torcer. Após ver o teatro onde iriam estrear sua peça invadido pelas chuvas, Aurora e Julieta, duas atrizes desempregadas com aluguel atrasado e contas a pagar, decidem montar o espetáculo usando somente os parcos recursos que sobraram da enchente. Com a cumplicidade da plateia e a promessa de passar o chapéu no final do espetáculo, elas dividem os papéis e atuam com muita verdade, recontando história da Cigarra e a Formiga, uma das fábulas mais conhecidas de La Fontaine. Os dados estão lançados, e a plateia terá que ser conquistada pela atuação e emoção que elas evocam. Num misto de tragédia e comédia, as duas eventualmente interrompem a encenação e questionam seus papéis. E assim como na fábula exemplar, elas terão que encontrar um jeito de se apoiar mutuamente, vão precisar aprender a conviver com suas diferenças. “A leitura dessas obras espalha na alma, sem que se sinta, as sementes da Virtude, ensinando-nos a nos conhecer, sem que disso nos apercebamos, crendo até que estejamos fazendo outra coisa inteiramente diversa...” afirmou La Fontaine sem saber o quanto essas histórias iriam permanecer no nosso imaginário

até os dias de hoje. E dentre as inúmeras fábulas escritas por la Fontaine, talvez, a mais conhecida seja a história da Cigarra e da Formiga. - Como é possível, criaturas tão diferentes, viverem na mesma árvore? Cada uma do seu jeito - Uma não vive sem trabalhar e a outra não sabe viver sem cantar - , elas terão que descobrir uma forma de conviver. A dificuldade de aceitação dessas diferenças é que torna essa fábula tão rica e atual. Cada um de nós tem uma porção “formiga” e uma alma “cigarra” que muitas vezes convivem, mas em outras não se toleram. Aprender a aceitar essas diferenças, conviver na mesma árvore, muitas vezes com valores tão desiguais, é a essência da história que vamos contar. Personagens CIGARRA: Aurora, a atriz otimista FORMIGA: Julieta, a atriz pessimista NARRADORA: as duas atrizes alternam no papel Cenário

Um quintal e o tronco de uma grande árvore, uma mala com adereços e muitas folhas espalhadas. Os vagalumes podem ser feitos com lanternas.

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Abertura JULIETA ESTÁ VARRENDO O JARDIM, TIRANDO AS FOLHAS SECAS DO CHÃO. SE TIVERMOS UMA ÁRVORE NO LOCAL, ELA VARRE EM BAIXO. SE NÃO HOUVER, ELA MESMA TIRA AS FOLHAS DO BOLSO, (OLHA PARA OS LADOS) ESPALHA AS FOLHAS E EM SEGUIDA VARRE, RECLAMANDO. JULIETA: (VARRE E FALA) Folhas que caem! É lindo, mas dá um trabalho... Se ao menos elas tivessem uma ordem, eu saberia: devo varrer da esquerda para a direita, ou da direita para a esquerda? (para de varrer) Só que não. Elas caem quando querem... Eu passo a vassoura.... (VARRE E JOGA UMA FOLHA ADIANTE) E cai outra, e outra...(CORRE ATRÁS DA FOLHA) AURORA ENTRA COM SUA MALINHA. AURORA: Que lindo! Adoro ver folhas caindo! JULIETA: É porque não é você que varre. AURORA: Mas eu posso varrer também. Agora que vamos morar juntas! (larga a mala no chão) Cheguei! JULIETA: Deu pra notar. Todos nós percebemos. Não sei se isso vai dar certo. AURORA: Já deu! JULIETA: Disse a otimista.... AURORA: (rodopia) Eu tô muito feliz, Julieta! JULIETA: Posso saber porque, Aurora? Aurora senta na malinha, muda o tom, confessa. AURORA: Porque quando tá tudo muito ruim, alguma coisa de bom vai acontecer! JULIETA: Hã? AURORA: Acabei de perder o emprego. JULIETA: Como assim? Você perdeu o emprego? Você não ia estrear uma peça? AURORA: Ia...Mas a peça foi adiada, indefinidamente. JULIETA: E qual o motivo, posso saber?

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AURORA: Chuva! Essa cidade não está preparada. E o nosso prefeito é um mané sardinha! Que não gasta um tostão furado pra ajudar a população. Pronto falei! Então, a chuva que caiu entupiu o bueiro. Os canos do teatro que já estavam velhos não aguentaram, deu curto na fiação. Pareciam fogos de artificio explodindo: Pow! Pow! Pow! E depois da explosão a água invadiu a bilheteria, os camarins, o palco, e as poltronas saíram boiando. JULIETA: Poltronas? Boiando? AURORA: Juro! Eu só me salvei porque me agarrei numa delas e vim junto com a onda. (triste) Não tem mais onde sentar no teatro. Não tem mais palco... JULIETA: Não tem patrocínio.... AURORA: Isso há muito tempo... A gente tá pagando almoço com aplauso, e olhe lá. JULIETA: E sempre pode piorar... AURORA: Não fala assim, Julieta! Pensa positivo. JULIETA: Impossível. Sou pessimista de carteirinha. AURORA: Ah, Julieta, olha só o que eu salvei... JULIETA: O que é que tem aí dentro? AURORA: Uns figurinos molhados, maquiagem melada...adereços faltando pedaço. E o texto da peça. Sempre dá para recomeçar... JULIETA: Você acha? AURORA: Tenho certeza! JULIETA: Pois eu não acho. Aurora, você esqueceu que você veio morar comigo justamente porque você tinha emprego, já que eu, já estava desempregada? Esqueceu? AURORA: Não esqueci, mas também não lembrei... JULIETA - Eu tava contando com a sua participação financeira. AURORA: Que não vai rolar...Por enquanto. JULIETA: O cenário está péssimo para nós!

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AURORA: Que cenário, amiga? Eu te disse que a água estragou tudo... JULIETA: Foi uma metáfora, Aurora! AURORA: Me-o-que? JULIETA: Metáfora! Procura depois no pai dos burros! E agora? AURORA: Pensa no lado bom, Julieta. Faz esse exercício comigo... (AURORA RESPIRA FUNDO E OBRIGA JULIETA A ACOMPANHA-LA NO EXERCÍCIO) Antes, era só você desempregada. Agora somos duas! JULIETA BUFA, NEM RESPONDE, SÓ BALANÇA A CABEÇA AURORA: Ainda bem que nós temos um teto para morar... JULIETA: Por enquanto. Como é que nós vamos pagar o aluguel? AURORA: é muito caro? JULIETA: Depende. Quanto dinheiro você tem nessa malinha? AURORA: Dinheiro em espécie, tipo nota, moedas, eu não tenho nada. JULIETA: Então é muito caro. Muito mais que nós podemos pagar. AURORA: Não seja pessimista, Julieta. JULIETA: Eu nasci pessimista, Aurora. AURORA: Confia em mim, nós vamos dar um jeito! Deixa só eu pensar um pouquinho... UMA PEQUENA PASSAGEM DE TEMPO, AURORA REFLETINDO, ANDA PARA LÁ E PARA CÁ, FAZENDO SINAIS COM OS DEDOS, CONTANDO AS POSSIBILIDADES, ENQUANTO JULIETA RESMUNGA JULIETA: Encontrou a solução? AURORA: Ainda não, mas eu posso saber em que cama eu vou dormir? Se for beliche eu durmo em cima, tá? JULIETA: Não Tem cama nem meia cama!

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AURORA: Não? Nós vamos dormir no chão? JULIETA: Não é nada disso. Nós temos que dar um jeito de ganhar dinheiro, Aurora. Se não a gente vai para o olho da rua! AURORA: Nunca entendi essa expressão. Desde quando rua tem olho? Alguém já viu o olho da rua? JULIETA: Para! Por favor, Aurora....Eu vou ter um troço, to tensa, preocupada, desnorteada. Eu to sem chão! JULIETA FORA DE SI, ANDA PARA LÁ E PARA CÁ, COM AURORA TENTANDO ACALMÁ-LA AURORA: Calma, Julieta! Baixa essa bola! (p/ a plateia) Alguém sabe de onde vem essa expressão? Baixar a bola? Porque é que a gente diz isso? JULIETA: (SUSSURRA) Para acalmar...Eu acho que eu vou desmaiar ...Adeus, Aurora. Não deu certo pra mim: (TEATRAL) A vida é uma história contado por um idiota, feita de som e fúria, sem sentido algum... AURORA: Que horror! Quem disse isso? JULIETA: Shakespeare sua ignorante teatral! AURORA: Ah bom, se ele disse isso então é verdade... JULIETA: (VOLTA A SUSSURRAR) Adeus mundo cruel... AURORA: Eu já sei, Julieta. Eu já sei o que nós vamos fazer. JULIETA: Cuidado com o que você vai dizer, Aurora. AURORA: A única forma que a gente tem para sobreviver, e continuar a trabalhar dignamente como atrizes, e não deixar o teatro morrer, é passando o chapéu! JULIETA:(REFLETE) Até que não é má ideia, Aurora...Mas será que o pessoal vai colaborar? Será que eles sabem o que é passar o chapéu? AURORA: Deixa que eu explico. (se dirige ao público muda o tom) Eu podia tar aqui roubando, pegando vossos pertences sem vocês perceberem, mas eu to só pedindo uma ajudinha. Nós duas vamos fazer uma peça, e quando a peça terminar, se vocês gostarem, nós vamos passar o chapéu.

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JULIETA: E as crianças vão poder colaborar com o dinheiro da mesada, um trocadinho que “seje”. E as mães, que tão junto, podem deixar seus anéis de ouro, suas bolsas de grife, Gutti, Prada, Chanel, tamos aceitando. Jeans de marca podemos aceitar também, pra revender. AURORA: Obturação de ouro, se alguém tiver... JULIETA: Obturação, não! Mas o resto a gente tá aceitando. Pode entrar tudo no bazar. Vamos vender pelo dobro. AURORA: Ou até pelo triplo do preço! JULIETA: É uma chance para vocês comprarem de volta os seus pertences que vão nos pertencer. Combinado? REAÇÃO DA PLATEIA, ULTIMAS COMBINAÇÕES PARA COMEÇAR A PEÇA JULIETA: Cadê o texto, Aurora? AURORA: (TIRA DA BOLSA) Aqui. É um clássico, bem clássico! Ah se La Fontaine estivesse por aqui...E visse a que ponto chegamos! JULIETA: E o que é que eu vou fazer...? AURORA: Tudo o que for necessário. A gente atua, ajeita o figurino, conta a história e depois recolhe o dinheiro. (PARA A PLATEIA) Nós vamos trancar a casa, assim ninguém pode sair antes desse chapéu estar bem cheio. Mentira! JULIETA: Isso não vai dar certo... AURORA: Já deu! Bora trabalhar, Julieta! ELAS ABREM A CAIXA, ESCOLHEM SEUS ADEREÇOS E SE PREPARAM. JULIETA PEGA A VASSOURA PARA DAR OS TRÊS SINAIS. AURORA COMEÇA A SENTIR UMA COCEIRA QUE SE ESPALHA POR TODO O CORPO, POR DENTRO DA ROUPA. ELA ENCONTRA A CAUSA DO INCÔMODO, ATRÁS DE SUA ORELHA. ELA PEGA DELICADAMENTE A FORMIGA INVISÍVEL COM AS MÃOS E INICIA UMA CONVERSA. O DIÁLOGO É ENTREMEADO PELA FALA DA FORMIGA: UM GRITINHO AGUDO, COM BASE NA LETRA “É”

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NARRADORA/AURORA: Então é você, tão pequeninha, mas tão agitada... (éeee) O que? Não acredito...você é aquela formiguinha que eu conheci no verão passado? Jura? Você mudou muito. (trás a mão para bem pertinho do olho) Nossa, como você cresceu. Está mais forte... (éeee) Musculação? (éeee) Sei.....Tá na moda, né? Todo mundo agora faz musculação. Então, a que devo essa visita inesperada? (éeeee) Sei, sei.....(éeeeee) Sei...Jura? É mesmo? (éeeeee) É uma decisão difícil. (éeee) Quer dizer que metade do formigueiro quer construir uma academia e a outra metade quer fazer uma mini-ciclovia? (éeee) São duas obras muito grandes... E você está em dúvida...(éeeee) Entendo...Os dois projetos me parecem muito bons, mas....desde quando formiga anda de bicicleta? (éeeeee) Sei... Se uma pulga pode pular de asa delta porque uma formiga não pode andar de bicicleta? Você tem toda razão... (FALA PARA A PLATEIA FAZENDO GESTO DE LOUCA, ESTRANHANDO E COMENTA) Uma pulga, de asa delta? Onde já se viu? (VOLTA PARA A FORMIGA) É o progresso, os novos tempos. É tudo muito rápido. Quando você vai ver, já foi... E vocês formigas, não conseguem ficar paradas. AURORA FAZ SINAL PARA JULIETA ENTRAR EM CENA, É A DEIXA DELA. JULIETA RELUTA UM POUCO, NÃO ESTÁ MUITO CONFORTÁVEL NO PAPEL. AURORA INSISTE, ELA ENTRA. FORMIGA/JULIETA, COLOCA SEUS ADEREÇOS E VEM DETRÁS DA ÁRVORE AO SOM DO “FUNK DA FORMIGA”. AURORA SAI EM SEGUIDA Trabalhando Organizando Vai organizando tudo Vai trabalha sem parar Não, não para um só segundo Formiga vive a trabalhar Vai formiguinha vai formiguinha vai formiguinha vai AO FINAL DA MÚSICA, JULIETA RECUPERA O FÔLEGO FORMIGA/JULIETA: Às vezes eu fico pensando.... Nós as formigas, somos muito mal compreendidas. Eu sei muito bem o que estou dizendo...em relação à cadeia alimentar, por exemplo, nós estamos lá embaixo, perto dos gafanhotos, dos grilos e de outros insetos menores...apenas por uma questão de tamanho, que como todos sabem, não é documento. Ninguém dá o devido valor à nossa espécie. O que é um equívoco. Eu não sei se vocês sabem, que nós formigas, estamos na terra a mais de 100 milhões de anos! Eu disse cem, milhões! E nós também podemos ser encontradas em praticamente todos os cantos do planeta. Por acaso vocês conhecem algum canto sem formigas? É ruim, hein... Estamos por toda parte. E vocês sabiam que existem aproximadamente vinte mil espécies diferentes de formigas? Perceberam a dimensão? Somos uma das espécies mais prósperas da terra. Além do mais, somos extremamente detalhistas. Vocês precisam ver a organização interna das nossas construções. A FORMIGA PEGA UM MAPA DAS CIDADES SUBTERRÂNEAS E CONTINUA

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FORMIGA: É como se fosse uma cidade construída dentro de outra cidade, que cabe numa outra cidade menor ainda. E as vezes toda essa construção pode caber no oco de uma árvore. (COMO ESTA AQUI) Estão acompanhando? Então, dentro dessas cidades nós temos compartimentos conectados por túneis. E esses compartimentos, são usados como berçários, (embala um neném) como armazenadores de comida ou como local de descanso para as formigas trabalhadoras, que ralam demais, como alguém que eu conheço. Aponta pra si, respira e prossegue. Formiga: Fora isso, nós somos insetos sociais, o que significa que vivemos em grupo. Milhares de formigas juntas, debaixo do mesmo formigueiro divididas em três grupos: a rainha, as trabalhadoras e os machos, que depois daquele namoro maravilhoso com quem será, com quem será? etc... babau miau, já era. Entenderam? Coisas da natureza. Eles têm uma vida curta, mas muito intensa. E logo após o casamento, a rainha procura um lugar para colocar os ovos. E de lá não sai. Eu pessoalmente prefiro levar a vida de uma trabalhadora do que passar a vida a colocar ovos. É uma questão de gosto, não é verdade? (p/ a plateia) Tão acompanhando? E pra finalizar eu queria lembrar que a nossa sociedade é muito organizada. Todo o trabalho é dividido: existem as formigas-soldados, que defendem o formigueiro, as formigas-pastoras, as caçadoras, as colhedoras, as agricultoras e por aí vai... E vocês sabem como é que a gente conversa? Alguém sabe? Vou dar uma pista. (BALANÇA AS ANTENAS, AUMENTA O RITMO, ATÉ ALGUÉM ACERTAR) Isso! Pelas antenas. É uma vida dura, trabalhamos de sol a sol. Vida de formiga não é mole não, mas é assim que a gente é. O problema são os outros. Tem gente que nem se toca...não faz nada e só incomoda, mas deixa pra lá...Eu não vim aqui pra fazer fofoca...mas tem uma senhora que mora aqui nessa mesma árvore que não se toca. Sabe quando a pessoa não se toca? Não está nem aí pra nada...é do tipo totalmente egoísta? Sabe o que aconteceu? Eu já até me acostumei, a gente vive aqui, em comunidade, tem que conviver com os vizinhos, mas a pobre da minha prima, coitada, uma formiga mais simples, da roça...veio me visitar e não aguentou. Teve uma crise horrível de dor de cabeça. ELA CHORA E TEM UM PEQUENO DESCONTROLE, SEGURA A CABEÇA FORMIGA: E enquanto a gente trabalha, elas cantam. Não vou falar mais nada. Tem uma moça aí em cima que não para de cantar. Imagina se eu vou perder meu tempo cantando. Eu não consigo ficar parada. A vida só tem sentido para mim quando estou trabalhando. É assim que eu sou. Fazer o que? Tá no sangue... UM APITO DE FÁBRICA CHAMA A FORMIGA DE VOLTA PARA O TRABALHO. ELA ENTRA E SEGUNDOS DEPOIS ENTRA A CIGARRA/AURORA AURORA/CIGARRA: Vocês ouviram isso? Nunca tirou férias? Nunca foi a praia, nunca sentiu o cheiro do mar? (DÁ UM AGUDO BEM ALTO) JULIETA: (VOLTANDO) Precisava gritar tão alto?

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AURORA: Volta aqui, você vai fazer a narradora também. JULIETA: Porque? Na minha parte não tinha narradora... AURORA: Mas agora precisa. Eu preciso contracenar com alguém. Só tem nós duas... JULIETA: Ok, Mas se eu fizer dois papéis, eu tenho que ganhar mais... AURORA: Depois a gente conversa. Entra! (MOSTRA O PAPEL) Segue daqui... JULIETA: E o figurino? AURORA COLOCA UM ADEREÇO DIFERENTE NELA, OU ALGO QUE ELA TENHA USADO COMO NARRADORA. (OU PODE SER TAMBÉM UMA PLACA ESCRITO NARRADORA) NARRADORA/JULIETA: Nossa, tão pequenininha, mas com um pulmão tão poderoso... Cigarra dá outro agudo. NARRADORA/JULIETA: Você também mora por aqui? (cigarra responde com o grito) No galho mais alto dessa árvore? Deve ter uma linda vista. (cigarra responde) Dá até pra ver o mar? E você não tem medo de altura? Nem quando chove? Nem quando os galhos balançam? CIGARRA: (VOZ TÍMIDA) Claro que não, eu adoro sentir o vento batendo nas minhas asas. Parece até que eles conversam. NARRADORA/JULIETA: O vento conversa com a asa? CIGARRA: Porque não? Acho que na natureza, todo mundo conversa, cada um do seu jeito. NARRADORA/JULIETA: Como assim? CIGARRA: Por exemplo, o sol conversa com a grama. É uma conversa de calor! A lua e as estrelas também conversam. É uma conversa de brilho e muita luz! As gotas de chuva, o orvalho, também conversam. É um papo molhado! Você não acha que faz sentido? NARRADORA/JULIETA: Acho que sim, e mesmo que não faça, parece tão bonito de imaginar, essa conversa. CIGARRA: Eu também acho...Taí, gostei de você! NARRADORA/JULIETA: E eu de você. Mas, me diga uma coisa, o que você faz o dia inteiro?

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CIGARRA: Todo mundo me pergunta a mesma coisa. Eu canto, só isso. “Então canta “Se essa rua fosse minha” em ritmo cubano.” Pensa que é fácil? (Um celular toca. Ela ouve, procura, atende e despacha Julieta com gestos) CIGARRA: (PARA JULIETA, SUSSURRA) Pode ir... NARRADORA/JULIETA: (SUSSURRA) Já acabou minha cena? CIGARRA: Vaza, Julieta. (ATENDE) Alô? Sim, é ela... Sim, sou eu...É, é ela mesma...Sou eu mesma. Claro que sou eu. É ela! Ela! Eu! A cigarra!!! Ela, sou eu, entendeu? Quem está falando? Anita! Anita, minha abelha favorita? Que bom que você ligou. E o zangão? Continua nervoso? Sei, sei...E sua mãe, dona abelhuda? Que ótimo! Sei, tô sabendo...e as modas? Você me ligou para me convidar para o seu próximo desfile? Jura? Você acha que eu levo jeito? ELA DESFILA PARA LÁ E PARA CÁ, FAZ CARAS E BOCAS, ENQUANTO CONTINUA A CONVERSA CIGARRA: Quer dizer que eu vou desfilar na sua próxima coleção de outono, inverno, verão? O que? Você está dizendo que a coleção de verão está toda em liquidação? Como assim? O inverno já está batendo na nossa porta? Sabe que eu não vi? EFEITO, REALIZADO POR JULIETA QUE JOGA FOLHAS. AS FOLHAS DA ÁRVORE COMEÇAM A CAIR JULIETA: (PARA A PLATEIA) Depois eu vou ter que varrer tudo de novo! AURORA PEDE SILENCIO. SHIIIII! E SEGUE NO TELEFONE CIGARRA: Então, o que você tem na liquidação? Tem biquíni de bolinha? Tem vestido de bolinha? Tem meia de bolinha? Tem lenço de bolinha? O que? As bolinhas estão fora de moda? A moda agora é toda de listrinha? Jura? Mas eu adoro bolinhas... Combinado. Amanhã bem cedo eu vou aí... Separa pra mim dois conjuntos de calça, camisa, dois biquínis, um shorts, uma pantalona, pode ser assim misturado, de bolinha com listrinha? Pode? Porque aí fica meio na moda, e meio fora de moda, o que você acha? Se puder eu quero tudo rosa, bem rosa: rosa claro, rosa fúcsia e rosa chá. E não esquece do rosa choque! O que? (VAI FICANDO PENSATIVA) Não, não me preocupo não...ainda não...é...Tá, até amanhã...beijo, beijo. ELA DESLIGA, PENSATIVA, MUDOU O ASTRAL

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CIGARRA/AURORA: A Anita me perguntou se eu não me preocupo com o futuro... Sabe que...eu nunca pensei muito nisso. Porque para mim, o futuro é uma coisa lá na frente... e que eu não consigo alcançar. Aí ela me perguntou se eu não me preocupava com o inverno. Eu também não tinha pensado nisso? Sabe de uma coisa? Vou parar de pensar em coisas negativas. Só vou pensar positivo, vou cantar pra espairecer. (CANTA O FINAL DE “SE ESSA RUA FOSSE MINHA” E SAI) BARULHO DO VENTO. NARRADORA RETORNA, VÊ A MUDANÇA DE TEMPO E TENTA SE PROTEGER DO FRIO NARRADORA/JULIETA: Como é possível, duas criaturas tão diferentes? E morando praticamente no mesmo lugar. Uma gosta do sol e a outra gosta da lua. Uma gosta do dia, outra prefere a noite. Uma vive a correr, e a outra vive a cantar. Mas morando na mesma árvore, será que elas não poderiam ser amigas? NARRADORA PROCURA ENTRE AS FOLHAGENS E SEGURA CADA UMA DELAS NA PALMA DA MÃO NARRADORA/JULIETA: Cigarra, será que você não poderia dar um pulinho aqui? (ELA POUSA) Formiga, será que você poderia vir aqui um minutinho? Eu sei que você ta ocupada mas é rápido, prometo que não vai demorar (PEGA A FORMIGA NA MÃO). Então, vocês já se conheciam? De vista? O que foi, formiga? Você está muito ocupada? Vocês estão construindo uma ponte na ciclovia? Sei...E o que mais? Tem que dormir cedo porque amanhã você vai correr na maratona? Tudo bem. Eu só queria te apresentar uma amiga, mas, deixa pra lá, Fica pra outro dia. (CIGARRA FALA EM AGUDOS NO OUVIDO DA NARRADORA). Não sei se ela vai querer, vou tentar. Formiga, será que você gostaria de ir ver o show de uma amiga minha? Nem pensar! Era o que eu imaginava. Já vai? Você também? UM VENTO FORTE SOPRA NARRADORA/JULIETA: Ui, que frio! As noites estão ficando mais longas, os dias mais curtos, e meu apetite aumenta de um jeito... É uma delícia comer quando está frio. E eu estou sentindo um cheirinho. Deve ser apenas a minha imaginação... ELA SEGUE O CHEIRO ATÉ “O FORMIGUEIRO” NARRADORA: Ah, são vocês? O que é que vocês estão fazendo? Preparando uma festa? Inauguração da ponte da ciclovia? Mas quando vai ser? Amanhã? Nossa, como vocês são rápidas. E esse cheirinho? O que temos nessa panela? Sopa de lentilhas? Já tá pronta? Tem um pratinho pra mim? Muito obrigado. (ELA SE SERVE). Nossa, está deliciosa. Preciso aprender a fazer essa sopa. Eu já vou indo...

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A NARRADORA/JULIETA PEGA BOLINHAS DE ISOPOR NO BOLSO E SOPRA, FAZENDO EFEITO DE NEVE. EM SEGUIDA, VOLTA A CIGARRA, FRACA DE FOME E TREMENDO DE FRIO. ELA ENCONTRA A PANELINHA VAZIA, SENTE O CHEIRO. CIGARRA/AURORA: Devia estar gostosa, essa sopa. Não sobrou nada. Pelo cheiro, (encontra um grãozinho) era sopa de lentilha. Minha favorita. Já até esqueci quando foi que fiz minha última refeição. (OLHA EM VOLTA) Está tudo tão vazio. Onde será que foram todos? Não vejo ninguém, nem pássaros, nem besouros. A louva-deus, minha vizinha, saiu sem se despedir. Tá cheio de carta na porta dela. Tive até vontade de abrir. Será que ela só volta no próximo verão? Deixei um recado para as andorinhas, mas até agora ninguém me respondeu. (OLHA PRA CIMA) Olha só a minha árvore. Não resta nenhuma folhinha...está tudo tão seco...E o ar está gelado...O vento quando bate, eu sinto aqui, dentro dos meus ossinhos...Ai, como custa a passar esse inverno...O pior de tudo é o silêncio. Não ouço passos, não ouço risos, logo eu, que gosto tanto de ouvir alguém gargalhar. Até o tatu desapareceu. Ontem mesmo estive lá. Na porta do buraco onde ele mora tinha uma placa assim: “volto já”. Mas quando será esse já? (SUSPIRA). Está tudo tão devagar... Já sei, vou ligar par minha amiga Anita, tenho certeza que ela vai me animar. Anita é sempre tão cheia de vida, de novidades. Esse pessoal que trabalha com moda não para, não é verdade? (Pega o celular, disca) CIGARRA: Alô, Anita, sou eu, a Cigarra. Que bom ouvir a sua voz. O que? Por pouco não te peguei? Você já estava de saída? Estão te esperando no aeroporto? Vai viajar? Vai para a Bahia? Que legal. Eu nunca fui à Bahia. Na verdade, eu nunca saí de perto da minha árvore. Nossa, Anita, que programão...Tá calor na Bahia? Lá é sempre quente? Que beleza, hein...E a passagem, é muito cara? Quanto? Tudo isso? Não, eu não tenho tanto dinheiro assim...Para dizer a verdade eu não tenho praticamente nenhum dinheiro. Conta em banco? Poupança? Nem pensar. Nunca me preocupei. Estão buzinando lá em baixo? Então vai logo, Anita, aproveita. Divirta-se....Me manda um postal...Ah, Anita, se você puder, traz pra mim uma fitinha do senhor do Bonfim...rosa... Boa viagem, Anita. Não se preocupe. Eu estou ótima...beijo, tchau.... DESLIGA, PENSATIVA CIGARRA: Êta abelhinha de sorte. Vai pra Bahia. Muito calor, muito sol, muito acarajé com pimenta. Nem sei muito bem o que é, mas pelo nome, parece muito apetitoso. A-ca-ra-jé. Tem tantos lugares no mundo que eu não conheço. Eu até queria conhecer outros lugares, mas eu gosto mesmo é de viver aqui, na minha árvore. Lá de cima, eu tenho a vista mais linda do mundo. Eu vejo até o mar...E todos os dias eu acordo ouvindo as andorinhas cantando, aí eu começo a cantar também... (CANTA)

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Blues da cigarra Eu canto Todo mundo me pergunta o que é que eu faço Eu traço Meu caminho pelas notas das canções E não é que eu laço Com minha voz os corações Como num abraço Que aquece e envolve os corações Eu canto A CIGARRA SE COBRE COM UM XALE E PROCURA GRAVETOS CIGARRA/AURORA: Se ao menos eu conseguisse um foguinho para me aquecer. Já está escurecendo outra vez. Nossa, os dias estão cada dia mais curtos... AURORA TIRA ALGUM ADEREÇO E INTERROMPE A CENA, SAI DO PERSONAGEM AURORA: Parou...To ficando deprimida com essa história. Tá muito baixo astral. JULIETA: Culpa de quem? La Fontaine. Ele não escreveu um musical meu amor, com final feliz.... AURORA: Eu sei, mas não tá dando pra eu fazer. Mesmo sendo otimista, eu to sofrendo com essa cigarra abandonada no frio. JULIETA: Quem mandou não pensar no futuro? Por isso que ela está nessa situação. Se tivesse economizado, igual a dona baratinha. AURORA: Péssimo exemplo, não gosto dessa história, a tal da baratinha só pensa em casar, mais nada! Coisa mais antiga. Eu vou parar, e a gente esquece esse teatro, ok? JULIETA: Como assim, Aurora? Se a gente parar agora, sabe quem vai ficar sem teto e sem ter onde morar? E sem ter o que comer? AURORA: Quem? JULIETA: Nós duas! Nós é que vamos ficar sem futuro...Esqueceu do aluguel? AURORA: Se eu tivesse ao menos um casaquinho quente pra dar pra cigarra. A sopa acabou e ela nem provou. Ela tá passando fome...

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JULIETA: Mas não vai morrer! (Ih, dei um spoiler....) Calma que a história não acabou. Vai entrar outro personagem, esqueceu? AURORA: é verdade.... é que eu sou muito sensível...Bateu muito forte, me identifiquei. JULIETA: Eu disse que isso não ia dar certo, mas agora não dá para parar. Continuamos? Aurora acena que sim, elas seguem. (Escurece, a cigarra se encolhe. No céu vemos uma pequena luz que vai e volta, rodopia. é um vagalume que se aproxima da cigarra até pousar na sua mão) CIGARRA: Oi vagalume, que bom ver alguém por aqui... (ELE PISCA, SE COMUNICA PISCANDO) Você se perdeu? Como assim? O que aconteceu? (PISCA NOVAMENTE) Todos os vagalumes partiram em direção à ilha do sol? E porque você não foi com eles? Sua asa partiu? Deixa eu ver.. Coitado...Talvez eu possa ajudar. Eu tenho uma cola, é muito boa. Não é super bonder, é super boooa. Cola-tudo! Espera... ELA FAZ GESTOS DELICADOS, AJUDA O VAGALUME QUE EM SEGUIDA COMEÇA A VOAR EM TORNO DELA CIGARRA: Vamos fazer um teste, concentra e vai...Deu certo! Agora você vai conseguir encontrar seus amigos. Você quer que eu vá junto? Eu bem que gostaria, mas não tenho mais forças para voar. Vou ter que ficar por aqui. Não sei, acho que foi...falta de planejamento. Por que eu não procuro a formiga? De jeito nenhum! Imagina se ela ia me ajudar...Ela nunca foi com a minha cara. Obrigado...Olha, seus amigos estão chegando.... NO CÉU, REPLETO DE LUZES, OS VAGALUMES SE APROXIMAM. O VAGALUME SE JUNTA A ELES CIGARRA: Que lindo... Se eu ainda tivesse forças.... OS VAGALUMES PARTEM. ESCURECE. CIGARRA SAI DURANTE O EFEITO DOS VAGA-LUMES NARRADORA/JULIETA: Assim que os vagalumes partiram, a cigarra decidiu procurar a formiga. Bateu na porta e foi falando de mansinho, tentando uma aproximação. AS DUAS VOLTAM A SE ENFRENTAR CIGARRA/AURORA: Olá dona formiga...sou eu, a cigarra. FORMIGA/JULIETA: Não me chama de dona, que me envelhece. Por acaso está vendendo alguma coisa? Não estou precisando de nada. Posso saber o que é que você deseja?

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CIGARRA AURORA: Não sei por onde começar... FORMIGA/JULIETA: Que tal do início? CIGARRA AURORA: Boa ideia, formiga. Você... Você... você já foi à Bahia? FORMIGA/JULIETA: Bahia? Não, por quê? CIGARRA AURORA: Nada, eu também nunca fui... Dizem que é lindo... FORMIGA/JULIETA: Escuta aqui, se era pra falar sobre a Bahia, esquece, eu já disse que não tenho tempo a perder. Vá direto ao assunto. CIGARRA AURORA: Desculpe, amiga.... JULIETA INTERROMPE SUA ATUAÇÃO DE FORMIGA E VOLTA A SER ELA JULIETA: Parou. Agora sou eu que não quero mais. AURORA: Ah meu pai...O que foi Julieta? JULIETA: Aurora, eu estudei artes cênicas, eu sou uma atriz dramática, e não uma vilã sem coração. Eu vou negar a cigarra um prato de sopa? Eu tenho uma reputação, eu tenho princípios... AURORA: Mas Julieta, essa é a peça que a gente tem... JULIETA: Mas o papel dramático ficou para você. Eu sabia que não ia dar certo. Pra mim não dá. Eu sou uma discípula de Shakespeare! Meu sonho era interpretar Julieta, num teatro, com uma linda cortina de veludo e pé direito bem alto. Mas eu nunca consegui esse papel. AURORA: Ainda não, mas um dia vai conseguir. O seu nome já é Julieta, e isso é muito bom! JULIETA: Que nada, meu nome é Maria de Fátima, Julieta fui eu que inventei, para homenagear Shakespeare... AURORA: Mas Maria de Fátima também é um nome lindo também! JULIETA: Mas e a Julieta de Sheakspare que existe dentro de mim? O que eu faço com ela?

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AURORA: Esquece. Você quer o que? Se apaixonar por Romeu, lutar por esse amor e no final morrer? Um morre envenenado e o outro esfaqueado? Para que? De triste, já chega o noticiário, as enchentes, esse prefeito chinfrim... JULIETA: Não adianta, Aurora, eu sou pessimista, e isso não vai mudar. Eu nasci pessimista, tá no sangue... AURORA: Para, Julieta, raciocina comigo: a gente tá pobre, desempregada, sem patrocínio, sem dinheiro pro aluguel, sem poltrona, mas pelo menos a gente faz o que gosta. A gente faz Teatro! JULIETA: Pior que você tem razão... AURORA: Então, vamos terminar essa peça? O final é maneiro. Ih, dei spoiller... AURORA AJUDA JULIETA A SE ARRUMAR NOVAMENTE E AS DUAS VOLTAM AO PERSONAGEM JULIETA: Repete a última frase pra mim? AURORA: Você diz: Escuta aqui, se era pra falar sobre a Bahia, esquece, eu já disse que não tenho tempo a perder. Vá direto ao assunto. FORMIGA/JULIETA: (REPETE) Escuta aqui, se era pra falar sobre a Bahia, esquece, eu já disse que não tenho tempo a perder. Vá direto ao assunto. CIGARRA/AURORA: Boa ideia. Sabe, formiga, por acaso, você já reparou que nós temos ritmos completamente diferentes? FORMIGA/JULIETA: Claro que já! Eu não sou de ficar parada. Já você... onde é que você quer chegar? CIGARRA-AURORA: Eu também não sei. Eu só sei que, por causa do meu ritmo eu não me preparei para o inverno. Eu sou assim, tão distraída... Eu não me toquei...que o frio havia chegado. FORMIGA/JULIETA: E daí? CIGARRA/AURORA: E daí que mesmo sendo assim, tão diferentes, você poderia me ajudar. FORMIGA/JULIETA: Ajudar? De que forma? CIGARRA/AURORA: Eu pensei que você poderia me ceder algumas provisões. Prometo que devolvo! Assim que o verão chegar!

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FORMIGA/JULIETA: Só posso ceder se você jurar que vai procurar um emprego. CIGARRA/AURORA: Um emprego? Mas pra que? Eu já faço tantas coisas. Não tenho tempo pra trabalhar. FORMIGA/JULIETA: Ah é? E como você acha que vai me pagar? CIGARRA/AURORA: Cantando? Me parece uma boa ideia, você não acha? FORMIGA/JULIETA: Cantando? Ora faça-me o favor! NARRADORA/AURORA - E aquela discussão, parecia que nunca ia acabar! FORMIGA/JULIETA: Preguiçosa! CIGARRA/AURORA: Neurótica! FORMIGA/JULIETA: Aproveitadora! Você nunca quis trabalhar! CIGARRA/AURORA: E você já tentou cantar? FORMIGA/JULIETA: E pra que? Só canta quem não trabalha. CIGARRA/AURORA: Pois eu tenho certeza que meu canto ajudou todas vocês a trabalhar... FORMIGA/JULIETA: Como assim? CIGARRA/AURORA: Com alegria... FORMIGA/JULIETA: Ora, que pretensão... CIGARRA/AURORA: Eu acho que você até sabe minha música de cor... A CIGARRA CANTA SUA MÚSICA, A FORMIGA IMITA BAIXINHO, DEPOIS CALA CIGARRA/AURORA: Então vai me ajudar? FORMIGA/JULIETA: Ajudar? Tenho mais o que fazer... CIGARRA/AURORA: Nossa, formiga, A minha música fez você mais feliz, eu tenho certeza! CIGARRA/AURORA: Você nunca vai dar o braço a torcer?

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FORMIGA/JULIETA: Querida, me desculpe, mas você esqueceu que eu não tenho braço? Eu sou apenas um inseto. Desde quando insetos tem braços? AS DUAS RIEM CIGARRA/AURORA: Que engraçado...eu também, sou apenas um inseto. Nós duas temos alguma coisa em comum... FORMIGA/JULIETA: Talvez você tenha razão... A sua música é muito bonita, eu devo reconhecer. CIGARRA/AURORA: Então, isso vale ou não vale um prato de sopa? A FORMIGA ACENA QUE SIM. ESSA FALA FINAL DA NARRADORA DO PODE SER DIVIDIDA ENTRE AS DUAS NARRADORA: Não é incrível? Depois de tanto desentendimento, a cigarra e a formiga finalmente aprenderam “a conviver com as diferenças”. E enquanto uma canta, a outra trabalha, e daí? Ser diferente é assim mesmo, cada uma do seu jeito. Enquanto uma pensa no futuro, a outra vive o dia de hoje.... E agora, a formiga também aprendeu a cantar: ENTRA A MÚSICA, REPETE O DUO, AS DUAS CANTANDO JUNTAS, A CIGARRA “AJUDA” A FORMIGA “Eu canto... CIGARRA E FORMIGA CANTAM JUNTAS. AS DUAS VÃO TIRANDO SEUS ADEREÇOS E VOLTAM A SER JULIETA E AURORA AURORA: Não disse que a gente ia conseguir? JULIETA: Hoje deu certo, mas amanhã pode chover... AURORA: Para, Julieta! JULIETA: Eu sou pessimista, não adianta, tá no sangue...E agora, o que é que falta? AURORA: Agora só falta passar o chapéu! ELAS SE DIVIDEM PARA PASSAR O CHAPÉU, MAS VOLTA A DISCUSSÃO JULIETA: Amanhã sou que eu faço a Cigarra, ok?

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AURORA: Ah, quer fazer de novo? Gostou? JULIETA: Não enche, Aurora. Vê se o anel é de ouro, dá uma mordidinha... Se não amassar é de ouro... AURORA: Porque é que você não dá o braço a torcer, hein, amiga?

Fim Obs.

Este texto foi retirado do site do CBTIJ - Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e Juventude. Lembramos que qualquer montagem, profissional ou amadora, desse texto, requer a autorização do autor ou da entidade detentora de seus direitos autorais.

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