A Clínica e a Reforma Psiquiátrica
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7/24/2019 A Clnica e a Reforma Psiquitrica
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A (clnica) e a Reforma Psiquitrica
Paulo Amarante
Publicado in Archivos de Sade Mental e Ateno Psicossocial, pp. 45-65. Rio de
Janeiro: Editora NAU.
Em ocasio anterior, refleti sobre a questo da clnica no contexto da reformapsiquitrica brasileira a partir de duas proposies que ento me intrigavam bastante1. A
primeira relacionada ao fato de que alguns autores e atores consideram o processo de
reforma psiquitrica to-somente uma reestruturao do modelo assistencial psiquitrico. A
segunda, relativa afirmao de que as experincias de reforma psiquitrica -
particularmente quando fundamentadas na tradio inaugurada por Franco Basaglia -
descuida-se da questo da clnica, privilegiando apenas a relao e/ou as transformaes
sociais e polticas. O presente texto um desdobramento daquele, procurando contribuir
com novas reflexes.
A partir deste escopo, a primeira questo a debater diz respeito ao conceito de
reforma psiquitrica. possvel constatar, muito freqentemente, que, o que se entende por
reforma psiquitrica uma simples reestruturao do modelo assistencial psiquitrico. Uma
definio desta ordem, que reduz reforma psiquitrica mera reorganizao de servios,
certamente sugere o equvoco de apontar para a experincia iniciada por Franco Basaglia
acusando-a de haver-se descuidado da clnica, privilegiando apenas as relaes e/ou as
transformaes sociais e polticas.
Se tanto autores quanto tcnicos consideram o que se denomina por reforma
psiquitrica como um processo restrito reorganizao de servios, vinculando-a a pura
1O presente captulo um desdobramento de um outro que escrevi para uma coletnea organizada por meuamigo Antnio Quinet (2001), a quem dedico este artigo, por seu papel tambm pioneiro na luta contra aopresso e a violncia dos manicmios e do sistema psiquitrico brasileiro.
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reestruturao do modelo assistencial psiquitrico, pode-se concluir, em outras palavras,
que consideram reforma psiquitrica sinnima de modernizao das tcnicas teraputicas.
comum ainda ver-se consider-la como humanizao das caractersticas violentas e
perversas da instituio asilar, o que constitui uma luta e uma transformao muito
importantes, mas que certamente reduz a amplitude do processo em questo.
Devo admitir que, ao termos adotado a expresso reforma psiquitrica num
momento em que o termo era muito pouco conhecido e praticamente no utilizado por
ocasio do incio da pesquisa A Trajetria da Reforma Psiquitrica no Brasil que deu
origem ao livroLoucos pela vida contribumos em parte para criar a confuso que ora se
estabelece. De fato, o termo reforma implica em algumas limitaes e favorece a mal
entendidos, uma vez que, historicamente, tem sido associado idia de transformaes
superestruturais, superficiais, sem consistncia ou profundidade.Por outro lado, a famosa Declarao de Caracas (OPAS, 1992), por exemplo,
adotou o termo reestruturao da assistncia psiquitrica, que passou a ser utilizado de
forma genrica e que poderia ter o significado de um re-arranjo da instituio tradicional,
sem qualquer atitude crtica ao modelo epistemolgico constituinte da psiquiatria. Este
documento contribuiu substancialmente para a reduo do conceito de reforma psiquitrica
ao que se denomina de reformismo, que nas palavras de Ana Tereza M.C. da Silva (2003),
significariam meros reparosno modelo de assistncia psiquitrica tradicional.2
certo, enfim, que a expresso reforma poderia ser facilmente associada
mudanas de aparncias, mas no a mudanas de/nas estruturas. Os conceitos de
aggiornamentoe metamorfose, tal qual propostos por Robert Castel (1978a, 1978b, 1978c,
1987), destacam bem a idia de uma transformao que no altera a essncia das coisas:
mudar permanecendo o mesmo!
No entanto, conforme a proposio de Snia Fleury Teixeira e colaboradores do
Ncleo de Estudos Poltico-Sociais em Sade (NUPES/FIOCRUZ) (Teixeira et col, 1989),
uma reforma no necessitaria ser algo meramente conservador. Pode-se avanar no sentido
2 Uma outra observao se refere ao fato de que em muitos textos brasileiros freqente a referencia aDeclarao de Caracas como o evento disparador do processo de reforma psiquitrica brasileira. Esta posturano considera a realizao da I Conferencia Nacional de Sade Mental, 1987 (convocada a partir da histrica8a. Conferncia Nacional de Sade), do II Congresso de Trabalhadores de Sade Mental em Bauru, quando oMovimento dos Trabalhadores em Sade Mental sofreu a profunda transformao poltica e epistemolgica
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de uma reforma estrutural, com um expressivo ncleo de subverso s condies da
relao sade-Estado.
J o termo revoluo, muito mais forte e de significados bem mais radicais, no
seria conceitualmente equivocado. Thomas Kuhn (1975) utilizou-o para referir-se a uma
superao paradigmtica e Felix Guattari (1986) para expressar uma transformao radical
do saber e da prtica psiquitrica, o que, certamente, seria mais adequado pretenso (e no
necessariamente aplicao) do projeto da reforma psiquitrica brasileira no contexto atual.
No Brasil, a expresso Reforma Sanitria passou a ser mais amplamente utilizada
aps a 8aConferncia Nacional de Sade, passando a constar obrigatoriamente da agenda
poltica doMovimento Sanitrio. Por extenso, e com a mesma dimenso estratgica, isto
, voltada para a construo de viabilidade poltica e social, passamos a adotar, desde 1989,
a expresso Reforma Psiquitrica em nossa pesquisa desenvolvida na FIOCRUZ.Desde ento, venho me empenhando com a colaborao das pessoas que comigo
tm pesquisado e trabalhado no Laboratrio de Estudos e Pesquisas em Sade Mental e no
programa de ps-graduao em Sade Mental da mesma FIOCRUZ - em construir uma
concepo de reforma psiquitrica que transmita o sentido de superao da idia de
aggiornamento e metamorfose. Isto , que supere a noo de uma simples reforma
administrativa ou tcnica do modelo assistencial psiquitrico, tal qual abordamos logo no
incio do texto. Nunca tarde, ou demais, para assinalar que esta tendncia de
modernizao do modelo psiquitrico teve sua origem e fundamentao nas polticas de
desinstitucionalizao desenvolvidas nos EUA. Basaglia em sua Carta de Nova York
(1981b) e Rotelli, em Desinstitucionalizao, uma outra via (1990) nos demonstraram as
conseqncias deste modelo que o ltimo denominou de a psiquiatria reformada.
Uma nova conceituao de Reforma Psiquitrica: as quatro dimenses
A partir do conceito de reforma sanitria como um processo de transformao
estrutural (desenvolvido por Snia Fleury Teixeira e colaboradores, 1989), e da noo de
processosocial complexo (Franco Rotelli, 1990), passamos a dispor de uma amplitude e
em Movimento por uma Sociedade Sem Manicmios e, talvez fundamentalmente, da tambm histricaexperincia de Santos (sobre esta experincia ver Reis, 1998).
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uma dinmica inovadoras na compreenso e construo do conceito de reforma
psiquitrica.
Um processo indica algo em permanente movimento, que no tem um fim
predeterminado, nem um objetivo ltimo ou timo. Aponta para a constante inovao de
atores, conceitos e princpios que marcam a evoluo da histria. Um processo socialnos
assinala que existem atores sociais envolvidos e, enquanto tal, que existem interesses e
formulaes em conflitos, em negociaes. E, enfim, um processo social complexo se
configura na e pela articulao de vrias dimenses que so simultneas e inter-
relacionadas, que envolvem movimentos, atores, conflitos e uma tal transcendncia do
objeto de conhecimento que nenhum mtodo cognitivo ou teoria podem captar e
compreender em sua complexidade e totalidade.
Uma primeira dimenso refere-se ao campo epistemolgico,ou terico-conceitual.Ou seja, ao conjunto de questes que se situam no campo da produo dos saberes, que
dizem respeito produo de conhecimentos, que fundamentam e autorizam o saber/fazer
mdico-psiquitrico. uma dimenso que vai desde a reflexo dos conceitos mais
fundamentais do campo da cincia (tais como o prprio conceito de cincia como produo
de Verdade, ou da noo de neutralidade das cincias), at aos conceitos produzidos
especificamente pela psiquiatria no bojo do mesmo modelo epistemolgico tais como o
conceito de alienao (mais tarde degenerao e posteriormente doena) mental, ou os
conceitos de isolamento teraputico, tratamento moral, degenerao,
normalidade/anormalidade, teraputicae cura, dentre tantos outros.
Franco Rotelli vem se empenhando em redefinir o conceito de desinstitucionalizao.
Prosseguindo na tradio iniciada por Franco Basaglia - que, superando a proposta
caplaniana (CAPLAN, 1980) de desinstitucionalizao como sinnimo de racionalizao
de recursos, de otimizao, ou ainda de mera desospitalizao- passou a utilizar o termo no
sentido de designar as mltiplas formas de tratar o sujeito em sua existncia e em relao
com as condies concretas de vida. Assim, desinstitucionalizao torna-se a partir de
ento desconstruo, que significa, na interpretao de Jacques Derrida, um processo de
desmontagem: de fazer o caminho ao inverso para entender e capturar a lgica com a qual
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os saberes foram construdos e, assim (se possvel), no reproduzi-los mais. clssica a
definio de desconstruoproposta por Derrida (1990: 76-77):
um gesto a um s tempo estruturalista e antiestruturalista:
desmonta-se uma edificao, um artefato, para fazer aparecer as estruturas,
as nervuras ou o esqueleto (...). A desconstruo enquanto tal no se reduz
nem a um mtodo (reduo ao simples) nem a uma anlise; ela vai alm da
deciso crtica, da prpria idia crtica. por isso que no negativa, ainda
que muitas vezes, apesar de tantas preocupaes, a tenham interpretado
assim. Para mim, ela acompanha sempre uma exigncia afirmativa; diria atque ela no acontece jamais sem amor....
Neste sentido, a ttulo de exerccio e exemplo, cabe destacar a importncia do
processo de desconstruo do conceito de clnica, que deixaria de ser o isolamento
teraputico ou o tratamento moral(oriundos do klinus inclinar-se sobre o leito) propostos
por Philippe Pinel ou Willian Tuke ou Vincenzo Chiarugi, dentre outros, para tornar-se
criao de possibilidades, produo de sociabilidades e subjetividades no contexto do atual
processo de reforma psiquitrica: o sujeito da experincia da loucura, antes excludo do
mundo da cidadania, antes incapaz de obra ou de voz, tornar-se- sujeito, e no objeto de
saber. Neste sentido, desinstitucionalizao no se restringe reestruturao tcnica, de
servios, de novas e modernas terapias: torna-se um processo complexo de recolocar o
problema, de reconstruir saberes e prticas, de estabelecer novas relaes. Por isso,
desinstitucionalizao torna-se, acima de tudo, um processo tico-esttico, de
reconhecimento de novas situaes que produzem novos sujeitos, novos sujeitos de direito
e novos direitos para os sujeitos. Ou ainda, se o conceito de doena for submetido aoprocesso de desconstruo- assim como tantos outros conceitos produzidos pela psiquiatria
podemos supor que as relaes entre as pessoas envolvidas sero tambm transformadas;
assim como os servios, os dispositivos e os espaos.
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Certamente devero mudar ainda os conceitos e as prticas jurdicas que eram
informadas por aqueles conceitos desconstrudos. O sujeito, no mais visto como alteridade
incompreensvel possibilitar outras formas de conhecimento, que produziro novas
prticas clnicas e sociais.
O clssico livroAsylums, de Erving Goffman (1992), foi suficiente para demonstrar-
nos como a institucionalizao manicomial capaz de transformar as vidas das pessoas.
Para Goffman a instituio totalproduz o que a psiquiatria denomina de o curso natural da
doena; mas que o autor, em contrapartida, denomina de a carreira moral do doente
mental.
Foi no mbito epistemolgico das cincias naturais de Linneu e Buffon, muito
particularmente do sensitivismo, de Locke e Condillac (Foucault, 1977), que Philippe Pinel
elaborou o Trait mdico-philosophique sur l'alination mentale ou la manie, a obra primada psiquiatria moderna, na qual nos ofereceu o conceito de alienao mentale consolidou a
prtica sistemtica do internamento da loucura. Embora o conceito de alienao no
significasse ausncia absoluta da Razo, mas somente contradio na Razo, como atentava
Hegel, essa contradio impossibilitaria a Razo Absoluta. Portanto, quele em cuja Razo
existisse tal contradio seria um alienado, o que o tornaria incapaz de julgar, de escolher;
incapaz mesmo de ser livre e cidado, pois a Liberdade e a cidadania implicavam no direito
e possibilidade escolha. Em outras palavras, no seria possvel existir meia-Razo, mas
apenas a Razo Absoluta!
No mbito da dimenso tcnico-assistencial emerge a questo de o qual modelo
assistencial possibilitado por uma teoria que considere a loucura uma incapacidade da
Razo e do Juzo. Assim, no de se estranhar que o modelo assistencial psiquitrico seja
calcado na tutela, na custdia, na disciplina, na vigilncia. A institucionalizao torna-se
algo legtimo e imperativo. O manicmio torna-se a expresso deste modelo que se calca na
tutela, na vigilncia panptica, no tratamento moral, na disciplina, na imposio da ordem,
na punio corretiva, no trabalho teraputico, na custdia e interdio. Enquanto alienado
(ou no sujeito, alheio, ausente, estrangeiro alien), o louco estaria incapaz de decidir pelo
seu tratamento/hospitalizao.
A palavra isolamento tem sido regularmente utilizada para expressar o carter de
excluso do louco na instituio manicomial. Mas, importante ressaltar que o isolamento
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foi (e permanece sendo) uma estratgia de conhecimento do mtodo das cincias naturais.
Isolar significa possibilitar a observao do objeto em seu estado puro. Por outro lado, no
exerccio da construo do alienismo, o isolamento tornou-se tambm um ato teraputico,
na medida em que favoreceria a reeducao moral do internado no mundo da instituio.
Em outras palavras, o asilo, enquanto espao ordenado em bases cientficas, como
propunham Pinel e Esquirol seria, portanto, o lugar ideal para o exerccio do tratamento
moral, da reeducao pedaggica, da vigilncia e da disciplina.
O conceito de alienao parece estar em oposio ao de cidadania. E bastante
curioso que o processo de consolidao de ambos pudesse ter as mos de uma mesma
personagem: Philippe Pinel escreveu o mais importante tratado sobre a alienao mental e,
deputado constituinte, participou da primeira constituio da repblica francesa, que
instituiu a cidadania como valor universal. Se o alienado no poderia exercer a cidadania,por sua condio de ausncia de Razo, o tratamento moral, se bem sucedido, o conduziria
ao estado de conscincia plena, enfim, condio de poder exercer a sua cidadania.
Uma terceira dimenso da reforma psiquitrica diz respeito ao campo jurdico-
poltico, repleto de aspectos fundamentais decorrentes, dentre outros, pelo fato da
psiquiatria ter institudo uma srie de noes que relacionam loucura periculosidade,
irracionalidade, incapacidade e irresponsabilidade civil. Na dimenso que denominamos de
jurdico-poltica importa rediscutir e redefinir as relaes sociais e civis em termos de
cidadania, de direitos humanos e sociais.
Na medida em que o imaginrio social - e muito dele decorrente da ideologia
psiquitrica tornada senso-comum - relaciona loucura incapacidade do sujeito em
estabelecer trocas sociais e simblicas, a quarta dimenso a que denominamos de
sociocultural, e que expressa o objetivo maior do processo de reforma psiquitrica, ou seja,
a transformao do lugar socialda loucura. Assim, o aspecto estratgicodesta dimenso
diz respeito ao conjunto de aes que visam transformar a concepo da loucura no
imaginrio social, transformando as relaes entre sociedade e loucura.
Complexidade e Reforma Psiquitrica
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Um aspecto muito importante da dimenso terico-conceitual refere-se ao desafio
de se repensar as relaes entre conhecimento e objeto. Da advm um conceito
fundamental neste processo: trata-se da complexidade, que tem como maior mrito a
proposio de opor-se naturalizao/objetualizao da noo de doena. Esta deixa de ser
um objeto naturalizado, reduzido a uma alterao biolgica ou de outra ordem simples, para
tornar-se umprocesso sade/enfermidade. Dito de outra forma, a doena no um objeto,
mas uma experincia nas vidas de sujeitos distintos.
Mas, para no cairmos em simplificaes ou banalizaes, importante considerar
Isabelle Stengers, que atenta para o comum e grave equvoco de entender complexidade
como sinnimo de complicao. Para a autora, a noo de complexidade pe em jogo e
explica os riscos que o conceito corre em relao ao observador. (Stengers, 1990, 150). Ou
ainda, que a noo de complexidade aponta para a necessidade eventual de inventar novostipos de problematizao, que o operador no autorizava" (idem, 151).
No existe um paradigma da complexidade, pois esta representa uma atitude de
"nova aliana" entre as cincias naturais e humanas. Do ponto de vista construcionista, a
complexidade aponta para a superao do paradigma clssico inaugurado com a dualidade
cartesiana da causa-efeito, do conhecer o objeto em sua Verdade, das solues definitivas -
na medida, tambm, em que o prprio problema construdo a partir da soluo -, e traz
luz mais problemas que solues. A noo de complexidade atende ao desafio de resgatar a
singularidade da operao ocultada pelo conceito, sem que esse desmascaramento
signifique "descobrir" a verdadeira realidade do objeto. uma atitude epistemolgica no
sentido de reabrir a possibilidade de recomplexificao do fenmeno.
Esta operao surge como tentativa de superao do "especialismo" dos saberes e da
hegemonia da cincia na apreenso do real. Da que para Stengers a complexidade "no ,
ento, nem nova viso do mundo, nem novo tipo de teoria, mesmo se ela implica novas
vises dos saberes e se refere a teorias. A questo da complexidade prtica: ela se coloca
quando um novo encontro emprico (...) impe um novo questionamento do poder atribudo
a um conceito e atualiza uma dimenso da interrogao prtica que tal conceito ocultava".
(idem, 171-172). Finalmente, a noo de complexidade teria como objetivo pr em cena e
problematizar a posio do sujeito que coloca as questes nas cincias. Os mitos da
neutralidade, do distanciamento crtico, da autonomia da cincia, so assim colocados em
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discusso no questionamento das relaes entre cincia e poder, na medida em que, a
impresso de que as cincias tm uma identidade , em si mesma, um efeito de poder,
assim como um efeito de poder a aceitao do fato de que as cincias sejam uma
construo neutra no associada histria.
Portanto, no bojo mais profundo do processo de Reforma Psiquitrica existe este
importante debate epistemolgico. A psiquiatria foi fundada num contexto epistemolgico
em que a realidade era considerada um dado natural, capaz de ser apreendido, revelado,
descrito, mensurado e comparado. Nasceu em um contexto em que a cincia significava a
produo de um saber positivo, neutro e autnomo: era a expresso da verdade!
A partir de ento a psiquiatria vem contribuindo de forma importante, tanto no
aspecto conceitual (com a construo de tantos outros conceitos - degenerao, cretinismo,
idiotia, imbecilidade), quanto no aspecto de suas prticas (pela inveno do manicmio, dotratamento moral, das terapias de choque), para a consolidao de um imaginrio social no
qual a diferena seja associada anormalidade ou des-humanidade.
A estratgia da desinstitucionalizao, tal como iniciada por Franco Basaglia
inscreve-se neste contexto de superao paradigmtica, com a conseqente abertura de um
novo contexto prtico-discursivo sobre a loucura e o sofrimento humano. Isto significa que,
ao provocar um processo de recomplexificao das experincias denominadas loucuras
contribui com algumas estratgias cognitivas e prticas para o campo da teoria das cincias
e do conhecimento. Ainda com este propsito se inscreve a discusso iniciada por Basaglia
(1981a) j em Gorizia nos anos 60 do sculo XX, ao desenvolver uma crtica e uma ao
poltica sobre o papel e a funo dos tcnicos na produo e reproduo das prticas e
conceitos tradicionais.
Tanto em A doena e seu duplo (Basaglia & Basaglia, 1982b) quanto em A
maioria desviante (Basaglia & Basaglia, 1982a) Franco e Franca aprofundam a idia da
doena entre parnteses a reduo analgica de Edmund Husserl - que significa a
suspenso do conceito e implica na possibilidade de novos contatos empricos com o
fenmeno em questo. A psiquiatria colocou o sujeito entre parnteses para ocupar-se da
doena; para Basaglia a doena que deveria ser colocada entre parnteses para que se
tornasse possvel se ocupar do sujeito em sua experincia.
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Esta atitude epistemolgica de colocar a doena entre parnteses no significa a
negao da doena no sentido de no reconhecimento de uma determinada experincia de
sofrimento ou diversidade. Em outras palavras, no significa a recusa em aceitar que exista
uma experincia que possa produzir dor, sofrimento, diferena ou mal-estar. Significa, isto
sim, a recusa explicao oferecida pela psiquiatria, para dar conta daquela experincia,
como se esta pudesse ser explicada pelo simples fato de ser nomeada como doena. A
doena entre parnteses , ao mesmo tempo, a denncia social e poltica da excluso, e a
ruptura epistemolgica com o saber da psiquiatria que adotou o modelo das cincias
naturais para objetivar conhecer a subjetividade.
Para Franco Rotelli, o mal obscuro da psiquiatria est em haver separado um
objeto fictcio, a doena, da existncia global e complexa dos usurios e do corpo social.
Sobre esta separao artificial se construiu um conjunto de aparatos cientficos,legislativos, administrativos (precisamente a instituio) todos referidos doena.
(Rotelli, 1990, 28). O resultado prtico desta psiquiatria, ao considerar que a loucura
doena, no sentido do erro, foi criar para o louco um lugar de excluso, um lugar zero de
trocas sociais, que como Rotelli se refere ao manicmio.
A clnica na Reforma Psiquitrica
Apesar de valorizarem a experincia basagliana enquanto um processo muito
importante, enquanto fato e denncia poltica e social da violncia contra os pacientes
psiquitricos, alguns autores e tcnicos consideram que a mesma teria se descuidado da
clnica. No custa insistir no fato de que Franco Basaglia, pouco antes de falecer, afirmava
que seu maior desejo e satisfao estariam na possibilidade de que a histria de todo o
movimento por ele liderado no fosse contada com base em datas, portarias, atos oficiais,
etc., mas sim pelas histrias de pessoas, de muitas pessoas cujas vidas tivessem sido
transformadas pelo seu trabalho. Desde j, no parece ter havido um descuido da clnica.
Basaglia preocupava-se concretamente com os sujeitos e no com suas doenas: esta uma
preocupao rigorosamente clnica, mas como veremos, de uma outra forma de pensar e
fazer a clnica.
Os mesmos autores e tcnicos estendem a crtica experincia de reforma
psiquitrica brasileira, acusando-a de, ao seguir a mesma trilha de sua maior inspiradora (a
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reforma italiana) no se ocupar tambm adequadamente da questo da clnica. Ora, uma das
primeiras contribuies trazidas por Basaglia foi exatamente quanto ao prprio conceito e
prpria constituio da clnica. Ou seja, o que e como nasceu a clnica? No teria sido a
clnica tambm um produto do mtodo de conhecimento naturalista? O sentitivismo
lockiano - observar, descrever, comparar, classificar tinha como pressuposto que a doena
no seria uma experincia, mas um objeto da natureza: portanto, o sujeito foi suspenso,
afastado, colocado entre parnteses, para que a medicina se ocupasse da doena enquanto
fato natural.
O princpio epistemolgico do isolamento (isolar para conhecer), forneceu as
condies de possibilidade para que o alienista tivesse, disponveis para sua observao
sistemtica e contnua, todas as modalidades de doenas e sintomas, em um s lugar, por
todo o tempo do mundo. Esta relao com a doena - e no com os sujeitos ao lado doleito, no dia a dia da instituio, fundou a clnica.
Considera-se que a expresso clnica provm tanto do grego klinusou kliniks
que significa leito ou cama e contm ainda o sentido de inclinar-se, por extenso, estar ao
leito no dia-a-dia da evoluo da doena. Pode ser entendido no sentido de inclinar-se, mas,
tambm, de produzir inclinaes, mudanas de rota e direo. Mas convm observar que
este se inclinar, em um ou outro sentido, ocorreu a partir do seqestro social dos indivduos
e de sua posterior internaono espao de uma instituio fechada: a clnica nasceu de uma
relao com a doena enquanto fato objetivo e natural, e da doena enquanto fenmeno
institucionalizado, e por isso mesmo, enquanto fenmeno produzido e transformado pelo
efeito da prpria institucionalizao (se preferirem, a clnica tambm pode ser entendida no
sentido de inclinadoou desviado, como klinamem, pois os desvios podem ser mltiplos e
para muitos lados). Em outras palavras, a institucionalizao produziu uma inclinao na
experincia que foi observada, definida e tratada como algo natural e objetivo.
A loucura capturada pela instituio passou a ser moldada pela prpria ao da
institucionalizao: s um demente precoce! o que afirmava o alienismo. E, aps algum
tempo de institucionalizao, a demncia tornava-se realidade. Em analogia a Stengers
poderamos falar de em fenmeno de testemunha fidedigna: o efeito produzido tanto pela
teoria quanto por sua ao prtica.
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Sabemos ainda que Pinel foi no apenas um dos fundadores da clnica psiquitrica,
um dos operadores da passagem da velha medicina de sistemas para a medicina
antomoclnica, conforme nos demonstraram Michel Foucault em O nascimento da clnica
(1977), ou Bercherie em Os fundamentos da clnica (1989). Para este ltimo, Pinel fundou
a tradio da clnica como orientao consciente e sistemtica (Bercherie, 1989, 31).
A clnica tem, pois, esta dimenso originria, que a de valorizar a relao do
observador com o objeto natural denominado doena. O objetivo seria o de perceber os
sintomas mais fundamentais e verdadeiros; captar a essncia desta natureza deformada que
seria a doena. Por tais motivos que no cenrio da reforma psiquitrica, se a doena
questionada, colocada entre parnteses, a clnica tambm deve ser desconstruda,
transformada em sua estrutura, pois a relao a ser estabelecida no com a doena, mas
com o sujeito da experincia.Neste sentido, atentamos para o fato de que, antes de tudo, preciso pensar a
diferena no necessariamente inserida em um processo mais ou menos linear de
adoecimento. Deslocando a base de nosso pensamento, conduzimo-nos criao de novas
prticas, de novas estratgias de ao. E, nesse sentido, no estaremos apenas inovando,
estaremos produzindo descontinuidades, discursivas e no-discursivas. E ainda: O
referencial clnico, se insiste na representao de doena, mesmo sendo alternativo ou de
boa vontade, pode acabar operando um nico sentido e um nico tempo e excluindo
potencialidades de criao de formas instituintes (ou por que no dizer revolucionrias) de
relao. (Carvalho & Amarante, 2000, 50).
Enfim, a reconstruo do conceito e da prtica clnica tem sido um aspecto
fundamental da reforma psiquitrica, para que a relao tcnico-instituio-sujeito, no seja
a reproduo daquela clnica da medicina naturalista. preciso reinventar a clnica como
construo de possibilidades, como construo de subjetividades, como possibilidade de
ocupar-se de sujeitos com sofrimento, e de, efetivamente, responsabilizar-se para com o
sofrimento humano com outros paradigmas centrados no cuidado como proposto por
DellAcqua (1991)3 - e na cidadania enquanto princpio tico. Uma clnica que no seja
3O conceito de responsabilizaofoi elaborado a partir da experincia de Trieste. Diz respeito ao encarregar-se do problema. Do original presa in carigo em italiano, Jacques Delgado (1991) traduziu para tomada deresponsabilidade e Reis (1998) para disponibilidade.
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uma estratgia de normalizao e disciplinamento - e Deleuze (1990) atenta para o fato de
que mesmo a psicanlise pode aspirar tais projetos.
Enfim, a clnica tem sido uma preocupao permanente e importante do processo de
reforma psiquitrica. Muitas reflexes e experincias tm sido produzidas no Brasil nos
ltimos anos sobre a transformao da clnica. Mas, como acabo de dizer, sobre as
transformaes da clnica. Ao colocar a doena entre parnteses e lidar com os sujeitos, a
clnica deve ser radicalmente transformada. Parece estranho ter que dizer que a clnica no
deveria ficar restrita dimenso clnica. Por isso fala-se em clnica ampliada4, em clnica
antimanicomial (Lobosque, 1997) ou em uma articulao de um eixo poltico com um eixo
clnico (Soalheiro, 1997). Para Eduardo Torre, a desconstruo da clnica transforma esta
ltima em uma relao estratgica nos espaos (Torre, 1999).
Tambm a clnica, no contexto da reforma psiquitrica, um processo. Algopermanente, que aprende e constri, cotidianamente, novas formas de lidar, de escuta, de
reproduo social dos sujeitos como sugere Franco Rotelli (1990).
Na concepo de clnica da reforma psiquitrica, tal como preconizada por
Giuseppe DellAcqua (1993), o ideal seria no haver nenhuma supremacia ou hegemonia
de teoria ou corrente clnica. O fundamental, como acentua DellAcqua, que o operador
da atividade clnica possa superar a condio de ser apenas um tcnico, de fazer to-
somente clnica. Isso significa a possibilidade do operador superar o que Franco Basaglia e
Giovanna Gallio (1991) denominam de vocao teraputica, isto , a postura que
determinada sempre pelo olhar e agir teraputicos, e assim poder colocar-se enquanto ator
social, no apenas no mbito do servio, mas do territrio5.
Os operadores podem ser psiquiatras, psiclogos, enfermeiros, assistentes sociais,
terapeutas ocupacionais, musicoterapeutas, educadores fsicos... Enfim, so tantas e
inumerveis as profisses que esto criando competncias em lidar com a loucura nos
novos dispositivos, estratgias e servios, que o importante e fundamental que no se
reduza a interveno forma nica e exclusiva de uma corrente clnica em teorizar e
4 A expresso clnica ampliadatem sido atribuda a Jairo Goldberg (1992). Eduardo Pavlovsky (2002, 09),na apresentao do livro de Osvaldo Saidn, atribui a origem do termo a De Brassi.5O conceito de territrio adotado aqui no sentido proposto pela geografia humana e poltica. Para MiltonSantos (2002, 70), em uma de suas definies, "o territrio a construo da base material sobre a qual asociedade produz sua prpria histria".
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intervir. necessrio estabelecer rupturas com conceitos tais como o de doena, de
teraputica, de cura, de cincia, de tcnica, de verdade!
Assim, por exemplo, um centro de ateno psicossocialno deveria ser apenas um
servio novo, mas um servio inovador; isto , espao de produo de novas prticas
sociais para lidar com a loucura, o sofrimento psquico, a experincia diversa; para a
construo de novos conceitos, de novas formas de vida, de inveno de vida e sade. A
extino significativa de leitos e hospitais psiquitricos no Brasil, com a simultnea
implantao de servios de ateno psicossocial6, alm de muitos outros dispositivos no
assistenciais: cooperativas, associaes, clubes, centros de convivncia, etc.), representam
parte da dinmica deste processo de transformao estrutural das formas sociais de lidar
com a loucura. Para o operador que atua em algum destes servios inovadores, seria muito
interessante a conscincia de que ali se esto operando rupturas conceituais, ao mesmotempo que tcnicas, polticas, jurdicas e sociais. Ao escutar, acolher, cuidar, interagir e
inserir (ao invs de seqestrar, disciplinar, medicalizar, normalizar) esto sendo construdas
novas relaes entre a sociedade e a loucura. Ao no vislumbrar esta dimenso para alm
da clnica, essa transcendncia, cai-se inevitavelmente, num outro tipo de totalitarismo. A
clnica ampliada amplia-se a tal ponto que tudo se torna clnica. E isto representa o temor
do tcnico em perder a sua hegemonia, o seu mercado de fazer clnica ou de fazer
supervises clnicas.
curioso poder constatar que, por um lado, a poltica nacional de sade mental est
sendo reduzida implantao de CAPS. No apenas se est reduzindo o amplo repertrio
de recursos, listados parcialmente no pargrafo anterior, como se est reduzindo todo o
processo social complexo de reforma psiquitrica a uma reorganizao administrativa e
tecnocrtica de servios. Em resumo, reforma psiquitrica torna-se a clnica modernizada, a
6 Prefiro utilizar genericamente a expresso servio de ateno psicossocial, e no centro ou ncleo, namedida em que os primeiros servios destas modalidades (o Centro de Ateno Psicossocial Prof. Luiz da
Rocha Cerqueira em So Paulo e os Ncleos de Ateno Psicossocial de Santos) acabaram por imprimirnaturezas de servios muito distintos entre si, mas que foram nivelados e reduzidos a similares pelas PortariasMinisteriais 189/91 e 224/92 e perderam assim suas caractersticas inovadoras e suas singularidades. Por fim,simbolicamente, a Portaria 336/2002, em vigor, extinguiu a expresso Ncleos de Ateno Psicossocial, o que altamente significativo, por serem os NAPS de Santos servios verdadeiramente substitutivose, portanto,emblemticos para o processo da reforma psiquitrica brasileira. O modelo brasileiro est apontando
perigosamente para alguns desvios graves: a) a descaracterizao da reforma psiquitrica enquanto processosocial complexo, reduzindo-a a simples reformulao tcnico-assistencial; b) capsizao do modeloassistencial; c) inampsizao do modelo de financiamento; extino da concepo de NAPS enquanto serviode base territorial e substitutivo ao modelo psiquitrico tradicional.
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psiquiatria renovada, realizada no interior dos CAPS. Por outro lado, o modelo prevalente
dos CAPS o herdeiro mais autntico e legtimo da lgica do antigo INAMPS, onde a
sade era reduzida a doena ao mesmo tempo em que o sistema de sade era reduzido a
assistncia mdica curativa. Flvia Helena Freire (2003) demonstra como a lgica do
pagamento por procedimentos suficiente para limitar o potencial inovador e
revolucionrios dos servios de ateno psicossocial. Em meu entendimento h um risco de
um processo de capsizaoda reforma psiquitrica ao mesmo tempo em que pode haver
uma inampsizaodos CAPS.
Para finalizar, lembremo-nos que as cincias j no so pensadas como verdades
absolutas nem as tcnicas como prticas e saberes definitivos e inquestionveis. Assim, a
questo da clnica no contexto da reforma psiquitrica deve ser enfrentada como um
processo permanente de inveno e, portanto, deve permanecer entre parnteses.
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