A Clavícula de Salomão · PDF filegozador, mas não pôde esconder...

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A CLAVÍCULA DE SALOMÃO por Fernando H. F. Sacchetto – 25/05 - 21/10/2011 I Tudo começou com um camarada do Paulinho. “Tô te falando, o cara era um zero à esquerda”, ele estava explicando. “Não catava mina nem com reza brava. Hã... modo de dizer. Já te explico.” “Explica o quê?” Parecia mais uma das histórias compridas do Paulinho, e minha paciência estava começando a se encher por antecipação. “Deixa pra lá. O negócio é que ele era o maior mané, e não era só com mulher. Tava sempre duro. Ele vivia no O’Malley’s pra pagar de burguês...” “Igual a você, né?” “Vai se ferrar. Mas ele só chupinhava de todo mundo, fazia o possível pra galera pagar a birita dele. E, quando ele pegava alguma coisa, era só dragão.” “Beleza, entendi, era um loser. Mas e aí?” “Aí, esse sábado eu esbarrei com ele, na festa de uma prima da minha mina. Mano, fiquei de cara. Ou o malandro engana muito bem, ou ele tá investindo pesado na Bolsa, e ganhando. Diz que, só semana passada, ele faturou mais de 100 mil no intraday.” “Ué, isso é fácil pra caramba. Que cara é essa? Lógico que é! Qualquer ridículo pode encher a cara de bebida e dizer numa festa que faturou 100 ou 200 mil com intraday ou sei lá o que mais.”

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A CLAVÍCULA DE SALOMÃOpor Fernando H. F. Sacchetto – 25/05 - 21/10/2011

ITudo começou com um camarada do Paulinho.

“Tô te falando, o cara era um zero à esquerda”, ele estava explicando. “Não catava mina nem com reza brava. Hã... modo de dizer. Já te explico.”

“Explica o quê?” Parecia mais uma das histórias compridas do Paulinho, e minha paciência estava começando a se encher por antecipação.

“Deixa pra lá. O negócio é que ele era o maior mané, e não era só com mulher. Tava sempre duro. Ele vivia no O’Malley’s pra pagar de burguês...”

“Igual a você, né?”

“Vai se ferrar. Mas ele só chupinhava de todo mundo, fazia o possível pra galera pagar a birita dele. E, quando ele pegava alguma coisa, era só dragão.”

“Beleza, entendi, era um loser. Mas e aí?”

“Aí, esse sábado eu esbarrei com ele, na festa de uma prima da minha mina. Mano, fiquei de cara. Ou o malandro engana muito bem, ou ele tá investindo pesado na Bolsa, e ganhando. Diz que, só semana passada, ele faturou mais de 100 mil no intraday.”

“Ué, isso é fácil pra caramba. Que cara é essa? Lógico que é! Qualquer ridículo pode encher a cara de bebida e dizer numa festa que faturou 100 ou 200 mil com intraday ou sei lá o que mais.”

“Tá, tá, tudo bem, mas o cara tava diferente. Tinha, sei lá, alguma coisa nele...”

“Cê tava gamadão, né? Vai, fala a verdade, tava querendo dar uma sentadinha?”

“Vai te catar! Tô dizendo que tinha um monte de gatas em cima dele. Sei lá, ele vinha com uns papinhos mó nada a ver, e elas davam o maior mole.”

“Também, ganhando 100 pila por semana...”

“Cê não disse que era conversa? Te peguei, hein, manezão? Enfim, mesmo com roupa de marca e tal, ele tava sinistro. Você não acreditava. Mas o pior não é isso.”

“Que foi, ele te levou pra casa?”

“Cala a boca. Sabe o quê que ele disse que tinha acabado de comprar? Vai, diz aí!”

“Que tal você parar de enrolar e falar logo?”

“A Helmbrecht! Cara, tá ligado, né? A alta violenta que ela teve hoje? Que ninguém previu, em lugar nenhum?”

Agora estava começando a ficar interessante. “É, pra ser coincidência, isso é muita sorte. O cara te disse por que ele tinha comprado, como ele sabia?”

“Meu amigo, aí é que o bicho pega. Por isso é que eu hesitei quando eu falei de reza brava.”

“Vai me dizer que foi medalhinha de Santo Expedito?”

“Não, mas também não tá longe disso. Então, não sei se eu falei, mas ele participa de um tal dum clube de xadrez que mexe com uns negócios meio esquisitos.”

“Mais esquisito que simplesmente montar um clube de xadrez?”

“Sei lá, do jeito que ele fala, nem parece que o negócio deles é xadrez mesmo. Parece que é tudo meio secreto, um tipo de maçonaria. Rituais, e tal. Ele só soltou o que ele soltou no sábado porque tava chapadão.”

“É, meu amigo, as coisas que se libera quando se está bêbado... Cuidado aí...”

“Pois é. Ele sempre foi meio misterioso com isso, mas deixava a entender que eles estudavam uns troços meio, assim, de ocultismo.”

“Hã.” Mais que interessante. “Tipo, o que, simpatias, macumbas, como é isso?”

“Eu sei lá, não faço a menor ideia, mas simpatia não parece ser o tipo de coisa desses caras. Difícil imaginar esse maluco botando um santo de cabeça pra baixo.”

“Nunca se sabe. As pessoas que você menos imagina tão por aí acendendo vela com pedaço de cabelo seu, ou seja lá o que for.”

“Pode até ser, mas voltando ao tal clube... pelo que o sujeito falou, eles andam fazendo rituais com um negócio que você nem imagina. Quando ele falou isso, eu larguei a mão dele, é muita balela pra minha cabeça.”

“Mais do que você tá acostumado a contar? Difícil acreditar.”

“Você sacaneia, mas não foi você que teve que ficar ouvindo um cara falar que tem a droga da clavícula do Salomão. Dá pra acreditar num troço desses?”

Tudo estava começando a se encaixar, ainda que não fizesse tanto sentido assim. “Na verdade... dá pra acreditar tranquilamente, sim.”

“Quê?! Peraí, meu chapa, a clavícula do Salomão? Um cara que teria vivido no meio do Oriente Médio faz sei lá quantos mil anos? E um bando de trouxas pé-rapado que se reúne num sebo, aqui em São Paulo, tem um osso dele?!”

Eu sorri. A cara de incredulidade do Paulinho valeu a minha paciência. “E quem foi que falou em osso? Isso mesmo, não tem osso nenhum. Eu acredito que esses caras têm essa clavícula justamente porque eu também tenho.”

“Ah, rapaz, pára com isso! Cê tá me sacaneando, né? Pode desarmar essa cara de paisagem, eu sei que você é doido, mas não a esse ponto!”

“Tô falando pra você, não tem nada de mais. Não é uma clavícula no sentido de osso... na verdade, isso é um livro. A Chave Menor de Salomão, ou, em latim, Clavicula Salomonis. É daí que vem o nome.”

“Putz grila, sério? E eu aqui imaginando os caras pegando uma clavícula e mexendo por aí que nem uma varinha mágica... Mas como você tem um troço desses?”

“Ué, cara, internet. Hoje em dia é difícil achar um livro que não tá lá. Se quiser, eu te passo o PDF.”

“Sai pra lá, não quero saber desses troços magia negra não, cara!”

“Que foi, tá com medinho? Tá tremendo de medo do capeta, né?”

“Nada, eu acho que isso tudo é babaquice mesmo, mas vai saber... Se bem que desse jeito, PDFzinho num pen-drive do Paraguai, nem tem graça. Achava que esse

tipo de coisa era pra ser um livrão, sinistraço, antigão, sabe como é?”

“Sem galho – é só imprimir, fazer uma capa bacaninha de couro, envelhecer o papel com chá de maçã e meter uns grampos. Mas tá, tudo bem, eu sei do que você tá falando. Livro antigo é caro pra caramba, item de colecionador, mas pra que gastar dinheiro se dá pra pegar o scan na net de graça?”

“Que seja, tanto faz. Mas sério que você tem isso? Você, Renato, o físico ateu, defensor da ciência e inimigo do obscurantismo, com mestrado em quântica e tudo? Não é por nada não, mas o que diabo você tá fazendo com um livro de ocultismo?”

“Qual é o problema? Conhecimento é conhecimento, meu chapa. Tá, o método científico passa longe da cabeça dos malucos que escrevem esse tipo de parada, e praticamente tudo você explica com cinco minutos de análise e ciência de colegial, mas mesmo assim é legal saber como é, o que eles pensam, como chama, e por aí vai. Curiosidade mesmo. Não é ela que é a alma da ciência?”

“Eu, hein... Mas então, e a tal da Clavícula, o que tem nela? Feitiços, maldições?”

“Não exatamente. Ela tem várias partes, mas a mais conhecida é a Ars Goetia, que é a que ensina como invocar demônios. Sério, tem tudo lá, o desenho do círculo mágico, instruções, e toda a ficha de 72 demônios com nome, título, habilidades, e tudo mais. Vem no meu computador, dá só uma olhada.”

Fomos à minha mesa, e rapidamente achei o livro em meus arquivos. Paulinho estava tentando dar uma de

gozador, mas não pôde esconder uma certa empolgação quando o abri. LEMEGETON CLAVICULA SOLOMONIS. “Tá vendo aqui?”, mostrei. “Editado e material adicional por Aleister Crowley. Cara famoso, do começo do século 20. Tudo o que você for procurar de magia hoje tem o dedo desse cara. Até o Black Sabbath tem uma música sobre ele.”

“Ah, claro, porque é isso que determina que...” Ele parou no meio do caminho e olhou boquiaberto quando desci para o círculo mágico. “Cara, que da hora! Cheio de runas e pentagramas e sei lá o que mais!”

“Runas não, isso aqui é só hebraico mesmo. São nomes religiosos, de anjos ou alguma coisa assim. Quase tudo aqui tem a ver com Deus ou anjos.”

“Peraí, mas esse troço não era pra chamar demônios? Como assim, Deus?”

“É isso mesmo, esse tipo de magia procura usar o poder de Deus e tal pra prender os demônios. Tipo, teoricamente, se você usa isso, apesar de chamar os capetas, você não seria um satanista... é como se estivesse fazendo reféns e obrigando o inimigo a trabalhar pra você, manja?”

“Cara, quem diria... Quer dizer que esses rituais de magia negra são coisa de crente?”

“Não é bem assim, calma lá... se você chegar com isso numa igreja evangélica, eles jogam você, o livro, e até o seu cachorro na fogueira. Os caras acham que estão do lado de Deus, mas quem concorda com isso ou não é outra história.”

“E o que você acha? Tão com Deus ou não?”

“Sério que você tá me perguntando isso? Como que eles podem ter ou não o apoio de um personagem fictício? Você acha que o Batman tá do seu lado?”

“Não fala assim. O Batman nunca me deixou na mão.”

“Tá bom. Olha aqui os demônios. Tem os nomes, selos, quantas legiões cada um comanda, o que cada um faz...”

Ele apontou para o selo de Buer. “Esse aqui dava uma tatuagem animal...”

“Ele ensina filosofia, ervas e plantas. Ou seja, o patrono dos maconheiros. Nada de mais. Tem uns que te teleportam, ou tocam fogo nos seus inimigos.”

“Então você quer dizer que o cara lá que eu tava falando desenhou um negocinho desses e invocou o coisa-ruim?”

“Eu não quero dizer nada, você é que tá contando a história. Mas deve ser algo nessa linha. Bem, na verdade é bem mais complicado, tem todo um ritual, cheio de inscrições mágicas, invocações, incensos, sei lá mais o quê, mas é por aí.”

“Mas peraí... o que eu quero saber é o seguinte: Cê acha que realmente veio alguma coisa? Alguma entidade, que deu poderes pra esse cara?”

“O que eu acho é que a psicologia explica muita coisa. De repente ele só precisava de mais autoconfiança, sei lá. Só o negócio da Helmbrecht que tá esquisito, mas ainda pode ser coincidência. Mas o que eu realmente sei é que eu só tô me baseando no que você disse, tá me

entendendo? Eu precisaria conhecer esse tal clube do xadrez pra saber o que exatamente tá acontecendo por lá.”

“Você tá falando de se infiltrar no meio dos caras? Tipo, investigação mesmo?”

“Não viaja, ô mané!” Na verdade, era bem o que eu estava pensando mesmo. “Só dar uma sapeada, de curiosidade. Afinal, eu gosto de xadrez. Qual o problema de entrar pro clube? E eu aproveito pra saber como que ele fez pra ganhar esse dinheiro todo.”

“Tá acreditando na historinha de magia, né? Ah, rapaz, tô sabendo que você bem que tá com vontade de ajoelhar e beijar o rabo do capeta!”

“Eu só estou tomando uma atitude científica. Diante desse fenômeno curioso, eu pretendo observá-lo cuidadosamente, classificá-lo, e derivar uma conclusão equilibrada e imparcial com base nos princípios áureos da nobre ciência física.”

“Tá certo... Então, quer que eu te apresente o cara? De vez em quando ele aparece no mini-golfe, eu posso te levar lá. O nome dele é Bessa”

“Demorou. O Bessa que me aguarde, eu vou ensinar pra esses manés do xadrez um pouco sobre o que é real e o que é superstição.”

Entretanto, quem estava prestes a aprender era eu, e a lição seria longa.

IIEle tinha um ar insuportável de quem tinha muito

privilégio e nada de bom para fazer com ele, como um menino que não aceita perder o jogo só porque é o dono da bola. Quando encontramos com ele no mini-golfe, eu já sabia quem era antes mesmo de o Paulinho nos apresentar.

“Filha da mãe”, disse eu, quando mandei a bola para fora da área pela terceira vez. Fazia parte do plano. “Deve ter alguma coisa errada com esse taco.”

“Claro que tem,” Paulinho respondeu. “O problema tá na peça que segura o cabo. Agora sai da frente que o profissional vai mostrar como se faz.”

“Desculpa aí,” retruquei, “não é todo mundo que pode ficar nesse passatempo de burguês todo fim de semana.”

A jogada foi razoável. Bessa se posicionou para sua tacada. “Qualé, não esquenta,” disse ele, “acho que você tá indo bem pra primeira vez.”

“Tá brincando? Oito pontos em três buracos, e com essa penalidade, já tô na quarta tacada pra esse aqui. Realmente, esse troço não é pra mim.”

Paulinho sorriu. “É, meu chapa, tô falando. Você como jogador de golfe é um ótimo físico. Ou nem isso... não presta nem pra calcular a trajetória da droga da bola!”

“Ã-hã, tá bom. Me dá um feixe laser e um computador que eu resolvo esse problema.”

Bessa atravessou dois obstáculos com sua bola. “De repente é uma questão de talentos... deve ter outras coisas que você faz bem.”

Eu sorri enquanto posicionava minha bola. Havia chegado meu momento. “O negócio é que isso aqui não tem nada a ver com calcular trajetória de coisa nenhuma. É só habilidade manual mesmo, grandes coisas.” Consegui ao menos mandar a bola em direção ao buraco. “Agora, me dá um jogo que precisa de raciocínio, planejamento, criatividade, como o xadrez... aí sim, você vai ver o que é profissional.”

“Ô, Bessa,” Paulinho disse enquanto alinhava sua tacada, “você não tinha um tal dum clube de xadrez? Podia levar esse cara pra lá, que aqui ele tá só perdendo tempo.”

O rapaz ficou meio sem jeito. “Ué... você nunca se interessou pelo clube, porque tá perguntando dele agora?”

“Eu falei pra levar ele, não eu. Tô nem aí pra xadrez, ô troço chato.”

“Taí, parece legal,” disse eu, procurando mostrar interesse. “Isso sim, eu topo numa boa. Onde vocês jogam?”

“Hã...” Ele parecia procurar algo para dizer enquanto preparava sua tacada. “Acho que era bom ver com o pessoal lá, a agenda de jogos...”

“Ah, cala a boca,” disse meu colega, com um gesto de aborrecimento. “Até parece que tem uma fila enorme de gente querendo entrar pro seu clubinho.”

“Nem que seja só pra assistir, até abrir um jogo,” argumentei. “Eu aprecio uma boa partida. Existe toda uma beleza no ato de usar o pensamento pra moldar uma realidade.”

Paulinho deu um grunhido de repulsa pela pretensão do que eu disse, mas Bessa sorriu. A referência havia

surtido efeito. “Tá certo... acho que dá pra você frequentar lá um pouco. Só pra ver se você se adapta ao nosso pessoal.”

“Tenho certeza que sim.” Retribuí o sorriso, mais pela satisfação de ter conseguido vencer a primeira barreira. “Eu sinto que vou ter grandes coisas pela frente nesse clube.”

* * *

Na terça seguinte, lá estava eu, rodeado por livros (mais velhos que antigos) e um bando de caras com o mesmo olhar faminto de Bessa. O lugar ficava na Santa Cecília, numa casa térrea espremida entre prédios antigos, e precisava de um pouco de boa-vontade para chamá-lo de “sebo”. Um nome mais apropriado talvez seria “garagem apinhada de tralhas”.

O dono do lugar, um senhor de meia-idade com olhos fundos, me observava fixamente. “Então você que é o tal amigo do Bessa.”

“Pois é...” Eu estava bem mais nervoso do que imaginei que fosse ficar. Supostamente, seria uma situação perfeitamente tranquila, mas não era o que eu sentia. “Na verdade, eu conheci ele através de outro amigo, bem, um colega de trabalho que...”

“Você trabalha com números, não? Ele adiantou pra mim. Disse que você pega todos os números que rodeiam a vida de uma pessoa e os manipula, desmonta, remonta, espreme até extrair deles a verdade sobre o futuro. Não é por aí?”

Olhei incrédulo para meu “padrinho”. Ele estava prestando uma enorme atenção no chão à sua frente. “Não é bem assim que eu descreveria,” expliquei, “mas acho que até dá pra dizer isso. Na verdade eu sou analista de seguros de uma empresa de consultoria, a MKL... conhece?”

O sorriso dele disse que ele não apenas não conhecia, como também não ligava a mínima pra isso. “Perdão pela minha falta de modos. Orígenes. Renato, certo?”

“Hã... sim, meu nome é Renato Oliveira. Prazer.”

“Igualmente. Nome auspicioso... espero que se confirme. Mas chega de conversar com palavras... há muito pouco que elas podem dizer. Que tal conversarmos de forma mais direta, de mente para mente?”

Eu já estava procurando a porta da saída e uma desculpa para me dirigir a ela, quando percebi que ele estava falando de jogar xadrez. Aliviado, sentei em frente ao tabuleiro – um conjunto realmente lindo, de mármore, tanto o tabuleiro em si quanto as peças. Claro, isso me irritou um pouco – sempre achei peças de madeira mais fáceis de ver e de manusear – mas eu não estava em uma posição que me permitisse reclamar muito. Orígenes estava sentado do lado das pretas, então tomei as brancas, e, após um tempo para respirar fundo e juntar meus pensamentos, abri o jogo.

Comecei jogando defensivamente, tomando cuidado para não deixar brechas em minhas posições, enquanto avaliava o jogo dele. Ele foi mais agressivo desde o princípio, e logo tomou a iniciativa do jogo, forçando-me a constantemente reagir a suas investidas. Capturou diversas peças minhas, inclusive minha rainha, em um jogo rápido e frenético... mas sacrificou a maioria de suas peças de valor

para fazê-lo. Eventualmente, deu um xeque com a torre, a qual capturei com o cavalo, resultando em xeque-mate. Seus peões, pouco movimentados, facilitaram que eu o encurralasse.

“Esplêndido,” disse. “Por um momento eu imaginei que seu medo o estivesse prendendo, impedindo-o de manifestar seu potencial. Claro, vejo que você ainda tem muito o que aprender... para começo de conversa, precisa se arriscar mais se quiser atingir a grandeza.”

“Ou perder o jogo,” retruquei. “Não sei se eu teria conseguido ganhar se você conservasse mais a sua força.”

Orígenes gargalhou, enquanto virava-se para os outros. “Estão vendo? Ele não abaixa a cabeça. Acho que você tem potencial afinal de contas, rapaz. Está começando a perder suas inibições. Acho que pode aprender uma coisa ou outra conosco.”

Os outros integrantes finalmente começaram a olhar diretamente para mim. A tensão no ambiente aliviou-se de forma palpável; de repente, a própria garagem onde o sebo estava instalado parecia maior.

“Acho que sim,” disse afinal, após a ficha terminar de cair. “Afinal... não é só xadrez que tem pra fazer aqui, né?”

Uma senhora com bem mais maquiagem e bijuterias que o ambiente pedia virou-se para mim com um olhar malicioso. “O que você quer dizer com isso?”

Gesticulei à minha volta com um sorriso. “Todo esse conhecimento ao redor da gente... quer lugar melhor pra ter discussões aprofundadas sobre as mais diversas questões?”

“Não falei que era o cara certo?” Bessa tinha um ar triunfante.

O líder do grupo levantou a mão. “Calma... ainda estamos conhecendo nosso novo colega. Não é o momento de se precipitar, ou de queimar etapas. Ele ainda irá provar seu valor, tenho certeza.”

“Qualé, ainda preciso ganhar de todo mundo?” Agora eu estava sendo deliberadamente petulante. “Aliás, que tal me apresentar o resto do pessoal?”

“Meus perdões.” Orígenes abaixou a cabeça em um gesto teatral. “Você já conhece a mim e ao nosso amigo Bessa. A Suzana,” ele gesticulou para a mulher que me fizera a pergunta, “é uma senhora cujos modos suaves ocultam grande força. Aqui temos o sábio e gentil Oscar,” disse, mostrando um senhor de meia-idade de ar amável, “e por fim, apresento Lúcio e Naiara, cujo amor traz equilibro ao nosso pequeno grupo.” O casal consistia em um rapaz de ar insolente e uma moça que fazia um esforço admirável para esconder seu jeito suburbano.

Acenei para cada um que era apresentado. “Muito prazer, pessoal,” disse ao final. “Espero ter a oportunidade de detonar todos vocês no tabuleiro... não me levem a mal.” Forcei um sorrisinho. Os outros integrantes não riram da gracinha, mas responderam com sorrisos de expectativa, o que me deixou mais sem jeito ainda. “E agora, eu tenho que assinar alguma coisa, fazer um juramento, pagar trote, o quê?”

Orígenes inclinou-se para a frente em sua cadeira. “Mostre sua habilidade de prever nossos movimentos. O que você acha que deve fazer?”

Pausei por alguns segundos, refletindo. É agora ou nunca, pensei. Arrisco? Ah, que se dane. Se eu ficar enrolando, nunca vou conseguir.

“O que eu devo fazer?” disse, levantando o olhar para ele. “O que eu quiser, claro. Não é essa a lei?”

Os membros do clube se entreolharam, intrigados – com a exceção de seu líder, que manteve seus olhos fixos em mim. O silêncio se estendeu por alguns momentos tensos, sendo então substituído por um burburinho ainda mais angustiante. Senti gotas de suor se formando em meu pescoço.

Após um tempo que pareceu uma eternidade, a voz penetrante de Orígenes cortou os sussurros, que se calaram instantaneamente. “Devo dizer que estou surpreso. Quando Bessa disse que tinha alguém novo para o clube, aguardei sem muito interesse – eu já esperava por essa notícia, claro. Talvez por isso não tenha lhe dado seu devido valor, devo confessar. Esperava na melhor das hipóteses alguém ignorante mas com um mínimo de potencial... não um erudito.”

Fiz alguns sons desajeitados, tentando dizer que não sabia grandes coisas, mas ele me interrompeu antes que eu pudesse falar. “Claro, seu conhecimento ainda deverá ser testado, bem como sua sabedoria... e lealdade. Mas tenho esperanças. Os prognósticos são positivos. Sei que todos estamos ansiosos pelo sétimo membro, pois há poder neste número... e essa é uma dádiva que nos foi prometida.” Ele se levantou, sendo seguido pelos outros. Aproveitei a deixa para me levantar também, a tempo de ele me alcançar e apertar minha mão. “Neste sábado, teremos condições de saber se ela nos foi entregue. Até então... bem-vindo ao Clube de Xadrez.”

Uma onda fria borbulhou em minha barriga. Não tinha consciência disso na época, mas eu acabara de cruzar um horizonte de eventos. A partir daquele ponto, não era mais possível voltar atrás.

III“E então?” Djalma olhava para mim ansiosamente.

Encolhi os ombros. “Ué, então nada. Todo mundo levantou, como eu disse, e eu fui pra casa.”

“Mas e aí?” Meu colega insistia. Ele era pouco mais jovem que eu, mas o brilho em seus olhos o fazia parecer uma criança. “Os caras são sinistros mesmo? Você viu alguma coisa doida de ocultismo?”

“Pô, cara, tô dizendo, eu fui embora logo em seguida. Ainda não deu tempo de ver nada. Quem sabe amanhã... pelo que o cara falou, deve ter algum tipo de ritual, sei lá.”

“E esse negócio que você falou? Cara, como que você sabia o que era pra falar?”

Lancei um olhar para nosso amigo Alfredo. “Faça o que quiser, essa será toda a lei,” ele disse. “Aleister Crowley. É o lema da Thelema, movimento místico criado por ele. Reflete o tema central da imposição da vontade sobre a realidade, que era o que ele compreendia por magia. Pra quem conhece o tema, é praticamente a porta de entrada.”

“Exatamente,” continuei. “Pra ser sincero, eu até fiquei meio decepcionado por eles ficarem tão impressionados com uma coisinha besta dessas. Não que eu esperasse que eles fossem grandes mestres da sabedoria,

claro, mas... bem, quem sabe foi só pela surpresa. Afinal, não é todo mundo que conhece essas coisas, certo? Ou que solta esse tipo de frase numa conversa normal sobre xadrez...”

“Você tá levando isso a sério mesmo, né?” Mirna, que completava nosso pequeno grupo, perguntou suavemente.

“Que nada,” disse, talvez um pouco mais forçadamente do que gostaria. “É só curiosidade mesmo. E também é bom ter um pessoal pra praticar xadrez...”

“Tá bom...” Djalma deu uma risada. “Se fosse eu, a última coisa que eu ia pensar era xadrez! Imagina se eles tão invocando mesmo alguma coisa...”

Alfredo tinha um ar grave. “Eu já expressei minhas reservas sobre esta sua empreitada... e, novamente, peço encarecidamente que reconsidere.”

“Qualé o problema?” Procurei demonstrar naturalidade. “Em primeiro lugar, eu tô convencido de que não tem nada de mais nesse pessoal. Só queria saber como é que eles ficaram sabendo da alta nas ações da Helmbrecht. Deve ter algum esquema aí. E depois, se eu perceber que a coisa tá ficando pesada... bem, é só pular fora, certo? Mal conheço esses caras.”

O olhar de Mirna ficou um pouco mais sério. “Eu é que não sei que tipo de coisa que eles podem estar armando, mas se for alguma coisa perigosa... tem certeza que você vai perceber a tempo? Que, quando você se der conta, não vai estar envolvido demais pra voltar atrás?”

“Não esquenta não!” Minha resposta foi rápida. “É só um bando de malucos. De qualquer jeito, vamos parar de enrolação que o negócio aqui é sério.” Gesticulei para a

parafernália de jogo – dados, mapas, fichas, livros – que cobria a mesa. “Tem um portal pra Baator em algum lugar da aldeia, e vocês ainda tão longe de achar a pista dele.”

“Que se dane a aldeia, esse negócio é de verdade!” Djalma estava incrédulo. “Um culto sinistro, com magia, demônios, o escambau! Na realidade! Quem se importa com o jogo? É só imaginação!”

“Eu não teria tanta certeza...” Pontuei a ambiguidade do que disse com um sorriso ardiloso. “E, de qualquer jeito, não tem como avançar a aventura do clube de xadrez agora. Mas a aventura da aldeia de Gormund sim, e o tempo é valioso.”

* * *

No dia seguinte, resolvi ir mais cedo ao sebo para não atrasar e dar vexame, e acabei sendo o primeiro a chegar. Orígenes, que estava atendendo um freguês, indicou uma das cadeiras no fundo da loja, onde havíamos nos reunido da última vez. Peguei um livro a esmo (parecia ser algo sobre a psicanálise sob a ótica da alquimia medieval) e me sentei, tentando em vão me concentrar na leitura.

“Boa escolha,” ele me disse alguns minutos depois, e se dirigiu à frente da loja. O freguês já havia saído. “Um tanto quanto vago e acadêmico, com certeza, mas uma introdução válida à sublime ciência.” Ele desceu o portão de correr, e começou a preparar a porta que o atravessava. “E o elo com a psicanálise... muitos tradicionalistas podem torcer o nariz, mas eu particularmente só vejo benefícios no diálogo entre a ciência dos antigos tomos e a das universidades. Não acha?”

“Hã, acho que sim... afinal, Newton era alquimista, não? Naquela época, eles não faziam muito essa distinção.”

Ele apontou para mim, triunfante. “Exato! Muita coisa se perdeu do homem renascentista, que buscava uma visão completa do Universo. Mas parece que não preciso dizer isso para você, ah, não mesmo. Cada vez mais, compreendo as forças que o trouxeram a nosso círculo. Mas enfim!” Antes que eu tivesse tempo de ficar sem graça, ele começou a mexer em um armário. “Pelo que vejo, você não trouxe preparativos. Compreensível. Não se preocupe, creio que tenho tudo o necessário aqui... vamos, vista isso.”

Peguei a vestimenta que ele me entregou e a desdobrei. Era um manto negro, um tanto quanto áspero, com símbolos e inscrições – ALMALEC, APHIEL e ZARAPHIEL – bordados em linha dourada no peito e nas costas. Um frio correu por minha espinha. “Hum,” disse, pigarreando, “é pra tirar a roupa antes de pôr isso?”

Ele me estudou por alguns momentos, aparentando se divertir com meu desconforto. “Sim, Renato... a pureza é pré-requisito primordial para o trabalho que fazemos aqui. Se quiser, pode usar o banheiro ali nos fundos... mas eu fortemente sugiro que você se prepare para perder as inibições de nossa sociedade controladora e antinatural. Perfeito amor e perfeita confiança, é o que pregamos.”

“Perfeito amor e perfeita confiança,” repeti, sem muita convicção. Se eu bem me recordava, esse lema era de outra tradição, um bocado distante da magia de Crowley que eles pareciam praticar, mas não comentei nada. Resolvi me dirigir ao banheiro silenciosamente, e tirei tudo exceto a cueca, torcendo com todas as forças para que esse fato não viesse à tona, vestindo em seguida o manto. Ele tinha um capuz, que puxei sobre a cabeça. “Renato, seu maluco,”

sussurrei, enquanto avaliava minha aparência bizarra no pequeno espelho. “Onde que você foi se meter? Agora não dá mais pra passar o carão de sair correndo... mas, depois que essa loucura acabar e eu me mandar daqui, nunca mais piso nesse lugar!”

Quando emergi do banheiro, abrindo lentamente a porta com minha roupa dobrada embaixo do braço, o senhor mais velho que participava do grupo já havia chegado, e estava afastando as cadeiras enquanto Orígenes trocava sua roupa, vestindo um manto branco com um pentagrama elaborado e cheio de inscrições no peito, bordado em preto.

“É Renato, né?” O homem (Oscar, conforme ele me lembraria mais tarde) apresentava um sorriso acolhedor. “É a primeira vez que você faz isso? Não se preocupe não, é tudo bem tranquilo aqui. No fundo, não é nada mais que uma sessão de oração.” Mal sabia ele que, ao invés de me acalmar, isso apenas me deixou ligeiramente mais apreensivo. “É só observar a gente e acompanhar na medida do possível. Se você fizer alguma coisa fora do roteiro, não ligue. Todo mundo já passou por isso.”

“E quem sabe, o desvio pode ser o resultado de forças superiores, dirigindo o ritual de formas que mal podemos prever.” Orígenes voltara ao centro da área onde antes estiveram os assentos, com diversas velas e outros objetos nas mãos. “Claro, você ainda precisa aprender muito, mas garanto que também temos muito o que aprender com você.” Ele começou a riscar um círculo no chão com uma espécie de pedra. Reparei, somente depois que ele começou, que ele estava traçando sobre uma linha apagada mas ainda perceptível, provavelmente resquício de rituais anteriores.

Comecei a folhear novamente o livro sobre alquimia enquanto Oscar se trocava e Orígenes traçava linhas e símbolos no círculo; entretanto, logo chegou Suzana, que me olhou de cima a baixo. “Abençoado seja,” disse em tom jocoso.

“Abençoada seja,” retribuí, sendo logo acompanhado pelos outros. Esforcei-me para não olhar diretamente enquanto ela trocava de roupa (não que ela fosse do tipo que desperta os instintos mais primitivos, mas ainda assim, valia ser educado); ela, por seu lado, não fazia a menor questão de esconder seu corpo, mas pelo contrário, tinha algo de provocante em seu jeito de se despir. Oscar conversava animadamente com ela, aparentemente sobre algum tipo de fofoca, e seu mentor prosseguia pacientemente em seu trabalho, colocando velas e incensos em um grande e elaborado pentagrama.

Os outros membros do grupo não tardaram a chegar (primeiro Lúcio e Naiara, e por último Bessa), transformando aquele vestuário improvisado em uma roda de conversa, na qual me senti impelido a entrar. Não foi difícil participar, pois eu era o tema principal da discussão – o que eu fazia, qual era minha formação, se já havia participado de algum “coven” ou outro tipo de círculo de ocultismo. Deixei claro que, até o momento, meu conhecimento do assunto era apenas teórico – sem mencionar, claro, que jamais acreditei que houvesse qualquer coisa de real nisso. Notei que Lúcio olhava avidamente para mim e para Bessa (mas principalmente para mim) enquanto sua namorada se trocava; procurei, portanto, parecer completamente absorto na conversa enquanto isso ocorria.

Logo o assunto pendeu para a legitimidade da bruxaria moderna, se ela era algo inventado nos anos 60 ou não, e se isso realmente importava; este parecia ser um assunto delicado no grupo, a julgar pelos olhares e suspiros quando isso veio à baila. Felizmente, Orígenes interrompeu a discussão antes que ficasse acalorada demais, conclamando todos a tomar seus lugares no círculo, e apontando para mim um vértice da figura. Seguindo a deixa dos outros, posicionei-me logo atrás de uma grande vela preta. Os outros membros, todos vestidos de preto (com exceção do líder), se posicionaram nos outros vértices da estrela de sete pontas desenhada no chão.

O sacerdote caminhou para o centro do círculo, portando uma adaga retorcida em suas mãos. Ele voltou-se para os quatro pontos cardeais, desenhando algo com a adaga no ar enquanto entoava palavras que não pude identificar, sendo acompanhado em seguida pelo restante dos cultistas. Fiz o possível para imitar o que diziam a partir da segunda vez. Quando terminou suas invocações nas quatro direções, repetiu o procedimento mais duas vezes, primeiro apontando a adaga para o alto, e depois tocando sua ponta no chão, no centro do círculo mágico. “Assim como acima, também abaixo”, disse, sendo ecoado em seguida por seus discípulos.

Ele voltou-se para mim. “Quem é este que apresenta-se à porta?”

Levei alguns segundos para entender o que ele queria dizer. “Renato Oliveira,” disse. “Estou aqui para me juntar a este círculo.”

“E quem fala por este suplicante?”

“Eu falo por ele,” Bessa disse. “Que sejam minhas suas transgressões, caso não venha a nós em perfeita

confiança.” Havia um leve tom de contrariedade em sua voz.

“E o que buscas no conciliábulo, ó suplicante?”

Refleti por um momento. Isso parecia ser crucial para ganhar a aceitação deles. “Busco conhecimento. Busco sabedoria.” Olhei brevemente à minha volta, e adicionei: “Busco poder.”

“E juras que vens a nós puro de corpo e alma, em perfeito amor e perfeita confiança?”

“Juro. Perfeito amor e perfeita confiança.” Dessa vez, procurei imprimir o máximo de segurança em minha voz.

“Então atravessa a porta e entra no círculo sagrado.”

Passei por cima da vela, tomando cuidado para não queimar o manto, e me dirigi ao centro da mandala. Orígenes ergueu a adaga ao meu rosto e traçou uma figura no ar. Por um momento, tive receio de que ele fosse me espetar – felizmente, não foi o caso, e ainda consegui evitar piscar. Ele entoou outras palavras arcanas, sendo mais uma vez seguido pelo restante do grupo, e concluiu com: “Eu te saúdo, ó mago.”

“Eu te saúdo, ó mago,” repetiram os outros.

“Eu te saúdo, ó mestre,” disse eu. Logo em seguida me arrependi, pensando que achariam que eu estava levando na brincadeira, mas o sacerdote pareceu aprovar.

“Eheie!” bradou Orígenes. “Haioth! Methraton!” Ele invocou vários nomes, com os discípulos repetindo todos. Tentei repetir também, mas ele estendeu um dedo em direção a meus lábios. Após uma série destas palavras arcanas, ele gesticulou para que eu saísse do círculo,

andando atrás de mim. Os outros apenas olharam, enquanto ele me direcionou lentamente para os fundos do recinto, sempre entoando. Quando ele me posicionou frente a uma porta e a abriu, o coro repentinamente parou.

“Mestre...” A voz era de Bessa. “Tem certeza que ele deve...”

“Tenho,” o mestre interrompeu-o. “Você questiona seu mestre?”

“Perfeito amor e perfeita confiança,” ele disse relutantemente, “mas... ele não está preparado...”

“A decisão não é sua. E tampouco minha. Este momento nos foi revelado, e é assim que ele deve ocorrer. Recomecem a invocação.”

Enquanto os membros do círculo entoavam os nomes, Orígenes voltou-se para mim. “Preste muita atenção, pois você não ouvirá isso novamente. Você deverá entrar por esta porta sozinho, e descer a escada. No fundo, você encontrará um círculo e um triângulo. Está me compreendendo?”

Acenei a cabeça avidamente. Não poderia falar nada, mesmo se quisesse.

“Ótimo,” ele prosseguiu. “Quando chegar lá, você deverá ficar no centro do círculo, de face para o triângulo. Não perturbe as inscrições, as velas, ou qualquer outro objeto... e, não importa o que aconteça, não saia de dentro do círculo de forma alguma. Está claro?” Fiz que sim com a cabeça. Ele continuou. “Sugiro que você se sente, em posição de lótus. Além de ser uma posição poderosa, também impede que você caia para fora.”

Engoli em seco, enquanto olhava para a escadaria escura além da porta. “E... o que eu vou encontrar lá?”

“Isso eu não posso dizer. Direi apenas que você deve prestar muita atenção, e tomar cuidado. Não confie em tudo o que ouvir... você não ouvirá mentiras, mas há muitas maneiras de se ferir com a verdade. Não se precipite, mas prossiga com cautela, pois o risco é grande. Você tem tudo a ganhar, e tudo a perder.”

“Mas...”

Ele cobriu minha boca com sua mão. “Tudo o que você realmente precisa saber está em seu coração. Estamos clamando por sua segurança. Agora vá.”

O sacerdote voltou para o círculo, onde juntou-se ao coro. Encarei a porta. Ah, deixa disso, pensei. Tá com medo de quê? Não tem nada lá embaixo. Tá tudo na cabeça desses doidos.

Respirei fundo, e passei pela porta. Mal podia ver os degraus sob meus pés, mas havia uma luz fraca vinda do fundo da escadaria que permitia que eu me orientasse. No final do lance de escadas, cheguei a um pequeno cômodo (provavelmente um porão ou despensa) totalmente despido de mobília. A única fonte de luz eram as velas espalhadas por diversos pontos do círculo arcano, que reconheci como sendo aquele desenhado na Clavicula Salomonis, com uma serpente amarela enrolada ao redor de uma série de hexagramas. Caminhei até o centro (um losango com as quatro letras do nome hebraico de Deus em seus vértices), e sentei no chão, de pernas cruzadas, voltado para o triângulo desenhado próximo a um dos cantos do aposento.

Fechei os olhos e respirei fundo mais uma vez. Até que não é tão mau, pensei. Não sei do quê que eu tava com

medo. É só passar um tempinho sentado aqui. Sem saber ao certo o que esperavam que eu fizesse, resolvi fingir que estava meditando. “Auuuuuuummmm,” entoei.

“Estava esperando por sua chegada.”

Dei um sobressalto. Lembrando-me das palavras de Orígenes, fiz um esforço para ficar parado. “Quem tá aí?”

“Sou aquele que você veio buscar.” A voz era tênue e distante, e parecia vir da minha frente.

“Q-quem é você?” Olhei nervosamente à minha volta. Além de mim, o porão continuava vazio. “O que você quer?”

“A verdadeira pergunta é... o que você quer?”

Ah, que se dane, pensei. Tá no inferno, abraça o capeta... nesse caso, quase que literalmente. “Eu quero... bem, o que você pode me oferecer?”

“Tudo o que você ousar pedir.”

“Tudo?” Ponderei por um momento. Essa era a hora de pôr à prova essa farsa toda. “Eu quero a Teoria de Tudo. A verdadeira. Aquela que unifica a quântica e a relatividade, e responde às questões insolúveis da física. Você pode me fornecer isso?”

A voz pareceu gargalhar. “Facilmente. Se você conseguir compreender este conhecimento, ele é seu. Isso é tudo?”

“Quê? Não é o bastante?” Seja lá quem for que tá fazendo isso, acho que não entendeu o tamanho do pedido. Bem, vamos pagar pra ver. “Sim... é tudo.”

“Muito bem. Olhe em meus olhos.”

“Mas eu não tô vendo nada...”

“Relaxe sua mente.”

Senti uma ponta de frustração. O que será que eu tava esperando? Não vai aparecer nada. Esperei um tempo, olhando para a vela à minha frente... até que um vulto começou a se formar das sombras. Dei um pulo, e a visão desapareceu.

“Relaxe sua mente,” a voz insistiu, após alguns momentos.

Endireitei-me no chão, fechei os olhos, e comecei a meditar novamente. Quando abri os olhos, a figura à minha frente voltou a gradualmente tomar forma. Seus contornos eram estranhos e difíceis de definir, mas minha atenção logo foi tomada por dois pontos brilhantes que contrastavam com o vulto sombrio. Seus olhos. Eles começaram pequenos e pálidos, mas sua luz foi ficando cada vez mais forte e mais concentrada, como duas singularidades cósmicas, crescendo, ofuscando o porão sombrio, engolindo o mundo à minha volta, seu fogo me consumindo, até que nada mais existisse.

IVOs dias seguintes se passaram como um sonho.

O domingo mal foi registrado em minha memória. Lembro de acordar em casa, vestido com minhas próprias roupas (ao invés do manto negro), pouco antes do meio-dia. Não fazia a menor ideia de como havia chegado lá, mas concluí mais tarde que devo ter voltado por conta própria, pois meu carro estava na rua, em frente ao meu prédio, e a chave foi encontrada em meu bolso. Entretanto, não tinha qualquer memória de dirigir de volta – minha última

lembrança antes de acordar fora o estranho encontro no porão do sebo.

Havia algo de importante que eu ficara sabendo lá... algo que eu provavelmente deveria escrever em algum lugar, antes que me esquecesse... se eu conseguisse me concentrar o suficiente para isso. Entretanto, me sentia em uma espécie de ressaca – era como se minha cabeça estivesse dentro de um aquário. Eu não conseguia manter a atenção por mais do que alguns segundos, ou mesmo fixar o olhar em um ponto específico. Passei o dia olhando para a televisão, sem compreender nada do que estava passando, parando às vezes para comer restos frios da geladeira.

Qualquer grande verdade que eu porventura tivesse aprendido, eu já havia esquecido na segunda-feira, quando fui trabalhar. Eu pensei em ligar, dizendo que estava doente, mas quando me dei conta, já estava chegando ao escritório. Paulinho e Djalma me cercaram, cheios de perguntas sobre o sábado, que respondi com grunhidos vagos. Eu tinha apenas uma leve noção da presença deles. Fiquei a manhã toda analisando um algoritmo que normalmente não levaria mais que dez minutos, refazendo meu trabalho um número incontável de vezes.

Lá pela quarta-feira, meu raciocínio finalmente havia voltado a um nível que me permitisse pensar sobre o ocorrido. Concluí que eles deviam ter me hipnotizado, ou talvez dopado, de alguma forma. Isso explicava a alucinação (pois, pensei, só podia ser isso) que eu tivera, com a voz etérea e o vulto envolto em sombras, bem como a perda de memória e meu estado mental nos últimos dias. Deve ser alguma coisa naquele incenso, disse para mim mesmo. Não tomei nada lá, mas tinha uns incensos e velas que podem ter algum tipo de fumaça alucinógena.

Resolvi não comentar sobre minhas experiências com meus amigos. Não queria que eles achassem que eu era maluco, ou que havia tomado drogas (mesmo que contra minha vontade)... e, além do mais, eu mesmo não tinha certeza sobre o que tinha visto e ouvido. Contei sobre o ritual, sobre minha descida ao porão e o círculo mágico, mas disse apenas que não encontrei nada lá embaixo, cansei de esperar, troquei de roupa e fui pra casa. Expliquei meu comportamento estranho com uma gripe repentina, da qual já estava me recuperando. Os dois não pareceram muito convencidos, mas não questionaram nada.

Na sexta-feira, liguei para Alfredo e Mirna para cancelar o jogo de RPG, pois não tivera condições psicológicas de preparar nada ao longo da semana. Alfredo fez questão de me visitar para conversar sobre o que acontecera no último sábado; no entanto, insisti que não havia nada de estranho para relatar, e ele eventualmente se rendeu. Mirna apenas reiterou seu pedido de cuidado.

Refleti por muito tempo se eu deveria ou não voltar ao clube de xadrez. Por um lado, eu havia prometido a mim mesmo que jamais pisaria lá de novo... mas por outro, eu sentia que merecia algum tipo de explicação da parte deles. Eles não podiam simplesmente me drogar, hipnotizar, ou seja lá o que for que fizeram sem ouvir umas boas verdades, e eu queria tirar isso a limpo pessoalmente, olho no olho.

Assim, compareci ao local no sábado, novamente chegando bem mais cedo que o horário previsto – mas desta vez de propósito. Queria confrontar Orígenes sozinho, sem seus lacaios por perto.

Desta vez, a loja estava vazia. Ele estava no balcão, fechando suas contas. “Ora, salve!” ele disse, antes que eu

pudesse me expressar. “Finalmente você voltou! Conte-me, como foi sua experiência?”

“Por que você não me conta?” Meu tom era ríspido. “Eu não lembro de porcaria nenhuma. Grande perda de tempo.”

“Eu não seria tão apressado em chegar a essa conclusão”, respondeu, de forma irritantemente satisfeita. “Sua mente consciente pode estar lutando para compreender verdades que seu subconsciente conseguiu absorver.”

“Sabe,” disparei, “esse negócio de subconsciente, ‘noventa por cento do cérebro’ e por aí vai é uma grande balela. Assim como isso tudo que vocês têm aqui. Não sei como que eu aceitei participar dessa palhaçada.”

Ele sorriu. “Mesmo? Pois você parecia ter uma opinião bem diferente, quando emergiu de seu encontro lá embaixo.”

A lembrança desencadeou uma enorme raiva em mim. “A propósito, que negócio é esse que vocês fizeram? O que faz vocês pensarem que podem... bem, não sei o que aconteceu, mas vocês não têm esse direito!”

“Não fiz nada além de lhe apresentar a alguém que o queria conhecer... e arrisco dizer que, apesar de não saber disso conscientemente, você também ansiava por esse encontro.”

“Ah, que se dane. Se você quer se convencer de que tem... alguma coisa lá embaixo que fez isso, não é problema meu. Eu vim aqui pra dizer que não quero mais saber dessa história, tá me entendendo? Nunca mais eu volto pra esse lugar.”

“Muito bem, recebi a mensagem... mas nós dois sabemos que ela não é verdadeira.”

“O quê?! Cara, além de tudo cê ainda vem me dizer que...”

Ele ergueu sua mão, serenamente. “É muito simples. Se você realmente tivesse a intenção de abandonar nosso círculo, seria apenas o caso de não retornar... ou, quando muito, dizer tudo isso por telefone. Entretanto, aqui está você.”

“Mas... eu não...” Procurei um argumento, mas percebi que o que ele dizia era verdade. Realmente, eu não tinha motivos concretos para estar ali... ao menos, nenhum motivo que eu admitisse. Entretanto, havia alguma coisa nessa história que não se encaixava, que eu não compreendia, que precisava de uma explicação... e eu simplesmente não podia suportar isso.

Respirei fundo. “Por favor... o que exatamente aconteceu lá?”

Orígenes balançou a cabeça. “Isso, meu amigo, realmente não posso dizer. O círculo de invocação é sagrado, e o que ocorre entre o mago e a entidade cabe apenas aos dois.”

“Mas como pode... eu não lembro... que história é essa de entidade? Que coisa é essa?”

“Estas perguntas não estão levando a lugar algum.” Já fechada a loja, ele novamente começou seus preparativos. “Além do mais, as respostas estão todas com você mesmo. Elas virão quando você estiver preparado. Vamos, está na hora.”

Oscar e Suzana chegaram enquanto eu estava me trocando, desta vez na área onde nos reuníamos. Oscar me encarava com leve preocupação, e Suzana com uma curiosidade faminta; entretanto, ambos foram reticentes. Não perguntaram ou comentaram sobre o que acontecera comigo, e pouco conversaram entre si. Havia uma tensão palpável no sebo naquela noite.

“Olha só, o grande mago está de volta!” Era Bessa, em tom de escárnio. Ele chegara pouco depois. “E o grande encontro, hein? Tá sabendo todas as grandes verdades do mundo?”

“Nosso amigo ainda está lutando para compreender o que viu e ouviu,” Orígenes respondeu por mim. “Tudo virá em seu devido tempo.”

“É mesmo? Então quer dizer que ele não tava pronto pra lidar com uma coisa desse porte? Olha só, quem diria!”

“Ei, peraí!” Me senti na obrigação de protestar. “Quem é você pra chegar me aloprando desse jeito?”

“Desculpa aí se eu não sou o grande escolhido...”

“Paz, irmãos!” O líder ergueu suas mãos entre nós. “O que se passou entre Renato e nosso guia é entre eles. Não cabe a nós questionar o desenrolar da entrevista.”

“Tudo bem,” o jovem argumentou, “mas esse negócio de colocar o cara lá embaixo da primeira vez não podia prestar!”

“Eu deixei isso bem claro na semana passada,” o sacerdote disse firmemente. “A escolha não foi minha.”

“Tá bom que não foi...”

“Que foi, Bessa?” Era Lúcio, que havia acabado de chegar com sua namorada. “Tá com ciuminho, só porque você teve que esperar pra caramba?”

“Rá! Ó quem fala, o senhor insegurança, morre de medo de alguém olhar pra namoradinha...”

Lúcio deu um passo à frente. “Tá maluco? Quer perder os dentes, ô mané?”

“Gente, gente!” Oscar suplicou. “A gente aqui tá tudo junto! Perfeito amor e perfeita confiança!”

Bessa virou-se para ele com ar de desprezo. “Pra você é tudo florido, né, sua bicha?”

“CHEGA!” A voz de Orígenes ecoou pelo recinto, sendo seguida de um silêncio constrangido. “Parem já com isso! Vocês são magos ou crianças?”

Após alguns momentos, Lúcio se arriscou a falar. “É só esse palhaço do Bessa que...”

“Calado!” O mestre o cortou repentinamente. “Não quero saber! Esse tipo de picuinha não deveria acontecer entre nós. Não interessa a desculpa.” Ele encostou-se na parede e fechou os olhos por alguns momentos. “Acho que os ânimos estão exaltados demais. A sessão está suspensa.”

“Mas, sábio...” Suzana aproximou-se dele cuidadosamente. “Nós vamos simplesmente desistir assim? Será que não podemos invocar alguma entidade que...”

“Nossa harmonia está quebrada,” respondeu, com um gesto vago de negação. “Qualquer coisa que fizermos aqui vai acabar piorando tudo. É melhor ir todo mundo para casa.”

Os discípulos saíram do sebo, cabisbaixos, enquanto Orígenes e eu tirávamos nossos mantos e colocávamos nossas roupas comuns.

“Olha...” Pigarreei, enquanto buscava minhas palavras. “Desculpa por tudo isso... eu tô percebendo que o problema todo começou depois que eu cheguei.”

“Nem pense nisso.” Ele começou a guardar os apetrechos. “Você não fez nada que não fosse seu destino. Não há nada do que se arrepender. Além do mais... eu deveria ter me preparado melhor para isso. Era só uma questão de tempo.”

“Mestre...” Eu tinha dificuldade em admitir que realmente estava levando o assunto a sério o suficiente para fazer a pergunta, mas não podia evitá-la. “Eu andei olhando na Clavicula... quem tá lá embaixo é quem eu tô pensando?”

“Sim... o vigésimo-quinto.” Sua expressão indicava que ele percebia o que isso implicava.

“Quando eu voltei aqui pra cima... o que realmente aconteceu?”

“Você estava completamente alterado... seus olhos estavam distantes, como se estivesse olhando muito além do horizonte, e sua voz era baixa e grave. Parecia um sonâmbulo. Você disse algumas coisas desconexas, que não conseguimos entender. Quando perguntei o que estava vendo, você murmurou algo sobre...” Ele apertou seus olhos, procurando se recordar. “O colapso das linhas de mundo. Foram essas as suas palavras.”

“Como é? Colapso de linhas de mundo?” A expressão não fazia sentido para mim, apesar de parecer vagamente familiar.

“Exatamente. Isso te diz alguma coisa?”

“Linha de mundo eu sei o que é, e ‘colapso’ pode ter vários sentidos, mas...” Tentei me concentrar. Não conseguia recuperar nenhuma lembrança concreta, mas havia alguns ecos, tênues e dispersos. Tentei me agarrar ao mais nítido deles. “O Bessa... essa raiva dele não é à tôa, né? Eu falei alguma coisa pra ele?”

“Ele te perguntou sobre quais papéis da Bolsa estavam para subir.” Orígenes suspirou. “Você respondeu somente que não fazia diferença... a linha dele estava próxima do fim.”

Abaixei a cabeça, e me dirigi à saída sem dizer mais uma palavra. Não podia ser verdade, era tudo muito fantasioso, muito absurdo, contrário a tudo o que eu conhecia... no entanto, a história fazia sentido demais para se ignorar.

Afinal, o vigésimo-quinto demônio de Salomão era Glasya-Labolas, conhecido não apenas por ensinar todas as artes e ciências de forma instantânea... mas também por incitar as pessoas a derramamento de sangue e matança.

V“Fico feliz de ouvir isso tudo de você.” Alfredo se

debruçava sobre seu prato quase intacto. “Não pelo acontecido, claro, que me preocupa... mas por você ter finalmente decidido compartilhar tudo isso comigo. Antes que fosse tarde demais.”

Mexi lentamente as fatias de manga de meu prato, que também pouco havia sido tocado. “Sei lá... antes eu tava achando meio nada a ver contar essas coisas... parecia

história de doido, sabe?” Soltei um riso desajeitado. “Mas agora, depois desses últimos dias, tá parecendo mó bobeira, essa preocupação.”

“Não há motivos para tanto. Todos nós sabíamos onde você estava se metendo. Claro, o resultado não podia ser previsto... mas não foi de todo surpreendente.”

“Tá brincando? Não foi surpreendente? Aquela... coisa que eu vi lá embaixo, e que me fez pirar desse jeito?”

“Ó homem-bule, há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia... ou mesmo ciência.”

“Como assim, homem-bule?”

“Homem de pouca fé.”

Fiz cara de dor. “Não. Eu não ouvi isso.”

“Horrível, eu sei. Mas não irei entrar em mais uma tirada a favor do conhecimento místico tradicional. Creio que logo isso deixe de ser necessário. E, a propósito, não sou contrário à ciência moderna, apenas creio que ela está longe de deter todas as respostas.”

“Aliás, por falar nisso...” Me inclinei para a frente, animado. “Sabe esse negócio que o cara lá falou que eu disse, do colapso das linhas de mundo, certo? Então... eu fiquei encafifado com isso. Assim, racionalmente, parecia só uma besteira aleatória que eu disse num estado alterado de consciência...”

“Mas as palavras soaram verdadeiras a seus ouvidos.”

“É... acho que sim. Enfim, eu peguei uns materiais que eu tinha em casa sobre relatividade, só pra refrescar a memória. Não que o conceito de linha de mundo fosse

novidade, mas sei lá, me pareceu a coisa certa a fazer. O negócio é que, enquanto eu lia o livro... só pra você entender, eu já tinha visto essa explicação dúzias de vezes em vários lugares. Mas, dessa vez, alguma coisa tava diferente. Não sei como explicar... é como se tivesse alguma coisa de interessante ali, algo que eu não lembrava direito. Eu folheei o livro todo umas três vezes, procurando, mas não achei nada.”

“Creio que dificilmente acharia,” ele disse, enquanto mastigava, satisfeito. “Mas continue, está muito interessante.”

“Bem, eu tentei pegar um outro, de astrofísica. Cara, eu sentia que tava lá, na ponta da língua. Era como se eu estivesse tentando alcançar alguma coisa, roçando a ponta dos dedos, mas sem conseguir pegar. Parti pra um de gravidade quântica, e depois outro de teoria M... quando eu vi, eram quase cinco da manhã, e os meus livros todos tavam abertos, espalhados pelo chão.”

“Algum insight?”

“Nada de concreto... mas tudo parecia, não sei, fazer mais sentido. Tipo, se você me forçasse a escrever exatamente o que foi que eu descobri de novo, eu não saberia dizer... mas eu sentia que tudo se encaixava. Tudo era coerente, parte de um único todo... percebe o que eu tô dizendo?”

Ele fechou os olhos com gravidade. “Relatividade e quântica.”

“Exato!” exclamei, apontando para ele. “Então, como eu tava dizendo, eu finalmente reparei na hora e fui pra cama... mas quem diz que eu conseguia dormir? Era todo tipo de fórmula na minha cabeça, gráficos de

membranas quadridimensionais, funções-onda... Enfim, levantei todo destruído, só com uns cochilos aqui e ali, lá pelas duas. Eu tava planejando ir na Fastcon... lembra, aquela convenção que eu te falei?”

O sorriso de meu amigo se alargou. “Na Marginal Tietê? Claro... não teria como ignorar, depois do que ocorreu lá. E o que lhe impediu de ir? Pois você não aparenta ter sido vítima daquele desabamento.”

Meneei a cabeça. “A palestra que eu queria ver era só às cinco, então eu pensei que dava tempo de dar uma olhadinha nuns sites acadêmicos, ver uns papers de física, bem rapidinho... e você já imagina o que aconteceu. Só percebi a hora quando a tevê começou a mostrar o acidente, e eu lembrei que era pra eu estar lá. Mas você não sabe o pior...” Olhei brevemente ao nosso redor. “Quando eu vi a notícia, eu tive a nítida sensação de que aquilo não era realmente novidade... como se eu estivesse, tipo, lembrando disso.”

“Déjà-vu.”

“Pois é. Bem, a coisa não para por aí.”

“Por quê? Houve mais fenômenos do tipo?”

“Dá pra dizer que sim... bem, ontem eu voltei pro trabalho, mas mal dava pra concentrar. Ainda tava naquela nóia de ler tudo quanto é material de física, principalmente supercordas, loop quântico, esse tipo de coisa. Claro, eu me esforçava pra fazer as minhas coisas normais na medida do possível, e é aí que entra. Não o trabalho em si... você sabe que a gente gosta de mexer com Bolsa, certo? Nada de grande, a gente nem tem grana pra isso, mas é difícil não entrar nesse meio quando você fica o dia todo fazendo

análise de risco. Sem contar que é um excelente treino pra modelos matemáticos de previsão.”

“Ah. Previsão.” Ele se reclinou. “Posso imaginar aonde isso está levando.”

Não pude conter um grande sorriso. “Isso aí... eu tava mexendo no meu corretor online, e resolvi botar pra vender um papel que tava caindo. Uma empresa chinesa de aço... Acho que chama Chengli. Fiz isso meio que automaticamente, e voltei pra minha pesquisa. Quando eu abri de novo o programa, no fim do expediente, eu vi que tinha colocado pra comprar, sem querer. E adivinha o que aconteceu?”

“Subiu drasticamente?”

“Meu amigo, quase que dobrou. Foi anunciado um mega acordo comercial nesse meio tempo. O pessoal ouviu que ia sair notícia grande, achou que era ruim, saiu vendendo, e quando vê...” Abri as palmas das mãos. “Ganhei uns 3 mil. Nada que mude a minha vida, mas como eu disse, o que a gente aplica nisso é mixaria.”

“Entendo.” Ele pôs os braços sobre a mesa, entrelaçando os dedos. “E outra série de coincidências fortuitas trouxe a este nosso encontro.”

“Cara, se fosse qualquer outro dia, eu ia achar estranho paca, mas hoje...” Encolhi os ombros. “De repente me deu vontade de almoçar em algum lugar diferente, então eu saí andando pela Consolação, e achei esse lugarzinho aqui, quase deserto...”

“Justamente no mesmo dia em que eu precisei encontrar um colega no Mackenzie, fazendo com que eu estivesse nas proximidades, e encontrasse este mesmo restaurante, por mais escondido que fosse.”

“É... doideira, não?”

“É só uma questão de analisar o caso de maneira lógica. Os outros fatos que você me relatou... o que eles têm em comum?”

“Hã... eles aconteceram porque eu tava distraído?”

“E especificamente com seus estudos de física, resultantes do conhecimento preternatural que, supostamente, você recebeu daquela entidade. Mas, além disso, ambos tiveram a faculdade de salvá-lo de um destino desagradável.”

“O que você quer dizer?” Franzi as sobrancelhas. “Que você tá aqui pra me proteger de alguma coisa?”

“E eu bem desconfio do quê.” Ele inclinou-se em minha direção, com um ar sério. “Renato... você tem alguma pretensão de retornar para o malfadado clube de xadrez?”

“Tá brincando comigo? Cê quer que eu simplesmente ignore tudo o que aconteceu? Esses caras são uns manés, cada vez mais eu me convenço disso... mas tem alguma coisa grande acontecendo lá.”

“Não duvido, nem um pouco. E é precisamente este o problema. Há alguma coisa grande... e malévola.”

“Ah, pára com isso. Os caras tão nessa faz tempo e tão numa boa.”

“Não foi a impressão que ficou da última reunião, pela sua narrativa.”

“Nada a ver... só ciuminho mesmo. Enfim, eu vou tentar ligar de novo pra confirmar e...”

“Tentar de novo?” –ele me interrompeu. “Como assim?”

“É que o telefone do sebo não tá atendendo a manhã toda, e eu não consigo falar com o Bessa pra tentar pegar o celular.”

Ele me encarou. “E isso não foi um recado claro o suficiente para você?”

* * *

Mais tarde, ao saír do trabalho, fui direto para o sebo. Não havia conseguido falar com Orígenes ou Bessa (os dois únicos membros do clube cujos telefones eu tinha), mas não podia esperar mais. Eu estava próximo de alcançar algum conhecimento importante, e as respostas que me faltavam estavam naquele porão.

Quando cheguei, o portão estava fechado – muito estranho, para um dia útil – mas reparei que a porta estava destrancada. Bati duas vezes, e entrei logo em seguida. Orígenes estava nos fundos, mexendo em seu armário de apetrechos arcanos. “Estamos fechados,” ele gritou, sem olhar para trás. “Volte amanhã!”

“Sou eu, Renato,” eu disse, cuidadosamente.

Ele parou o que estava fazendo, continuando voltado para o armário. “Eu devia esperar isso,” disse, com um suspiro. “Aliás, eu saberia, se ele falasse comigo... se qualquer um deles respondesse minhas perguntas.” Ele virou-se para mim. “Mas não é assim que funciona, não é mesmo?”

“Escuta...” Me aproximei lentamente. “Eu achei que o pessoal reunia aqui hoje, sabe, pra jogar xadrez...”

“Ah, por favor! Não insulte a minha inteligência. Eu sei o que você veio procurar aqui. Bem, meu caro, chegou tarde demais.”

“Tarde demais? O que você quer dizer?”

“É isso mesmo. Acabou tudo. Não tem mais clube de xadrez, nem conciliábulo, nem ritual, nem coisa nenhuma. Estou fechando o boteco.”

“Peraí, como assim? Só por causa daquela briguinha do sábado? Vai acabar tudo assim, desse jeito, de uma hora pra outra?”

“Você não sabe, né?” Ele balançou a cabeça, pesarosamente. “Estão perdidos, todos. Literalmente. Dois mortos, e os outros foragidos... exceto você. E a polícia não me deixa em paz.”

“Hein?!” Minha expressão era de horror. “O que cê tá me dizendo? O que diabos foi que aconteceu aqui?”

“Aqui, nada além do que você presenciou, felizmente.” Ele voltou a arrumar seu material ritualístico. “Mas, para o resto do clube, a coisa degringolou radicalmente depois que saíram daqui naquela noite. Eu mesmo sei muito pouco do que houve, pra minha sorte. Bem, na falta de discípulos, eu acho que o círculo acabou, não?”

Vi que ele se dirigia à porta do porão, e segurei seu braço. “Mas e quanto a... aquilo? Você não tá pensando em simplesmente...”

“Estou mais do que pensando, eu vou fazer neste exato momento.”

“Mas então espera um pouquinho só... vamos lá, me dá dez minutinhos com ele! Que diferença vai fazer?”

“Toda a diferença do mundo. Não temos tempo a perder. A qualquer momento eles vão entrar aqui, e quando quebrarem o círculo...”

Antes que eu perguntasse de quem ele estava falando, a resposta veio na forma de uma batida repentina no portão. “Senhor Orígenes Salazar!” –disse uma voz autoritária. “Polícia civil!”

Ele olhou para mim, aterrorizado. “Escuta aqui, não tem tempo de explicar!” Ele empurrou os objetos que estava carregando – algumas velas, um talismã e uma adaga – para minhas mãos. “Você tem que invocar nomes divinos. Iehovah, Tetragrammaton, Anaphaxeton, Primeumaton. É vital que você faça isso, tá me entendendo?”

Olhei incrédulo para as ferramentas. “Mas como que...”

“SENHOR SALAZAR!” A batida veio de novo, mais forte. “Temos um mandado judicial de busca sobre todas as dependências desse recinto!”

“Quieto! Não há tempo!” Ele olhou nervosamente para a entrada da loja. “Diga que ele tem licença para partir, de forma pacífica e sem causar mal. Mostre esse selo –” apontou para o amuleto – “e invoque os nomes. Não perca tempo com perguntas. Ele tem que ir embora antes deles chegarem lá embaixo.”

A voz veio novamente, mais enérgica. “Repetindo, senhor Salazar, nós temos mandado! Vamos estar entrando agora mesmo!”

Orígenes me empurrou porta adentro. “O círculo não pode ser quebrado!” disse aflitamente, enquanto fechava a porta atrás de mim.

Desci tropeçando os degraus, com as vozes atrás de mim cada vez mais distantes. A escadaria parecia bem mais escura que da última vez. Quando cheguei ao final, a luz das velas indicava o tênue contorno do círculo.

“G-Glasya-Labolas?” disse, enquanto me posicionava no centro, voltado para o triângulo. “Você... você pode partir. Hã, em nome de Tetragrammaton. J-Jeová.”

“Renato? Voltou cedo.” A voz era fraca e abafada, mas seu tom de satisfação era claro. “Veio em busca de mais conhecimento?”

“Pode partir,” repeti, com voz trêmula. Levantei o talismã. “Vá em paz. Sem causar mal. Tetragrammaton.”

“O que eu lhe concedi não foi o suficiente?” Mais uma vez, um som que aparentava ser uma risada. “Mas nunca é, não é mesmo?”

“Eu... não lembro de nada!” Droga, Renato, me recriminei. Não dá trela!

“Eu avisei que sua mente não comportaria tudo de uma vez. E você não esqueceu. Está tudo lá. Mas... você sabe disso, não?”

As vozes no andar de cima se aproximaram da porta. Ouvi o barulho da maçaneta. “Você precisa ir! Em nome de Jeová!” Se eu pelo menos lembrasse os outros nomes!

“Você diz isso... mas não quer mesmo que eu vá embora, quer?”

“Por favor...” Apertei o amuleto, molhado de suor, até os nós de meus dedos ficarem brancos. “Não faz isso comigo...”

“O que você realmente quer saber?”

Olhei para a entrada. Uma fresta de luz se abriu. “O... o que é você?”

“Apenas alguém que vê a verdade por trás das ilusões que você chama de espaço e tempo.” Ouvi passos descendo a escada. “Alguém livre das amarras de um universo linear como o seu.” A voz estava ficando mais distante.

“Senhor!” Os intrusos estavam se aproximando de mim.

“Espere!” disse. “Mas como que eu faço pra...”

A última coisa que vi foi a perna do policial derrubando uma das velas... e, então, apenas escuridão.

EPÍLOGOAcordei com um tranco. Eu estava em um ônibus

mal-cheiroso. Olhei pela janela; o lugar era desconhecido. Tentei recapitular os eventos que me levaram àquela situação, mas uma dor de cabeça lancinante dificultava minha concentração. Imagens indistintas passavam rapidamente pela minha mente: um local escuro, um cheiro forte de ervas, várias pessoas passando pra lá e pra cá por cima de mim. Febre e dor.

Decidi avaliar melhor meu estado atual. Olhei para baixo, e vi que estava sujo, desgrenhado, com as roupas um pouco rasgadas. Percebi que a maior parte do fedor que eu

sentia devia vir de mim mesmo. Minha boca estava seca, com um gosto amargo, e praticamente todo o meu corpo doía. Me espreguicei e me esfreguei um pouco; não parecia estar ferido, ao menos não gravemente. Entretanto, vi marcas nos pulsos e tornozelos, como se tivesse sido amarrado, bem como manchas de sangue que não parecia ser meu, pois eu não tinha ferimentos que as explicassem. Fui sequestrado, pensei. Verifiquei os bolsos, e vi que nada tinha sido roubado, nem mesmo o dinheiro da minha carteira. Estranho pra caramba. Meu celular estava desligado; quando o liguei, percebi que já era quarta-feira, mais de quatro da tarde. Haviam se passado mais de vinte e duas horas desde minha última lembrança, no sebo de Orígenes.

“Amigo,” perguntei para o cobrador. “Onde que a gente tá mesmo?”

Ele me olhou com certa desconfiança. “Avenida Sapopemba.”

Putz. Que é que eu tô fazendo num lugar desses? “Certo... diz aí, que ônibus é esse mesmo, por favor?”

Ele deu uma risadinha. “Tá difícil hoje, hein, colega?”

Encolhi os ombros. Se ele achar que eu sou bebum, que seja. Melhor que saber da verdade. “Tá fogo... nem lembro de onde eu vim. Fazer o quê, né?”

“Pode crê... Esse aqui é o Metrô Belém.”

“Valeu.” Metrô. Ótimo, pelo menos assim eu me localizo. “E, hã... cê lembra de como que eu entrei aqui?”

O riso dele foi mais franco. “Te puseram pra dentro, lá pro começo da avenida. Um crioulo e uma mulata, mó

gostosa.” A imagem de uma moça passou rapidamente pela minha cabeça, embaçada. “Tiraram a tua carteira do bolso pra pagar. Eu tive que te colocar aí na cadeira.”

“E deixaram algum nome, falaram alguma coisa?”

“Nada. Só disseram pra te deixar descansar. Ó, se eu fosse você, eu voltava lá pra procurar a mina. Parece que ela foi com a tua cara...”

Tentei recordar a imagem que viera à tona, mas era indistinta, como alguém que se vê da janela de um carro. “Deixa pra lá. Só quero voltar pra casa.”

“Cê que sabe.” O cobrador manteve um silêncio prudente pelo resto da viagem.

Peguei o metrô, e depois o ônibus que costumava tomar para voltar para casa em dias de rodízio. Quando estava chegando, o telefone tocou. Era Paulinho.

“Cara, onde que você tá, pelo amor de Deus?”

“Relaxa, mano. Tô chegando em casa. Qual é a boa?”

“Como assim, cê tá maluco? Todo mundo atrás de você o dia todo! Onde que você tava?”

Boa pergunta, pensei. “É que eu tô meio passando mal hoje... Por isso que eu não fui pro trabalho.”

“Cara, não me vem com essa! Que é que você anda aprontando? É aquele tal de clube de xadrez?”

“Claro que não!” Por que eu menti? “Tava de cama o dia todo.”

“Certo... mas onde? Nenhum telefone teu atende...”

“No hospital,” inventei. Ele saberia que eu não estava em casa, e sabe lá se tinham ligado pra minha mãe ou pros outros parentes. “Já saí, tô acabando de voltar pra casa. Depois eu levo o atestado.” Putz, pra quê eu disse isso? Depois eu vou ter que me virar com esse tal atestado.

“Não esquenta, descansa aí que eu resolvo as coisas por aqui... mas o que você teve?”

“Infecção alimentar. Tava no banheiro o dia todo. Tive que tomar uma pá de soro pra reidratar.” É, acho que funciona. “Olha, desculpa de não ter avisado... acabou a bateria do celular, e eu só fui pensar em pôr pra carregar agora...”

“Bom, pelo menos agora você ligou... cara, que susto cê passou na gente! Mas e amanhã, você vem?”

Parei alguns segundos para analisar minha situação. “Sei não... Se eu estiver sentindo melhor, eu vou. Mas não garanto.” O ônibus chegou ao ponto. “Tô indo descansar agora, beleza?”

“Tranquilo. Até amanhã.”

Ao chegar em casa, fui direto para o banho. Minhas roupas estavam encardidas e cheirando a fumaça (entre outras coisas piores), e as manchas de sangue eram claras. Melhor eu mesmo lavar, decidi. No chuveiro, enquanto procurava a muito custo remover a catinga, aproveitei para avaliar melhor as condições de meu corpo. Além das marcas de cordas, havia diversos hematomas no peito, braços e pernas... mas nenhum ferimento aberto. De onde veio esse sangue, então? Caramba, em que roubada será que eu me meti?

Minha mãe ligou quando eu estava saindo do banho, e meu chefe logo em seguida. Procurei manter a mesma

história que havia contado para o Paulinho, pedindo desculpas pela falta de aviso e assegurando-os (principalmente minha mãe) de que agora estava tudo bem. Entretanto, o contato mais inesperado veio mais tarde, quando eu estava fazendo um lanche. Quase derramei meu refrigerante na cozinha toda, de susto, quando a campainha tocou de repente, algo pouco comum no meu condomínio.

“Evelyn,” disse, quando abri a porta. “Você por aqui?”

“Claro, né?” Ela entrou apressadamente. “Você some desse jeito e deixa todo mundo de cabelo em pé! A sua mãe tem mais de sessenta anos, você parou pra pensar nisso? E se ela tem um troço?”

“Sério que você tá me dizendo isso? O que você tem a ver com a minha mãe?”

“Ué, e eu não posso simplesmente ser amiga dela?” perguntou, indignada. “Nós duas sempre tivemos muita intimidade, e não é pra menos. Afinal, a gente tinha que ficar cuidando do mesmo crianção irresponsável... bem, eu não preciso mais, mas a amizade fica, né?”

Comecei a andar em círculos, irritado. “E a necessidade de me azucrinar também, pelo jeito. Você não tinha dito que tava cansada de correr atrás de mim?”

“Não foi nada disso que eu falei.” Ela olhou para o chão. “E, com você sumido desse jeito, e agora dizendo que tava no hospital... eu também fiquei preocupada. Sabe como é.”

“Mesmo?” Parei, surpreso. “Quer dizer... não achei que você fosse...”

“Pode tirar o cavalinho da chuva,” ela cortou, repentinamente. “Não quer dizer nada. É só a simples empatia de um ser humano com outro. Não é todo mundo que vive a vida nem aí pro que acontece ao seu redor, sabia?”

“Escuta...” Pausei para juntar meus pensamentos e decidir como eu me sentia em relação a isso, levantando a mão. “Obrigado por se importar, mas não é o caso de...”

“Que é isso?” Ela se aproximou, olhando para meu pulso. “O que aconteceu aí?”

“Hein? O quê?” Tentei esconder as marcas, envergonhado. “Nada de mais... acho que eles só apertaram demais a faixa na hora de pôr o soro.”

“Renato...” Ela me encarou duramente. “Eu sei quando você tá mentindo.”

“Não tô mentindo!” Me afastei repentinamente. “Você vem aqui de repente, sem nem ligar pra saber se eu posso te receber...”

“Falou o cara que some o dia todo sem avisar ninguém...”

“Você vem aqui,” insisti, “do nada, e já começa a me ofender? Me xingar, dizer que eu sou irresponsável, isso e aquilo, falar da minha mãe, e ainda me chama de mentiroso?”

“Mas você quer que eu não questione isso?!” Ela apontou para meu pulso, indignada. “Olha só os seus braços!”

“Pode parar com essa palhaçada.” Abri a porta, e antes que ela tivesse tempo para argumentar, continuei.

“Essa é a minha casa, e eu não vou admitir isso. Você não quer mais fazer parte da minha vida, então não faça.”

“É assim, é?” Ela passou pela porta com um ar orgulhoso. “Fique à vontade. Se você quer se prejudicar, sei lá como, vá em frente. Não me importo.”

“Bom saber.” Quando minha ex-namorada finalmente se foi, não me senti satisfeito com isso, como eu achava que me sentiria... mas essa era uma preocupação para outra hora.

Terminei meu lanche, pus uma camisa de mangas compridas para evitar mais questionamentos, e saí pra pegar meu carro. Algo me dizia que ele não estava no meu prédio, o que foi confirmado por uma rápida olhada. Tentei recordar onde o havia deixado da última vez que o vi. Foi ontem, quando eu fui lá naquele maldito sebo, lembrei. Eu deixei na rua. No mínimo, já roubaram.

Fui para lá de metrô, e logo achei o lugar onde eu tinha estacionado, a umas três quadras do sebo. O carro estava lá do mesmo jeito. Entretanto, no fundo, eu sabia que não era isso que eu realmente queria ver... eu precisava voltar mais uma vez ao centro de todo esse mistério.

Ao chegar ao local, vi que a casa onde Orígenes mantinha sua loja estava em ruínas. Era uma pilha de escombros enegrecidos, envoltos em uma mancha de fuligem que se estendia para a rua e os prédios vizinhos. Lembrei do cheiro de fumaça em minhas roupas, e um frio correu por minha espinha.

“O negócio aí foi feio.” Era o dono de um bar, do outro lado da rua, em frente ao qual eu tinha parado, enquanto olhava embasbacado. “Duma hora pra outra

pegou fogo em tudo, cê tinha que ver. Nem deu tempo dos bombeiros chegarem.”

“Quando que foi isso?” perguntei, já sabendo a resposta.

“Foi ontem, no fim da tarde. A polícia tava aí... parece que tinha uns negócios meio esquisitos acontecendo lá, e eles tavam dando busca. Uns rituais de magia negra, satanismo, não sei... ouvi dizer que morreu gente.” Ele fez o sinal da cruz. “Quer dizer, antes do incêndio. Por isso que baixou a polícia aí.”

Engoli em seco. “E... tinha mais gente lá dentro?”

“Tinha um rapaz... sei não quem era.” Ainda bem, pensei. “Ele tinha entrado logo antes da polícia.”

“Mas... não saiu?”

“E deu tempo?” O homem balançou a cabeça, pesaroso. “Ninguém saiu. Nem o seu Orígenes, nem os polícias, nem esse moço. Ainda tão limpando as coisas lá. Você conhecia?”

“Eu? Não, não!” Balancei a cabeça veementemente. “Só tava passando por aqui e vi tudo acabado desse jeito... que coisa, né?”

Voltei correndo para meu carro e disparei para casa, tremendo. Agora a coisa estava ficando esquisita. Como assim, não saí de lá? –questionei. Será que tinha uma saída por trás? Eu não lembro de ter visto nenhuma. E como que eu fui parar em Sapopemba? De quem era esse sangue na minha roupa? O que realmente aconteceu comigo?

Essas perguntas queimavam em minha mente como brasas ardentes. Senti que era inútil vasculhar os escombros

do Clube de Xadrez... não havia mais nada para mim lá. As respostas que eu buscava estavam em outro lugar – provavelmente próximo do local onde eu acordara algumas horas antes. Eu não fazia a menor ideia do que me aguardava lá... mas tinha certeza de que tudo o que eu conhecia sobre o mundo estava prestes a entrar em xeque.

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