A competência para expedir e cassar salvo-conduto em direito ...

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Brasília • ano 35 • nº 140outubro/dezembro – 1998

Revista deInformaçãoLegislativa

Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal

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Revista deInformaçãoLegislativaFUNDADORES

Senador Auro Moura AndradePresidente do Senado Federal – 1961-1967Isaac BrownSecretário-Geral da Presidência – 1946-1967Leyla Castello Branco RangelDiretora – 1964-1988

ISSN 0034-835xPublicação trimestral daSubsecretaria de Edições Técnicas

Senado Federal, Via N-2, Unidade de Apoio III, Praça dos Três PoderesCEP: 70.165-900 – Brasília, DF. Telefones: (061) 311-3575, 311-3576 e 311-3579Fax: (061) 311-4258. E-Mail: [email protected]

DIRETOR: Raimundo Pontes Cunha Neto

REVISÃO DE ORIGINAIS: Angelina Almeida Silva, Bernadete Aparecida de Carvalho eDalcilene Rocha da Silva Furtado

REVISÃO DE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Maria Celeste RibeiroREVISÃO DE PROVAS: Lizandra Nunes M. da Costa, Marcelle Carvalho Dela Bianca,

Maria de Jesus Pimentel, Roberta Negromonte Vasconcelos eTeliana Maria Lopes Bezerra

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Paulo Henrique Ferreira Nunes e Angelina Almeida SilvaIMPRESSÃO: Secretaria Especial de Editoração e PublicaçõesCAPA: Paulo Cervinho e Cícero Bezerra

Revista de Informação Legislativa / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. - -Ano 1, n. 1 ( mar. 1964 ) – . - - Brasília: Senado Federal, Subsecretaria deEdições Técnicas, 1964– .v.Trimestral.Ano 1-3, nº 1-10, publ. pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3-9, nº 11-

33, publ. pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , nº 34- , publ. pela Subsecretariade Edições Técnicas.

1. Direito — Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Subsecretariade Edições Técnicas.

CDD 340.05CDU 34(05)

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Revista deInformaçãoLegislativaBrasília · ano 35 · nº 140 · outubro/dezembro · 1998

Josaphat Marinho A nova ordem mundial e os direitos sociais 5

Rubens Pinto Lyra Teorias clássicas sobre a democracia direta e a experiên-cia brasileira 11

Accountability, Constituição e Contabilidade 17João Henrique Pederiva

José Eduardo Sabo Paes Fundações: origem e evolução histórica 41

Adilson Abreu Dallari Contratação de serviços de advocacia pela AdministraçãoPública 49

Alexandre de Moraes Controle externo do Poder Judiciário – inconstitucio-nalidade 59

Derly Barreto e Silva Filho O controle da legalidade diante da remoção e da inamo-vibilidade dos advogados públicos 65

Leon Frejda Szklarowsky Prazos contratuais 79

Celso de Tarso Pereira O Centro Internacional para a Resolução de Conflitossobre Investimentos (CIRCI - ICSID) 87

Mônica de Melo Da incidência do ICMS na habilitação de telefonecelular 95

José Carlos de Magalhães eOnofre Carlos de Arruda Sampaio

A concentração de empresas e a competência doCADE 109

Rodrigo Garcia da Fonseca A responsabilidade civil do Estado e a denunciação dalide ao funcionário 123

Juarez Freitas As organizações sociais: sugestões para o aprimoramentodo modelo federal 133

Newton Paulo Teixeira dos Santos COMUT, reprografia e direito autoral 139

Eduardo Talamini Prova emprestada no processo civil e penal 145

Jorge Fontoura A construção jurisprudencial do direito comunitárioeuropeu 163

Otto Eduardo Vizeu Gil A soberania absoluta e o Direito Internacional Público 171

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Ana Clarice de Sá L. S. Ávila Paz A competência para expedir e cassar salvo-conduto emdireito eleitoral 175

Dilvanir José da Costa O sistema da promessa de compra e venda de imóveis 179

Anildo Fabio de Araujo Alimentos (noções e execução) 189

Jairo Gilberto Schäfer A insuficiência dos paradigmas da teoria tradicional dosdireitos constitucionais fundamentais 205

Danilo Alejandro MognoniCostalunga

Sobre o exercício da advocacia por Juízes leigos dosJuizados Especiais. Para uma superação do conflitoaparente de normas entre a Lei nº 8.906/94 e a Lei nº9.099/95 213

Pinho Pedreira A concepção relativista das imunidades de jurisdição eexecução do Estado estrangeiro 227

Cláudio Brandão Ontologia da ação penal 237

José Pitas Estabilidade do servidor celetista da AdministraçãoPública Direta ante a Emenda Constitucional nº 19, de 5de junho de 1998 245

Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva Conflito aparente de normas no descumprimento deordem judicial pela Administração Pública 249

Antonio Carlos Wolkmer Integração interamericana, comunitarismo jurídico ecidadania supranacional 259

Adhemar Ferreira Maciel Observações sobre o controle da constitucionalidade dasleis no Brasil 267

Leonardo Henrique MundimMoraes Oliveira

Da inaplicabilidade do parágrafo único do art. 100 doCPC às companhias seguradoras 279

Gustavo Ferreira Santos Excesso de poder no exercício da função legislativa 283

Frank Larrúbia Shih A prescrição no contrato de seguro 295

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A nova ordem mundial e os direitossociais

JOSAPHAT MARINHO

SUMÁRIO

1. Oportunidade do Encontro Nacional. 2. A So-ciedade em mudança e os direitos. 3. O neoliberalis-mo no Brasil. 4. O regime neoliberal e os direitos. 5.O regime neoliberal e os direitos sociais. 6. O regimeneoliberal e os direitos do trabalhador. 7. Conside-ração final.

1. Oportunidadedo Encontro Nacional

Realizais este Encontro Nacional dos Pro-curadores do Trabalho em momento excepci-onalmente apropriado à reflexão coletiva: noocaso do século e ao amanhecer de eleiçõesgerais no País.

São fatos de dimensões diversas. Ambos,porém, interessam à população brasileira, e acada indivíduo, por sua vinculação a direitosreconhecidos.

No fim da centúria, a sociedade experi-menta densa sensação de insegurança sobrevalores adquiridos e incorporados a seu pa-trimônio espiritual e material. A ordem jurídi-ca geral, e não apenas a relativa aos direitossociais, oscila, sem norte delineado. Entre aestrutura neoliberal, que não se consolidou,e declina, e a do Estado social ou socializan-te, que renasce, ou parece renascer, há fratu-ras visíveis e claridades indecisas.

Ao lado dessa perspectiva incerta, con-jugam-se as perquirições que emanam daseleições nacionais recentes, de 4 de outubro.Consumadas num instante em que a crise fi-nanceira e fiscal amplia dúvidas preexisten-tes, essas eleições não facilitam divisar-se odestino das instituições internas, nem dosdireitos e obrigações dos cidadãos. A políti-

Josaphat Marinho é Senador.

Exposição no Encontro Nacional dos Procurado-res do Trabalho, em Comandatuba (Ilhéus), no dia 5de novembro de 1998.

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ca liberal e de sentido demasiadamente globali-zante produziu efeitos perturbadores da ordemconstitucional, da administração como um sis-tema e da economia do povo.

2. A sociedade emmudança e os direitos

No vértice dessa flutuação de diretrizes, pe-distes-me um estudo, agradavelmente provoca-tivo, sobre “A nova ordem mundial e os direitossociais”.

Se me for permitido, tentarei uma análise doproblema tendo mais em conta a sociedade emmudança, e não “a nova ordem mundial”. Pare-ce que não se pode cogitar, ainda, de nova or-dem mundial. O que se pretendeu criar com oneoliberalismo não chegou a cristalizar umanova ordem, que pressupõe instituições e práti-cas estratificadas, em forma durável de consti-tuir mudanças permanentes e em condições deproduzir outras transformações.

O neoliberalismo, emergente com a quedado muro de Berlim e o desmoronamento dos re-gimes do socialismo real, perdeu-se na liberda-de de mercado e na globalização desenfreada.Não tem conseguido soluções com característi-cas de durabilidade, sucedâneas do Estado pre-sente aos conflitos sociais e econômicos. Des-pojando o mecanismo estatal de instrumentosnormativos e de ação necessários a seu papelde equilíbrio entre forças sociais e econômicasde poder diferenciado, notadamente por um pro-cesso desmedido de privatização de órgãospúblicos, o regime neoliberal corporificou a ima-gem da criação destinada a admitir e perpetuardesvios e desigualdades condenados. Irrom-pendo como catadupa, desfaz-se como miragem.Transferindo à iniciativa privada poderes e van-tagens que deviam ser reservados ao domíniodo Estado, o regime neoliberal concorre paramaior desequilíbrio entre o capital e o trabalho,com as resultantes daí advindas, sendo as primei-ras delas o desemprego crescente e o aumento dapobreza. O exemplo do Brasil é marcante na de-monstração dessa tese, embora o quadro dirigen-te recuse o timbre de neoliberal. Mas a realidade,se dispensa designação, não a oculta.

Vendo o cenário geral e uma “crise de valo-res”, Alfonso Guerra acentua que,

“no fundo, estamos assistindo também auma profunda crise do neoliberalismo e aum espetacular fracasso das idéias neo-conservadoras, cujas conseqüências

mais notórias têm sido: o aumento enor-me e perigoso dos déficits públicos emalguns dos países economicamente maisdesenvolvidos, o fracasso no controle dainflação e a incapacidade para resolveros problemas da desocupação, da duali-zação social, da pobreza de importantessetores sociais, enquanto se permaneceenredado numa desenfreada e incontro-lável loucura monetarista, de efeitos nar-cotizantes, que desviam a atenção dosproblemas sofridos pela humanidade”1.

Se, em alguns países, o controle da inflação afi-gurou-se eficaz, o conjunto das políticas adota-das não demonstrou descortino adequado, ajulgar-se, de modo objetivo, pela extensão dacrise ora instaurada, inclusive no Brasil.

Também a vitória dos partidos socialistas,na Inglaterra e na França, e, agora, a da socialdemocracia, na Alemanha, indicam que um pen-samento progressista ou avançado, e sem dog-matismo, retoma força de direção no plano doEstado.

Simultaneamente, busca-se uma “terceiravia”, como a revelar que a idéia socialista e suaconseqüente prática sejam insuficientes, por si,para abrir clareiras definitivas no horizonte polí-tico. Cumpre apurar a conveniência dessa vari-ação. Em princípio, não significa vacilação, an-tes propósito de fixar novos rumos à civilizaçãoe ao desenvolvimento, dentro do espírito de so-cialização e de justiça universal, superior a feti-chismos e oposto às inclinações do liberalismoeconômico, prisioneiro do modelo capitalista. Épreciso ver, porém, se essa procura não acarre-tará retardamento na definição de políticas opor-tunas, quando as incertezas correntes no mun-do aconselham ou reclamam decisões inovado-ras, em face das necessidades coletivas e dodeclínio do neoliberalismo. Se a concepção so-cialista é a matriz, como forma de garantir a vidadentro de igualdade possível, talvez seja maisprudente flexibilizá-la desde já, dar-lhe conteú-do ou dimensão compatível com a realidade, enão cuidar da formulação de diretriz assemelha-da, de experiência discutível.

Certo é que se vai firmando a convicção deque está em crise o próprio regime neoliberal,antes, portanto, que consolidasse uma ordemnova. Henry Kissinger, em artigo recente, assi-nalou que “o que foi tratado primeiramente como

1 Alfonso Guerra, A Revolução Tecnológica e oFuturo do Trabalho, in O Socialismo do Futuro -Rev. de Debate Político - nº 6, 1993, p. 4

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um desequilíbrio temporário se está tornandouma crise do sistema financeiro mundial”. Em-bora adepto do capitalismo de livre mercado,admitiu que, “da mesma forma que o capitalis-mo implacável do laissez-faire do século 19 ge-rou o marxismo, a globalização indiscriminadada década de 90 pode gerar um ataque mundialcontra o próprio conceito de mercados finan-ceiros livres”2. Jürgen Habermas, em extensaentrevista posterior às últimas eleições na Ale-manha, pondera que “a política tem de se per-guntar se deve seguir indefinidamente o cami-nho da desregulamentação”3. Mais minuciosoe incisivo, Serge Halimi descreve o quadro “daloucura dos mercados à recessão”. Invoca oconceito segundo o qual “os capitais privadosdos países desenvolvidos têm outras lógicasque as exigências geopolíticas da estabilidademundial”. E prevê “o naufrágio dos dogmas li-berais” – le naufrage des dogmes libéraux”4.

Não é temeridade, pois, a afirmativa genéri-ca de decadência do regime neoliberal. A fragi-lidade é de caráter mundial, bem como no domí-nio de cada Estado. Numa fase da história emque se propaga como idéia-força o princípio dasolidariedade, não se há de prolongar regimeque consagra a discriminação das pessoas, porefeito de fenômeno econômico.

3. O neoliberalismono Brasil

No Brasil, a reforma da ordem econômica daConstituição suprimiu garantias conferidas àsempresas genuinamente brasileiras e ao capitalnacional, extinguiu ou restringiu monopólios,que asseguravam a ação do Estado em setoresestratégicos de exploração e produção de rique-za, assim enfraquecendo o poder da administra-ção pública. Ao mesmo tempo, da cessação deatividades comerciais e industriais aos pedidosde concordata e de falência, ou às fusões deempresas, e da transferência de alunos de esta-belecimentos particulares para escolas públicas,por deficiência de recursos da família, desdo-braram-se múltiplos atos, forçados pela política

de estrangulamento da economia, em grandeparte por imposição de juros extorsivos.

Conquanto advertências houvessem sidofeitas ao longo do triênio, a política de combateà inflação e de resguardo da equivalência artifi-cial do real em relação ao dólar repeliu qualquerprovidência moderadora de sua determinação.Como essa orientação criava contenção dospreços, viveu parcela saliente da comunidade ailusão de uma política acertada. Não atentou,ou não soube atentar na dimensão e variedadedas relações econômicas e financeiras de cará-ter geral ou global, cujos contornos e fins estãoalém do poder nacional.

Daí economistas e estudiosos de diferentesformações terem ponderado a necessidade demedidas preventivas ou de equilíbrio, que trans-mitissem flexibilidade à política instituída, semdesprezar sua essência, e atenuassem os efei-tos de fatores externos, na ocorrência de abalosprevisíveis. Não atendidas as razões de prudên-cia, por vezes consideradas, preconceituosamen-te, apreciações retrógradas, a crise sobreveio, eno curso da jornada eleitoral. O irrealismo tei-moso não resistiu, como não podia resistir, aopeso de fatos de probabilidade irrecusável.Quem admitiu, porém, a globalização sem limi-tes não podia ignorar a extensão de seus riscos.

Sobrevinda a crise aguda, o governo leva oPaís às portas dos organismos internacionaisde socorro e empréstimo, ao tempo em que ado-ta medidas de contenção de despesa, de cria-ção e elevação de tributos, de encargos paraservidores públicos em atividade e aposenta-dos, de dispensa de servidores, todas com efei-tos graves sobre a vida e a produção em geral.O objetivo é o extenso ajuste fiscal reclamadopelas agências internacionais de empréstimo. Asconseqüências da crise e das providências anun-ciadas têm tal dimensão que o Presidente já re-velou o intuito de criar o Ministério da Produ-ção, na tentativa de compensar as ações restri-tivas de direitos e vantagens.

Em realidade, pois, à luz das repercussõesapuradas, o abalo nas bolsas, sacudindo go-vernos, exibe a crise do regime neoliberal.

4. O regime neoliberale os direitos

Outro não poderia ser o destino do regimeneoliberal. Erguido sobre os destroços do murode Berlim e do desmoronamento dos sistemassocialistas europeus e sobre as bases do de-

2 Henry Kissinger, FMI não está apto a lidar coma crise, in O Estado de S. Paulo, 4-10-98.

3 Jürgen Habermas, Entrevista, in O Estado deSão Paulo, 18.10.98

4 Serge Halimi, De la folie des marchés à la réces-sion - Le naufrage des dogmes liberaux, in Le MondeDiplomatique, nº 535, Octobre 1998, p.p. 1 e 18-19.

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senvolvimento tecnológico do capitalismo, nãorevelou nem coordenou forças para estruturaruma ordem estável e protetora dos direitos hu-manos. Enfraquecendo os vigamentos do Esta-do e privilegiando a economia privada, é naturalque lhe faltassem instrumentos e inspiraçãosuficientes para opor diques às distâncias edesigualdades sociais, criadas ou nutridas poriníqua distribuição da riqueza. Na medida emque fortalece os poderosos, constrange a clas-se média, relega os pobres até à exclusão social,o neoliberalismo perde a perspectiva da histó-ria, porque desabriga os direitos como patrimô-nio de todos. Protege-os como privilégios deparcialidades – parcialidades dominadoras, queditam a extensão dos direitos da maioria.

Os sucessivos relatórios sobre o desenvol-vimento humano, publicados para o Programadas Nações Unidas, referem a situação dos pa-íses e de suas populações, retratando as dispa-ridades e exclusões, prejudiciais aos direitos emgeral. O relatório de 1998 assinala que “o estadodo desenvolvimento humano está a melhorar”.Acentua, porém, que “o progresso mundial estámarcado por grandes desigualdades entre pes-soas e entre países e está ameaçado por retro-cessos”. Acrescenta que “a pobreza humana ea privação continuam a ser um enorme desafio,quer nos países ricos quer nos pobres”, e “en-tre urbanos e rurais e no seio dos grupos étni-cos”5. As disparidades que separam as pesso-as no Brasil são confirmação dolorosa dessasobservações insuspeitáveis.

Examinando a crise do capitalismo, Henri Bar-toli aponta, com profundidade, os males do sis-tema. Realça que “a fome não está reservada aoterceiro mundo. Cinco a 10% das populaçõesdos países industrializados estão mais ou me-nos subalimentados, sobretudo em períodos dedesemprego em massa”. Critica todas as carên-cias e deformações, em busca de “uma políticade civilização”, salienta que, “imerso no social,o econômico deve receber dele seus fins, seusobjetivos, suas regras, e não o inverso”. Entreoutras conclusões merecedoras de reflexão, res-salta “a tendência à procura de um equilíbrioentre os determinismos da economia de merca-do e a reivindicação, por meio de conflitos enegociações, de um modo de existência possí-vel e aceitável por todos”6.

Enquanto esse regime de equilíbrio, de difí-cil configuração, não se delineia, criam-se e pre-valecem as desigualdades e injustiças. Segun-do pesquisa promovida pela Folha de S. Paulo,publicada em 15 de julho de 1997, “entre cincogrupos sociais, apenas 8% dos brasileiros fa-zem parte da elite”, e os “excluídos são 59% dapopulação do país”.

5. O regime neoliberale os direitos sociais

Os direitos sociais, como prestações positi-vas do Estado, são os mais atingidos. Robuste-cida a ordem econômica privada, o que a empol-ga, de regra, é o lucro, donde reagir, com vanta-gens, às medidas que a alcancem, para protegera saúde e a educação da coletividade. Enfra-quecido com a política de livre economia e deprivatização, o Estado não dispõe de forças su-ficientes para impor normas e procedimentos desentido social, nem o anima a tanto a filosofialiberal, que o orienta. Direitos sociais ficam, as-sim, sujeitos a restrições originárias do podercapitalista e de seus interesses. Mas os direitossociais, por sua índole, não devem sofrer essasrestrições. Conforme sublinha o Professor Go-mes Canotilho, implicam eles

“verdadeira imposição constitucional, le-gitimadora, entre outras coisas, de trans-formações econômicas e sociais, na me-dida em que estas forem necessárias paraa efetivação desses direitos”7.

6. O regime neoliberale os direitos do trabalhador

É na esfera dos direitos do trabalhador, po-rém, que mais incidem as limitações, porque oreconhecimento deles atinge diretamente osprivilégios do capital. No confronto entre o ca-pital e o trabalho, há interesses econômicos re-sistentes a concessões e limitações e direitoshumanos requerendo reconhecimento e ampa-ro. Os trabalhadores, mesmo organizados, nãodispõem de força bastante para vencer a tenaci-dade do capital, que repousa no Estado, solidá-rio com a resistência e os receios da riqueza.Identificam-se as posições do poder político edo poder econômico, para manter o mesmo regi-me de propriedade e de sua exploração.

5 Relatório do Desenvolvimento Humano - 1998.PNUD, Trinova Editora. Lisboa, 1998, p. 16.

6 Henri Bartoli, L’Économie, Service de la Vie,Presses Universitaires de Grenoble, 1996, p.p. 43,299 e 301.

7 J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional,4ª ed., Almedina, Coimbra, 1987, p.p. 452-453.

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Decerto, a atividade industrial crescente e odesenvolvimento tecnológico modificam a for-ma de uso e administração da propriedade. Jánão é o dono que a dirige sempre, mas o execu-tivo especializado. É um novo tipo de assalaria-do, com funções e poderes distintos e vanta-gens econômicas diversas das que goza o tra-balhador comum. O proprietário perde uma par-cela de comando, porém conserva amplos títu-los de detenção do bem. No mesmo passo, esseexecutivo assalariado e outros tipos de presta-dor de serviço especializado concorrem para al-terar os contornos tradicionais do contrato detrabalho. Essas variedades contratuais diversi-ficam a relação de emprego e aos poucos difi-cultam a caracterização dos direitos do traba-lhador comum. Aos contratos típicos somam-se cada vez mais contratos atípicos, e assim semultiplicam as formas de relação de trabalho,com singularidades manifestas. Daí Alain Supi-ot notar que “a uniformidade de estatuto do tra-balhador assalariado cede a uma individualiza-ção sempre maior de sua condição jurídica”. Ouseja: “o direito do trabalho deixa de ser um blo-co jurídico monolítico, definindo uma identida-de profissional, para dar lugar a uma diversida-de cada dia maior de estatutos jurídicos”8. E essaconformação diferenciada do contrato influi,evidentemente, na natureza dos direitos esta-belecidos e no seu reconhecimento. Em sua edi-ção de 24 de agosto de 1997, o jornal O Estadode S. Paulo, reproduzindo pesquisa do Institutode Economia da Universidade de Campinas, in-formava: “o emprego assalariado está em extin-ção no país”. E acrescentou, de acordo com amesma fonte: “de 1989 a 1995, de cada dez no-vas ocupações apenas duas são assalariadas eoito, não-assalariadas”.

Ocorre, mais, que o desenvolvimento tec-nológico cria instrumentos e mecanismos quesubstituem o homem no trabalho, ou reduzem anecessidade de sua presença. A informatizaçãoextensiva, e sem cessar aperfeiçoada, dispensagradualmente mão-de-obra. Conseqüência dissoé o chamado “desemprego estrutural” crescente.

A revista “O Socialismo do Futuro”, em seunº 6, de 1993, reuniu diversos estudos sobre “ofuturo do trabalho”, visto precisamente à luz darevolução tecnológica. Variadas faces do pro-blema são examinadas. Em conjunto, o que emer-ge deles é a apuração da influência do fator tec-nológico na diminuição de emprego. Numa des-

sas colaborações, Jacques Robin observa que,“na realidade, sob o impacto da informatizaçãogeneralizada da sociedade, temos que discutir aquestão da modificação necessária do concei-to de trabalho”. Indica o rumo da mudança: “Écontra os abusos de uma tecno-ciência subme-tida ao mercado que nos dias atuais devem serretomadas as lutas”. Adverte, entretanto, queas “transformações fundamentais não podemser decretadas; elas devem ser negociadas eexperimentadas em áreas bastante amplas, deacordo com os interesses dos vários ramos pro-fissionais”. Entreabre “os caminhos para umasociedade de “plena atividade e não mais de“pleno emprego”9.

Os caminhos poderão ter essa ou outra dire-ção. No trato de problema humano dessa natu-reza, e numa sociedade em transição, as estra-das são rasgadas após longos diálogos e corre-ção de pensamento. Essencial é que se assegu-re ao ser humano condição de sobrevivênciadigna, oportunidade de aplicar suas aptidões,com retribuição decente. Não cabe em nossaera a imposição, mas a conciliação de vontades.Se o indivíduo e o poder político não são titula-res de mando absoluto no Estado Democráticode Direito, visto que este significa, superiormen-te, autoridade limitada, não há de ser lícita dire-triz, decisão ou ordem que impeça o ser livre dedispor de trabalho para sua manutenção e desua família. Se a evolução tecnológica gera situ-ação dessa índole, cumpre rever os seus efeitospara definir a posição do homem, como porta-dor de direitos superpostos à tirania dos fatos eà deformação da cultura.

Em longa e refletida entrevista a PhilippePetit, convertida em ensaio num pequeno e ilus-trativo livro, Dominique Schnepper fixou o dra-ma do trabalho e do emprego, pesquisando asolução justa. Pondera que é preciso “recons-truir uma via mais republicana e cessar de daraos simples cidadãos a impressão de que exis-tem “dois pesos, duas medidas”. Essa recons-trução é imprescindível porque “a grandeza dasociedade moderna se funda na idéia de igualdignidade de todos os homens”. Tal situaçãorequer “igualdade de oportunidades”, que “nãosignifica igualdade de resultados”. É que estesdependem da medida de capacidade dos indiví-duos. Mas, se “hoje, parte importante da po-

8 Alain Supiot, Critique du Droit du Travail, Pres-ses Universitaires de France, 1994, p.p. 260 e 256.

9 Jacques Robin, Os caminhos para uma socieda-de de “plena atividade” e não mais de “pleno empre-go”, in O Socialismo do Futuro, Revista de debatepolítico, nº 6, 1993, p.p. 139 e 142.

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pulação não dispõe mais de estatuto de assala-riado permanente, é preciso encontrar outras for-mas de estabelecer ou restabelecer o laço soci-al”. Vale dizer: definir “outras formas de ativida-de, que não sejam o emprego assalariado”. Re-pelindo a idéia de “fim da sociedade de merca-do, ou o fim do trabalho, ou da produção com-petitiva”, prevê a mudança das formas de traba-lho e da estrutura dos empregos”. E conclui: “oproblema, hoje, é de reconhecer plenamente adignidade de outras formas de trabalho”10.

Dir-se-á que os estudiosos estão a formularteses e não, propriamente, a abrir caminhos. Masos caminhos se constroem no cadinho das idéi-as, como foi o trabalho caracteristicamente as-salariado, ou o complexo dos direitos sociais.Não há ação produtiva que não seja precedidade um pensamento dirigente. Ponto é ver, entreos pensamentos convergentes ou contrastan-tes, quais as linhas mestras indicativas da solu-ção conveniente. Sem uma consciência firmada,não há inovações duradouras.

No atual momento do mundo, é imperiosopensar noutras formas de trabalho e de empre-go, já que o desenvolvimento tecnológico pro-vocou alterações sensíveis no tecido dos tiposde ocupação tradicionais, agravando os malesdo capitalismo. A realidade pede outra discipli-na, sem prejuízo de garantias inerentes à sobre-vivência digna do prestador de serviço. Mos-trando como se modificou o perfil do empregoformal, Gilberto Dupas, professor da Universi-

dade de São Paulo, salienta que, “em poucasdécadas, a realidade mudou radicalmente. Comosabemos, cerca de 60% do trabalho gerado noBrasil de hoje (exceto governo) não inclui car-teira assinada. A nova maioria são os trabalha-dores informais e os autônomos”. Estendendoa vista, assevera: “Tecnologia, automação eaumento da produtividade continuarão a gerarmenos emprego por dólar adicional investidoem expansão da economia real”11.

Normas e práticas inovadoras, portanto, cor-responderão a reclamos dos fatos e à necessi-dade de proteger a pessoa do trabalhador, a suacondição humana.

7. Consideração finalPromover ou conquistar essas mudanças de

forma e de substância da relação de trabalhonão é tarefa comum e fácil, antes excepcional etormentosa. Elas alteram costumes e interessesdo capitalismo. Trata-se, porém, de encargo in-dispensável a conter ou diminuir a aflição deinjustiçados e excluídos.

Nosso peculiar dever de servidores do di-reito, sobretudo dos que lavram o campo da le-gislação do trabalho, há de ser no sentido deque a sociedade, se não pode realizar a sublima-ção da idéia de justiça, diante de contrastes ine-vitáveis, reduza os desníveis e abusos inquie-tantes. Pelo menos, para que a felicidade coleti-va seja uma esperança permanente.

10 Dominique Schnapper, Contre la fin du travail- Entretien avec Philippe Petit, Collection Textuel,1997, p.p. 27, 34, 79, 81 e 108.

11 Gilberto Dupas, O novo paradigma do empre-go, in O Novo Paradigma do emprego e das relaçõestrabalhistas, Pesquisas, nº 10, 1998 (Centro de Estu-dos Konrad-Adenauer-Stiffung), p.p. 2 e 14.* Notas bibliográficas conforme original.

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RUBENS PINTO LYRA

Raramente, em Ciência Política, um conceitoterá assumido tanta elasticidade e multiplicida-de de sentidos como o da democracia participa-tiva.

Que o cidadão apenas vote, e existe quementenda que, se o voto for livre, já está, ipsofacto, configurada a democracia participativa,esta se confundindo com a própria democraciarepresentativa.

Com efeito,“o conceito de participação política con-sagrou-se nas formações liberal-demo-cráticas em referência à participação ins-titucional, isto é, aquela voltada à toma-da de decisões de poder, por meio de re-presentantes escolhidos pelo sistemaeleitoral” (Cotta, 1979, apud Doimo, 1995:34).

Os defensores da democracia representati-va formal vão mais além, chegando a entender aparticipação direta da cidadania como negativapara a consolidação da democracia (Lamounier,1991; Sartori; 1994, apud Silvab), 1997: 75)1.

Mas, para os que assim não pensam, só háparticipação política efetiva quando existe de-mocracia participativa, quando o cidadão pode

“apresentar e debater propostas, delibe-rar sobre elas e, sobretudo, mudar o cur-so da ação estabelecida pelas forças

Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito, na áreade política, pela Universidade de Nancy (França).Professor dos Programas de Pós-Graduação emSociologia e em Direito da UFPB. Presidente do Con-selho Estadual de Direitos Humanos da Paraíba (1992-1996) e 1º Vice-Presidente da Associação Brasileirade Ouvidores (1995-1997).

Teorias clássicas sobre a democraciadireta e a experiência brasileira

1 Como esclarece Benevides, o cidadão, de acordocom tal concepção, “é titular de direitos e liberdadesem relação ao Estado e a outros particulares – maspermanece situado fora do âmbito estatal, não assu-mindo qualquer titularidade quanto às funções públi-cas. Mantém-se, assim, a perspectiva do constituci-onalismo clássico: direitos do homem e do cidadãosão exercidos frente ao Estado, mas não dentro doaparelho estatal”. (Benevides, 1994:8).

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constituídas e formular cursos de açãoalternativos” (Filla e Battini, 1993).

Ou seja, mais precisamente, sempre quehouver formas de o cidadão participar, decidin-do e (ou) opinando, diretamente, ou de formaindireta, por meio de entidades que integra, arespeito de uma gama diversificada de institui-ções, no âmbito da sociedade (famílias, empre-sas, mídia, clubes, escolas, etc) ou na esferapública (orçamento participativo, conselhos dedireitos, ouvidorias, etc).

Fica claro, portanto, que a democracia parti-cipativa, tal como a acabamos de definir, nãoabrange a democracia representativa, emborapossa perfeitamente coexistir com ela, como ali-ás ocorre no Brasil.

Nas palavras de Silvaa):“os constituintes optaram por um mode-lo de democracia representativa, com tem-peros de princípios e institutos de parti-cipação direta do cidadão no processodecisório governamental”. (l995: 145).

Por outro lado, é de se observar o envelhe-cimento precoce de teorias sobre a democraciae, mais especificamente, da sua modalidade maisdestacada: a direta. E, também, pari passu, osurgimento de formas sui generis de participa-ção, como as que estão em curso no Brasil.Transformações desse porte impõem uma rede-finição do conceito de democracia participativae de suas modalidades, assim como uma novacompreensão do seu significado político.

Com efeito, em que pese a diferenças pro-fundas entre as concepções de democracia par-ticipativa de teóricos de destaque comoMacpherson, Bobbio ou Poulantzas, suas aná-lises têm em comum ou a destacada referência àComuna de Paris e ao modelo soviético, e (ou) aassociação entre mecanismos de democracia di-reta com a luta pela implantação do socialismo.

Ora, o desmoronamento do Muro de Berlimtornou ultrapassadas essas teorias. Macpher-son, por exemplo, considerava o regime soviéti-co uma forma de institucionalização, ainda quefalha, da democracia direta. Mesmo se o estudodo caráter dos regimes ditos socialistas está lon-ge de ter avançado, poucos sustentariam hojeque eles tenham configurado algum tipo de de-mocracia. A fortiori, muito pouco teriam que veras atuais experiências de democracia direta comos modelos conceituais formulados porMacpherson.

No seu livro A Democracia Liberal, esserenomado cientista político canadense mostra-

se favorável à democracia participativa, combi-nada com a representativa: “um sistema pirami-dal com democracia direta na base e democraciapor delegação em cada nível depois dessa base”(Macpherson, 1977: 110). Trata-se de um

“sistema de delegação sequenciado paracima, com a organização de conselhos decidades, de região, até o topo da pirâmi-de, com a organização de um conselhonacional.”

Esse sistema piramidal, de acordo comMacpherson, “existia, mesmo que no papel, naUnião Soviética”.

Todavia, no caso de uma democracia repre-sentativa, pluripartidária,

“seria mantida a atual estrutura de gover-no e os partidos operariam com o estilode participação piramidal, passando ahaver uma democracia participativa con-figurada pela democracia direta na baseem convívio com a democracia represen-tativa a cada nível sequencial superior”.(apud Brandão, 1997: 120).

Em seu livro sobre Ascensão e Queda daJustiça Econômica, Macpherson se rende àsdificuldades para a construção de uma demo-cracia participativa nos moldes das democraci-as ocidentais, estimando que os grupos de pres-são organizados na sociedade civil, assim comoos partidos políticos, não teriam condições deharmonizar a lógica interna de seu funcionamen-to e (ou) a defesa de seus interesses particula-res, com o envolvimento de seus integrantesem práticas participativas voltadas para o bemcomum. (Macpherson, 1991).

Tendo como referência a democracia diretaformalmente existente na URSS, as formulaçõesde Macpherson sobre o tema mostram-se bas-tante defasadas da democracia participativa naatualidade; em particular da que floresce no Bra-sil, profundamente distante do modelo soviéti-co e caracterizada pela rica diversidade de suasexperiências participativas.

No que diz respeito a Bobbio, suas concep-ções são largamente condicionadas pelo res-caldo da Guerra Fria e, em particular, pelo con-texto de radicalização da vida política italianacom a ação dos grupos terroristas nos anos se-tenta, que culminou com o assassinato do pre-mier Aldo Moro.

Preocupa-se Bobbio com uma democraciadireta que viesse a exigir dos cidadãos a sua“participação em todas as decisões a eles perti-

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nentes”. Temia que se configurasse, senão o“homem total”, de Marx, o “cidadão total” deRousseau: “a outra face igualmente ameaçado-ra do Estado total”.

Segundo Bobbio, os partidários da demo-cracia direta, conforme a “tradição do pensa-mento socialista”, colocam-na em oposição àdemocracia representativa, “considerada comoa ideologia própria da burguesia mais avança-da, como a ideologia ‘burguesa’ da democra-cia”. A democracia direta, assim concebida, temcomo característica o mandato imperativo, natradição marxiana e leniniana, e a representaçãode interesses, ou orgânica, “característica dopensamento inglês do século passado”.

Na verdade, Bobbio considera esse gênerode democracia “anfíbio”, sendo que a democra-cia direta, no sentido próprio da palavra, seriaapenas a “assembléia dos cidadãos deliberan-tes sem intermediários e o referendum” (Bob-bio, 1992: 42, 43, 48, 49, 52 e 53).

Segundo esse raciocínio, o único modusoperandi da democracia direta – a ser modera-damente utilizado – é o plebiscito, em face dainexequibilidade de assembléias como a acimareferida. Razão pela qual, para Bobbio, só resta-ria como espaço para aprimoramento democrá-tico, via práticas participacionistas, a esfera dasrelações sociais, onde o protagonista não é ocidadão, mas sim o indivíduo

“... considerado na variedade de seus sta-tus e de seus papéis específicos, porexemplo o de empresário, de trabalhador,de cônjuge, de professor, de estudante,até mesmo de pais de estudante...”

Conclui então Bobbio que o processo dedemocratização consiste, não na passagem dademocracia representativa para a direta, mas naocupação, pelas formas ainda tradicionais dademocracia, como é a representativa, de espa-ços até agora dominados por organizações detipo hierárquico e burocrático. “Tudo pode serresumido na seguinte fórmula: da democratiza-ção do Estado à democratização da sociedade”(Bobbio, 1992: 54-55)2.

É fácil constatar que as teorizações de Bob-bio sobre a democracia direta têm pouco quever com o contexto e os institutos em que sematerializa a democracia participativa no Brasil.

Primo, esta última não foi instituída, comoveremos adiante, em antagonismo com a demo-cracia representativa, nem como instrumento deimplantação de uma ordem socialista revolucio-nária.

Tarso Genro, principal mentor da mais im-portante experiência de democracia direta doBrasil – o Orçamento Participativo de Porto Ale-gre – esclarece, a esse respeito, que

“dar força cogente ao controle públiconão-estatal significa aprofundar o regimedemocrático e dar conseqüência à com-binação da democracia representativacom a democracia direta, prevista no art.1º, par. único, da própria Constituição.Esta combinação ‘civiliza’ o Estado, ge-rando um controle externo, capaz de limi-tar sua lógica corporativa, ou seu atrela-mento a interesses puramente privados.”(Genro e Genoino, l995).

Secundo, predomina amplamente no Brasil,no âmbito da democracia participativa, a suamodalidade semi-indireta, como é o caso dosdiferentes conselhos (de saúde, da criança e doadolescente, dos direitos humanos, etc.). Nes-ses, com efeito, o cidadão não participa pesso-almente da gestão pública, ou de sua fiscaliza-ção, mas por meio de representantes da entida-de que integra – os quais detêm, via de regra,mandato fixo3.

2 Na verdade, o ceticismo de Bobbio em relação àdemocracia participativa na esfera pública tem umpano de fundo político-ideológico, que alimenta adescrença do renomado cientista político italiano tantono que se refere à possibilidade de reformas estrutu-rais quanto à participação da cidadania nos negóciosdo Estado. Sobre o perigo das reformas: “Quem podeexcluir a possibilidade de que a tolerância do sistematenha um limite, além do qual ele se estilhiçará ao

invés de dobrar-se? Sobre os limites da ação política,na síntese de Anderson: “Nas sociedades democráti-cas, as principais mudanças sociais não são geral-mente, de modo algum, resultantes da ação política,mas do progresso da capacidade tecnológica e da evo-lução das atitudes culturais [que são] processos mo-leculares involuntários...” (Apud Anderson, 1992:54e 60)

3 Todavia, Pontes entende que, no caso dos Con-selhos de Direitos da Criança e do Adolescente, podeexistir mandato imperativo “porque é possível iden-tificar o grupo de entidades que escolhe cada organi-zação não-governamental (ONG) como membro doConselho de Direitos. Isso tem por conseqüência ofato de haver a possibilidade de mudança dos repre-sentantes da sociedade civil pelas entidades que oescolheram, antes de findar o mandato”. Mas Pontesreconhece que tal processo só poderia ocorrer casoesteja previsto na lei que criou o Conselho, no seuregimento ou no fórum de entidades que escolhe osrepresentantes das ONGs, o que não parece estarocorrendo. (Pontes, 1993: 51).

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Tertius, a representação de interesses, tãocombatida por Bobbio, existe apenas em algunscolegiados. Predomina a presença de organiza-ções da sociedade civil voltadas para o interes-se público, cultivando, nesse processo, umapostura crítica em relação ao corporativismo.

No caso do Orçamento Participativo de Por-to Alegre, a crítica ao corporativismo chega a seconstituir no leitmotiv de Tarso Genro – exata-mente o oposto do que temia Bobbio.

Segundo Genro, ex-Prefeito da capital do RioGrande do Sul, os oito anos de experiência doOrçamento Participativo levaram a comunidadea uma compreensão crescente de que

“é preciso incorporar as suas reivindica-ções às lutas mais gerais do povo portransformações estruturais da sociedadebrasileira”.

Nesse processo, as lideranças“passam a compreender não só os limitesdo poder público, como também a pró-pria relatividade de suas necessidades,comparando-as com outras mais urgen-tes e importantes”.

Assim, a prática participativa se aperfeiçoana medida em que

“o que era carecimento, necessidade, de-manda muda de qualidade mediante o pro-cesso participativo e adquire naturezapolítica, fazendo do indivíduo um cida-dão”. (Genro e Souza, 1997: 50-51).

Por outro lado, por sua própria natureza,muitos órgãos semi-estatais que não se envol-vem com a disputa pela apropriação do exce-dente, tais como Conselhos de Direitos Huma-nos, Tutelares, de Segurança, etc., vêm contri-buindo decisivamente para a construção de umethos voltado para o fortalecimento da res pu-blica, tendo como fulcro questões de interesseuniversal e coletivo.

Mesmo os órgãos que definem e imple-mentam políticas setoriais – em que a ques-tão central é a de como repartir o fundo pú-blico –, ainda que portadores de um certo viéscorporativista, não são necessariamente do-minados por ele. Na avaliação de Doimo, osConselhos setoriais, vinculados à definiçãoe implementação de políticas sociais, seriamaté

“alternativas deliberadamente formula-das dentro do espírito ativo-propositi-vo, voltado a romper o corporativismopontual das demandas locais e a ins-taurar perspectivas para toda a coleti-

vidade, através de políticas regulató-rias” (Doimo, 1995, 215-126)4.

A teoria de Nicos Poulantzas sobre a demo-cracia direta distingue-se ideologicamente dasde Bobbio e de Macpherson pelo seu carátermarxista e revolucionário. Por essa razão, e pelofato de ter sido formulada nos anos setenta, ademocracia direta de Poulantzas é concebida,antes de tudo, como um instrumento de lutacontra o capitalismo, embora esse autor inove,pretendendo compatibilizar democracia diretacom democracia participativa.

Ocorre que, na perspectiva de Poulantzas, adisseminação da democracia direta, sob a formade “focos embrionários de poder popular”, con-fundir-se-ia com o desabrochar das instituiçõessocialistas.

Dessarte,“este longo processo de tomada do po-der pela via democrática, rumo ao socia-lismo, consiste, essencialmente, em refor-çar e coordenar os centros de resistênciadifusos de que as massas dispõem noâmbito do aparelho de Estado, criando edesenvolvendo novos, de tal forma queestes centros se tornem, no terreno es-tratégico que é o Estado, os centrosefetivos do poder real”. “Não se tratade reformas progressivas, mas, clara-mente, de um processo de rupturas efe-tivas cujo ponto culminante – e sem-pre existirá forçosamente um – residena mudança de correlação de forças emfavor das massas populares no terrenoestratégico do Estado” (Poulantzas,1978:285-286).

Em outras palavras, a transição do capitalis-mo para o socialismo consiste em

“impulsionar a proliferação de centros dedemocracia direta, a partir das lutas po-pulares que extravasam sempre, e de mui-to, o Estado”.

Enquanto“limitar-se ao terreno do Estado, por mui-to que se adote uma estratégia denomi-nada de rupturista, equivale a deslizar-seinsensivelmente para a social-democra-cia”. (Poulantzas, 1983:75).

4 Por essas razões, quer-nos parecer inconsisten-te a hipótese aventada por Silva, que considera a frag-mentação e o desenvolvimento de relações clientelís-ticas como efeitos perversos da participação. (Silva,1997: 78).

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Portanto,“No processo de ruptura, a função

dos organismos paralelos será a de pola-rizar uma larga fracção do aparelho deEstado pelo movimento popular, e estesem aliança, enfrentarão os setores reacio-nários do aparelho do Estado apoiadospelas classes dominantes contra-revolu-cionárias”.

Vimos assim que“as posições de poder no âmbito do Es-tado existem enquanto dispositivo de re-sistência, como elemento de corrosão, oude acentuação das contradições internasdo Estado” (Poulantzas, 1982, p. 133 e136).

A associação entre a participação direta docidadão na gestão pública e o projeto de insta-lação de um poder popular, de viés conselhista,existiu de fato até meados dos anos oitenta,quando se realizaram, nas prefeituras governa-das pelo PT, as primeiras experiências “partici-pacionistas”. Com efeito, a proposta de forma-ção de Conselhos Populares era mais associadaa princípios gerais, originários da Comuna deParis, do que propriamente a experiências colhi-das na realidade local. Objetivava-se realizar umatransferência de poder para a classe trabalha-dora organizada. Com isso, seria gradativamen-te substituída a representação política tradicio-nal, vinda das urnas, pela democracia direta.

Trata-se, como reconhece Tarso Genro,deuma visão “simplista” do poder, que foi aban-donada após o fracasso das experiências con-selhistas, notadamente em São Paulo, na ges-tão de Luiza Erundina (Genro, 1997:23).

Mesmo persistindo certa ambigüidade nosmecanismos de democracia direta, consubstan-ciados no Orçamento Participativo de Porto Ale-gre, em relação ao ordenamento constitucionalvigente, o manto da legalidade recobre, desde1997, a experiência porto-alegrense, oficializadapela Lei Orgânica do Município (Genro e Souza,1997:48). Já do ponto de vista de sua legitimida-de política, o Orçamento Participativo da capitalgaúcha de muito conquistou a opinião pública,tendo, na última eleição para Prefeito, em 1996,os candidatos de todas as tendências se com-prometido em respeitá-lo.

Para a esquerda que considera socialismo edemocracia indissociáveis, e a reforma instru-mento válido para a transformação social, ademocracia participativa se constitui ingredien-te fundamental para a construção de uma alter-

nativa socialista. Isso, porém, não significa atre-lar a luta pela democracia a uma estratégia de-terminada, tendo como meta a implementaçãode um programa socialista. Um militante socia-lista da cidadania trabalhará pelo aprimoramen-to desta, quer esteja posta ou não na ordem dodia a ruptura com o capitalismo, e o fará semsubordinar o seu trabalho, e a fidelidade a seusprincípios, a considerações de caráter político-partidário.

Atualmente, a luta pela ampliação dos direi-tos da cidadania se insere em um espaço éticodotado de uma práxis e de uma eticidade políti-ca próprias, lastreada no respeito às regras dojogo vigentes, no âmbito de uma democraciaessencialmente representativa.

Essa esquerda entende, à maneira de CarlosNelson Coutinho, que

“a ampliação da cidadania – esse proces-so progressivo e permanente de constru-ção dos direitos democráticos que carac-teriza a modernidade – termina por se cho-car com a lógica do capital”5.

Haveria, assim, a longo prazo, uma“contradição entre cidadania e classesocial: a universalização da cidadania é,em última instância, incompatível com aexistência da sociedade de classes”.

Dessa forma,“Só uma sociedade sem classes – uma

sociedade socialista – pode realizar o ide-al pleno da democracia. Ou, o que é omesmo, o ideal da soberania popular, e,como tal, da democracia”. (1997: 158-159)

Todavia, para esses socialistas, a supera-ção do capitalismo não requer a destruição dasinstituições existentes, mas o seu aprimoramen-to, pela irradiação da seiva democrática, sob aforma de participação direta e semi-indireta dacidadania, em todos os poros da sociedade, ten-do como árbitro supremo o sufrágio universal.

5 Nesse mesmo sentido, mas indo mais além, Tar-so Genro observa que “a simples e pura aplicação dalei... volta-se hoje contra uma nova acumulação ‘pri-mitiva’ produzida pela corrução e volta-se igualmen-te contra os interesses de ‘desmontagem’ da legalida-de, pretendida pelos monopólios”. Por essas razões,“a magistratura, as Procuradorias, os Promotores deJustiça, podem desempenhar um grande papel demo-cratizador no Estado atual, mesmo que apenas consi-gam relativizar a desconstituição que as classes domi-nantes precisam fazer da atual legalidade, para reduziros direitos e poderes do cidadão comum e aprofundar amanipulação das consciências”. (Genro: 1994).

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Não consideramos, portanto, como alterna-tivas excludentes, como faz Silva, a participa-ção como técnica para se organizar os conflitoscom os capitalistas ou para negociar uma me-lhor qualidade de vida para todos, sem questio-nar a manutenção do regime capitalista (Silva,1997: 76). A participação é uma prática de apro-fundamento da democracia e como tal poderáou não concorrer para abalar o capitalismo. De-pendendo da correlação de forças existentes, aluta pela democracia participativa aprimorará umregime de capitalismo democrático, ou favore-cerá a sua progressiva superação.

Aliás, entre os partidários da democraciaparticipativa estão não apenas os socialistas,que impulsionam as suas experiências maisavançadas, como o Orçamento Participativo, mastambém liberais de diversos matizes, entre es-tes, André Franco Montoro, Ulysses Guimarãese Mário Covas, que conferiram status constitu-cional à participação popular; mas também oMinistro de Estado da Administração, BresserPereira, com sua proposta de “organizaçõessociais” controladas pela sociedade, apoiadacom entusiasmo pelo sociólogo Betinho (Sou-za, l995).

Trata-se, então, para os socialistas, de dis-putar a “hegemonia”, por meio do processo deconsolidação da práxis inovadora ensejada pe-los institutos da democracia participativa.

Se é verdade, como quer Tarso Genro, que asimples aplicação da lei, no Brasil, é algo revo-lucionário, que frutos não poderiam colher ossocialistas, em práticas que aproximam a demo-cracia “realmente existente” da plenitude demo-crática? Esta, com efeito, tornar-se-ia possível

“se aqueles que exercem poderes em to-dos os níveis puderem ser controladosem última instância pelos possuidoresoriginários do poder fundamental, os in-divíduos singulares” (Bobbio, 1992: 13).

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* Notas bibliográficas conforme original.

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Accountability, Constituição eContabilidade

1. IntroduçãoO estudo da accountability do setor públi-

co vincula-se, em sentido amplo, ao conheci-mento das informações relevantes para tomardecisões. O governo democrático deveria serpassível de fiscalização para assegurar sua in-tegridade, desempenho e representatividade.Dessa maneira, existe a necessidade de o pró-prio governo prover informações úteis e rele-vantes para o exercício da accountability.

Da mesma forma, o governo é responsávelpor agir de forma econômica, eficiente e eficazna consecução dos objetivos perseguidos pe-los cidadãos e seus representantes eleitos.Aqueles que formulam, selecionam e implemen-tam políticas públicas necessitam de informa-ções relevantes para o planejamento, o controlee a condução das funções governamentais.

A relevância da matéria determinou explici-tar a prestação de contas da administração pú-blica direta e indireta como um dos princípiosconstitucionais1. Dessa maneira, o princípio daautonomia das entidades federativas cede antea falta de cumprimento da accountability. Semo cumprimento da exigência de prestar contas,o mandatário fica sujeito à intervenção, confor-me se observa nos arts. 34 e 35 da Lei Maior.

João Henrique Pederiva é Consultor de Orçamen-tos do Senado Federal.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. A prestação de contas pela óti-ca constitucional. 3. A estrutura e as atribuições decontrole. 4. A prestação de contas. 4.1. A receita. 4.2.Os orçamentos. 5. Consolidação da perspectiva cons-titucional sobre accountability e contabilidade. 6.Conclusão.

JOÃO HENRIQUE PEDERIVA

1Art. 34, inciso VII, alínea d, da ConstituiçãoFederal.

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Com efeito, o termo accountability tem lar-go curso entre os estudiosos do controle, comodeflui da seguinte passagem:

“A governabilidade nos regimes de-mocráticos depende (a) da adequação dasinstituições políticas capazes de interme-diar interesses dentro do Estado e na so-ciedade civil; (b) da existência de meca-nismo de responsabilização (accounta-bility) dos políticos e burocratas perantea sociedade; (c) da capacidade da socie-dade de limitar suas demandas e do go-verno de atender aquelas demandas afi-nal mantidas e principalmente, (d) da exis-tência de um contrato social básico”(BRESSER PEREIRA, 1997, p. 46 – desta-que no original).

A propósito, a extensão da accountabilitydepende do conteúdo do vínculo estabelecidoentre as partes envolvidas, ou seja, o mandantee o mandatário. Nesse particular, as contas pres-tadas pelo titular do Poder Executivo enfeixamum conjunto maior de normas escritas, explici-tando, em última análise, elementos implícitosna atuação dos demais agentes públicos.

Considera-se responsabilidade pela presta-ção de contas como a acepção mais adequadapara o termo em inglês. É mister ressaltar que,embora os procedimentos relacionados à pres-tação de contas efetuada pelo Presidente da Re-pública não esgotem o assunto, eles enfeixamconjunto de fatores relevantes que podem con-duzir o estudo. Ademais, esse estudo permiterelacionar a responsabilidade pela prestação decontas nos poderes públicos e privados e com-parar a accountability dos respectivos setores.Recorde-se que o conceito de contas, nessecontexto, também compreende o cumprimentode metas.

Os demonstrativos contábeis constam en-tre as fontes de informação que suportam astomadas de decisões e a accountability. Taisdemonstrativos, por si, não asseguram que ogoverno opera como deveria. Eles podem, con-tudo, muito contribuir para a consecução desseobjetivo. Assim, as demandas da ConstituiçãoFederal de 1988 com respeito ao que deve serevidenciado pelo Poder Público, por intermédioda Contabilidade, serão o objeto imediato dotexto que segue.

No desdobramento do texto, identificam-seas instituições e suas estruturas de controle,com particular interesse naquelas vinculadas aocontrole externo, a cargo do Congresso Nacio-

nal, auxiliado pelo Tribunal de Contas da União.Tais estruturas respondem pela adequação dasevidências quanto ao correto uso dos recursosretirados compulsoriamente dos particulares edevolvidos pelo Poder Público à sociedade, soba forma de bens e serviços, durante um certointervalo de tempo. Após sucinta comparaçãoentre as responsabilidades das instituições es-tatais e societárias, concernentes à fiscalizaçãoe ao controle, apresentam-se informações cujaevidenciação o constituinte entendeu necessá-ria, ainda que aparentemente dissociada dosprocessos de prestação ou tomada de contasenviados para as instituições de controle exter-no. Por fim, as obrigações do Estado brasileirosão rememoradas, considerando que a Lei Mai-or estabeleceu parâmetros para nortear as açõesdos governos. Nesse contexto, a Contabilidadeserve de instrumento para evidenciar e avaliar ocumprimento desses compromissos.

A conclusão do trabalho aponta para a ne-cessidade de melhor fundamentação teórica emaior abrangência da prática contábil no âmbi-to da Contabilidade Pública ou Governamental.Sem isso, o ideal de evidenciação (disclosure)das contas do setor público figura inatingível.Perseguindo tal ideal, é imprescindível a averi-guação do adequado cumprimento de disposi-tivos constitucionais e legais pela Administra-ção. Da verificação do descompasso entre a si-tuação atual e a pretendida resultam oportuni-dades para o aperfeiçoamento da accountabili-ty, em benefício da sociedade.

2. A prestação de contas pela óticaconstitucional2

A Constituição representa o marco inicialda vida em sociedade. Basta referir que, entreoutras designações, é conhecida como PactoFundamental e Lei Maior. Ela determina, entreoutros conteúdos, o comportamento e o alcan-ce do interesse público sobre o interesse priva-

2É de particular interesse o conhecimento dosseguintes trechos dos manuais de Direito Adminis-trativo: de Meirelles (1990), os capítulos que tratamda Administração Pública, dos Poderes Administra-tivos e dos Atos Administrativos; de Mello (1990),os capítulos versando sobre O Regime Jurídico-Ad-ministrativo, os Princípios Constitucionais do Direi-to Administrativo Brasileiro, os Atos Administrati-vos, as Discricionariedade e Legalidade, a Discricio-nariedade Administrativa e o Controle Judicial e aResponsabilidade Patrimonial Extracontratual doEstado por Comportamentos Administrativos.

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do. Dessa forma, as relações entre Estado, go-verno e particulares são objeto da regulaçãoconstitucional3.

Considerando o escopo do texto constitucio-nal, seria de esperar que nele constassem prin-cípios e orientações de cunho genérico e des-vinculados de caráter particular ou circunstan-cial. Com isso, a Lei Maior conformaria os de-mais institutos normativos, mormente de origeminfraconstitucional, bem como evitar-se-iam ospontos de instabilidade advindos de normascasuísticas.

Embora a atual Constituição Federal, pro-mulgada em 8 de outubro de 1988, fixe algunsprincípios gerais norteadores das atividadespúblicas e privadas, há muitos pontos de insta-bilidade. Eles são constatáveis pelo relativamen-te elevado número de emendas inseridas em seutexto no curto prazo de dez anos. Nesse particu-lar, o modelo norte-americano está longe de serseguido, porquanto a Constituição daquele Es-tado mantém-se desde a origem. A propósito,demorou cerca de duzentos anos para que hou-vesse aproximadamente o mesmo número deemendas constantes da Constituição brasileiraem dez anos.

Dos artigos que tratam da fiscalização con-tábil, financeira e orçamentária (arts. 70 a 75),somente o parágrafo único sofreu modificação.Mesmo essa substituição dos termos pessoafísica ou entidade pública por pessoa física oujurídica, pública ou privada figura de pequenamonta, em face do ordenamento jurídico vigen-te4. Significaria isso a satisfação do legisladorcom a redação atual dos dispositivos constitu-cionais ou seria apenas desinteresse para com amatéria concernente ao controle? Outros ques-tionamentos perpassam a eficácia dos disposi-tivos atuais, situação essa que merece o exameatento do legislador.

De toda a sorte, a técnica constitucional as-severa a fragilidade da Lei Maior quando ela sepresta a servir de instrumento para a legitima-ção dos interesses específicos de grupos nopoder. A instabilidade das instituições e daspolíticas públicas apresenta efeitos danosostanto para o planejamento quanto para o acom-panhamento das ações governamentais. Sofrem,particularmente, os instrumentos de fiscalizaçãoe controle, com inevitáveis reflexos negativosnos sistemas e nas informações contábeis.

Nesse quadro de instabilidade institucional,a medida provisória configura a continuidade eo aprimoramento do decreto-lei. Vale recordarque a medida provisória – instrumento de exce-ção no regime presidencialista, ainda que plau-sível no regime parlamentarista – vem receben-do ampla utilização pelo atual Governo, com efei-tos largamente discutidos junto aos meios polí-ticos, jurídicos e acadêmicos. Basta salientar quea medida provisória que organizou e discipli-nou os Sistemas de Controle Interno e de Plane-jamento e Orçamento do Poder Executivo e queremodelou o sistema de controle interno aindanão foi convertida em lei. Na verdade, a ediçãoda Medida Provisória de nº 1.626-49, de 12 defevereiro de 1998, consolida um marco: maisde quatro anos de imprevisibilidade e urgên-cia sem que se alcançasse consenso sufici-ente, no seio do Poder Legislativo, para deci-dir sobre a matéria.

No plano constitucional, verifica-se que otratamento concedido às contas prestadas peloPresidente da República reflete a falta de defini-ção sobre o seu conteúdo e alcance. A preposi-ção pelo esclarece muito pouco. Restam dúvi-das sobre o objeto dessas contas: seriam con-tas do Presidente, do Poder Executivo ou doGoverno? Trata-se de assunto da maior impor-tância, porquanto conformador de responsabi-lidades pessoais e institucionais.

Caso forem contas do gestor, a responsabi-lidade do Presidente da República é individual;caso forem do Poder Executivo, há que se res-saltar a cadeia de responsabilidades dos gesto-res ou ordenadores de despesa até o titular des-se Poder; em sendo do Governo, abarcando todoo Estado, a responsabilidade é compartilhadacom os membros dos demais Poderes, particu-larmente com o Poder Legislativo, no limite dasrespectivas ações e omissões. Seria desejávelque a Lei Maior houvesse apontado parâme-tros insofismáveis, de forma a evitar antinomiasem tão importante matéria.

3Para SILVA (1991, p. 34), o objeto do direitoconstitucional “é constituído pelas normas funda-mentais da organização do Estado, isto é, pelas nor-mas relativas à estrutura do Estado, forma de gover-no, modo de aquisição e exercício do poder, estabele-cimento de seus órgãos, limites de sua atuação, direi-tos fundamentais do homem e respectivas garantias eregras básicas da ordem econômica e social”.

4O art. 93 do Decreto-lei nº 200, de 25.2.1967, jáprescrevia: “Quem quer que utilize dinheiros públi-cos terá de justificar seu bom e regular emprego naconformidade das leis, regulamentos e normas ema-nadas das autoridades administrativas competentes”(destaque acrescido).

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Entremeios, não faltam proposições no Con-gresso Nacional tendentes a sanar tal carência.É o caso do Projeto de Decreto Legislativo (PDC)nº 311, de 6 de julho de 1993, ora em tramitaçãona Câmara dos Deputados, que

“estabelece normas para a elaboração doparecer do Tribunal de Contas da Uniãoa que se refere o art. 71, inciso I, da Cons-tituição Federal”5.

No âmbito do Senado Federal, apresentou-se o Projeto de Lei (PLS) nº 260, de 2 de dezem-bro de 1997, ainda tramitando naquela Casa, que

“dispõe sobre a apresentação, o julga-mento e a apreciação das contas apre-sentadas anualmente pelo Presidente daRepública, e dá outras providências”6.

As dificuldades sobre o objeto das contas esobre as conseqüências de eventuais ressalvasou irregularidades derivam, grosso modo, daausência de maiores discussões sobre a accoun-tability do setor público. É que o titular do po-der – o povo – não participa diretamente na ela-boração, acompanhamento e avaliação das po-líticas públicas, ao passo que seus represen-tantes legislativos não implementaram por com-pleto a eficácia dos mandamentos constitucio-nais. Em que pesem alguns cuidados da LeiMaior quanto ao controle social direto, como ainiciativa popular, a falta de transparência nagestão das contas públicas persiste. Noutraspalavras, o processo de fiscalização das contasanuais fica circunscrito a uns poucos iniciadose a população deixa de participar diretamente nafiscalização e no controle das contas prestadaspelos agentes públicos7.

Parte da dificuldade na participação diretado titular do poder pode ser atribuída ao caráteraltamente elaborado dos registros contábeis.Outra parte, entretanto, tem raízes históricas e

sociológicas. Ao Poder Legislativo só cabia, pelaConstituição anterior, aprovar ou desaprovar oprojeto orçamentário elaborado pelo Poder Exe-cutivo. Há prevalência do caráter autorizativoda lei orçamentária e do encaminhamento equi-vocado de oportunidades para discutir as gran-des linhas das políticas públicas, em que pesemos avanços. O plano plurianual, por exemplo,reflete, ainda hoje, o vigor da concepção cons-titucional anterior. Isso também explica muitasdas dificuldades atuais concernentes às presta-ções de contas.

Ante a natureza dos dados com os quais acontabilidade lida e com fulcro nos seus objeti-vos, seria de esperar que as informações de-mandadas pela Lei Maior tivessem respaldo nosregistros e demonstrativos contábeis8. Em sín-tese, o objetivo da contabilidade é evidenciar,para um usuário com conhecimentos medianosa respeito do negócio e da Contabilidade, a si-tuação atual e as perspectivas futuras da Enti-dade. Ou seja, se a Constituição impõe ao Esta-do perseguir determinados objetivos, a Conta-bilidade, em sentido amplo, deveria fornecer ins-trumental teórico suficiente para permitir men-surar e evidenciar de forma adequada a conse-cução desses objetivos.

Nesse particular, cumpre salientar que a Con-tabilidade também tem papel ativo na evidenci-ação das mutações de caráter social que influ-enciam na entidade. Vale recordar que

“A divulgação das demonstraçõescontábeis tem por objetivo fornecer, aosseus usuários, um conjunto mínimo deinformações de natureza patrimonial,econômica, financeira, legal, física esocial que lhes possibilitem o conheci-mento e a análise da situação da Entida-de” (destaque acrescido)9.

Assim, a contabilidade serve de instrumen-to para o exercício da cidadania.

Cabe à administração pública a gestão dadocumentação governamental e as providências

5De autoria do Deputado AUGUSTO CARVA-LHO.

6De autoria do Senador JEFFERSON PERES.7A Lei Maior preconiza o caráter descentraliza-

do da gestão administrativa, com a participação dacomunidade, como objetivo da organização da seguri-dade social (art. 194, parágrafo único, inciso VII).Ademais, o ensino será ministrado com base no prin-cípio da gestão democrática (art. 206, inciso VI, daConstituição Federal). Já o controle político é paten-te: “A soberania popular será exercida pelo sufrágiouniversal e pelo voto direto e secreto, com valor igualpara todos, e, nos termos da lei, mediante: I — ple-biscito; II — referendo; III — iniciativa popular”(caput do art. 14 da Constituição Federal).

8Questões atinentes aos objetivos, assim comoaos usuários da Contabilidade, encontram-se discuti-das nos Princípios Fundamentais de Contabilidade,editados pelo Conselho Federal de Contabilidade, emparticular a Resolução nº 750, de 29 de dezembro de1993, e nº 774, de 16 de dezembro de 1994. Outrafonte valiosa de conceitos são os Objectives of Fede-ral Financial Reporting — Statement of Federal Fi-nancial Accounting Concepts Number 1, do Officeof Manegement and Budget norte-americano.

9Conselho Federal de Contabilidade, Resoluçãonº 737, de 27 de novembro de 1992, item 6.1.2.1.

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para franquear sua consulta a quantos dela ne-cessitem, conforme o § 2º do art. 216 da Consti-tuição Federal. O caput do mesmo artigo tratado patrimônio cultural nacional e tem a seguinteredação:

“Constituem patrimônio cultural bra-sileiro os bens de natureza material e ima-terial, tomados individualmente ou emconjunto, portadores de referência à iden-tidade, à ação, à memória dos diferentesgrupos formadores da sociedade brasi-leira...”.

Qual o papel que a contabilidade deve ado-tar em face dessas demandas constitucionais?

Há que se considerar a prestação de contascomo um dos princípios constitucionais que semanifesta de várias formas ao longo do texto daLei Maior. De um lado, o setor público precisainformar a si próprio. Nesse papel, os sistemasde informação – mormente o sistema contábil –devem sinalizar, no mínimo, os efeitos que ogestor da coisa pública deve evitar quando to-mar decisões. Quanto mais adequadas forem aqualidade e quantidade das informações, maisfacilmente apresentar-se-á a melhor solução. Deoutro lado, é mister que os governantes bus-quem o respaldo de suas ações junto à opiniãopública, por meio da publicidade.

Um dos principais usuários externos das in-formações sobre a ação governamental é o povo,titular do poder. Segundo o parágrafo único doartigo primeiro da Constituição Federal, “todo opoder emana do povo, que o exerce por meio derepresentantes eleitos ou diretamente, nos ter-mos desta Constituição”.

A titularidade do poder pelo povo indica queseus representantes devem exercer mandato nostermos e limites da procuração recebida. Note-se que o alcance e cumprimento adequado des-se mandato têm fulcro na Lei Maior. A autono-mia da vontade, subjacente às relações entre osparticulares e à teoria contratual do Direito Pri-vado, deixa de prevalecer e cede espaço para ointeresse público.

Os governantes eleitos pela maioria dos elei-tores simpatizantes com certa agenda para aspolíticas públicas tomam posse do aparelho es-tatal com vistas à implementação da plataformaque os conduziu ao poder. O exercício efetivodo poder não elide o compromisso dos gover-nantes em prestar contas da sua adequada utili-zação. Isso abrange a satisfação das responsa-bilidades e o uso dos respectivos instrumen-

tos, particularmente dos recursos disponíveis,que lhes foram confiados.

A autoridade demanda o respectivo instru-mental para o exercício das suas atribuições.Esse instrumental, no caso do Estado, são osagentes e a administração pública. Todo o con-junto deve respeito ao povo, que é o titular legí-timo desse poder que fundamenta a autoridade.Assim, o Pacto Fundamental estabelece limitesao exercício do poder pelos representantes po-pulares, além de conceder destaque a certosprocedimentos que devem ser observados, in-dependentemente do governante e da respecti-va plataforma ou agenda política. A evidencia-ção tem por finalidade viabilizar o acompanha-mento e o controle das ações públicas pelopovo, titular do poder.

Atente-se que a direção superior da Admi-nistração Federal compete privativamente aoPresidente da República, auxiliado pelos Minis-tros de Estado (art. 84, II, da Constituição Fede-ral). Isso é coerente com a função executiva quelhes cabe, na visão tradicional da separação dosPoderes. Esse caráter instrumental da Adminis-tração encarece a demanda pela verificação daconformidade entre as ações governamentaisde curto prazo e as finalidades do Estado, pos-tas no longo prazo.

Na verdade, o caráter instrumental da Admi-nistração Pública e dos denominados agentespolíticos – ambos agentes públicos, em últimaanálise – determinou que a Constituição fixassenormas específicas para ambos, mediante lei10.A vinculação legal dos atos dos agentes públi-cos assume particular interesse para o presenteestudo. Qualquer ação administrativa deve en-contrar respaldo em norma legal. O administra-dor público, todavia, está adstrito aos termosda lei, na esteira da concepção burocrática deEstado.

Nas palavras de Meirelles (1991, p. 83),“As leis administrativas são, normal-

mente, de ordem pública e seus precei-tos não podem ser descumpridos, nemmesmo por acordo ou vontade conjuntade seus aplicadores e destinatários, umavez que contêm verdadeiros poderes-de-

10Entendida, nesse caso, como o produto de pro-cesso legislativo, segundo referido pelo caput do art.59 da Constituição Federal, ou seja, “O processolegislativo compreende a elaboração de: I — emendasà Constituição; II — lei complementares; III — leisordinárias; IV — leis delegadas; V — medidas provi-sórias; VI — decretos legislativos; VII — resoluções”.

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veres, irrelegáveis pelos agentes públi-cos [todas as pessoas físicas incumbidasdefinitiva ou transitoriamente do exercí-cio de alguma função estatal, conformedefinição na p. 71]. Por outras palavras, anatureza da função pública e a finalidadedo Estado impedem que seus agentesdeixem de exercitar os poderes e de cum-prir os deveres que a lei lhes impõe. Taispoderes, conferidos à Administração Pú-blica para serem utilizados em benefícioda coletividade, não podem ser renuncia-dos ou descumpridos pelo administradorsem ofensa ao bem comum, que é o su-premo e único objetivo de toda ação ad-ministrativa” (destaques no original, col-chetes nossos).

A perspectiva burocrática de controle dosmeios e instrumentos é, ainda, preponderante,embora o atual discurso da administração pú-blica gerencial aponte para o gerenciamento econtrole dos resultados. Em prol dessa afirmati-va, basta referir que os governantes entende-ram imprescindível emendar a Constituição.Desse modo, pretendeu-se explicitar a eficiên-cia como princípio da administração pública e aavaliação de desempenho pelos usuários comoforma de atingi-la. Vale recordar que a eficiênciajá constava como critério da fiscalização exerci-da pelo controle externo e interno11.

Eficiência sempre foi preocupação do setorprivado. Com a mudança de paradigmas pro-posta, do estado burocrático para o estado ge-rencial, aumenta a convergência das obrigaçõesdos administradores públicos e privados. Comefeito, o legislador tende a equiparar os servi-ços prestados pelo Estado com os serviços pres-tados pelos particulares. A tendência, nessecaso, é a diminuição de regras fixas, voltadaspara procedimentos operacionais internos, e oconseqüente aumento das regras conceituais,norteadoras da forma de agir.

Nesse modelo de Estado, assumem desta-que as funções reguladoras e fiscalizadoras.Aliás, tais características reforçam o dispositi-vo “ninguém será obrigado a fazer ou deixar defazer alguma coisa senão em virtude de lei” (in-ciso II do art. 5º da Constituição Federal). Ouseja, com a mudança de paradigmas, o admi-nistrador tenderá a fazer o que a lei permite edeixar de fazer estritamente o que a lei deter-mina, aproximando a sua gestão daquela decaráter privado.

Em respaldo ao modelo gerencial para a ges-tão pública, foram introduzidas mudanças naAdministração por meio da Emenda Constitucio-nal nº 19, de 4 de junho de 1998, conhecida porReforma Administrativa. Tais mudanças vieramencarecer, no direito positivo pátrio, os valoresque, sem dúvida, aproximam a gestão do Estadoda gestão das organizações privadas. Assim,no caput do art. 37, inseriu-se o princípio daeficiência, já comentado.

A perspectiva de cliente e fornecedor comrespeito ao setor público emerge com maior in-tensidade no § 3º do art. 37 da Lei Maior. Se-gundo o dispositivo, a participação do usuá-rio na administração pública direta e indiretaserá disciplinada em lei. Em seus incisos, o refe-rido parágrafo elencou as principais matérias aserem reguladas. Entre elas, as reclamações re-lativas à prestação dos serviços, assegurada aavaliação periódica externa e interna da sua qua-lidade, bem como a manutenção do atendimen-to ao usuário. Também o acesso dos usuários aregistros administrativos e a informações sobreatos de governo será objeto da lei, além da dis-ciplina da representação contra o exercício ne-gligente ou abusivo de cargo, emprego ou fun-ção na administração pública.

Outra forma de propiciar maior autonomia econtrole de desempenho consta no § 8º do arti-go em comento. Segundo o dispositivo, a auto-nomia gerencial, orçamentária e financeira dosórgãos e entidades da Administração poderáser ampliada mediante contrato que tenha porobjeto a fixação de metas de desempenho. Essecontrato poderá estipular direitos e deveres, bemcomo remuneração, diferenciados. As obriga-ções e remunerações variáveis, com base con-tratual, certamente assemelharão a administra-ção pública à privada.

Ainda que exista simetria na forma de agirdos administradores públicos e privados, a res-ponsabilidade de ambos não é a mesma. Sequerequivale. O gestor privado preocupa-se com olucro obtenível dentro dos limites legais, numprazo mais ou menos longo. O lucro é medida dasua eficiência. Já o gestor público tem seus re-sultados apreciados por critérios como legali-dade, economicidade e legitimidade, entendidaesta como o esteio nos princípios gerais de di-reito, na razão ou no ideal de justiça. A lei e, apartir da regulação preconizada pela emendaconstitucional, os contratos determinarão me-didas para avaliar a eficiência do administrador,gestor ou agente público.11Caput do art. 70 da Lei Maior.

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Também o agente público tem categorias di-ferentes de responsabilidades. No caso do ser-vidor público, o descumprimento legal ocasio-na falta administrativa; no caso do agente polí-tico, crime de responsabilidade. O controle ad-ministrativo e judicial sobre a Administração temavançado no sentido de limitar a chamada dis-cricionariedade administrativa por meio do exa-me do motivo e objeto, além daqueles requisi-tos indisponíveis: competência, finalidade e for-ma do ato administrativo. Restaria ao adminis-trador da res pública o exame do mérito (conve-niência e oportunidade). Nesse particular, a obe-diência aos princípios da legalidade, impessoa-lidade, moralidade e publicidade, em suas vári-as manifestações, tampouco pode ser olvidadapelo administrador público.

Atente-se, ainda, para a responsabilidade ob-jetiva advinda da ação pública, segundo discri-minada pela Constituição Federal12. Mais do quecuidar de um direito de consumidor, o constitu-inte intentou resguardar a sociedade dos even-tuais danos advindos dos agentes públicos noexercício de suas funções estatais. A responsa-bilidade objetiva, nesse caso, indica um poten-cial de risco inerente à função e que deveria sermensurado pela contabilidade.

Na verdade, casos de prejuízos particulares,envolvendo concessões (como ocorreu no Riode Janeiro com a energia elétrica), refletem a res-ponsabilidade estatal. Supondo que a conces-sionária não detenha capital suficiente para co-brir o risco, o vínculo constitucional aponta paraa responsabilidade solidária do Poder Públicoem contribuir, inclusive financeiramente, parasolver o dano.

A contabilidade deveria evidenciar tais ris-cos, porquanto

“As informações geradas pela Con-tabilidade devem propiciar aos seus usu-ários base segura às suas decisões, pelacompreensão do estado em que se en-contra a Entidade, seu desempenho, suaevolução, riscos e oportunidades queoferece” (item 1.1.2 da Resolução nº 785,de 28 de julho de 1995, do Conselho Fe-deral de Contabilidade).

Ela já o faz (ou deveria) no setor privado. É ocaso, por exemplo, da média de devoluções dasmercadorias vendidas, ou da previsão para de-vedores duvidosos. O estudo das contingênci-as no setor público ainda é, infelizmente, poucodesenvolvido.

A falta de informação adequada, segura etempestiva pode ensejar situações de assime-tria informacional, nas quais o detentor das in-formações manipula o detentor do poder. O sis-tema de informações adequado deve evitar talpossibilidade. Sob a perspectiva do direito po-sitivo, isso se manifesta nos limites da consti-tuição material. Ou seja, pode ocorrer que deter-minados grupos assumam o governo e, em pro-veito de alguns, desrespeitem os dispositivosconstitucionais e legais concernentes ao Esta-do e às suas finalidades sem que haja a devidaresposta.

Para evitar isso, a Constituição firmou o sis-tema de freios e contrapesos (checks and ba-lances), assegurando a independência entre osPoderes. Entre os pontos considerados imutá-veis pelo constituinte originário (as denomina-das cláusulas pétreas) não figura explicitamen-te a república. De toda a sorte,

“Não será objeto de deliberação a pro-posta de emenda tendente a abolir: I – aforma federativa de Estado; II – o votodireto, secreto, universal e periódico; III– a separação dos Poderes; IV – os direi-tos e garantias individuais” (art. 60, § 4º,da Constituição Federal)13.

É ao titular do poder – o povo – que os go-vernantes, no exercício dos poderes constitucio-nais, devem prestar contas. No seio do gover-no, o Poder Executivo deve prestar contas parao Poder Legislativo, exercido pelo CongressoNacional14. O Poder Judiciário, em face do seucaráter de neutralidade política na doutrina tra-dicional, não recebeu a mesma atenção por par-te do poder constituinte. No momento atual, oquadro é razoável, considerando as instituiçõesora vigentes.

12 “As pessoas jurídicas de direito público e as dedireito privado prestadoras de serviços públicos res-ponderão pelos danos que seus agentes, nessa quali-dade, causarem a terceiros, assegurado o direito deregresso contra o responsável nos casos de dolo ouculpa” (art. 37, § 6º, da Constituição Federal).

13Nos termos do art. 2º da Constituição Federal,“São Poderes da União, independentes e harmônicosentre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

14Entre as competências do Congresso Nacionalconsta: “... V — sustar os atos normativos do PoderExecutivo que exorbitem do poder regulamentar oudos limites de delegação legislativa;... X — fiscalizare controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Ca-sas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da ad-ministração indireta;...” (art. 49 da Constituição Fe-deral).

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Dessa forma, um Poder limita ou trava ooutro. No caso específico do Poder Legislativo,é explícita a missão de controlar os atos do Po-der Executivo. Assim, resta evidente a respon-sabilidade dos congressistas pela manutençãodos limites constitucionais e a importância daContabilidade em sinalizar a observância des-ses limites. Tal responsabilidade é para com omandatário, ou seja, o povo – titular do poder.

3. A estrutura e as atribuições de controleA comparação da estrutura estatal com aque-

la das sociedades anônimas figura cada vez maisrepresentativa para o controle, em virtude dautilização disseminada, no setor público, de tec-nologias gerenciais consolidadas junto ao se-

O Tribunal de Contas é órgão jurisdicionalem relação às contas dos administradores pú-blicos, excetuando-se o Chefe da Administra-ção. Por força de dispositivo legal (art. 6º da Leinº 8.443/92 – Lei Orgânica do Tribunal de Con-tas), somente o Tribunal provê quitação dascontas. Outrossim, embora outras instâncias doCongresso Nacional emulem a condição fiscali-zatória da Comissão Mista, somente esta dis-põe de certas prerrogativas explicitadas consti-tucionalmente, em especial, a de solicitar infor-mações no prazo de cinco dias (art. 72 da Cons-tituição Federal).

Nesse singelo modelo, o acionista controla-dor contrapõe seus interesses aos dos acionis-

tor privado. A simetria entre o empreendimentodo Estado e os demais empreendimentos, naforma de sociedades anônimas, pode ser resu-mida em um quadro, com algum esforço. Essasimetria pode ser retratada em uma norma dalegislação societária que caberia perfeitamentenas orientações legais voltadas para o setorpúblico. Trata-se do dever de diligência, assimretratado na lei:

“Dever de DiligênciaArt. 153. O administrador da compa-

nhia deve empregar, no exercício de suasfunções, o cuidado e diligência que todohomem ativo e probo costuma empregarna administração dos seus próprios ne-gócios” (Lei 6.404, de 15 de dezembro de1976).

Povo

Correspondência entre responsabilidades estatais e societárias

Instituição estatal Função Empreendimento privado

Congresso Nacional Órgão legiferante e controla-dor externo

Conselho de Administração

Poder Executivo Órgão executivo Diretoria

Órgão controlador externoComissão Mista de Orça-mentos e Comissões de Fis-calização e Controle da Câ-mara dos Deputados e doSenado Federal

Conselho Fiscal

Poder Judiciário, Tribunal deContas da União e Ministé-rio Público

Auditores externos e órgãosjurisprudenciais

Auditores Independentes eÓrgãos Jurisprudenciais

Titular do poder Acionistas

tas minoritários, assim como a maioria governa-mental tem divergências com respeito às mino-rias de oposição.

Embora o Conselho de Administração e oConselho Fiscal apreciem as ações da Diretoria,a palavra final sobre as contas cabe ao titular dopoder, reunido em assembléia-geral. Da mesmaforma, o voto popular define quem subsiste nopoder. Já os auditores independentes (setor pri-vado) e os órgãos jurisprudenciais não têm com-promisso direto com os resultados, mas sinali-zam a conformidade da ação administrativa aospreceitos considerados razoáveis. Tais precei-tos provêm das regras e normas (leis e princípi-os gerais, no caso governamental) que definem

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os limites das ações dos agentes sociais. O pa-pel fundamental dos auditores independentes eórgãos jurisprudenciais é assegurar que os mar-cos estão sendo obedecidos pelos agentes. Nosetor público, ao contrário, os auditores exter-nos têm o compromisso de aferir a qualidade dagestão.

A exigência da prestação de contas e a peri-odicidade do mandato, no setor público, decor-rem da condição de república (res publica, oucoisa pública). Considerando que a gestão tempor objeto bens que não pertencem àquele queos utiliza,

Prestará contas qualquer pessoa fí-sica ou jurídica, pública ou privada, queutilize, arrecade, guarde, gerencie ou ad-ministre dinheiros, bens e valores públi-cos ou pelos quais a União responda,ou que, em nome desta assuma obriga-ções de natureza pecuniária (parágrafoúnico do art. 70 da Constituição Federal– grifo acrescido).

A obrigação de prestar contas alcança to-dos que promovam ou possam promover obri-gações ou vínculos de natureza pecuniária parao erário, uma vez que esses não são os proprie-tários do patrimônio gerido.

Aliás, tal obrigação é objetiva e inverte oônus da prova, segundo o Supremo TribunalFederal (STF). Com efeito, em direito financeiro,cabe ao ordenador de despesas provar que nãoé responsável pelas infrações das leis e dos re-gulamentos que lhe sejam imputadas na aplica-ção do dinheiro público15.

Ademais,“A fiscalização contábil, financeira,

orçamentária, operacional e patrimoni-al da União e das entidades da adminis-tração direta e indireta, quanto à legali-dade, legitimidade, economicidade, apli-cação das subvenções e renúncia de re-ceitas, será exercida pelo CongressoNacional, mediante controle externo, epelo sistema de controle interno de cadaPoder” (caput do art. 70 da ConstituiçãoFederal, grifo acrescido).

Quando do exercício do processo legislati-vo, configura-se a natureza política do controle,em virtude da escolha das finalidades e dos

modos de alcançá-las que encerra. Eleitas taisalternativas, o controle assume caráter técnico,de verificação da conformidade. Por conseguin-te, vale separar os elementos constitucionaispara fins de exame, quais sejam: a natureza docontrole; os prismas sob os quais ocorrem taisanálises; a titularidade do exercício de tais con-troles.

Com respeito à natureza do controle, ao res-saltar as dimensões contábil, financeira, orça-mentária, operacional e patrimonial da fiscaliza-ção, a Lei Maior deixou de utilizar referencialtécnico exclusivamente contábil, pelo menos sobo ponto de vista da contabilidade pública ougovernamental. A propósito, vale referir a dis-cussão, no âmbito da auditoria governamental,sobre as diferenças entre controle substantivoe controle formal. Existem vários questionamen-tos, nas instâncias de controle governamental,sobre a manutenção do atual modelo de preva-lência do controle dito formal sobre o controlenomeado de substantivo.

A legalidade, a legitimidade e a economici-dade constituem dimensões preconizadas comohábeis à fiscalização pelo constituinte originá-rio. A legalidade surge como o plano de maisfácil compreensão e prática, uma vez que decor-re da mera confrontação dos atos administrati-vos com as normas. A legitimidade e a economi-cidade envolvem limites mais sutis, porquantoconfiguram juízo sobre a finalidade das açõesdo administrador e constituem, segundo essaótica, exame do mérito – conveniência e oportu-nidade – de atos administrativos.

Nessa linha, os órgãos de controle interno eexterno seriam competentes para o exame domérito administrativo. O controle não o faz, ain-da que, ao contrário do Poder Judiciário, tenhade considerar a apreciação da conveniência eoportunidade do ato administrativo ao efetuarjuízo da eficiência, eficácia e economicidade. Oexame realizado pelo controle tem o objetivoprecípuo de avaliar a qualidade da gestão e pro-nunciar-se pela regularidade ou irregularidadedas ações administrativas. É a posteriori.

Já o Poder Judiciário tem por objetivo com-patibilizar interesses em conflito, dizendo o di-reito. Ele também se pronuncia sobre os atos efatos ocorridos. Tampouco o Poder Judiciáriopode adentrar o mérito administrativo, em quepesem as garantias constitucionais16. Note-se

15Brasil. Supremo Tribunal Federal. Mandado deSegurança (MS) nº 20.335 – DF (Tribunal Pleno, em13.10.1982). Relator: Ministro Moreira Alves.www.stf.gov.br.

16Com efeito, “a lei não excluirá da apreciação doPoder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (incisoXXXV do art. 5º da Constituição Federal).

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que o Poder Judiciário não pode substituir adiscricionariedade do administrador pela dojuiz17. Dessa maneira, o STF entendeu que acompetência do TCU sobre o julgamento dascontas é exclusiva, salvo nulidade por irregula-ridade formal grave ou manifesta ilegalidade18.

A apreciação sobre a qualidade da gestãoimplica juízo de valor sobre o que possa ser en-tendido como relevante. Entra em cena, aqui, oconceito de materialidade, ou seja, um juízo po-lítico. Um exemplo patente dessas considera-ções apresentou-se no trancamento de açãopenal contra ex-prefeita denunciada por crimede responsabilidade em virtude da contrataçãode gari, de forma isolada e por curto período,sem observância da exigência de concurso paraprovimento de cargo público. O STF entendeuconfigurada a insignificância jurídica do ato tidocomo criminoso19.

Com respeito à titularidade do controle, caberecordar que “o controle externo, a cargo doCongresso Nacional, será exercido com o auxí-lio do Tribunal de Contas da União...” (caputdo art. 71 da Lei Maior). Dessarte, o constituin-te entendeu por bem reservar ao Poder Legisla-tivo a prerrogativa de titularidade do controleexterno20. Nesse sentido, “o Tribunal [TCU] en-caminhará ao Congresso Nacional, trimestral eanualmente, relatório de suas atividades” (§ 4ºdo art. 71 da Constituição Federal). Ou seja, oTribunal de Contas é órgão auxiliar e instrumen-to do Congresso Nacional e desempenha, nes-se mister, função eminentemente técnica. Nou-tras palavras, o TCU é instrumento do Congres-so Nacional – titular do controle externo – naconsecução dos fins preconizados pelo consti-tuinte nas prerrogativas conferidas ao Poder Le-gislativo.

O papel auxiliar desempenhado pelo TCUnão obsta a independência funcional do Órgão,assegurada constitucionalmente pela Lei Mai-or. Na verdade, o Tribunal desempenha duas

ordens de atribuições: por ordem do Congressoe por conta própria. Ainda assim, é de se ques-tionar se tal independência pode vir em prejuízoda atividade a desenvolver como auxiliar no exer-cício do controle externo.

Adentrando o controle governamental, emseqüência às atribuições e objetivos do contro-le externo, a Lei Maior determinou finalidadespara o controle interno. Nos termos da Consti-tuição:

“Os Poderes Legislativo, Executivo eJudiciário manterão, de forma integrada,sistema de controle interno com a finali-dade de:

I – AVALIAR o CUMPRIMENTO DAS ME-TAS previstas no plano plurianual, a EXE-CUÇÃO DOS PROGRAMAS de governo E DOSORÇAMENTOS da União;

II – COMPROVAR a LEGALIDADE e AVA-LIAR os RESULTADOS, quanto à EFICÁCIA EEFICIÊNCIA da gestão orçamentária, fi-nanceira e patrimonial nos órgãos eentidades da administração federal, bemcomo da aplicação de recursos públi-cos por entidades de direito privado;

III – EXERCER o controle das opera-ções de crédito, avais e garantias, bemcomo dos direitos e haveres da União;

IV – APOIAR o controle externo noexercício de sua missão institucional.

§ 1º Os responsáveis pelo controleinterno, ao tomarem conhecimento dequalquer irregularidade ou ilegalida-de, dela darão ciência ao Tribunal deContas da União, sob pena de respon-sabilidade solidária.

§ 2º Qualquer cidadão, partido po-lítico, associação ou sindicato é partelegítima para, na forma da lei, denunci-ar irregularidades ou ilegalidades pe-rante o Tribunal de Contas da União21

(art. 74 da Constituição Federal – des-taques acrescidos).

Dessarte, o texto reproduzido determina quehaverá avaliação de metas e programas, bemcomo a avaliação dos resultados quanto à efi-

17MEIRELLES (1991, p. 102 a 105).18BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso

Extraordinário (RE) nº 55.821 – PR (1ª Turma, em18.9.1967). Relator: Ministro Victor Nunes.www.stf.gov.br.

19BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC77.003 – PE. Relator: Ministro Marco Aurélio, em16.6.1998. www.stf.gov.br.

20Conforme o caput do art. 44 da ConstituiçãoFederal, “O Poder Legislativo é exercido pelo Con-gresso Nacional, que se compõe da Câmara dos De-putados e do Senado Federal.”

21Há deficiência de natureza técnica legislativacom respeito ao § 2º. Tal deficiência decorre do fatode o parágrafo não tratar de assunto relacionado aocaput do artigo. Na verdade, tal parágrafo deveria ouencabeçar artigo apartado, contendo definição exatasobre o termo cidadão, ou integrar o artigo 71 da LeiMaior.

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cácia e à eficiência da gestão orçamentária, fi-nanceira e patrimonial. Além disso, todos osbens e direitos, assim como os créditos, avais egarantias serão controlados (uma das formasde controle é o registro contábil, seja por meiodas contas do sistema financeiro ou patrimoni-al, seja pelas contas do sistema de compensa-ção). Qualquer irregularidade ou ilegalidade de-verá ser comunicada aos tribunais de contas,em prol do apoio ao controle externo.

Para as finalidades do atual estudo, bastaentender o conceito de eficiência como a rela-ção entre os produtos e os recursos consumi-dos pelo sistema, enquanto eficácia revela ograu com que os objetivos propostos foram atin-gidos. Dessa forma, a avaliação sobre a efetivi-dade – alcance social das ações governamen-tais – deixou de encontrar respaldo direto notexto constitucional22.

Além da esfera federal, a Lei Maior cuidadas esferas estaduais e municipais. A autono-mia político-administrativa da União, dos Esta-dos, do Distrito Federal e dos Municípios en-contra limites nos termos constitucionais23. Porforça do art. 75 da Constituição Federal, as nor-mas referentes à Seção IX – Da fiscalizaçãocontábil, financeira e orçamentária do Capí-tulo I – Do Poder Legislativo do Título IV – Daorganização dos poderes aplicam-se, no quecouberem, à organização, à composição e à fis-calização dos Tribunais de Contas dos Estadose do Distrito Federal, bem como dos Tribunais eConselhos de Contas dos Municípios.

A Constituição tampouco esclarece o sujei-to das contas, quando trata das prestações con-cernentes aos territórios (equiparados a autar-quias federais pela doutrina), estados e muni-cípios. Enquanto “as contas do Governo de Ter-ritório serão submetidas ao Congresso Nacio-nal, com parecer prévio do Tribunal de Contasda União” (§ 2º do art. 33 da Constituição Fede-ral – grifo acrescido), o peculiar pacto federati-vo nacional – singular em virtude da inclusãodos municípios – determina que:

“A fiscalização do Município seráexercida pelo Poder Legislativo munici-pal, mediante controle externo, e pelossistemas de controle interno do PoderExecutivo municipal, na forma da lei.

§ 1º O controle externo da CâmaraMunicipal será exercido com o auxílio dosTribunais de Contas dos Estados ou doMunicípio ou dos Conselhos ou Tribu-nais de Contas dos Municípios, ondehouver.

§ 2º O parecer prévio, emitido peloórgão competente, sobre as contas que oPrefeito deve anualmente prestar, só dei-xarão de prevalecer por decisão de doisterços dos membros da Câmara Munici-pal.

§ 3º As contas dos Municípios fica-rão, durante sessenta dias, anualmenteà disposição de qualquer contribuinte,para exame e apreciação, o qual pode-rá questionar-lhes a legitimidade, nostermos da lei.

§ 4º É vedada a criação de tribunais,Conselhos ou órgãos de contas munici-pais” (art. 31 da Constituição Federal –grifo acrescido).

Figura oportuno tecer algumas considera-ções sobre o alcance das contas prestadas pe-los titulares do Poder Executivo. A diferençaentre as expressões contas do Presidente daRepública, contas prestadas pelo Presidenteda República e contas do Governo vai além damera formalidade.

Se as contas prestadas abarcarem só a res-ponsabilidade do Presidente, as contas do res-tante da Administração deixam de influir nascontas presidenciais. Como titular do Poder Exe-cutivo (e Chefe da Administração), além dosaspectos pertinentes à consolidação das demaiscontas – seu conteúdo e formato – e à solidari-edade advinda de ação ou omissão, há inde-pendência das contas presidenciais com respei-to ao controlador externo – Poder Legislativo24.Em sendo contas do Governo, tal independên-cia é questionável, uma vez que há interessepróprio no julgamento das contas. Constata-seque a Lei Maior assumiu um posicionamentoambíguo sobre o conteúdo e formato das con-tas, uma vez que deixou de esclarecer a quemelas se referem.

Conforme o inciso X do art. 49 da Lei Maior,é da competência exclusiva do CongressoNacional “julgar anualmente as contas presta-22Para maior detalhamento, recomenda-se a leitu-

ra dos verbetes respectivos no Dicionário de Orça-mento, Planejamento e Áreas Afins, de autoria deSANCHES (1997).

23Conforme o caput do art. 18 da Lei Maior.

24Segundo o art. 84 da Constituição Federal, atitularidade do Poder Executivo e o exercício da admi-nistração superior da Administração Federal são atri-buições exclusivas do Presidente da República.

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das pelo Presidente da República e apreciar osrelatórios sobre a execução dos planos de go-verno”. Atente-se para a existência de dois ver-bos, ou seja, duas ações diferentes: julgar e apre-ciar. O julgamento e a apreciação ocorrem sobreobjetos distintos: no primeiro caso, versa sobreas contas; no segundo, os planos de governo.

A visão sistêmica sobre quem é o sujeitodas contas perpassa também o exame dos inci-sos V e X do art. 49, já transcritos, que cuidamdas competências exclusivas do Congresso emfiscalizar e controlar os atos do Poder Executi-vo. No plano constitucional, “O Poder Executi-vo é exercido pelo Presidente da República, au-xiliado pelos Ministros de Estado” (art. 76 daLei Maior).

Em face da separação de Poderes, elevada àcondição de cláusula pétrea, e das atribuiçõesdo Congresso Nacional, figura sustentável aposição de que as contas prestadas pelo Presi-dente da República representam as contas doPoder Executivo em face do Poder Legislativo.Se, por um lado, tais contas são peças políticas,concernentes ao plano de governo e às políti-cas públicas, porquanto envolvem escolha dealternativas, por outro também são contas téc-nicas, sujeitas à verificação de conformidade. Oparecer sobre essas contas pode classificar-se,segundo a natureza da opinião que contém, em:sem ressalva; com ressalva; adverso; com abs-tenção de opinião25.

Conforme dispositivos constitucionais já re-feridos (arts 2º e 60, § 4º, da Constituição Fede-ral), o sistema de checks and balances não épassível de ser alterado pelo constituinte deri-vado. Vale recordar, também, que a interpreta-ção constitucional deve prestigiar entendimen-tos que compatibilizem normas anteriores. Nocaso específico do controle externo, a Lei nº4.320, de 17 de março de 1964, preconiza que “oPoder Executivo, anualmente, prestará contasao Poder Legislativo, nos prazos estabelecidosnas Constituições ou nas Leis Orgânicas dosMunicípios” (caput do art. 81). Ora, isso não éincompatível com os termos constitucionais.

Tais contas, por motivos de conveniência eoportunidade, incorporam informações concer-nentes aos outros Poderes, sem elidir seu cará-ter precípuo de julgamento das contas do Poder

Executivo. Isso ocorre em virtude de a execuçãodos programas governamentais existir nos trêsPoderes. Dessa maneira, o Congresso Nacio-nal, que também é governo e o responsável últi-mo pelas políticas públicas, verifica a adequa-ção do planejamento governamental, aprovadopara os três Poderes. Por conseguinte, descabeo julgamento dos relatórios sobre a execuçãodos planos de governo, mas tão-só a sua apre-ciação. Seria despropositado supor que o Con-gresso entendesse irregulares as próprias con-tas.

É mister não olvidar que é político o julga-mento das contas do Poder Executivo pelo Po-der Legislativo. Sendo político, o Poder Legis-lativo não julga as contas do Poder Judiciário,mas tão-só daquele Poder cujo titular, coinci-dentemente, é o Presidente da República.

Esse entendimento do julgamento das con-tas e da apreciação dos relatórios sobre a exe-cução dos planos compatibiliza as várias atri-buições dos Poderes com o conceito de segre-gação de funções, tão caro ao controle e enca-recido pelo art. 3º da Lei Maior. Ou seja, o PoderLegislativo julga as contas do Poder Executivoe, concomitantemente, aprecia os resultados daimplementação dos planos pelos quais é res-ponsável.

Assim, o Poder Legislativo discute, modifi-ca e aprova o planejamento oriundo do PoderExecutivo. Este realiza ou executa tal planeja-mento. O Poder Judiciário (assim como o Tribu-nal de Contas da União e o Ministério Público)audita e o Poder Legislativo controla, com o fitode aprimorar seu planejamento. Esse é um mo-delo singelo e ideal, mas que ajuda a compreen-der as responsabilidades administrativas dasinstituições e dos agentes públicos. Na verda-de, todos os poderes executam parte dos pla-nos e programas governamentais. Tanto é as-sim que todos partilham do mesmo orçamento,significando que todos são responsáveis pelaconsecução das políticas públicas26.

25Item 11.3.1.9 da NBC T 11 – Normas de audi-toria independente das demonstrações contábeis,aprovada pela Resolução CFC nº 700, de 24 de abrilde 1991, do Conselho Federal de Contabilidade.

26É possível visualizar as competências caracte-rísticas dos três Poderes nas funções organizacionais– ou ciclo PDCA: Plan, Do, Control ou Check eAudit ou Act (planejamento, execução, controle ouverificação e auditoria ou atuação corretiva) – utiliza-das no gerenciamento de rotina, conforme referidopor GIL (1994, p. 52) e ELY, Neiva Helena & KRAU-SE, Ângela Alice Novelli, em A busca da qualidadetotal no atendimento ao cliente da questão de re-ferência (HTTP://www.biblioteca.ufrgs.br/arb/19_neiva.htm).

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No contexto de julgamento de contas e apre-ciação dos relatórios de execução dos planosgovernamentais, o parecer prévio do Tribunalde Contas deixa de subsistir – explicitamenteno caso dos municípios e implicitamente nasdemais esferas – ante a votação por quórumqualificado do Poder Legislativo. Isso ressaltao caráter subserviente dos aspectos técnicosem relação às políticas, quando do julgamentodas contas do titular do Poder Executivo e daAdministração Federal.

Existem questionamentos sobre o caráterpolítico que assumem as decisões dos Tribu-nais de Contas. Para muitos, tais decisões de-veriam ser estritamente técnicas, em outras pa-lavras, de conformidade estrita à lei e com inter-pretações basicamente literais. No entanto, osMinistros do TCU (e, por conseguinte, os Con-selheiros dos tribunais de contas estaduais emunicipais) são agentes públicos escolhidospelo Congresso Nacional e pelo Presidente daRepública. Ainda que tenham “... as mesmasgarantias, prerrogativas, impedimentos, venci-mentos e vantagens dos Ministros do SuperiorTribunal de Justiça...” (§ 3º do art. 73 da Cons-tituição Federal), a escolha dos membros doTCU não segue os mesmos critérios observa-dos para apontar aqueles ministros.

Recorda-se que aos juízes é vedado, entreoutras proibições, dedicarem-se a atividade po-lítico-partidária. Assim, tais garantias e exigên-cias visam a respaldar independência com res-peito ao julgamento dos processos, em home-nagem às funções de estado. Dessarte, há con-dições para que os juízes e membros dos tribu-nais de contas sejam agentes políticos em rela-ção ao Estado, decidindo para o longo prazo,em lugar de serem políticos quanto ao governo,ou seja, preocupados com decisões de curtoprazo. Tais características, no entanto, apresen-tam-se insuficientes, tanto para aqueles que pre-tendem um controle externo do Poder Judiciá-rio, quanto para os que desejam a despolitiza-ção dos tribunais de contas.

Nesse particular, existem correntes que en-tendem que o caráter técnico dos tribunais decontas tem sido prejudicado pelas escolhas po-líticas para os cargos de ministros ou conse-lheiros. Dessa forma, defendem mudanças naforma de indicação dos ministros e no funcio-namento desses órgãos, como forma de despo-litizar as respectivas decisões. Em realidade, aProposta de Emenda Constitucional (PEC) nº35, de 23 de março de 1995, ora tramitando na

Câmara dos Deputados, “dispõe sobre a nome-ação de Ministros do Tribunal de Contas daUnião e dá outras providências”27. Tal proposi-ção refere concurso público, com participaçãoda Ordem dos Advogados do Brasil e outrosConselhos profissionais.

Outro argumento para evidenciar o carátereminentemente técnico das atividades da Cortede Contas decorre da seção que trata do Tribu-nal de Contas. Tal seção insere-se no capítulodo Poder Legislativo, exercido pelo CongressoNacional. Essa perspectiva é reforçada pela ti-tularidade do controle externo atribuída ao Con-gresso. Dessa maneira, a existência constitucio-nal do Tribunal de Contas se justifica pelo auxí-lio que deve prestar ao titular do poder-deverde fiscalização, em lugar do mero julgamento decontas. Nessa linha, existem correntes mais ra-dicais, que propugnam a transformação do mo-delo de tribunal de contas em controladoria.

Nem só os tribunais de contas são alvos denovas proposições legislativas no sentido des-ses aperfeiçoamentos. É o caso, por exemplo,da PEC nº 00460, de 4 de setembro de 1997, oratramitando na Câmara dos Deputados, cujo ob-jetivo é criar o cargo de controlador geral daUnião e estabelecer o órgão central do sistemade controle interno da administração pública.Estaria criada, assim, a Controladoria Geral daUnião28.

Embora o exame das contas mereça desta-que, a competência do Tribunal e a importânciado parecer prévio não se esgotam na qualifica-ção sugerida para as contas prestadas pelo titu-lar do Poder Executivo. Cumpre ao Tribunal, tam-bém, alertar o titular do controle externo comrespeito à efetividade das ações planejadas eimplementadas pelo conjunto do setor públiconuma determinada esfera de governo, os desvi-os verificados, bem como a forma de saná-los.

Quanto ao controle social, nesse estreito cir-cuito de que fazem parte o Poder Legislativo,Executivo e Judiciário, o legítimo titular do po-der – o povo – tem apenas a capacidade deiniciativa, mormente a iniciativa de eleger seusrepresentantes junto ao Poder Legislativo e aoPoder Executivo. No tocante à iniciativa de con-trole, as menções ao controle popular direto di-zem respeito ao questionamento da legitimida-de das contas municipais por qualquer con-

27De autoria do Deputado MARCONI PERILLO.28De autoria do Deputado AUGUSTO NARDES

E OUTROS.

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tribuinte e à denúncia de irregularidades ou ile-galidades perante o Tribunal de Contas da Uniãopor qualquer cidadão, partido político, associ-ação ou sindicato. Da mesma forma, qualquercidadão é parte legítima para propor ação po-pular que vise a anular ato lesivo ao patrimôniopúblico ou de entidade de que o Estado partici-pe e à moralidade administrativa29.

O art. 31, § 3º, da Constituição Federal não ésuficientemente claro. Quem é o contribuinte quepode questionar a legitimidade das contas mu-nicipais? Deve ser morador do município? Podeser alguém incapaz, considerando os termos doCódigo Civil? Também o art. 74, § 2 º, da Consti-tuição Federal carece de reparos. Quem é essecidadão capaz de denunciar? Será tão-só alguémno pleno gozo dos seus direitos políticos? Deveapresentar o título de eleitor e estar em dia comsuas obrigações eleitorais? Por fim, recorda-seo art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal,que retoma a expressão cidadão, já comentada.

Todavia, há um abrandamento desses con-ceitos, no caso das Comissões do Congresso edas suas Casas, uma vez que é qualquer pes-soa que pode oferecer petição, reclamação, re-presentação ou queixa contra atos ou omissõesdas autoridades ou entidades públicas30. Dessamaneira, configura-se maior facilidade no ofere-cimento de contestações ou denúncias juntoao Poder Legislativo, inobstante a ausência deintervenção direta do povo na continuação doprocesso.

Em outras palavras, cumprem-se as obriga-ções relativas ao controle governamental no seiode um circuito relativamente restrito, uma vezque não é qualquer popular que pode manifes-tar sua discordância quanto às contas apresen-tadas, mas tão-só o contribuinte ou cidadão.Em realidade, o povo somente intervém direta-mente no período eleitoral, que, no momento,corresponde a um ciclo de quatro anos. Ade-mais, em tal processo decisório, o produto dacontabilidade mostra-se irrelevante. Quantos

gestores já se tornaram inelegíveis por irregula-ridade das contas?

Há que se recordar: existem os usuários in-ternos e externos das informações relativas àgestão da coisa pública. O processo formal deprestação de contas destina-se ao usuário in-terno. Embora existam alguns instrumentos for-mais para a accountability voltada ao usuárioexterno, tais instrumentos revelam-se pratica-mente inoperantes. Talvez as inovações intro-duzidas pela Emenda Constitucional nº 19/98,em particular no tocante às avaliações, propici-em que a contabilidade pública atinja novospatamares de relevância social como instrumen-to de evidenciação.

Com efeito, além daquelas inovações já re-feridas, o Congresso Nacional ficou imcumbidode , dentro de cento e vinte dias da promulga-ção da Emenda, elaborar lei de defesa do usuá-rio de serviços públicos. Resta evidente, pelostermos utilizados e pela fixação de prazo, a re-levância do papel do consumidor de serviçospúblicos no novo desenho de Estado que o cons-tituinte derivado evidenciou na Lei Maior. A pardesse papel, cabe aos instrumentos de accoun-tability suprir as demandas por informações.

A identificação do usuário da informaçãocontábil governamental é da mais alta relevân-cia. A Lei Maior afirma que “é assegurado atodos o acesso à informação e resguardado osigilo da fonte, quando necessário ao exercícioprofissional” (inciso XIV do art. 5º da Consti-tuição Federal). Cumpre destacar que o Conse-lho Federal de Contabilidade, por meio da Reso-lução nº 774/94, reconhece que os usuários daContabilidade

“tanto podem ser internos como externose, mais ainda, com interesses diversifica-dos, razão pela qual as informações gera-das pela Entidade devem ser amplas e fi-dedignas e, pelo menos, suficientes paraa avaliação da sua situação patrimonial edas mutações sofridas pelo seu patrimô-nio, permitindo a realização de inferênci-as sobre o seu futuro”.

4. A prestação de contasA importância da prestação de contas pode

ser dimensionada pelas seguintes prescriçõesconstitucionais:

“a União não intervirá nos Estados nemno Distrito Federal, exceto para... asse-

29Vale transcrever as palavras de FERREIRA FI-LHO (1990), quando comenta o direito de petiçãomanifesto pelo art. 5º, XXXIV, da Lei Maior: “Odireito de petição, ou de representação,... tem umaimportância apenas psicológica. Serve apenas parapermitir que o indivíduo sinta participar da gestão dointeresse público, insurgindo-se contra os abusos dequaisquer autoridades e reclamando seu castigo. Nofundo, as petições não têm valor prático” (pág. 275).

30Conforme o art. 58, § 2º, inciso IV, da Consti-tuição Federal.

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gurar a observância dos seguintes prin-cípios constitucionais... prestação decontas da administração pública, direta eindireta...” (alínea d do inciso VII do art.34 da Constituição Federal grifos acres-cidos); “O Estado não intervirá em seusMunicípios, nem a União nos Municípi-os localizados em Território Federal, ex-ceto quando... não forem prestadas con-tas devidas, na forma da lei...” (inciso IIdo art. 35 da Constituição Federal grifoacrescido).

Enfim, a consideração da Lei Maior elevou aprestação de contas a princípio constitucionalexplícito.

Acrescente-se ao exposto os casos de cri-me de responsabilidade do Presidente da Repú-blica, ou seja, os atos que atentem contra a Cons-tituição, entre os quais o constituinte mencio-nou: a existência da União; o livre exercício dosPoderes constitucionais das unidades da Fede-ração; o exercício dos direitos políticos, indivi-duais e sociais; a segurança interna do País; aprobidade na administração; a lei orçamentária; ocumprimento das leis e das decisões judiciais31.

Prestar contas, na esfera federal, também écompetência privativa e indelegável do Presi-dente da República, cabendo-lhe “prestar, anu-almente, ao Congresso Nacional, dentro desessenta dias após a abertura da sessão legislati-va, as contas referentes ao exercício anterior” (in-ciso XXIV do art. 84 da Constituição Federal)32.

Se ao Presidente cumpre prestar contas, aoCongresso Nacional resta, entre outras atribui-ções exclusivas, “julgar anualmente as contasprestadas pelo Presidente da República e apre-ciar os relatórios sobre a execução dos planosde governo” (inciso IX do art. 49 da Constitui-ção Federal). Tal julgamento somente ocorreapós o Tribunal de Contas da União “apreciaras contas prestadas anualmente pelo Presiden-te da República, mediante parecer prévio, quedeverá ser elaborado em sessenta dias a contarde seu recebimento” (inciso I do art. 71 da Cons-tituição Federal). Nesse particular, é competên-cia privativa da Câmara dos Deputados proce-der à tomada de contas do Presidente da Repú-blica, quando não apresentadas ao Congresso

Nacional dentro de sessenta dias após a aber-tura da sessão legislativa (art. 51, III, da Consti-tuição Federal). A Câmara dos Deputados, porsua vez, compõe-se de representantes do povo,ao passo que o Senado Federal compõe-se derepresentantes dos Estados e do Distrito Fede-ral (arts. 45 e 46 da Constituição). Dessarte, ficapatente o vínculo entre os representantes dopovo e o titular do Poder Executivo.

A periodicidade anual da apresentação e,quiçá, do respectivo julgamento das contas,bem como a anualidade orçamentária, reflete ocaráter limitado e temporário do mandato go-vernamental. Tal caráter é fruto, por sua vez, daforma republicana adotada pela Constituição einafastável pelo constituinte derivado, porquan-to inscrita como cláusula imutável. Atente-seque esse período é idêntico àquele do orçamen-to. Isso faz sentido quando se compreende oorçamento público como a forma de objetivar arealização dos planos governamentais. Dessar-te, o ciclo das contas acompanha (ou deveriaacompanhar) o ciclo do plano a cumprir. Ali-ás, tal característica identifica também o perío-do de abrangência do plano plurianual, em quepese o descompasso relativo ao primeiro anodo mandato.

Entre as funções reservadas ao Congresso,o constituinte originário discriminou como com-petência de comissão mista permanente de Se-nadores e Deputados, além da apreciação dosprojetos de lei dos planos plurianuais, das dire-trizes orçamentárias, dos orçamentos anuais edos créditos adicionais, o exame e a emissão deparecer sobre as contas apresentadas anual-mente pelo Presidente da República33. Trata-seda Comissão Mista de Planos, Orçamentos Pú-blicos e Fiscalização – CMPOF, de que cuida aResolução do Congresso Nacional nº 02, de 15de setembro de 1995. Assim, após o pronuncia-mento da Comissão, a matéria será apreciada evotada no Plenário do Congresso, com vistasao término da sua tramitação.

Existe, portanto, concentração de atribui-ções relativas ao orçamento e à fiscalização pelaCMPOF. Isso é justificado pelo ciclo de contro-le, ou seja, verificar a adequação orçamentária.Também existe a superposição de tarefas con-cernentes à fiscalização e ao controle em rela-ção às comissões de fiscalização e controle dasduas Casas. Ainda que a abundância aparente-mente não prejudique, seria cabível proposição

31Conforme o art. 85 da Constituição Federal.32Nos termos do caput do art. 57 da Constituição

Federal, “O Congresso Nacional reunir-se-á, anual-mente, na Capital Federal, de 15 de fevereiro a 30 dejunho e de 1º de agosto a 15 de dezembro”.

33Conforme o art. 166, § 1º, da Constituição Fe-deral.

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no sentido de constituírem-se duas comissõesmistas permanentes: uma afeta às matérias es-tritamente orçamentárias; outra, à fiscalização econtrole.

Até a Constituição de 1988, a comissão mis-ta encarregada do exame da peça orçamentáriaera temporária. A princípio, a perenidade da Co-missão Mista configura-se como um avanço. To-davia, por força das mazelas ocorridas em 1993,identificadas pela CPI do Orçamento, decidiu-se pela permanência dos membros da Comissãopor períodos relativamente exíguos. Isso temdificultado que os parlamentares aperfeiçoem-se nas matérias relativas aos planos, orçamen-tos públicos e fiscalização, caso não detenhamconhecimentos anteriores.

Destaca-se que o constituinte evitou os ter-mos exclusiva ou privativa quando cuidou dedescrever as competências da Comissão MistaPermanente. Interpreta-se que isso ensejaria arevisão pelo Plenário das decisões da Comis-são. A mesma observação vale para as deci-sões do órgão auxiliar do Congresso Nacional,o Tribunal de Contas da União, não fosse a suaLei Orgânica34. Considerando a titularidade doControle Externo pelo Congresso Nacional e afalta de exclusividade constitucional na atribui-ção de julgar contas conferida ao Tribunal, nadaimpede projeto de lei que proponha a revisãodas decisões daquele órgão auxiliar pelo titulardo controle externo.

Cumpre ressaltar que o constituinte elegeuoutras formas de controle além do referente aoprocesso anual. Para viabilizar um controle maispróximo, no tempo, dos eventos, a Lei Maioridentifica uma série de dados que devem serevidenciados por meio de publicações. Tais da-dos compõem, grosso modo, o fluxo de receitase despesas e não podem ser olvidados pela con-tabilidade, haja vista a importância que lhes foiconcedida pela Constituição.

O patrimônio público recebeu pouca aten-ção por parte do constituinte originário. Aliás, ésignificativo que existam tão poucas menções àevidenciação do patrimônio público no textoconstitucional, tendo em vista que o objeto dacontabilidade é o patrimônio e suas variações.Em realidade, o constituinte originário prescre-veu como bens da União aqueles discriminadospelo art. 20, enquanto são bens dos estadosaqueles prescritos pelo art. 26 da Lei Maior.Contudo, não existe obrigatoriedade na di-vulgação de informações sobre o patrimônio(dados de estoque). Isso contrasta com o de-mandado para a receita e a despesa (dadosde fluxo). Ainda assim, o objetivo da Conta-bilidade, como postulado pelos PrincípiosFundamentais, é evidenciar o patrimônio e assuas variações35.

4.1. A receita

O tratamento constitucional da receita en-contra guarida no capítulo relativo ao SistemaTributário Nacional36. Ao preconizar as compe-tências de cada esfera político-administrativapara a instituição e cobrança de tributos, o cons-tituinte preocupou-se também com a repartiçãodas receitas tributárias. Quanto à repartição dasreceitas tributárias, a emenda constitucional re-lativa ao Fundo Social de Emergência (ou Fun-do de Estabilização Fiscal) promoveu uma re-distribuição dos recursos arrecadados entre asvárias esferas político-administrativas com oexpresso “objetivo de saneamento financeiro daFazenda Pública Federal e de Estabilização Eco-nômica”.

Aliás, tais recursos deveriam ser aplicadosprioritariamente nos custeios das ações de saú-de, educação, benefícios previdenciários, auxí-lios assistenciais de prestação continuada, in-clusive liquidação de passivo previdenciário edespesas orçamentárias associadas a progra-mas de relevante interesse econômico e social.O constituinte derivado também fixou a obriga-ção de o Poder Executivo publicar bimestralmen-te demonstrativo da execução orçamentária, dis-criminando as fontes e usos do Fundo (art. 71da Constituição Federal). Isso é interessante pelaevidente caráter de entidade que a União ado-tou, entidade essa em conflito com os eráriosestaduais e municipais.

34Trata-se, mais precisamente, dos arts. 4º e 6ºda Lei nº 8.443/92, que tem a seguinte redação:

“Art. 4º O Tribunal de Contas da União temjurisdição própria e privativa, em todo o territórionacional, sobre as pessoas e matérias sujeitas à suacompetência.

Art. 6º Estão sujeitas à tomada de contas e,ressalvado o disposto no inciso XXXV do art. 5º daConstituição Federal [apreciação do Poder Judiciá-rio], só por decisão do Tribunal de Contas da Uniãopodem ser liberadas dessa responsabilidade as pes-soas indicadas nos incisos I a VI do art. 5º desta Lei”(colchetes nossos).

35Resolução CFC nº 774/94, item 1.4.36São os arts. 145 a 162, bem como o art. 195 da

Lei Maior.

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O disposto no art. 162 da Constituição é departicular interesse para a transparência das con-tas públicas, porquanto determina a divulgação,

“até o último dia do mês subseqüente aoda arrecadação, os montantes de cada umdos tributos arrecadados, os recursosrecebidos, os valores de origem tributá-ria entregues e a entregar e a expressãonumérica dos critérios de rateio”, discri-minados por estado e por município37.

A atividade arrecadatória, que, em temposidos, respondia à despesa, tornou-se autônomadaquela. Tanto é assim que a receita orçamentá-ria, hoje, é mera estimativa para fazer face à des-pesa fixada (ou autorizada).

Essa autonomia da receita apresenta um de-safio para as políticas públicas, mormente notocante à renúncia fiscal, a par da denominadaelisão fiscal. Atente-se que atividade estatal éredistributiva de renda. Assim, quando uma re-gião qualquer contribui proporcionalmente me-nos do que outra, está sendo beneficiada.

Como não há mais necessidade de renova-ção anual da concordância do Poder Legislati-vo para que se efetuem as arrecadações com-pulsórias, as reavaliações periódicas sobre osimpactos sociais da arrecadação e da renúnciadeixam de existir ou se minimizam. A receita,comportando-se de forma incremental e promo-vendo o sentimento de perpetuidade, contra-põe-se à concepção de orçamento-programa. Emúltima análise, a falta de periodicidade para arevisão dos tributos dificulta a percepção do al-cance social das políticas públicas concernentesà escolha das fontes ou origens de recursos.

Parte dessa dificuldade é superada pela uti-lização das fontes de recursos, que são discri-minadas segundo a vinculação das receitas aosgastos. Entretanto, isso não é suficiente. O efei-to distributivo das isenções e renúncias repre-senta, por um lado, desafio para a contabilida-

de, especialmente pela carência de evidencia-ção do montante que poderia ser efetivamentearrecadado. Por outro lado, mesmo o relatóriopor fontes tem seus problemas, quando associ-ado à despesa38.

Em suma, o Congresso Nacional deixa deantecipar o efeito concreto da gestão pública,caso só observe um dos lados da equação (o dadespesa, no caso). O domínio da receita, sob aótica do controle das finanças públicas, aindacarece de melhores instrumentos de acompa-nhamento, porquanto ausente o caráter tempo-rário e cíclico que permeia o conceito de repú-blica. Atente-se que o dispositivo que preconi-za demonstrativo regionalizado do efeito, sobreas receitas e despesas, das isenções, anistias,remissões, subsídios e benefícios de naturezafinanceira, tributária e creditícia para acompa-nhar projeto de lei orçamentária detém tão-sócaráter informativo39. Sobre esse demonstrati-vo pairam muitas divergências, a começar peladefinição do que sejam tais isenções, anistias,remissões, subsídios e benefícios.

O governo é submetido a renovação de qua-tro em quatro anos, ao passo que o orçamento(lado da despesa) e a prestação de contas sãoanuais. Os impostos, entretanto, vigoram en-quanto a lei não for alterada, sendo que a lei temduração indefinida. Retirou-se da receita deri-vada a necessidade de revisão periódica queexiste nos demais elementos da república.

4.2. Os orçamentos

No capítulo relativo às finanças públicas, oconstituinte reservou uma seção para os orça-mentos. Interessa discorrer brevemente sobreesse assunto em virtude de considerações pos-teriores. Na verdade, são três artigos do maiorinteresse para os que militam na contabilidadegovernamental. Vale destacar que a competên-cia para legislar sobre direito tributário, finan-ceiro e econômico, assim como sobre orçamen-to é concorrente: tanto a União quanto os esta-dos e o Distrito Federal podem fazê-lo40. Dessa

37Esse relatório tem grande importância, como sedeflui da seguinte passagem: “A arrecadação do... noprimeiro mês do ano está envolta em mistério. Aportaria assinada pelo secretário... no Diário Oficialde... informa uma arrecadação tributária de somen-te..., quando ela, no mesmo mês do ano passado foide... Por que o... não divulgou os dados reais, publi-cando apenas um resultado equivalente a menos de1% da realidade? Talvez porque, como foi divulgado,o caixa ‘registrou’ um déficit de... Com os lançamen-tos corretos, esse resultado se transforma em um sal-do de...” (itálico acrescido, destaque no original:DUBEUX, 1998, p. 6).

38É o que se depreende do exame da Portaria STNnº 82, de 4.3.98, publicada no DOU — Seção 1 — de5.3.98, p. 79 a 90. Segundo a Demonstração da Exe-cução da Despesas por Fonte de Recurso — Contri-buição Social p/ Financiamento da Seguridade Social,a dotação anual, ao final do exercício, foi de R$15.652.005 mil, enquanto a execução correspondeu aR$ 18.562.088 mil.

39Conforme art. 165, § 6º, da Constituição Federal.40Art. 24 da Constituição Federal. Recorda-se que,

ainda assim, existem tributos municipais.

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Revista de Informação Legislativa34

forma, a competência da União limitar-se-á a es-tabelecer normas gerais, não excluindo a com-petência suplementar dos estados. O dispositi-vo não mencionou municípios.

Entremeios, destaca-se o dispositivo queatribui à lei complementar dispor sobre o exercí-cio financeiro, as vigências, os prazos, a elabo-ração e a organização do plano plurianual, da leide diretrizes orçamentárias e da lei orçamentáriaanual, bem como o estabelecimento de normasde gestão financeira e patrimonial da Adminis-tração, além das condições para a instituição efuncionamento de fundos41. Atualmente, taisfunções vem sendo preenchidas pela Lei nº4.320/64. O Projeto de Lei Complementar nº 135,de 12 de dezembro de 1996, da Comissão Mista,ora em tramitação na Câmara dos Deputados,visa a suprir plenamente a demanda constitucio-nal ora atendida pela Lei nº 4.320/64.

O art. 165 da Constituição Federal fixou trêsinstrumentos legais de planejamento, todos deiniciativa do Poder Executivo: o plano plurianu-al; as diretrizes orçamentárias; os orçamentosanuais. A lei que instituir o plano plurianual es-tabelecerá, por região, diretrizes, objetivos emetas da Administração para as despesas decapital e delas decorrentes, assim como para osprogramas de duração continuada. A lei de di-retrizes orçamentárias compreenderá metas e pri-oridades da Administração para o exercício fi-nanceiro subseqüente e orientará a elaboraçãoda lei orçamentária anual, entre outros conteú-dos. A lei orçamentária anual compreenderá oorçamento fiscal, o orçamento de investimentodas empresas estatais e o orçamento da seguri-dade social. Além disso, o Poder Executivo pu-blicará, até trinta dias após o encerramento decada bimestre, relatório resumido da execuçãoorçamentária42.

Vale recordar a definição constitucional deseguridade social:

“conjunto integrado de ações de iniciati-va dos poderes públicos e da sociedade,destinadas a assegurar os direitos relati-vos à saúde, à previdência e à assistên-cia social” (caput do art. 194 da Consti-tuição Federal).

Nesse contexto, a seguridade será financia-da por toda a sociedade, mediante recursos pro-venientes dos orçamentos da União, dos Esta-dos, do Distrito Federal e dos Municípios e dascontribuições sociais (caput do art. 195).

Na verdade, o constituinte determinou queas receitas dos Estados, do Distrito Federal edos Municípios destinadas à seguridade socialconstem dos respectivos orçamentos, não inte-grando o orçamento da União. Ademais, a pro-posta de orçamento da seguridade social seráelaborada de forma integrada pelos órgãos res-ponsáveis pela saúde, previdência social e as-sistência social, tendo em vista as metas e prio-ridades estabelecidas na lei de diretrizes orça-mentárias. A formulação de uma proposta únicafigura desconcertante, em face da autonomia dagestão dos recursos.

Os orçamentos, mais do que a parte visíveldas despesas públicas, representam (ou deveri-am) o planejamento das despesas públicas, emobediência ao plano governamental. Tal plane-jamento deve obediência aos limites e objetivosjá fixados para o estado, qualquer que seja aplataforma de governo. Assim é que o Presi-dente da República, ao tomar posse, prestará ocompromisso de manter, defender e cumprir aConstituição, nos termos do art. 78 da Lei Mai-or. Esse compromisso antecede a possibilidadede implementação da plataforma, ideário ouagenda que lhe permitiu elevar-se ao poder.

Tal observância não prejudica as iniciativasexclusivas de projetos de leis. Antes as respal-da, porquanto é o titular do Poder Executivoquem decide o momento ou o conteúdo da dis-cussão inicial. Tal entendimento encontra su-porte nos prazos conferidos para o exercício dacompetência privativa do Presidente da Repú-blica em enviar ao Congresso Nacional a pres-tação de contas, o plano plurianual, o projetode diretrizes orçamentárias e as propostas deorçamento previstas pela Constituição43. Talcompetência é reafirmada pelo art. 165 da Cons-tituição Federal.

O constituinte preocupou-se também com aintegração entre os vários instrumentos das fi-nanças públicas. Assim, emendas ao projeto delei orçamentária anual ou aos projetos que o

41Segundo o disposto no art. 165, § 9º, da Cons-tituição Federal.

42Esses Relatórios têm sido regulamentados pe-las sucessivas leis de diretrizes orçamentárias, maspublicados ao bel-prazer do Poder Executivo, comojá se observou na referência ao Correio Braziliense eà Portaria STN nº 82/98.

43Arts. 84, incisos XXIII (combinado com o art.35, § 2º, do ADCT) e XXIV, da Lei Maior. Atente-separa o uso do termo até. No caso de o prazo para aprestação de contas deixar de ser atendido, as contasserão tomadas exclusivamente pela Câmara dosDeputados.

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modifiquem somente podem ser aprovadas casosejam compatíveis com o plano plurianual e coma lei de diretrizes orçamentárias; as emendas aoprojeto de lei de diretrizes orçamentárias nãoserão aprovadas quando incompatíveis com oplano plurianual. Ademais, os planos e progra-mas nacionais, regionais e setoriais serão ela-borados em consonância com o plano plurianu-al e apreciados pelo Congresso Nacional.

Ao lado de outros instrumentos de políticaspúblicas, também o orçamento fiscal e o orça-mento de investimento das estatais, compatibi-lizados com o plano plurianual, têm a função dereduzir desigualdades inter-regionais, segundocritério populacional, sem prejuízo de outrasfunções. Tal disposição deveria ser cumpridade forma progressiva no prazo de até dez anos,distribuindo-se os recursos entre as regiõesmacroeconômicas em razão proporcional à po-pulação, a partir do quadro verificado no perío-do de 1986 a 198744. Como ficaria o registro dis-so na contabilidade?

Considerando que a União deve aplicar, anu-almente, nunca menos de dezoito e os Estados,o Distrito Federal e os Municípios, vinte e cincopor cento, no mínimo, da receita resultante deimpostos, compreendidas as transferências, namanutenção e desenvolvimento do ensino, cum-pre à contabilidade também evidenciar o fielcumprimento do dispositivo45.

Novas dificuldades ocorrem quando se pre-tende assegurar a distribuição dos recursos pú-blicos com prioridade para as demandas do en-sino obrigatório, nos termos do plano nacionalde educação. Aliás, no período de dez anos acontar de 1996, os Estados, o Distrito Federal eos Municípios destinarão não menos de ses-senta por cento desses recursos à manutençãoe ao desenvolvimento do ensino fundamental,visando à sua universalização e à remuneraçãocondizente do magistério (caput do art. 60 coma redação da Emenda Constitucional nº 14, de12 de setembro de 1996).

Quando cuidou da distribuição dos recur-sos, o constituinte determinou que, daquelesdestinados à irrigação, vinte por cento cabem àregião Centro-Oeste e cinqüenta à Região Nor-

deste46. Sem dúvida, a evidenciação com fulcronesses critérios é mais fácil do que aquela cor-respondente ao ensino. Mas, qual será o realcusto de oportunidade de aplicação desses re-cursos e o alcance social do atual cumprimentodessas disposições? Com certeza, a contabili-dade ganharia em relevância se respondesse taisquestionamentos

5. Consolidação da perspectivaconstitucional sobre accountability e

contabilidadeConstam como objetivos fundamentais da

República Federativa do Brasil a construção deuma sociedade livre, justa e solidária; a garantiado desenvolvimento nacional; a erradicação dapobreza e marginalização e a redução das desi-gualdades sociais e regionais; a promoção dobem de todos, sem preconceitos47.

Nesse mister, cabe ao Congresso Nacionaldispor, com a sanção do Presidente da Repúbli-ca, sobre todas as matérias de competência daUnião. Especial destaque receberam o sistematributário, a arrecadação e distribuição de ren-das, o plano plurianual, as diretrizes orçamentá-rias, o orçamento anual, as operações de crédi-to, a dívida pública e as emissões de curso for-çado, além dos planos e programas nacionais,regionais e setoriais de desenvolvimento. Taisinstrumentos devem atender aos objetivos fun-damentais da República, reservando-se à con-tabilidade a finalidade de evidenciar em quemedida os compromissos do Estado estão sen-do cumpridos pela execução governamental,mormente no que concerne à redução das desi-gualdades e ao desenvolvimento nacional.

Mesmo as participações do titular do PoderExecutivo no processo legislativo, caracteriza-das por iniciativas como a do veto, não elidem acompetência congressual perante a Nação. Con-siderando que o veto presidencial pode ser re-jeitado em sessão conjunta pelo voto da maio-ria absoluta de Deputados e Senadores, em es-crutínio secreto (art. 66, § 4º, da ConstituiçãoFederal), figura razoável afirmar ser de respon-sabilidade do Poder Legislativo a definição últi-ma das políticas públicas, ainda que a propostaseja do Executivo.44Conforme o caput do art. 35 do Ato das Dispo-

sições Constitucionais Transitórias, combinado como art. 165 da Constituição Federal.

45Segundo o caput do art. 212 da ConstituiçãoFederal.

46Conforme art. 42 do Ato das Disposições Cons-titucionais Transitórias.

47Nos termos do art. 3º da Constituição Federal.

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O titular da iniciativa tem o poder de esco-lher o momento em que a regulamentação dosinteresses vinculados a certas matérias haveráde ser discutida. Mas são os parlamentos que,votando as leis e os tributos, desenvolvem umaatitude de supervisão e controle em relação aogoverno. Daí resultou o princípio da responsa-bilidade política, sendo esse controle políticotalvez a principal contribuição parlamentar parao processo político. Para Ferreira Filho (1990, p.140), tal controle é desempenhado mais eficaz-mente nos regimes parlamentaristas; no presi-dencialismo, essa fiscalização seria menos efici-ente.

O estabelecimento das diretrizes e bases deplanejamento do desenvolvimento nacionalequilibrado, que incorporará e compatibilizaráos planos nacionais e regionais de desenvolvi-mento, será estabelecido por lei. Nesse particu-lar, o Estado, como agente normativo e regula-dor da atividade econômica, exercerá as funçõesde fiscalização, incentivo e planejamento, sen-do este determinante para o setor público e in-dicativo para o privado48. Entremeios, em facedos atributos das demonstrações contábeis,seria razoável supor que elas suportassem ademanda informativa e prospectiva com respei-to ao direcionamento estatal. Todavia, é cons-tatável que isso não ocorre.

Com efeito, o sistema contábil utilizado pelaAdministração Pública deixa de informar osquantitativos físicos, impossibilitando a noçãode custo unitário. Como verificar a eficiência e aeficácia sem o cotejamento entre os dados fi-nanceiros e físicos? A carência de dados sobreo cumprimento das metas físicas inviabiliza averificação da economicidade, ou, em outraspalavras, impossibilita o cumprimento da deter-minação constitucional.

Na perspectiva do usuário externo, ou seja,o povo, os tributos, mormente os impostos, sãorecolhidos independentemente da efetiva con-traprestação dos serviços. O sistema de infor-mações voltado para esse usuário precisariaevidenciar a efetiva contraprestação de bens eserviços, de maneira a justificar eticamente orecolhimento compulsório dos recursos.

No âmbito interno, também os destinatáriosdas informações financeiras desacompanhadasdas físicas padecem com a falta de relevância.Sem os custos unitários, deixa de haver contro-le efetivo e, por conseguinte, planejamento. Sem

o controle, o planejamento não pode efetivar ascorreções de rumo necessárias para sinalizaradequadamente as políticas públicas, em preju-ízo da governabilidade.

A visão formalista, predominante no con-trole externo, figura superada ante considera-ções de ordem operacional, financeira, patrimo-nial e contábil, que se estendem para sistemasalém da esfera fiscal. Resulta daí a percepção dafalta de conteúdo material daqueles termos, qua-lificadores da fiscalização e do controle externo.

Basta verificar que o planejamento gover-namental incorpora outros sistemas de recur-sos, além do estritamente orçamentário. Porexemplo, cita-se o Plano Brasil em Ação, queaglutina recursos de outras esferas político-ad-ministrativas e recursos privados, em aparenteafronta ao Princípio da Entidade. Esse contra-ponto pode harmonizar-se pela compreensão deque o sistema orçamentário limita-se à União,enquanto o planejamento governamental com-preende os recursos disponíveis ao Estado.

Há, também, aparente e inexplicável despre-zo da contabilidade pública para com certas prá-ticas de evidenciação do patrimônio, tais comoa utilização de valores de saída ou de mercado.É o caso dos bens patrimoniais registrados pelovalor de um centavo, tão-só para mantê-lo re-gistrado. Tais práticas não demonstram os efei-tos da gestão sobre o patrimônio, em prejuízoda publicidade e evidenciação das contas pú-blicas. Entram em cena, também, as externalida-des e os custos de oportunidade, via de regrasem registro pela atual técnica contábil e caren-tes de tratamento mais apurado pela teoria e prá-tica contábeis. É o caso, por exemplo, da águatratada. O papel da comunidade é determinarquem arca com o custo de tratamento: aqueleque nela despeja os dejetos, na forma de filtrosdespoluentes; os consumidores diretos, na for-ma de tarifas e taxas; a comunidade como umtodo, na forma de impostos.

Outro exemplo de particular interesse repou-sa na administração de fundos e recursos extra-orçamentários das entidades paraestatais (casodo sistema S – Senai, Sesi, etc – e dos conse-lhos de classe) e a administração de fundos (Fun-do de Garantia do Tempo de Serviço e parte doatual Fundo de Participação PIS/PASEP e atualFundo de Amparo ao Trabalhador – FAT49).

48Consoante o art. 174, caput e § 1º, da Consti-tuição Federal.

49Recorda-se que, pelo menos quarenta por cen-to do PIS/PASEP financiará programas de desenvol-vimento econômico, por meio do Banco Nacional deDesenvolvimento Econômico, segundo prescreve o §1º do art. 239 da Constituição Federal.

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Assim, os demonstrativos contábeis mos-tram-se inadequados para a função de eviden-ciar o adequado uso dos recursos públicos emvista dos objetivos estatais e governamentais.Resta especular sobre as formas utilizadas peloEstado e Governo brasileiros para exercer o pla-nejamento na condição de determinativo para osetor público e indicativo para o setor privado.Afinal, também cumpre ao Estado brasileiro,como agente normativo e regulador da ativida-de econômica, exercer as funções de fiscaliza-ção e incentivo50.

O primeiro passo para incrementar a relevân-cia das demonstrações contábeis é reconheceras suas limitações. É imprescindível observar adistinção, efetuada pelo constituinte originário,nas matérias de competência da União. Cadacompetência exercita-se plenamente por meio deinstrumento adequado.

O plano plurianual, as diretrizes orçamentá-rias, o orçamento anual, as operações de crédi-to, a dívida pública e as emissões de curso for-çado constam no mesmo dispositivo, qual seja,o inciso II do art. 48 da Lei Maior. O sistemaorçamentário participa, por conseguinte, de umsistema estruturado que contempla as ações go-vernamentais, cujo horizonte é o mandato e cujoobjeto (entidade) contempla o próprio governo.

Já no inciso IV do mesmo artigo, constam osplanos e programas nacionais, regionais e seto-riais de desenvolvimento. Até o presente mo-mento, desconhece-se qualquer lei com preten-são expressa de cumprir o dispositivo constitu-cional. Entremeios, pondera-se que tais planosde desenvolvimento seriam instrumentos hábeispara coordenar a ação estatal por prazos superi-ores àqueles estabelecidos para o governo. Ca-beria-lhes, por isso, explicitar a participação deterceiros naquilo que é a construção do Estadoo mais próximo possível do ideal.

A falta de exercício de instrumentos adequa-dos para o planejamento concernente às carac-terísticas dos instrumentos de evidenciação dis-criminados pelo constituinte pode ser observa-da no plano plurianual (PPA) elaborado para osexercícios de 1996 a 1999. De um lado, a estrutu-ração do plano plurianual não condiz com aque-la do sistema orçamentário. De outro, não pre-enche satisfatoriamente as condições necessá-rias para apresentar-se como plano estruturan-te. Assim, a tentativa de tratá-lo como uma in-formação financeira conduz a resultados pífios.

Tampouco é demonstrativo gerencial, porquan-to a formatação dos dados atende a aspectosoperacionais. Ainda assim, o atual PPA apre-senta-se melhor do que o anterior, no sentido demelhor evidenciar as intenções governamentais.

Em síntese, a contabilidade vem perdendorelevância naquilo que seria seu objetivo precí-puo: indicar o estado atual e futuro das entida-des Estado e Governo (nas respectivas esfe-ras). Constata-se pouca visibilidade das discus-sões sobre accountability do setor público.Ademais, existe descumprimento formal e subs-tancial dos próprios ditames constitucionaissobre evidenciação, em que pese a preocupa-ção dos sistemas de controle quanto aos as-pectos formais.

6.ConclusãoA Contabilidade (ciência ou doutrina) e a

contabilidade (atividade) têm a importante mis-são de evidenciar a estática e a dinâmica patri-monial de forma qualitativa e quantitativa. Oobjetivo de tal missão é possibilitar aos usuári-os tomar decisões com fulcro no conhecimentoda situação passada, do estado atual e das pers-pectivas futuras do ente. A ciência contábil con-templa, portanto, um sistema de informações.

As informações contábeis sobre o setor pú-blico têm, no plano ideal da Constituição, o mar-co primeiro para que os contadores cumpramseu relevante papel no pacto social, particular-mente quando se trata da esfera pública. Nesseprocesso, não se pode olvidar que o povo é otitular do poder. É a ele que os governantes de-vem prestar contas. Nesse caso, o povo é umdos usuários da contabilidade, conforme defi-nido pelos Princípios Fundamentais.

Há muitos aprimoramentos a efetivar quan-to à evidenciação das contas públicas, mormentequando o Estado brasileiro assume novo papel.A contabilidade necessita evidenciar adequa-damente o uso dos recursos estatais para a sa-tisfação dos legítimos objetivos do Estado e doGoverno brasileiro. Em face da falta de domíniopúblico dessas informações, afirma-se o entendi-mento de que as demonstrações contábeis con-cernentes ao setor deixam de cumprir plenamen-te as exigências constitucionais e, por conse-guinte, aquelas derivadas do conceito de ac-countability. Com isso, perde a população, naforma de obras e projetos que demoram, ou mes-mo nunca se concluem, em vista das mudançasde prioridades e insuficiência de recursos.

50Conforme o caput do art. 174 da ConstituiçãoFederal.

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Mas não basta aplicar recursos dentro doslimites constitucionais ou legais, em observân-cia aos princípios da legalidade, impessoalida-de, moralidade e publicidade. Existem também alegitimidade e a economicidade. Cumpre recor-dar que, ao lado das obrigações concernentesao Estado, existem as provenientes das promes-sas governamentais. Afinal, os governantesobtêm seus mandatos por meio da apresenta-ção de planos, agendas e compromissos. Essescompromissos vinculam (ou deveriam vincular)suas ações quando do exercício do mandato. Acontabilidade não tem-se prestado para mantermemória das promessas e planos governamen-tais, em prejuízo do acompanhamento da legiti-midade da gestão das contas públicas.

A preocupação dos contadores públicoscom a forma, em detrimento da substância, ilus-tra a despreocupação para com os termos da LeiMaior. Para conseguir relevância social é misterpreocupar-se em evidenciar as contas públicassob a luz dos objetivos impressos ao Estado.

Figura, ademais, imprescindível a existênciade estudos teóricos e práticos sobre a contabi-lidade pública ou governamental que versemsobre a relevância social das práticas contábeis.A preocupação sobre tais assuntos partiu deuma categoria de usuários internos, os adminis-tradores públicos, ante a mudança de paradig-ma do estado burocrático para o estado geren-cial. Assim, sem haver cumprido plenamente suamissão financeira, a contabilidade persegue asdimensões gerencial e operacional.

Se o interesse dos usuários internos deter-mina o alcance e qualidade dos sistemas de in-formação, talvez as novas proposições conti-das pelo Projeto de Lei Complementar nº 135,de 1996, ora em tramitação na Câmara e que pre-tende substituir a Lei nº 4.320/64, tenham tãopouca aderência, substantivamente, quanto asatuais. Aliás, as demonstrações contábeis tam-pouco parecem refletir os objetivos fundamen-tais do Estado, consoante os termos constituci-onais.

Em suma, resta concluir que há muito a fazerpara que a contabilidade sirva como autênticoinstrumento de accountability, em particular notocante aos usuários externos – os titulares dopoder, o povo. A partir do conteúdo constitucio-nal concernente às informações contábeis, oscontadores públicos (ou governamentais) de-vem iniciar a busca pela fiel representação doalcance dos objetivos estatais. Essa busca pro-mete resgatar a relevância desses contadores e

da Contabilidade na construção de uma socie-dade livre, justa e solidária, que garanta o de-senvolvimento nacional, erradique a pobreza ea marginalização, reduza as desigualdades soci-ais e regionais e promova o bem de todos, sempreconceitos e discriminação.

Para tanto, é necessário que ContabilidadePública atenda alguns requisitos:

I – evidencie a distância entre os resultadosda gestão e o cumprimento dos objetivos fun-damentais da República Federativa do Brasil,consoante estabelecidos pela Lei Maior, no seuart. 3º;

II – tenha maior preocupação com as infor-mações prestadas para os usuários externos,considerando o viés atual nos usuários inter-nos. Nesse sentido, a Emenda Constitucionalnº 19/98 representou um marco e um desafio. Éo marco pela preocupação explícita com instru-mentos de accountability voltados para o titu-lar do poder (ou usuário dos serviços público);desafio pela oportunidade que se oferece de afir-mação social da relevância da Contabilidadenesse mister;

III – assuma maior abrangência, de forma acontextualizar e evidenciar as condicionantes eos resultados sociais da gestão governamental.

*Cumpre agradecer ao colega James Giacomonipelas valiosas sugestões oferecidas.

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*Notas bibliográficas conforme original.

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José Eduardo Sabo Paes, mestre em Direito pelaUniversidade Complutense de Madrid e doutoradoem Direito Constitucional pela mesma Universidade,é promotor de Justiça da 2ª Promotoria de Justiça deFundações e Entidades de Interesse Social.

1. Origens das fundaçõesAs origens do instituto da fundação podem

ser inicialmente explicadas pelo espírito de soli-dariedade, atributo do ser humano, dirigido auma busca de meios ou formas de auxílio àspessoas necessitadas.

Com efeito, desde os primórdios da históriada humanidade, registraram-se atitudes dehomens que, imbuídos pelo amor às artes, àsabedoria, à cultura ou ao singelo, mas pro-fundo, amor ao próximo, destinavam bens parauma finalidade social.

Fundação é na verdade um instrumento pormeio do qual pode o ser humano – como pessoafísica ou jurídica – transmitir à sociedade atual esucessivas gerações seus ideais e convicçõese seguir atuando “como vivo depois de morto”.

Esse desejo de sobrevivência, de interferên-cia ou intervenção no seu próprio mundo, que écomum aos homens de todos os tempos, podeser uma das explicações pela qual a figura jurí-dica de fundação lato sensu é conhecida desdea antigüidade e conseguiu chegar até os diasatuais, superando, por certo, desconfianças,

Fundações: origem e evolução histórica

JOSÉ EDUARDO SABO PAES

SUMÁRIO

1. Origens das fundações. 1.1. A posição doinstituto fundacional na Grécia. 1.2. A posição doinstituto fundacional em Roma. 2. Evolução histórica.2.1. A presença no direito francês. 2.2. A presença nodireito alemão. 2.3. A presença no direito inglês. 2.4.O crescimento nos Estados Unidos e na Europa. 3.Fundações no direito brasileiro. 3.1. A presença nasordenações. 3.2. A consolidação das normas vigentessobre fundações.

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receios e, inclusive, proibições dos poderespúblicos.

Os antecedentes da figura fundacionalpodem estar localizados no antigo Egito, ondeatos filantrópicos, próprios daquela civilização,foram institucionalizados e depois cristalizadoscom maior consistência na Grécia.

1.1. A posição do institutofundacional na Grécia

Na Grécia Clássica, de acordo com o autorespanhol Del Campo Arbulo1, inicialmente proi-biu-se que as escolas de filósofos pudessemorganizar-se de uma maneira permanente a partirde uma afetação de fundos próprios com oobjetivo de difundir suas doutrinas, pelo temor,por parte dos poderes públicos gregos, de quetais instituições pudessem chegar a contribuirpara uma alteração da ordem pública.

Por isso, naquela época não era permitidoque as comunidades constituídas por pensa-dores recebessem quaisquer doações ou pos-suíssem bens. Mas, como recorda Sáens deMiera, os filósofos encontraram um modo deperpetuar sua vontade mediante um sistema deindefinidos fideicomissos2 sucessivos, comofizeram, entre outros, Epicuro e Teofrasto.

O primeiro deles deixou seus jardins a doisde seus herdeiros, com a incumbência de quedo jardim pudessem desfrutar os filósofos desua Escola e impondo o mesmo ônus, sucessi-vamente, aos herdeiros de seus herdeiros. Osegundo, Teofrasto, instituiu herdeiros de seujardim a dez de seus discípulos para que, emconjunto, desfrutassem, incumbindo-lhes queseguissem seu exemplo quando eles mesmosfalecessem.

Temos como exemplo também a escola quePlatão fundou nos jardins da Academia, uma

instituição de ensino do tipo científico-religio-so, consagrada às musas, em Atenas. Tendodirigido a Academia por quase duas décadas,legou-a, em seguida, a todos os discípulos, seussucessores.

1.2. A posição do institutofundacional em Roma

Em Roma, o instituto fundacional passou ater contornos mais definidos, inclusive pelaassimilação da instituição nos moldes anteriores,em face do fato de a Grécia ter sido conquistada.

As primeiras fundações romanas foramdedicadas, segundo excelente pesquisa deLondres da Nóbrega3, ao culto funerário, àdistribuição de alimentos, à manutenção decrianças pobres e aos jogos.

Como recorda Luiz Fernando Coelho4, odireito romano, embora atribuísse personalidadejurídica somente aos entes do tipo associativo,concebia a existência de patrimônios vincula-dos a determinados fins; à época do direitoromano clássico, não existiam patrimôniosdotados de autonomia jurídica que pudessemser considerados antecedentes diretos da fun-dação, mas a solução preconizada consistia natransferência do patrimônio a uma cidade oucollegium, com a imposição dos fins de utilidadepública, o que era feito mediante testamento oupor ato inter vivos.

No Império Romano, as fundações alimen-tares parecem ter sido mero instrumento da açãodo Imperador, não possuindo autonomia patri-monial; entretanto, eram consideradas parteindependente dos bens do Estado. O ImperadorTrajano emprestou dinheiro a proprietários daregião de Valéia e destinou os juros à manuten-ção de trezentas crianças pobres. Plínio, o jovem,fez doação de uma escola à cidade de Como.

Todavia, se quisermos melhor delimitar ondesurgiu a concepção de fundação com autono-mia jurídica, encontramos em Del Campo5 umaembasada resposta, quando esse autor antecipaque essa é uma criação não de Roma, e sim deBizâncio, vez que, no momento em que o Cristia-nismo envolve o Império Romano, começam aaparecer as instituições genericamente denomi-

1 CAMPO ARBULO, José del. Ley de funda-ciones : comentários a Ley 30/1994 de fundaciones yde incentivos fiscales a la participación privada enactividades de interés general. Centro de FundaciónMadrid, 1996. p. 24.

2 Fideicomisso, segundo a lição de Caio Mário daSilva Pereira, constitui modalidade importante desubstituição, que repercute com freqüência nassucessões testamentárias. Consiste na instituição deherdeiro ou legatário, com o encargo de transmitir osbens a uma outra pessoa a certo tempo, por morte,ou sob condição preestabelecida. O herdeiro ou le-gatário instituído denomina-se fiduciário ou gravado, eo substituto ou destinatário remoto dos bens chama-sefideicomissário.

3 NÓBREGA, Vandick Londres da. História esistema do Direito Privado Romano. 3. ed. Rio deJaneiro : Freitas Bastos, p. 136.

4 COELHO, Luiz Fernando. Fundações públicas.Rio de Janeiro : Forense, 1978. p. 9.

5 op. cit., p. 26.

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nadas piae causae ou estabelecimentos demisericórdia e caridade: hospitais, orfanatos,asilos e outros semelhantes6.

Desde o ponto de vista técnico para a autor-ga de uma autonomia própria a essas entidades,havia sido necessário que o direito romano eli-minasse a proibição, anteriormente existente, derealizar liberalidades tanto inter vivos comomortis causae em favor de pessoas indetermi-nadas. Dessa forma, as referidas entidades dei-xaram de estar sob o jugo e proteção da Igrejapara serem tuteladas pela Lei do Império Roma-no, que lhes dava protagonismo jurídico própriodesde o ponto de vista patrimonial, indepen-dente que sua administração estivesse subme-tida ao Bispo ou fosse própria.

As piae causae apareciam tratadas, naprática, como sujeito de direito dotado de capa-cidade própria, conseqüência de uma persona-lidade jurídica tácita. E, enquanto aparecessemcomo proprietárias de bens móveis e imóveisque adquirissem e recebessem doações elegados, eram instituídos herdeiros e podiamcomparecer em Juízo.

Registre-se, no entanto, que, em essência,as instituições piae causae diferenciavam-se dasatuais fundações porque o patrimônio vincula-do à finalidade não era independente, e simcontinuava sendo propriedade do benfeitor.

Luiz Fernando Coelho ainda põe em relevo,sabiamente, que, na história das fundações, aconstituição de uma actio popularis com o fim

de serem efetivadas as fundações instituídaspor legado ou doações é um acontecimento deespecial relevância.

Esse ponto é inequívoco, pois, segundoIhering, as fundações são, por si mesmas, oobjeto e centro de gravidade de todas as rodasjurídicas que as fazem mover, mas o eixo do seumecanismo está nas pessoas naturais, que sãoas que devem dela aproveitar. A personificaçãodas fundações é, pois, a forma apropriada deum patrimônio servir aos interesses e aos finsde pessoas indeterminadas.

A partir da constituição da actio popularis,no direito novo, configura-se para Ihering umdireito subjetivo dos destinatários da fundação:pobres, enfermos, viúvas, órfãos, protetores dasartes etc., porque os dois elementos do direito,o interesse e a proteção do interesse por simesmo, encontram-se efetivamente nela7.

2. Evolução históricaNa realidade, a idéia de filantropia ou dos

mecenas, como o que hoje chamamos de funda-ção orientada às finalidades de interesse geral,começou a delinear-se na Idade Moderna, depoisdo Renascimento e da Reforma. As entidadespiae causae já haviam começado a perder suaforça desde o aparecimento dos estados nacio-nais e na medida em que a Igreja perdia suainfluência.

Cunha Gonçalves8, autor português, apre-senta memorável obra-resumo da evolução ocor-rida pela interferência das concepções germâ-nicas e da elaboração dos glosadores, canonistase post-glosadores, concluindo que

“assim chegou a doutrina das pessoascoletivas à Idade Moderna; mas, tendoessa doutrina contribuído para a excessivaacumulação e imobilização de bens empoder das ordens religiosas e outras cor-porações e fundações pias, seguiu-se arepressão dos bens de mão morta, sujei-tando-se a constituição das novas pes-soas coletivas a autorizações, fiscaliza-ções e incapacidades”.

Essas observações de natureza históricapoderiam até parecer desnecessárias; todavia,é justamente no desenvolvimento do instituto

6 Esse é um fato relevante na história das origensdas fundações. Francesco Ferrara, em sua Teorias delas Personas Jurídicas, observa que as primeirasfundações, de benemerência e culto, acham-se incor-poradas e confundidas com a personalidade dasigrejas, mas que aos poucos vão adquirindo autonomiaaté se afirmarem como entes em si, embora sob aproteção e vigilância eclesiásticas; com base ainda naautoridade de Ferrara, pode-se tomar como ponto departida desse desenvolvimento o decreto de Constan-tino, que reconheceu as comunidades eclesiásticascristãs; a partir desse reconhecimento, essas comuni-dades adquirem capacidade privada, podem ter patri-mônio e, efetivamente, passam a receber doações elegados; desse modo, os privilégios concedidos àsigrejas foram estendidos às piae causae,destinadas afins religiosos, educacionais e caritativos; essas piaecausae já aparecem, no Império Romano posterior,como instituições públicas eclesiásticas dotadas depersonalidade jurídica segundo o direito comum. Oflorescimento da caridade, fundamentada no Cristia-nismo, alentada pela Igreja e favorecida pelos impe-radores, é um dos momentos mais notáveis da culturabizantina.

7 IHERING, Rudolf von. O espírito do DireitoRomano. Tradução de Rafael Benaion. Rio de Janeiro :Alba, 1943. v. 4, p. 230.

8 GONÇALVES, Cunha. Tratado de Direito Civil,v. 1, t. 2, n. 117, p. 901-903.

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fundacional no direito francês e no direito alemãoque se constata a importância do estudo mor-mente para, posteriormente, fixar mais a estruturade fundação no direito positivo brasileiro. SylvioMarcondes elenca alguns motivos pelos quaisdevem ser apontadas as características daformação do instituto no direito alienígena. Sãoelas:

“primeiro, porque a precedência cronoló-gica dos respectivos diplomas legaisexprime, em sua seqüência, a linha evolu-tiva da categoria, no Direito moderno;segundo, porque, apuradas, agora, ascaracterísticas que lhe dão esses ordena-mentos, mais fácil será, depois, mostraras diferenças essenciais com que foi aco-lhida no Direito pátrio; terceiro, porqueessa diferenciação legislativa importa,necessariamente, em elaboração doutri-nária diversificada, tornando imprestável,num país, hermenêutica jurídica consa-grada em outro; quarto, porque, emconseqüência, evidencia-se ser inaceitá-vel no Brasil – não obstante a insistênciade juristas nossos em invocar autoresfranceses e alemães – a pretensão de quese possa ver, na fundação do nossoCódigo Civil, pessoa jurídica de direitopúblico”9.

2.1. A presençano direito francês

O direito francês apresenta uma situação suigeneris no que se refere às fundações; houveuma reação do Estado francês às instituiçõesde mão morta, entre as quais a fundação, e aca-bou-se por impedir, por meio de um Edito repres-sivo de 1749, a excessiva concentração de benspelas fundações, como os vultosos legados que,em detrimento dos herdeiros, eram lhes desti-nados.

Salientou Saleilles10 que, “quando se fala defundação, na França, é do legado sub modo ouda doação sub modo que se trata, os quais nãoconstituem uma verdadeira fundação, no exatosentido jurídico”, e Planiol-Ribert11 que há peri-gos econômicos e políticos da formação de

massas patrimoniais em poder de entidades deduração ilimitada, como o exemplo dos abusosverificados antes da Revolução, e que definema fundação como “a destinação perpétua debens ou valores para um serviço determinadopelo disponente”, encarecem a dificuldade desua criação direta, no sistema francês. Para ins-tituir-se por doação entre vivos, faz-se neces-sária a prévia criação de um estabelecimento queobtenha a declaração de utilidade pública e, alémdisso, a autorização para aceitar a liberalidade, afim de, só então, tornar-se efetiva a fundação. Asua criação por testamento enfrenta a impossi-bilidade de legado em favor de pessoa aindanão concebida ao tempo da sucessão, pois alegatária, inexistente a esse tempo, somentedepois viria a ser constituída. Daí a razão daspráticas indiretas: a doação e o legado sub modo.Na França, esclarecem, toda pessoa fictícia pri-vada corresponde necessariamente a umaassociação de pessoas; a fundação, tal comoadmitida na Alemanha – massa de bens desti-nados a um determinado serviço, investidadiretamente de personalidade jurídica –, “éincompatível com as nossas leis, no estado atualdos textos”.

Em síntese, não houve na França a existên-cia de uma fundação no sentido que hojeemprestamos ao vocábulo como patrimônioautônomo e independente destinado a um fimsocial.

2.2. A presençano direito alemão

As fundações no direito alemão apresentamcomo característica marcante a presença doEstado em sua aprovação. Tuhr nos apresentaa posição destes entes no Código alemão:

“Junto à associação, o Código Civilreconhece outra espécie de pessoa jurí-dica, a fundação, ou seja, um patrimônioautônomo, que se destina a servir a umobjetivo, desde o início e por toda a suaduração (...) Em sua qualidade de pessoajurídica, a fundação tem uma esfera jurí-dica nitidamente separada da de outraspessoas e um patrimônio próprio, inde-pendente de outros (...) A fundação nascepor vontade do fundador (negócio defundação) e aprovação do Estado. Énatural que o Estado se reserve o direitode controlar o nascimento dessas massaspatrimoniais – a “mão morta” – já que opatrimônio da fundação fica subtraído, por

9 MARCONDES, Sylvio. Questões de DireitoMercantil. Saraiva, 1977. p. 206.

10 SALEILLES, De la personnalité juridique, p.244-246, apud Sylvio Marcondes.

11 PLANIOL-RIBERT, Traité elémentaire deDroit Civil. v. 1, n. 3.031, p. 1.057-1.058.

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tempo em princípio ilimitado, à circulaçãojurídica e reservado para um objetivo de-terminado (...) Só a fundação para a qualo fundador está disposto a sacrificar partede seu patrimônio obterá a aprovação doEstado”.

Em síntese, nas palavras de Sylvio Marcondes,de quem o tema recebeu um estudo aprofundado,

“na Alemanha, embora seja admitida ainvestidura direta da fundação na quali-dade de sujeito de direito, também severificou a reação do Estado, não com origor proibitivo do Direito francês, masque se revela na necessidade de autori-zação governamental, prévia e de nature-za constitutiva, para criar-se fundação”.

2.3. A presençano direito inglês

Na Inglaterra, como em outros países protes-tantes, a Igreja tinha seus próprios tribunais quevigiavam a correta aplicação dos fideicomissoscaritativos, mas, quando eles desapareceram,essa obrigação recaiu sobre os tribunais peranteos quais a Coroa comparecia no papel de parenspatriae12, isto é, como defensora dos que nãopodem defender-se: os beneficiários da organi-zação de caridade.

Destaca Del Campo13 que o papel da Coroabritânica derivou, por outra parte, para uma isen-ção de impostos14 em favor das organizaçõesbeneficiárias constituídas na forma de fideico-misso, trust, ou de qualquer outra incluída nasorganizações e associações dedicadas a finali-dades caritativas, “charities”.

A matéria foi ordenada sistematicamentepela primeira vez com a promulgação, na Ingla-terra, em 1601, do Estatuto dos Costumes deCaridade (Statute of Charitable Uses), que enu-merava certas finalidades consideradas como

filantrópicas. A lista não era exaustiva e, curio-samente, omitia as finalidades religiosas,contrariamente ao que havia sido, até o momento,o mais importante trabalho das fundações naEuropa.

O Estatuto de 1601 passou a formar parte daCommon Law e orientou, desde a sua indepen-dência, o primitivo direito consuetudinário dosEstados Unidos em matéria de fundações,inclusive com o estabelecimento de normasespeciais derivadas de sua configuração federal,dando-se relevo não só às finalidades benefi-centes ou caritativas das fundações, mas ao fatode que, diferente de outras entidades, a funda-ção atuava sempre sem ânimo de lucro (non-profit corporation).

Na Europa continental, as finalidades ouentidades de “mão morta” cresceram e enrique-ceram muito em pouco tempo, vez que foramconcebidas para adquirir ou receber bens e semcapacidade, ou com uma capacidade muitolimitada, para aliená-los. A própria Igreja, quesecularmente havia acumulado um grande patri-mônio junto com as organizações benéficas,preocupou os poderes públicos, que viam queesta situação de bens extra comercium resultavaimprodutiva.

Assim, tanto na França, com Luís XIV, em1666, como na Espanha, com Carlos III, em 1785,editaram-se ordens no sentido de impor contro-les e registros precisos15 ao funcionamentodessas organizações, freiando o processo decriação e desenvolvimento das fundações.

Nesse período, em razão de movimentos dou-trinários e de caráter anticlerical, essas institui-ções passam a existir precariamente, sob oprincípio de que a supremacia do Estado nãodevia empobrecer e pôr poderes infra-soberanosoutorgados a instituições privadas.

2.4. O crescimento nosEstados Unidos e na Europa

Ao final do século XVIII e nos séculos XIXe XX, as fundações ressurgem, expandem-se ese consolidam. Os motivos são vários e diferen-ciados. Nos Estados Unidos, primeiro foram osproblemas sociais decorrentes da Guerra daSecessão (1861/1865) que exigiram um conside-

12 Figura, creio, muito próxima do embrião doMinistério Público como defensor primeiro do Estadoe depois da sociedade.

13 op. cit., p. 2814 É interessante esclarecer que, no âmbito britâ-

nico, os privilégios tributários atribuídos às entidadesbeneficiárias vinham determinados não pela formajurídica do ente que os recebia, nem tampouco porum regime jurídico próprio, senão porque se entendiaque a constituição de um trust caritativo ou de qualqueroutra charity de forma não-fideicomissária implicavaum solene contrato privado entre os benfeitores, osbeneficiários e a Coroa protetora destes últimos.

15 Começa aqui o que se poderia denominar tecni-camente de sistema de concessão do poder públicopara a criação de fundação, em que hoje se destaca oMinistério Público como instituição legalmenteresponsável pela autorização de sua existência.

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rável esforço do Governo e dos particulares,onde cita-se, entre os pioneiros das fundaçõesamericanas, Benjamin Franklin, doador degrandes somas de dinheiro às cidades deBoston e Filadélfia, em 1790, para empréstimo ajovens artífices, e George Peabody, instituidor,em 1867, do Peabody Educational Fund, des-tinado à educação nos Estados do sul e do sudo-este norte-americano; o Smithsonian Institution,fundado por James Smithson, é inaugurado em1846.

As fundações americanas decorrem, porcerto, do extraordinário progresso econômicoda nação americana, mas também de grandesfortunas que, concentradas nas mãos de algunsmagnatas, foram, por concepção religiosa, culpaou por compaixão humana ou até arrependimento,destinadas às fundações, como forma de fazercom que a comunidade a que pertenciam parti-cipasse dessa riqueza.

Registre-se, é claro, que, ao lado do espíritopúblico e cristão de alguns verdadeiros mece-nas daquela época, havia as grandes empresase sociedades comerciais que encontravam, comamparo na visionária legislação tributária norte-americana, voltada ao bem comum, forma dediminuição de seus lucros tributáveis, correndo,assim, fabulosas somas em dinheiro, que, aoinvés de serem pagos diretamente ao Estadosob a forma de tributos, configuravam espéciede pagamento indireto, já que se dava à comu-nidade diretamente o benefício social com a cria-ção e manutenção de unidades de ensino, depesquisa, de cultura, de saúde, de assistênciasocial etc. São exemplos a Fundação Carnegie,criada em 1911, a Fundação Rockefeller, criadaem 1913, que tem como missão promover o bem-estar da comunidade, a Fundação Ford e a Fun-dação W. K. Kellogg, criada em 1930, que temcomo missão patrocinar instituições ou pessoasque realizam trabalhos sociais nas áreas devoluntariado filantrópico, juventude, educação,saúde, desenvolvimento social e liderança.

Na Grã-Bretanha, segue-se também a mesmalinha de comportamento observada nos EstadosUnidos, estando naquele país algumas das fun-dações mais antigas: Rowntree Trusts, criadaem 1904, Rhodes Trust, criada em 1902, e Lever-Hulme Trust Fund, criada em 1925.

Na Europa continental, o processo é seme-lhante e resultam significativas as influênciasdas I e II Guerras Mundiais, depois das quaisrestam milhares de pessoas de idade avançadaque, sem descendentes diretos, decidem legar

seus bens a fins sobretudo caritativos e sociais,em recordação de seus familiares falecidosnaquelas guerras.

Durante a segunda metade do século XX,em contraste com os países socialistas, onde asfundações desapareceram por incompatíveiscom o princípio de que o Estado e o Partido sãoas únicas fontes de bem-estar público, verifica-seuma expansão de fundações na Europa e nosEstados Unidos, sendo duas as circunstâncias:de uma parte, as empresas, motivadas pelosincentivos tributários e em reavaliação de seupapel social, sobrepõem-se aos particulares nomomento de constituir novas fundações, e, deoutra, a mudança de concepção dos fins quedevam ter uma fundação, que do campo da cari-dade se deslocam para o campo da ciência deinvestigação, da cultura, dos direitos humanos,do meio ambiente etc16.

Surgem, dessarte, na Europa, as grandes fun-dações: Volkswagen, Konrad Adenauer, Kruppe Bosch na Alemanha, Gulbenkian em Portugal,Agnelle e Olivetti na Itália, Fritz Thyssen naSuíça, Fundação Nobel na Suécia. Ou, na Espa-nha, a Fundação Juan March.

3. Fundaçõesno direito brasileiro

3.1. A presençanas ordenações

No Brasil, os registros começam no períodoem que estivemos sob a égide das ordenaçõesmanuelina e afonsina, nas quais já eram conhe-cidas as entidades denominadas de “mão morta”.

O primeiro esboço de fundação no Brasil,segundo relato do ilustre Promotor de Justiça deFundações de São Paulo Edson José Rafael17,data de 1738, quando Romão de Matos Duarte,solteiro milionário, achou por bem separar parte

16 Utilizando expressões de Del Campo Arbulo,a limitação de recursos que experimenta o Estado doBem-Estar Social como conseqüência da crise econô-mica faz com que os governos dirijam sua atenção aodenominado Terceiro Setor, isto é, aquele que não seconstitui nem no mercado nem na AdministraçãoPública. Dessa maneira, o Estado, mantendo uma viade solidariedade obrigatória – o imposto –, solicita epromove uma solidariedade voluntária que se expressade modo muito definido na atividade das fundações.

17 RAFAEL, Edson José. Fundações e Direito :terceiro setor. São Paulo : Melhoramentos, 1997. p.68-69.

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de seu patrimônio para formar um “fundo” paraauxiliar, exclusivamente, os expostos na “roda”,que, a partir de seu gesto, passariam a ter trata-mento digno ao serem atendidos na Santa Casade Misericórdia do Rio de Janeiro.

Quer para evitar a identificação da mãe, querpara dar proteção ao recém-nascido sem quesoubessem a sua origem, foi engendrada umacaixa giratória, em forma de cesta embutida numaroda, que possibilitava depositar-se a criançaenjeitada pelo lado externo da parede da SantaCasa para, imediatamente, ser recolhida pelo ladointerno por enfermeiras de plantão. Tão logoinstalada a roda, noticiou-se pelo Rio de Janeiroa sua existência e ela foi utilizada numerosasvezes.

Foi registrado o primeiro caso atendido poresse fundo três dias após a sua instituição: em17 de janeiro de 1738, a Santa Casa de Miseri-córdia do Rio de Janeiro recebia o seu primeiroafilhado, um menino exposto na roda, embru-lhado em cueiro de chita verde e necessitandode cuidados médicos.

Assim nasceu a “Fundação Romão de MatosDuarte”, funcionando paralelamente à SantaCasa do Rio, com patrimônio próprio, afeto àfinalidade exclusiva de dar proteção e apoio aosórfãos desvalidos cariocas.

O instituidor, mais tarde denominado “ben-feitor magno dos expostos”, por ser tambémmesário da Santa Casa, não lograva, ao longodos anos, qualquer separação das entidades: aFundação Romão de Matos Duarte foi sempre,por ignorância, comodismo ou falta de legisla-ção adequada, mero apêndice da Santa Casacarioca. A despeito de patrimônio próprio (casae dinheiro dado a juros), a despeito do nome“Fundação Romão de Matos Duarte”, mesmoda ala especial (Casa dos Expostos) no interiordo hospital, a entidade não conseguia persona-lidade jurídica autônoma.

Isso foi atendido provisoriamente em 29 dejaneiro de 1952, segundo relatos de EscragnoleDória, citado por Homero Sena e Clóvis Mon-teiro18, ao designar-se uma pessoa distinta daSanta Casa para, como tesoureiro, tomar conta,administrar os bens, as dívidas e os afazeres daembrionária Fundação Romão de Matos, vindoinclusive a ter o referido ente um “Regimento

Interno das Obrigações e Empregados da Casados Expostos”.

Homero Sena e Clóvis Monteiro concluíramque,

“a rigor, o que Romão de Matos Duartequis fazer, com suas doações para cria-ção dos meninos expostos na Roda, foiinstituir uma fundação, patrimônio afeta-do a determinado fim. Embora, ao quetudo indica, esse patrimônio tenha, desde1752, administração autônoma, não foidestacado dos demais bens pertencentesà Santa Casa, que, em compensação,tomou a si o encargo de manter a Casados Expostos, dando-lhe, porém, o nomeque, talvez, aos irmãos mesários tenhaparecido mais sugestivo ou adequado, deFundação Romão de Matos Duarte”19.

Da mesma forma como registra Edson JoséRafael, com maior ou menor vinculação, váriostestamentos foram feitos nas cidades de SãoPaulo e Santos, como, de resto, em várias outrascapitais dos estados brasileiros onde existiam“Santas Casas de Misericórdia”, com legados(patrimônio) a servirem para tal ou qual objetivo(finalidade), previamente escolhido pelo própriotestador, mas que, na verdade, tornaram-se ape-nas um fundo, um mero apêndice da legatária.

Tais doações encontram-se às dezenas emprocessos de inventários nas Varas de Família eSucessões de todas as capitais estaduais brasi-leiras.

3.2. A consolidação das normasvigentes sobre fundações

Carlos Carvalho20, em notável trabalho derecompilação do direito civil vigente no iníciodo século, apresentou sua “Nova Consolida-ção do Direito Civil”, para servir de subsídio àdiscussão do atual Código Civil Brasileiro, queestabelece serem pessoas jurídicas de direitoprivado:

“a) as fundações, estabelecimentos deutilidade pública ou de fins pios, religio-sos, moraes, scientificos, artísticos, taescomo casas de educação, asylos, hospi-taes, misericordias, igrejas, capellas,ermidas, religiões, academias, universi-

18 SENNA, Homero, MONTEIRO, ClóvisZobaran. Das fundações no Direito da Administra-ção. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, 1970.p. 183-184.

19 op. cit., p. 185-6.20 CARVALHO, Carlos Augusto de. Direito Civil

brazileiro recopilado ou nova consolidação das leiscivis vigentes em 11 de agosto de 1899. Rio de Janei-ro : F. Alves, 1899.

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dades, escolas livres de ensino superior,collegios, seminarios, lyceus, monte-pios,montes de socorro, caixas econômicas,comtanto que tenhão patrimonio seu,sejão ou não subsidiados pelo cofrespúblicos; b) as associações ou commu-nidades ecclesiásticas, claustraes ouregulares, mosteiros ou conventos, ordensterceiras, irmandades, confrarias, devo-ções, beneficentes, de caridade, moraes,scientificos, artisticos, politicos ou desimples recreio; d) as fábricas das paro-chias, os cabidos e mitras; e) as socieda-des commerciaes e civis que revestemfórma commercial; f) a massa falida.”

Estabelece, também, que as pessoas jurídi-cas de direito privado adquirem personalidadejurídica ou por disposição expressa de lei oupelo preenchimento de condições nela estabe-lecidas, com ou sem intervenção do poderpúblico.

E,“quando descenderem de doação ou dis-posição de última vontade, as fundaçõesficarão sujeitas às respectivas regras dedireito e à opposiçãode terceiros prejudi-cados, sendo prohibida, a instituição decapellas vinculadas, de quaesquer vín-culos e a cláusula de inelienabilidade detodo o patrimônio ou de parte delle.”

E, no art. 156 da referida consolidação, jáexiste consignada a possibilidade de ação doMinistério Público na defesa do direito e dopatrimônio fundacional, verbis:

“Si o acto de fundação não indicar omodo e os órgãos da administração ouos indicados forem contrarios a direito, oministério público e quaesquer interes-sados promoverão o que fôr necessáriopara realizal-a, annullal-a ou declaral-a ir-realisavem edar ao patrimônio o destinoque por direito no caso couber”.

Legalmente, entretanto, só se ouviu falar defundações no início deste século. A Lei nº 173,de 10-9-1903, conferia personalidade jurídica aentidades com fins lucrativos, científicos e reli-giosos21.

Inobstante a doutrina, com Martinho Garcez,já se reconhece a figura jurídica fundacionalmesmo antes da entrada em vigor do CódigoCivil22.

Assim, com o advento do Código CivilBrasileiro, em 1º de janeiro de 1916, houve aconsolidação, no ordenamento jurídico positi-vo, do instituto fundacional como pessoa jurí-dica de direito privado, dotada de um patrimôniocomposto por bens livres destinados a umafinalidade social determinada.

No Brasil, figuram como entidades fundacio-nais mais antigas: a Fundação Pão dos Pobresde Santo Antônio, em Porto Alegre, de 1867, oAbrigo Cristo Redentor no Rio de Janeiro, de1923, destinado a prestar assistência a mendi-gos e a menores desamparados, e a FundaçãoGetúlio Vargas, de 1944, com a finalidade técnico-educativa, especializada na organização nacionaldo trabalho.

21 op. cit, p. 70.22 GARCEZ, Martinho. Da theoria geral do

Direito. Rio de Janeiro : J. R. dos Santos, 1914. p.66-67.

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Adilson Abreu Dallari é Professor Titular deDireito Administrativo da Faculdade de Direito daPUC/SP.

1. IntroduçãoA pergunta a respeito da exigibilidade ou

não de procedimento licitatório prévio para acontratação de serviços profissionais de advo-cacia não comporta uma resposta genérica, sejaem sentido positivo, seja em sentido negativo.Na verdade, o campo de atuação profissionaldo advogado é bastante amplo, compreendendotanto trabalhos usuais, corriqueiros, de pequenacomplexidade técnica, quanto situações deextrema dificuldade, alta complexidade, verda-deiramente polêmicas e de enorme repercussãoprática, tanto de ordem econômica quanto pro-priamente jurídica, afetando o direito de pessoase o próprio interesse público.

O estudo desse problema exige muita pon-deração, repudiando-se, de uma vez, soluçõessimplistas e extremadas. Nem se pode dizer quetoda contratação direta de advogado pelo PoderPúblico é lícita, dado o caráter fundamentalmenteintelectual e pessoal do trabalho advocatício;nem se pode afirmar que toda e qualquer con-tratação de advogado deve ser precedida delicitação, em face do princípio da isonomia.

De imediato, cabe afastar um entendimentoque vem grassando sobretudo no âmbito dealguns Tribunais de Contas, qual seja, aqueleno sentido de que a Administração Pública nãopode contratar advogados porque a Constitui-ção teria reservado essa função aos procura-dores, admitidos por concurso, após a criaçãodos respectivos cargos.

Contratação de serviços de advocaciapela Administração Pública

ADILSON ABREU DALLARI

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Os contratos que podem sercelebrados. 3. Considerações doutrinárias. 4. Alegislação. 5. Conclusões.

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Data venia das respeitáveis opiniões dis-cordantes, entendemos que o art. 132 da Consti-tuição Federal, afirmando que “os Procuradoresdos Estados e do Distrito Federal exercerão arepresentação judicial e a consultoria das res-pectivas unidades federadas”, não tem e nãopode ter esse alcance.

De pronto já se percebe que o dispositivonão menciona os Municípios, e esse é um elo-qüente silêncio, ditado pelo simples bom senso,pois existem Municípios de todos os portes, quecomportam ou não a instituição de uma procura-doria.

Da mesma forma, não está abrangida a admi-nistração descentralizada ou indireta, especial-mente as empresas estatais, dotadas de perso-nalidade jurídica de direito privado e de patri-mônio distinto daquele das unidades federadasa que se vinculem.

Mais importante que isso, porém, é lembrarum postulado elementar de hermenêutica, nosentido de que uma simples disposição isolada(de cunho nitidamente corporativo, diga-se depassagem) não pode derrubar um princípiofundamental da organização nacional, qual seja,o princípio federativo, que tem como compo-nente essencial a autonomia administrativa dosentes federados.

No caso dos Municípios, a Constituiçãodeixou aberta a possibilidade de que cada um,no exercício de sua autonomia, ao disciplinarsua própria estrutura administrativa, de acordocom suas peculiaridades, decida sobre a criaçãoou não de uma procuradoria ou de cargos deprocuradores.

No caso dos Estados e do Distrito Federal, aobrigatoriedade de criação de procuradoriaspara as tarefas usuais e corriqueiras de consul-toria e representação judicial não é incompatí-vel com a contratação esporádica de advogadospara determinados serviços.

Não se pode esquecer que o trabalho deadvogado requer uma elevadíssima dose doelemento confiança. Por isso mesmo, para asolução de problemas usuais e corriqueiros, dedefesa de um interesse público claramente afir-mado pela lei, não haverá problema algum (muitoao contrário, é altamente conveniente) que issoseja feito por procuradores profissionais, decarreira, imunes a alterações da supra estruturapolítica. Entretanto, existem assuntos de granderepercussão política, correspondentes a progra-mas ou prioridades determinadas exatamentepela supra estrutura política eleita democrati-

camente pelo corpo social. Temas dessa nature-za requerem o concurso, ou de assistentes jurí-dicos nomeados para cargos de provimento emcomissão, ou a contratação temporária de pro-fissionais alheios ao corpo permanente de ser-vidores.

Procuradores não são santos. São sereshumanos, com todas as fraquezas dos sereshumanos, sujeitos à corrupção ou simplesmentevinculados a correntes políticas adversas aosrepresentantes do povo democraticamenteeleitos.

Procuradores não governam. É totalmenteinaceitável o argumento no sentido de que ospareceres emitidos pelas procuradorias são (oudeveriam ser) vinculantes para quem governa,para quem democraticamente recebeu o poder-dever de decidir sobre o que é e o que não é deinteresse público. Positivamente não cabe e nemdeve caber aos procuradores emitir opiniõesvinculantes em matéria de conveniência e opor-tunidade, sem embargo de que podem e devemapontar ou destacar opções mais consentâneascom valores consagrados pelo sistema jurídico.

Mesmo quando não existe margem de discri-cionariedade, é preciso lembrar que direito nãoé matemática, que os problemas jurídicos podemcomportar uma pluralidade de soluções, depen-dendo dos vetores e dos métodos interpretati-vos. Direito é divergência: diferentes procura-dores podem emitir diferentes pareceres; todoscorretos. Somente o Poder Judiciário, diante docaso concreto, tem a prerrogativa de dizer qualdas possíveis interpretações deve ser havidacomo a melhor, a “correta”, para fins de soluçãode determinado conflito.

Não existe, portanto, uma suposta “objeti-vidade” nas manifestações das procuradoriasoficiais, em contraposição a uma “subjetivida-de” de advogados contratados. Todo e qual-quer profissional do direito pode interpretar alei mais ou menos influenciado por concepçõesou tendências pessoais, em matéria política oureligiosa, decorrentes do ambiente familiar oudo meio social em que vive, ou de experiênciaspessoais etc.

Além disso, não se pode conceber que, emnome da defesa do interesse público, coloque-seo Poder Público em situação de inferioridadeperante os particulares, que sempre podem,livremente, escolher os melhores advogados.

Não se conhece caso algum de renomadojurista que tenha deixado seu escritório particularpara ingressar em alguma procuradoria. Tambémnão é usual que advogados muito bem sucedi-

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dos deixem a sua banca para ingressar no serviçopúblico. Obviamente, existem procuradores queefetivamente são respeitáveis juristas e exímiosadvogados, sendo certo que as procuradorias,normalmente, como regra geral, cumprem comeficiência e fidelidade ao interesse público suasimportantíssimas funções de zelar pela legalida-de das ações normalmente empreendidas pelaAdministração Pública.

Não se vislumbre aqui qualquer posição pre-conceituosa ou ofensiva contra a generalidadedos procuradores públicos. Apenas não seaceita o endeusamento, nem se reconhece qual-quer supremacia necessariamente decorrente docargo ocupado.

Também não se está, de maneira alguma, pre-tendendo esvaziar o disposto no supra mencio-nado art. 132 da Constituição Federal. A contra-tação eventual e temporária de advogados paraquestões específicas não é o substituto perfeitoda procuradoria. O que se sustenta é que umacoisa não é incompatível com a outra.

Também é preciso ficar perfeitamente claroque ninguém pode ser ingênuo a ponto deignorar que certas contratações de advogadosão pura fachada para encobrir partilhas devalores, acertos políticos, pagamentos de dívi-das de campanha, favorecimentos indevidosetc. Para coibir abusos que efetivamente exis-tem, não se pode proscrever as contratações deserviços advocatícios regulares e efetivamentenecessárias para a melhor defesa do interessepúblico.

Um dado da realidade é o fato de que, muitasvezes, a contratação de um profissional altamen-te especializado fortalece a procuradoria, peloexemplo, pela experiência e pela orientação pro-porcionada aos procuradores, tendo, muitasvezes, um efeito preventivo, evitando o cometi-mento de falhas que poderiam redundar na proli-feração de ações contra o Poder Público.

Em síntese, a contratação direta de serviçostécnicos profissionais de advogado tem sualegalidade ou ilegalidade dependendo de cir-cunstâncias de fato, requerendo do intérpreteou aplicador da lei um exame aprofundado decada específico caso.

2. Os contratosque podem ser celebrados

Em algumas situações, a necessidade e alicitude da contratação de serviços técnicos pro-fissionais de advogados emergem claramente.

O exemplo mais comum é o da contrataçãode jurista de renome para emitir parecer destina-do a servir como ponto de apoio na defesa deinteresses públicos extremamente relevantes, aser feita pelo corpo permanente de procuradores.Isso tanto pode referir-se a um caso determinado,como também ao fornecimento de orientações,ao longo do tempo, à medida que os problemasconcretos forem surgindo.

Contratos dessa natureza podem ser cele-brados com uma pessoa jurídica (sociedade deadvogados), desde que o detentor da especialhabilitação se comprometa a executar pessoal-mente os serviços contratados, além do que,como é sabido, a constituição de sociedades deadvogados se prende precipuamente a fatoresde ordem fiscal, que não estão em causa nesteestudo.

Assim como as empresas privadas, tambémas entidades governamentais podem contratara prestação de serviços de consultoria em deter-minadas especialidades jurídicas (complemen-tando o trabalho normalmente executado pelocorpo permanente), compreendendo a análise eo fornecimento de orientação em casos que apre-sentem maior complexidade ou relevância.

Da mesma forma, pode haver contrataçãopara o patrocínio de determinada ou determiná-veis ações judiciais, de especial complexidadeou de excepcional relevância.

Além desses aspectos ligados ao objeto doscontratos, cabe enfocar, também, a pessoa docontratado; mais exatamente, sua qualificaçãoprofissional. O conjunto das peculiaridades docontrato e do contratado é que permite enqua-drar a contratação entre aquelas que a doutrinareconhece como justificadoras da inexigibili-dade de licitação.

Uma palavra, entretanto, precisa ser dita comrelação a pequenos Municípios, os quais, muitasvezes, precisam contratar advogados que nãosão exatamente expoentes altamente titulados,mas possuem conhecimentos e são dotados dealguma experiência em matéria de direito públicoem nível superior aos que militam normalmentena advocacia cível, criminal ou trabalhista naregião. A contratação de consultoria nesse nívelpermite obter orientações razoáveis por umaremuneração módica, e tanto pode servir paraauxiliar o eventual procurador permanente, comopara atuar em lugar dele, quando inexistente.

Mais nítida, ainda, é a contratação, pelo Muni-cípio, de advogado para a defesa de Prefeitoacusado de haver cometido crime de responsa-bilidade ou infração político-administrativa.

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Nesses casos, a acusação sempre se refere aatos praticados no exercício do mandato popular,por dever de ofício. O alvo da acusação não é apessoa física, mas, sim, a autoridade públicaPrefeito Municipal; o que a defesa visa preservarnão é a pessoa física, mas, sim, o mandatopopular.

Seja permitido transcrever aqui o que já dis-semos sobre esse assunto em artigo publicadoa respeito do famigerado Decreto-Lei nº 201/67,que dispõe sobre a responsabilidade de Prefei-tos e Vereadores:

“Para concluir, convém recordar quena Administração Pública há uma neces-sidade elementar de responsabilização.Todo administrador público tem que serresponsável. Não se admite administradorirresponsável. Portanto, não há dúvidaalguma que deve haver meios de respon-sabilização. Mas esta responsabilizaçãoprecisa ser feita com uma certa prudên-cia, dadas as deficiências da legislação,as dificuldades administrativas, as difi-culdades de entendimento da legislação.A responsabilização deve existir, sim, masfeita com prudência. E esta prudência temsido o padrão de conduta do Poder Judi-ciário.

É preciso considerar que quem estásendo julgado é um mandatário, é umhomem que recebeu a confiança do povopara desempenhar um mandato. É um prin-cípio geral do Direito Penal o in dubiopro reo, isto é, na dúvida não se condena.Com maior vigor este princípio deve seraplicado ao caso de mandatários políti-cos, que receberam um voto de confiançade toda uma população.

Um outro aspecto que tem que serconsiderado é a questão da eficiência naadministração. Imaginem um prefeitoacuado, espremido por uma atitude vio-lenta, impensada, na aplicação destalegislação.

O administrador recebe uma missão arealizar. Ele é um agente da realização dointeresse público. E não deve ser aterro-rizado na sua função. Senão ele jamaisconseguirá satisfazer o interesse público”.

DALLARI, Adilson Abreu. “Respon-sabilidade dos Prefeitos e Vereadores”.RDP 39-40, p. 260-261.

Tanto a acusação, quanto a defesa, especial-mente nos casos de infrações político-admi-

nistrativas (julgadas pela Câmara Municipal),possuem um elevado componente político-par-tidário ou até mesmo de relacionamento pesso-al. Mas, se por um lado a defesa do Prefeitodeve ser suportada pelo Poder Público, (por umasérie de razões: porque se trata de defender alicitude de atos de ofício; porque o que se estádefendendo é um mandato popular; porque oPrefeito é inocente até prova em contrário; eporque, se assim não for, a Câmara pode sim-plesmente matar por inanição econômica umPrefeito que não seja de seu agrado), por outrolado, é essencial que haja confiança e empatiaentre o defensor e o defendido, o que nem sem-pre ocorre se a defesa for feita por procuradorde carreira.

Enfim, aqui estão exemplificativamente ex-postas algumas situações justificadoras da con-tratação de serviços de advogados, mesmo quehaja uma procuradoria regularmente instituída ecomposta por procuradores de carreira, ficandoevidenciado que uma coisa não é incompatívelcom a outra.

Como regra geral, a contratação de advogadoexterno aos quadros da Administração Públicacomporta e até mesmo exige a livre escolha, semlicitação.

3. Consideraçõesdoutrinárias

A contratação direta, sem licitação, com fun-damento na inexigibilidade, baseia-se na invia-bilidade de competição, entendendo-se comotal a impossibilidade de comparação entre diver-sos possíveis executantes do serviço pretendido.

Quando diversos profissionais puderemrealizar o mesmo e idêntico serviço, ainda quede natureza técnica especializada, deve ser pro-movida uma disputa entre eles. Entretanto,quando diversos profissionais puderem realizarum serviço técnico profissional especializado,mas o produto do trabalho de cada um for dife-rente do trabalho do outro, por força das caracte-rísticas pessoais do autor, aí então haveráimpossibilidade de competição, dada a singula-ridade do serviço.

Celso Antônio Bandeira de Mello, em seuCurso de Direito Administrativo (8. ed. Malhei-ros, 1996. p. 332), resume de maneira clara e ob-jetiva essa questão da singularidade, dizendo:

“Em suma: a singularidade é relevantee um serviço deve ser havido como sin-gular quando nele tem de interferir, como

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requisito de satisfatório atendimento danecessidade administrativa, um compo-nente criativo de seu autor, envolvendoo estilo, o traço, a engenhosidade, a es-pecial habilidade, a contribuição intelec-tual, artística ou a argúcia de quem oexecuta, atributos estes que são precisa-mente os que a Administração reputaconvenientes e necessita para a satisfa-ção do interesse público em causa.

Embora outros, talvez até muitos,pudessem desempenhar a mesma ativi-dade científica, técnica ou artística, cadaqual o faria à sua moda, de acordo com ospróprios critérios, sensibilidade, juízos,interpretações e conclusões, parciais oufinais e tais fatores individualizadoresrepercutirão necessariamente quanto amaior ou menor satisfação do interessepúblico. Bem por isto não é indiferenteque sejam prestados pelo sujeito A oupelos sujeitos B ou C, ainda que todosestes fossem pessoas de excelente repu-tação.

É natural, pois, que, em situaçõesdeste gênero, a eleição do eventual con-tratado – a ser obrigatoriamente esco-lhido entre os sujeitos de reconhecidacompetência na matéria – recaia em pro-fissional ou empresa cujos desempenhosdespertem no contratante a convicção deque, para o caso, serão presumivelmentemais indicados do que os de outros, des-pertando-lhe a confiança de que produziráa atividade mais adequada para o caso.

Há, pois, nisto, também um compo-nente subjetivo ineliminável por parte dequem contrata”.

Quem efetua uma contratação direta, semlicitação, assume uma especial responsabilidadepelos resultados do contrato. Quando um con-trato realizado mediante regular licitação nãochega a bom termo, não há que se falar em res-ponsabilidade pela escolha. É mais cômodo eseguro contratar mediante licitação, mas o diri-gente efetivamente preocupado com os resulta-dos de sua gestão não deve deixar de efetuarcontratações diretas quando isso for necessá-rio, devendo apenas acautelar-se provendo-sede dados que possam justificar a escolha.

Mais que isso, deve a autoridade compe-tente, para decidir, evidenciar a efetiva necessi-dade desse tipo de contratação, pois, obviamen-te, não se pode contratar um profissional alta-

mente qualificado para executar serviços corri-queiros.

A contratação direta se justifica quando seconjugarem a alta complexidade do serviço aser executado, justificando-se a escolha de pro-fissional de alto nível, e a notoriedade do exe-cutante escolhido, conforme destaca Lúcia ValleFigueiredo (Direitos dos Licitantes . 3. ed.Malheiros, 1992. p. 34):

“Se a notória especialização é uma dasexceções à regra da licitação, traz, comoconseqüência, a possibilidade de contra-tações à revelia do procedimento licitató-rio. E, assim sendo, há de estar bem evi-denciado que se conjugam os fatoresnecessários a sua validade.

De conseguinte, como já afirmado,dois são os fatores que devem, obrigato-riamente, estar presentes:

1) existência da especialização notó-ria, em síntese, capacidade notória;

2) necessidade desta especializaçãonotória, por parte da Administração”.

Seja qual for a espécie de profissional espe-cializado que se pretenda contratar, é precisoque estejam presentes, concomitantemente,esses dois requisitos; caso contrário, será obri-gatória a realização de licitação.

Entretanto, no caso da contratação de pro-fissional do Direito ou da execução de serviçosprofissionais privativos de advogado devida-mente inscrito na Ordem dos Advogados doBrasil, surgem algumas peculiaridades impediti-vas da concorrência derivadas da legislaçãodisciplinadora do exercício profissional.

Mesmo que se tenha que proceder a umacomparação entre diversos advogados, é impos-sível a realização de qualquer modalidade licita-tória na qual o menor preço seja ou possa ser ofator de julgamento.

Alice Maria Gonzales Borges deixa issoperfeitamente claro ao estudar a questão espe-cífica da contratação de advogado em trabalhopublicado sob o título “Licitação para contrata-ção de serviços profissionais de advocacia”,publicado no Boletim Jurídica – AdministraçãoMunicipal (editado em Salvador, nº 8, 1996, p.7), no qual apresenta os seguintes argumentos:

“Se o Estatuto da OAB e o Código deÉtica vedam a captação de clientela, osprocedimentos de mercantilização da pro-fissão e o aviltamento de valores dos

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honorários advocatícios (arts. 39 e 41 doCódigo de Ética), como conciliar tais prin-cípios com a participação de advogados,concorrendo com outros advogados emuma licitação de menor preço, nos moldesdos arts. 45, I e § 2º da Lei 8.666/93?

Também resulta inviável, pelos mes-mos princípios, a participação de escritó-rios de advocacia em licitações do tipomelhor técnica, a qual, nos termos do art.46, § 1º, descamba, afinal, para o coteja-mento de preços. Obviamente, também alicitação de técnica e preço do art. 46, §2º, que combina aqueles dois requisitos”.

Esses judiciosos argumentos, entretanto,não se aplicam à realização de procedimentolicitatório na modalidade de concurso, no qualo valor da remuneração é previamente estipula-do, procedendo-se à escolha do melhor profis-sional que se disponha a realizar o serviço pre-tendido pelo valor que a Administração pretendeou pode suportar.

Quando, porém, o elemento fundamental dacontratação for a confiança requerida pelas parti-cularidades do caso, não se há que falar nemmesmo em concurso. O mesmo se pode dizercom relação a situações emergenciais, de realurgência.

Quem examinou a questão da exigibilidadeou inexigibilidade de licitação para a contrataçãode serviços profissionais de advogado demaneira bastante ampla, apontando as diversasvariáveis, foi Márcio Cammarosano (“Brevesanotações sobre a contratação de serviços pro-fissionais de advocacia”, ILC, Curitiba, nº 31/674), conjugando os fatores de ordem prática ede ordem jurídica que afetam a tomada de deci-são nessa matéria:

“Contratação de serviços de advoca-cia, como serviços de terceiros, sob oregime da Lei nº 8.666/93, só pode ser efe-tuada em caráter eventual, esporádico,contingencial. Admite-se a contrataçãodireta, sem licitação, se se estiver diantede caso de dispensa ou situação de inexi-gibilidade, nos termos da lei.

Se, mesmo para serviços rotineiros deadvocacia, houver premente necessidadede contratação de serviços de terceirospor algum prazo, por alguma razãocontingencial, deverá ser realizada pré-via licitação, sem embargo da observaçãode que as modalidades de certamecontempladas na Lei nº 8.666/93 não são,em rigor, as mais adequadas à referida

finalidade. Se a urgência reclamada forincompatível com as delongas de umprocedimento licitatório, poderá havercontratação direta.

Se a necessidade da contratação deserviços de terceiros for ditada pela com-plexidade ou sofisticação do serviçodesejado, a reclamar profissional ouescritório de notória especialização, a con-tratação direta será o caminho, com fun-damento no art. 25, II, c.c. art. 13 da Lei nº8.666/93, dando-se ao § 1º do art. 25interpretação razoável, que não inviabilizesua utilização. Para tanto, cabe anotar quea singularidade do serviço, a reclamarnotória especialização do seu prestador,não significa que só possam ser assimqualificados serviços inéditos, ou que sóum possa prestá-lo. Se este for o caso,haverá manifesta inviabilidade da com-petição, e a contratação direta terá porfundamento o próprio caput do art. 25.”

Essa questão já foi objeto de decisão noSupremo Tribunal Federal. Ao relatar o RHC nº72.830-8-RO (Acórdão publicado no BoletimLicitações e Contratos – BLC, Curitiba, nº 10,1996, p. 521), o eminente Ministro Carlos Velloso,em seu ilustrado voto, acolhido por unanimidade,negando a existência de crime na contrataçãode advogado para a defesa de interesses doEstado junto aos Tribunais Superiores, fez aseguinte notável ponderação:

“Acrescente-se que a contratação deadvogado dispensa licitação, dado que amatéria exige, inclusive, especialização,certo que se trata de trabalho intelectual,impossível de ser aferido em termos depreço mais baixo. Nesta linha, o trabalhode um médico operador. Imagine-se a aber-tura de licitação para a contratação de ummédico cirurgião para realizar delicadacirurgia num servidor. Esse absurdo so-mente seria admissível numa sociedadeque não sabe conceituar valores. O mes-mo pode ser dito em relação ao advogado,que tem por missão defender interessesdo Estado, que tem por missão a defesada res publica”.

A importância especial dos interesses aserem defendidos não se coaduna com umaescolha automática, formal, impessoal. Em certoscasos, não é irrelevante a escolha deste oudaquele profissional. Deve a Administraçãobuscar o concurso do melhor profissional,daquele que se apresente como mais habilitado

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para a execução daquela específica tarefa, quetanto pode ser a elaboração de um parecer,quanto a propositura de uma ação judicial, ou adefesa do interesse público em uma ação judi-cial proposta por terceiros, ou, ainda, a presta-ção de serviços de consultoria por tempo deter-minado.

Cabe repetir, todavia, que serviço técnicoprofissional especializado de advocacia sufi-ciente para dispensar qualquer tipo de licitaçãoé somente aquele de caráter singular, que exijade seu executante conhecimentos extraordiná-rios, acima e além dos exigidos para o regular enormal exercício da profissão.

Somente se poderá contratar a elaboraçãode um parecer jurídico, com dispensa de qual-quer modalidade de licitação, com quem, alémde ser bacharel em direito, tenha uma formaçãoacadêmica superior ao simples grau de bacharelem direito, seja dotado de especial titulação aca-dêmica ou tenha exercido funções públicas dehierarquia superior na área jurídica; não é pos-sível escolher subjetivamente e contratar dire-tamente um simples bacharel em direito parapromover execuções fiscais.

Lamentavelmente os abusos que já se co-meteram nessa matéria estão levando a umareação desarrazoada, redundando na formula-ção de denúncias e mesmo na propositura deum preocupante número de ações judiciaiscontra profissionais dotados da maior honora-bilidade, especialmente quando contratadospara atuar em casos de grande repercussãopolítica, conforme tivemos oportunidade deenfocar em nossa monografia sobre os procedi-mentos licitatórios:

“Atualmente, no tocante à contrata-ção de serviços técnicos profissionaisespecializados, sem licitação, a Ação Po-pular vulgarizou-se, transformando-se emmeio de atuação política ou, até mesmo,simples instrumento de extorsão. Damesma forma, pululam as Ações CivisPúblicas interpostas sem a mais elemen-tar cautela, sem o mais mínimo cuidadona apuração preliminar dos fatos. Não sepode pretender que autoridades e admi-nistradores descuidem de sua honorabi-lidade pessoal, a ponto de entregar taiscasos aos cuidados de uma espécie dedefensor natural. Entendemos que agen-tes políticos, titulares de mandatos eleti-vos, têm a obrigação de defender a inte-gridade da outorga popular.

Da mesma forma, devem defender, damelhor forma possível, a integridade dopatrimônio sob seus cuidados e zelar peloincremento de suas fontes de recursos”.

DALLARI, Adilson Abreu. AspectosJurídicos da Licitação. 4. ed. Saraiva,1997. p. 57.

No exame da legalidade ou ilegalidade dacontratação direta de advogado, existe semprea necessidade de um exame cuidadoso e apro-fundado de cada caso, assegurando-se aosacusados o exercício da ampla defesa, antes dese lhes causar qualquer gravame, ainda que ape-nas de ordem moral, como ocorre quando sedeflagra um procedimento judicial totalmenteinfundado.

Resumindo: a contratação eventual e tem-porária de serviços de advocacia, com profissio-nais ou firmas de notória especialização, nãoconflita com a manutenção de um corpo perma-nente de procuradores ou servidores advoga-dos, mas está sujeita, em princípio, à licitação,realizada sob a modalidade de concurso, confi-gurando-se a inexigibilidade de qualquer proce-dimento licitatório apenas quando houverimpossibilidade de comparação, em função dasingularidade do objeto.

4. A legislaçãoÀ luz das considerações doutrinárias acima

expostas, fica mais fácil extrair o exato entendi-mento das normas que disciplinam o assunto.

A Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, emseu art. 13, faz uma enumeração (meramenteexemplificativa) dos trabalhos que por ela sãoconsiderados como “serviços técnicos profis-sionais especializados”.

Nos diversos incisos desse artigo, para osefeitos deste estudo, cabe mencionar as refe-rências a estudos técnicos, pareceres, assesso-rias ou consultorias técnicas, patrocínio oudefesa de causas judiciais ou administrativas e,ainda, treinamento e aperfeiçoamento de pes-soal.

É certo, pois, que os objetos das contrata-ções em exame se enquadram dentro daquiloque a própria Lei já considera como serviçostécnicos profissionais especializados.

Essa enumeração está diretamente relacio-nada com a questão da inexigibilidade de licita-ção, que é disciplinada pelo art. 25:

“Art. 25 – É inexigível a licitação quan-do houver inviabilidade de competição,

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em especial:...II – para a contratação de serviços

técnicos enumerados no art. 13 desta Lei,de natureza singular, com profissionaisou empresas de notória especialização,vedada a inexigibilidade para serviços depublicidade e divulgação;”

Aliás, a Ordem dos Advogados do Brasil,Secção de São Paulo, considerou eticamenteirrepreensível a contratação de advogado comfulcro no art. 25, II, da Lei nº 8.666/93 com aredação da Lei nº 8.883/94, verbis:

“Licitação. Inexigibilidade para con-tratação de advogado. Inexistência deinfração. Lei nº 8.666, de 21-6-1993, queregulamenta o artigo 37, inciso XXI, daConstituição Federal, institui normas paralicitações e contratos da administraçãopública. Inexigibilidade de licitação paracontratação de advogado, para prestaçãode serviços patrocínio ou defesa de cau-sas judiciais ou administrativas. Condi-ção de comprovação hábil, em face danatureza singular dos serviços técnicosnecessitados, de tratar-se de profissio-nais ou empresas de notória especializa-ção. Critério aceitável pela evidente invia-bilidade de competição licitatória. Pres-suposto da existência de necessáriamoralidade do agente público no ato dis-cricionário regular na aferição da justanotoriedade do concorrente. Inexistência,na mencionada lei, de criação de hierar-quia qualitativa dentro da categoria dosadvogados. Inexistência de infringênciaética na fórmula legal licitatória de con-tratação de advogados pela administra-ção pública. Precedente no Processo nºE–1.062”.

(OAB – Tribunal de Ética. ProcessoE–1.355, Relator Dr. Elias Farah).

O dispositivo em comento não apresentamaior detalhamento quanto ao que deve serentendido como serviço “de natureza singular”(tarefa essa muito bem cumprida pela doutrina,conforme o excerto de Celso Antônio Bandeirade Mello acima transcrito), mas, em seu § 1º,esmera-se em indicar quais os dados ou elemen-tos que permitem qualificar um profissionalcomo dotado de notória especialização:

“§ 1º – Considera-se de notória espe-cialização o profissional ou empresa cujoconceito no campo de sua especialidade,

decorrente de desempenho anterior, es-tudos, experiências, publicações, organi-zação, aparelhamento, equipe técnica, oude outros requisitos relacionados comsuas atividades, permita inferir que o seutrabalho é essencial e indiscutivelmenteo mais adequado à plena satisfação doobjeto do contrato”.

O exame da documentação apresentada peloadvogado contratado, especialmente seu curri-culum vitae, deve servir para confirmar não sóque ele é dotado de notória especialização, mas,sim, também, que ele é um jurista cuja experiên-cia profissional está perfeitamente adequada aosobjetivos almejados pela Administração Públicacom a sua contratação. Ou seja, ele é especiali-zado exatamente naquilo para o que o contra-tante necessita de assessoramento jurídico ouatuação judiciária de especial qualificação.

Nunca se pode esquecer, entretanto, o prin-cípio da razoabilidade, que requer uma ponde-ração entre a natureza e a relevância dos inte-resses em jogo, a capacidade financeira de quemcontrata e a disponibilidade de profissionaiscontratáveis, no espaço e no tempo.

5. ConclusõesComo resumo final, diante de tudo quanto

foi exposto, pode-se dizer que a ConstituiçãoFederal não impede a contratação de advoga-dos pela Administração Pública, muito especial-mente no âmbito municipal.

Com base nos princípios federativo e daautonomia municipal, cada Município, ao orga-nizar sua administração, decidirá pela criaçãoou não de procuradorias, pela criação ou não decargo ou cargos de procuradores ou pela pura esimples contratação de advogados externos, deacordo com suas necessidades, possibilidadese peculiaridades.

Na contratação de advogados, as especifi-cidades do trabalho a ser realizado é que deter-minarão a exigibilidade ou não de licitação.

Em se tratando de situação que recomendeou determine a contratação direta, sem licita-ção, deve-se tomar especial cuidado com ascaracterísticas do profissional contratado (qua-lificação, experiência, confiança).

A livre escolha deve ser feita e examinada àluz do princípio da razoabilidade, consideran-do-se um conjunto de circunstâncias. É intole-rável a escolha mediante simples cotejo depreços.

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Se for possível e exigível uma escolha obje-tiva, poder-se-á realizar uma licitação na modali-dade de concurso, com a pré-determinação dovalor dos honorários.

Em síntese, cabe apenas reafirmar que não é

possível formular uma afirmação genérica notocante à exigibilidade de licitação para a con-tratação de serviços profissionais de advogado,seja em sentido positivo, seja em sentido nega-tivo, pois cada caso é um caso.

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Controle externo do Poder Judiciário –inconstitucionalidade

1. Poder Judiciário – autonomia eindependência

O Poder Judiciário é um dos três poderesclássicos previstos pela doutrina e consagradocomo um poder autônomo e independente, deimportância crescente no Estado de Direito, pois,como afirma Sanches Viamonte, sua função nãoconsiste somente em administrar a Justiça, purae simplesmente, sendo mais, pois seu mister éser o verdadeiro guardião da Constituição, coma finalidade de preservar, basicamente, os prin-cípios da legalidade e igualdade, sem os quaisos demais tornariam-se vazios. Essa concepçãoresultou da consolidação de grandes princípiosde organização política, incorporados pelas ne-cessidades jurídicas na solução de conflitos.Clèmerson Merlin Clève, nesse sentido, colocaque a Constituição Federal de 1988 prestigiou oPoder Judiciário. Concedeu, afinal, “a esse Po-der o monopólio da função jurisdicional”1.

Se é verdade que se deve ter em mente aadvertência de Pinto Ferreira de que

“nos derradeiros anos aumentou a influ-ência do Poder Judiciário. Se, a princípio,era um órgão de pouca influência, e prati-camente subordinado aos demais órgãos,hoje não somente é um órgão distinto,mas poderoso. É essa a razão pela qual

ALEXANDRE DE MORAES

Alexandre de Moraes é Promotor de Justiça deSão Paulo e professor de Direito Constitucional eDireitos Humanos do Complexo Jurídico Damásiode Jesus e do Curso de Especialização da Escola Su-perior do Ministério Público do Estado de São Paulo.É membro do Instituto Brasileiro de Direito Consti-tucional. Mestrando em Direito do Estado pela Uni-versidade de São Paulo.

SUMÁRIO

1. Poder Judiciário – autonomia e independên-cia. 2. Independência do Poder Judiciário e controleexterno. 3. Supremo Tribunal Federal e controle ex-terno do Poder Judiciário.

1Temas de Direito Constitucional. São Paulo:Acadêmica, 1993. p. 36.

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surgiu conhecido livro de Lambert intitu-lado O governo dos juízes e a luta contraa legislação social nos Estados Unidos(1925), livro que mereceu a réplica de Ro-ger Pinto na obra intitulada Os juízes quenão governam (1934). Uma tal doutrinachegou a cristalizar-se numa orientaçãoavançada de que o Poder Judiciário é umsuperpoder, como relembrou James Bla-ck no livro A Constituição dos EstadosUnidos (1923, p. 150 e s.). Nem tanto, nemquanto. O Poder Judiciário é um dos trêspoderes constitucionais; não está acimados demais poderes. Acolher a idéia dosuperpoder, como aliás teve agasalho emnosso STF, é uma utopia, desmentida pelarealidade prática do Brasil e dos demaispaíses”2;

não é menos verdade que o Poder Judiciárionão está abaixo dos demais, devendo, portantoter plena autonomia e independência.

Não se consegue conceituar um verdadeiroEstado de Direito Democrático sem a existênciade um Poder Judiciário autônomo e indepen-dente para que exerça sua função de guardiãodas leis, pois, como afirmou Zaffaroni, “a chavedo poder do judiciário se acha no conceito deindependência”3.

Daí as garantias de que goza, algumas dasquais asseguradas pela própria ConstituiçãoFederal, sendo as principais a vitaliciedade,inamovibilidade e irredutibilidade de vencimen-tos. Na proteção dessas garantias, devemosatentar na recomendação de Montesquieu, deque as leis e expedientes administrativos ten-dentes a intimidar os juízes contravêm o institu-to das garantias judiciais, impedindo a presta-ção jurisdicional, que há de ser necessariamen-te independente, e afetando, dessa forma, a se-paração dos poderes e a própria estrutura go-vernamental. Na defesa da necessária indepen-dência do Judiciário, Carl Schmitt afirma que autilização da legislação pode ser facilmente di-recionada para atingir os predicamentos da ma-gistratura, afetando a independência do PoderJudiciário. Como autoproteção, o próprio Judi-ciário poderá garantir sua posição constitucio-nal, mediante controle judicial desses atos, deonde concluímos a ampla possibilidade de con-

trole de constitucionalidade das leis ou atosnormativos que desrespeitem o livre exercíciodesse Poder. Ressalva, porém, a necessidadeda submissão do magistrado ao império da Cons-tituição e das leis ao afirmar que

“En todos los casos, los fundamen-tos del controle y de la decisión judicialhan de ser normas que permitan una sub-sunción precisa y delimitada. La sujecióna una de estas normas es, justamente, con-dición y premisa de la independencia delpoder judicial. Cuado el juez abandona elterreno en que realmente es posible unaefectiva subsunción bajo nornas genera-les y, como consecuencia, una sujeciónconcreta a la ley, deja de ser un juez inde-pendiente, sin que pude aducirse en sudescargo ninguna apariencia de judiciali-dad”4.

Bandrés afirma que a independência judicialconstitui um direito fundamental dos cidadãos,inclusive o direito à tutela judicial e o direito aoprocesso e julgamento por um tribunal indepen-dente e imparcial. E conclui, citando Luigi Ferra-joli, para quem a independência da magistraturapode ser entendida de diversas maneiras, inclu-sive opostas,

“como independencia de la función judi-cial respecto del Poder Ejecutivo y de loscentros burocráticos de decisión internosa la propia organización judicial, o comoindependencia del Poder Judicial de cu-alquir forma de control democrátaico ypopular. En una palavra, como indepen-dencia frente al poder o como poder in-dependente”5.

Assim, é preciso um órgão independente eimparcial, para velar pela observância da Cons-tituição, e garantidor da ordem na estrutura go-vernamental, mantendo nos seus papéis tantoo Poder federal como as autoridades dos Esta-dos Federados, além de consagrar a regra deque a Constituição limita os poderes dos ór-gãos da soberania. Marcelo Caetano analisa essaimportante função do Judiciário americano, apon-tando que

“na verdade, a Constituição criou umequilíbrio instável entre a União e os Es-

2FERREIRA, Pinto. Comentários à constituiçãobrasileira. São Paulo: Saraiva, 1992. v. 4. p. 03.

3ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciário -tradução: Juarez Tavares. São Paulo: RT, 1995, p. 87.

4SCHMITT, Carl. La Defensa de la Constitucion(Der Hüter der Verfassung) - tradução do alemão deManuel Sanchez Sarto. Madri: Tecnos1983, p. 53.

5BANDRÉS, José Manuel. Poder Judicial YConstitución. Barcelona: Bosch-Casa Editorial, 1987.p. 12.

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tados que nos primeiros tempos teria sidomuito fácil romper em benefício dos Esta-dos, considerados fonte e origem da so-berania federal, reduzindo a União à im-portância. Era preciso que um órgão in-dependente e imparcial velasse pela ob-servância da Constituição e mantivessenos seus papéis tanto o Poder federalcomo as autoridades dos Estados fede-rados. O Supremo Tribunal chamou a siessa missão, que não lhe estava atribuí-da expressamente na Constituição, a par-tir do célebre caso Marbury v. Madison(1803). Mas com ela veio uma idéia nova,desconhecida em Inglaterra: a de que aConstituição limita os poderes dos órgãosda soberania”6.

2. Independência do Poder Judiciário econtrole externo

A imperiosa obrigatoriedade de imparciali-dade e independência do Poder Judiciário nostraz a necessidade de tratarmos da real possibi-lidade da criação de um controle externo sobresuas atividades.

O estudo deve analisar, primeiramente, o teorde dois artigos da Constituição Federal, o art.2º (São Poderes da União, independentes e har-mônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e oJudiciário) e o art. 60, § 4º, III (Não será objetode deliberação a proposta de emenda tenden-te a abolir a separação dos Poderes), pois aconjugação de ambos nos mostra que o legisla-dor constituinte, ao proclamar a existência depoderes da República, independentes e harmô-nicos entre si, cada qual com sua função sobe-rana, buscou uma finalidade maior, qual seja,evitar o arbítrio e garantir a liberdade individualdo cidadão. Ambas as previsões vieram acom-panhadas pelo manto da imutabilidade, preten-dendo o legislador constituinte evitar o futurodesequilíbrio entre os detentores das funçõesestatais.

A harmonia prevista entre os Poderes de Es-tado vem acompanhada de um detalhado siste-ma de freios e contrapesos (check and balan-ces), consistente em controles recíprocos7.

Assim, é necessário lembrar, dentro dessaidéia de reciprocidade de controles, que a fis-calização contábil, financeira, orçamentária, ope-racional e patrimonial das unidades administra-tivas do Poder Judiciário deverá ser realizadapelo Poder Legislativo, por meio do próprio Con-gresso Nacional, com o auxílio do Tribunal deContas da União8, no âmbito nacional.

Além disso, o modo de escolha e investidu-ra da cúpula do Poder Judiciário – os Ministrosdo Supremo Tribunal Federal – sofre rigorosocontrole por parte tanto do Poder Executivo,quanto do Poder Legislativo. A ConstituiçãoFederal prevê, em seu art. 101, que o

“Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentrecidadãos com mais de trinta e cinco emenos de sessenta e cinco anos de ida-de, de notável saber jurídico e reputaçãoilibada”,

sendo que o parágrafo único do citado artigodetermina que

“Os Ministros do Supremo TribunalFederal serão nomeados pelo Presidenteda República, depois de aprovada a es-colha pela maioria absoluta do SenadoFederal”.

Não bastasse isso, o Poder Judiciário sofrecontrole administrativo na escolha e modo deinvestidura de altos magistrados de TribunaisSuperiores, além da regra do quinto constitucio-nal na Justiça Federal, no âmbito da União; enos Tribunais Estaduais e do Distrito Federal.

A reforçar esse sistema de controles exerci-dos sobre o Poder Judiciário, como relembraJosé Tarcízio de Almeida Melo,

“o controle legislativo do Poder Judiciá-rio, além daquele em que o Congresso temcomo auxiliar o Tribunal de Contas daUnião, dá-se com a participação na ela-boração dos projetos de lei, de iniciativado Supremo Tribunal Federal, dos Tribu-nais Superiores e dos Tribunais de Justi-ça, concernentes à alteração do númerode cargos de membros dos Tribunais edos respectivos servidores, e fixação dosvencimentos, bem como à organização edivisão judiciária (art. 96, III)”9.

6CAETANO, Marcelo. Direito constitucional. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987.v. I. p. 117.

7Cf. MORAES, Alexandre. Direitos humanos.São Paulo: Atlas, 1997. p. 65-75; PIÇARRA, Nuno.Separação de poderes como doutrina e princípioconstitucional. Coimbra: Coimbra, 1989. ; FERRAZ,

Anna Cândida da Cunha. Conflito entre poderes. SãoPaulo: RT, 1994.

8CF, art. 71, IV.9ALMEIDA MELO, José Tarcízio de. Direito

constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 258.

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Todos esses controles configuram-se pre-visões originárias do legislador constituinte,dentro do equilíbrio que deve pautar a harmo-nia entre os Poderes da República.

Seria possível, pois, ao legislador constitu-inte derivado – Congresso Nacional – concebera tarefa de criação de um verdadeiro QuartoPoder, cuja função precípua seria controlar umdos três Poderes da República, originariamentecriado e organizado pela Assembléia NacionalConstituinte?

Cremos que não, sob pena de grave ferimentoà uma das cláusulas pétreas: a Separação dosPoderes10. A criação de um órgão autônomo eexterno ao Poder Judiciário, com a missão defiscalizá-lo e controlá-lo, acabaria por desres-peitar flagrantemente os arts. 2º e 60, § 4º, III, daConstituição Federal, configurando-se em umaintervenção dos demais poderes na magistratu-ra, que ficaria submetida hierárquica e politica-mente a um órgão político, composto por inte-grantes pertencentes aos demais Poderes ouinstituições estatais, e, em conseqüência, have-ria o grave risco de comprometimento da impar-cialidade dos magistrados11.

Esse mesmo entendimento é defendido porMichel Temer, que, após analisar a necessidadede independência do Judiciário, afirma que o

“Conselho Nacional de Justiça seráum outro poder, independente dos de-mais. Será composto, inafastavelmente,por membros de correntes partidárias oufuncionais que farão nascer, se não dire-tamente, pelo menos indiretamente, ne-fasta influência na decisão judicial. Nãodesejo dizer, com isso, que o juiz será in-timidado pelo Conselho. Haverá, porém,

nítida preocupação do juiz com o Conse-lho, de composição heterogênea, commembros nem sempre conhecedores daarte jurisdicional. Se as Constituições pri-maram, sempre, por evitar até mesmo ainjunção interna no poder decisório,como admitir que um órgão externo aoJudiciário venha a fazê-lo?”12.

Se não é possível constitucionalmente a cri-ação de um órgão externo controlador do PoderJudiciário, a própria Constituição Federal já pre-vê a possibilidade de criação de um Conselhoda Justiça, que funcionará junto ao SuperiorTribunal de Justiça, cabendo-lhe, na forma dalei, exercer a supervisão administrativa e orça-mentária da Justiça Federal de primeiro e segun-do graus. Ressalte-se que as funções desseConselho de Justiça devem assemelhar-se àsfunções dos Conselhos Superiores da Magis-tratura portuguesa13, que, como salientado porCanotilho, não podem perturbar a independên-cia interna dos magistrados, isto é, o livre exer-cício da sua atividade, garantindo-se constitu-cionalmente a inexistência de quaisquer víncu-los perante os órgãos dirigentes do próprio Ju-diciário e dos tribunais superiores14.

3. Supremo Tribunal Federal e controleexterno do Poder Judiciário

O Supremo Tribunal Federal não admite acriação de mecanismos de controle externo doPoder Judiciário que não foram previstos origi-nariamente pelo legislador constituinte, enten-dendo que tais hipóteses afrontam o princípioda separação dos poderes. Assim, analisando apossibilidade de criação de controles externosàs magistraturas estaduais, o Tribunal já decla-rou a inconstitucionalidade das Constituições dosEstados da Paraíba, Pará, Bahia e Mato Grosso.

O STF declarou a inconstitucionalidade daConstituição do Estado da Paraíba que instituíao Conselho Estadual de Justiça, composto pordois desembargadores, um representante daAssembléia Legislativa do Estado, o Procurador-

10Posicionando-se a favor da criação de um con-trole externo do Poder Judiciário, que entende com-patível com a Separação dos Poderes, Mário Brock-mann afirma que “a expressão poderes independen-tes permite uma interpretação abusiva da teoria ins-pirada da fórmula importada, pois o que se buscacom a separação de poderes é a sua limitação mútua,enquanto o que se obtém com a sua independência éuma lógica de expansão isolacionista. E com o isola-mento podem vir a irresponsabilidade, o privilégio eo abuso”( Separação de Poderes e Controle Externodo Judiciário. Cadernos de Direito Constitucional eCiência Política. n. 09. São Paulo: RT, 1996. p.85).

11Sobre os reflexos da politização dos juízes naatividade jurisdicional, consultar: FERRAZ, Junior.Tércio Sampaio. O Judiciário frente à divisão dos Po-deres: Um princípio em decadência ? Revista Trimes-tral de Direito Público. São Paulo: Malheiros. p. 46.

12TEMER, Michel. Constituição e Política . SãoPaulo: Malheiros, 1994. p. 77-78.

13Conselhos Superiores da Justiça – ConselhoSuperior da Magistratura (CRP, arts. 219 e 220);Conselho Superior dos Tribunais Administrativos eFiscais (CRF, art. 219) e Conselho Superior do Mi-nistério Público (art. 222),

14CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitu-cional . Coimbra: Almedina, 1993. p. 768.

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Geral do Estado e o Presidente da Seccional daOAB, atribuindo-lhe a fiscalização da atividadeadministrativa e do desempenho dos deveresfuncionais do Poder Judiciário, do MinistérioPúblico, da Advocacia Geral do Estado e daDefensoria Pública, pois entendeu que essa pre-visão ofendia, flagrantemente, o princípio daSeparação dos Poderes15.

Igualmente, o Pretório Excelso declarou a in-constitucionalidade da Constituição do Estadodo Pará que criara um Conselho Estadual deJustiça integrado por membros da magistraturaestadual, autoridades pertencentes aos outrosPoderes, advogados e representantes de cartó-rios de notas de registro e de serventuários daJustiça, afirmando que

“a criação, pela Constituição do Estado,de Conselho Estadual de Justiça com essacomposição e destinado à fiscalização eao acompanhamento do desempenho dosórgãos do Poder Judiciário é inconstitu-cional, por ofensa ao princípio da sepa-ração dos Poderes (art. 2º da Constitui-ção Federal), de que são corolários o au-togoverno dos Tribunais e a sua autono-mia administrativa, financeira e orçamen-tária (arts. 96, 99 e parágrafos, e 168 daCarta Magna)”16.

O Supremo Tribunal Federal, por unanimi-dade, também julgou procedente ação direta paradeclarar a inconstitucionalidade da Constitui-ção do Estado da Bahia que, alterando o modode investidura dos desembargadores do Tribu-nal de Justiça, pretendia estabelecer uma fisca-lização dos poderes Executivo e Legislativo naformação do Tribunal. Assim, a Constituiçãobaiana previa que o Tribunal de Justiça deveriaindicar ao Governador do Estado o Juiz maisantigo ou apresentar-lhe lista tríplice para o cri-tério de merecimento, para que esse efetivassea escolha e submetesse-a à apreciação da As-sembléia Legislativa. Entendeu a Corte Supre-ma que esse dispositivo desrespeitou o auto-governo da magistratura (CF, art. 99, caput)17.

Por fim, o STF, também por votação unâni-me, julgou procedente a ação direta e declarou ainconstitucionalidade da Constituição do MatoGrosso que estabelecia a criação de um contro-le externo à magistratura estadual. Conformeafirmou o Tribunal,

“O princípio da separação e inde-pendência dos Poderes não possui umafórmula universal apriorística e comple-ta: por isso, quando erigido, no orde-namento brasileiro, em dogma consti-tucional de observância compulsóriapelos Estados-membros, o que a estesse há de impor como padrão não sãoconcepções abstratas ou experiênciasconcretas de outros países, mas sim omodelo brasileiro vigente de separa-ção e independência dos Poderes,como concebido e desenvolvido naConstituição da República. (...) PoderJudiciário: controle externo por colegi-ado de formação heterogênea e partici-pação de agentes ou representantesdos outros Poderes: inconstitucionali-dade de sua instituição na Constitui-ção de Estado-membro. Na formulaçãopositiva do constitucionalismo republi-cano brasileiro, o autogoverno do Ju-diciário – além de espaços variáveis deautonomia financeira e orçamentária –reputa-se corolário da independênciado Poder (ADIn 135-Pb, Gallotti, 21-11-96): viola-o, pois, a instituição de ór-gão chamado “controle externo”, comparticipação de agentes ou represen-tantes dos outros Poderes do Estado.A experiência da Europa continentalnão se pode transplantar sem traumaspara o regime brasileiro de poderes: lá,os conselhos superiores da magistra-tura representaram um avanço signifi-cativo no sentido da independência doJudiciário, na medida em que nada lhetomaram do poder de administrar-se, deque nunca antes dispuseram, mas, aocontrário, transferiram a colegiadosonde a magistratura tem presença rele-vante, quando não majoritária, pode-res de administração judicial e sobreos quadros da magistratura que histo-ricamente eram reservados ao Executi-vo; a mesma instituição, contudo, tra-duziria retrocesso e violência consti-tucional, onde, como sucede no Brasil,

15STF - Adin nº 135-PB - rel. Min. OctavioGallotti - d. 21.11.96 - Informativo STF nº 54

16STF - Pleno - Adin nº 137-0/PA - rel. Min.Moreira Alves, Diário da Justiça, Seção I, 3 out. 1997,p. 49.227.

17STF - Pleno - Adin nº 202-3/BA - rel. Min.Octávio Gallotti, Diário da Justiça, Seção I, 13 SET1996, p. 33230 e INFORMATIVO STF nº 43, ondesão citados os seguintes precedentes: ADIn 314-PE(Pleno, 04.09.91); ADIn 189-RJ(RTJ, 138/371); Aor70-SC (RTJ 147/345).

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a idéia da independência do Judiciárioestá extensamente imbricada com ospredicados de autogoverno crescente-mente outorgados aos Tribunais”18.

18STF - Pleno - Adin nº 98-5/MT - rel. Min.Sepúlveda Pertence, Diário da Justiça, Seção I, 31out 1997, p. 55.539.

*Notas bibliográficas conforme original.

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1. O Estado Democrático de Direitoe a Advocacia Pública como

função essencial à justiçaÉ cediço que o Estado liberal dos séculos

XVIII e XIX foi concebido com a finalidade pri-mordial de garantir a liberdade e a propriedadeindividuais contra os abusos perpetrados pelosdetentores do poder absoluto, insubmissos aqualquer regra de direito tirada da razão e dajustiça.

Essa intenção liberal de defesa da autono-mia privada exprimiu-se na Constituição, que setornou um “estatuto negativo”1, ou seja, um con-junto de normas jurídicas destinado a demarcaras fronteiras do ente estatal, que não maisdeveria “perturbar nem ofender (ou evitar quealguém o conseguisse) os direitos e liberdadesinalienáveis do indivíduo”2.

Consolidando ainda mais o escudo protetordos direitos e liberdades individuais, o Estadoliberal incorporou a doutrina da separação

O controle da legalidade diante da remoção eda inamovibilidade dos advogados públicos

Derly Barreto e Silva Filho

Derly Barreto e Silva Filho é Procurador doEstado de São Paulo; Diretor do Instituto Brasileirode Advocacia Pública.

SUMÁRIO

1. O Estado Democrático de Direito e a Advoca-cia Pública como função essencial à justiça. 2. A ati-vidade de consultoria e de representação a cargodos advogados públicos. 3. Garantias da AdvocaciaPública e seus agentes – A independência institucio-nal e a autonomia funcional. 4. O controle da legali-dade diante da remoção e da inamovibilidade dosadvogados públicos. 5. Propostas.

1 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade dasnormas constitucionais. 2. ed. São Paulo : Revistados Tribunais, 1982. p. 126.

2 RIBEIRO, Vinício. O estado de direito e o prin-cípio da legalidade da administração. 2. ed. CoimbraEd. 1981. p. 43.

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dos poderes3, concebida cientificamente porMontesquieu – em “O Espírito das Leis” –, como fito de evitar a abusiva concentração do poderpolítico nas mãos de um só órgão – o rei –, oque se logrou dividindo o poder estatal (oumelhor, as funções do Estado) em órgãos espe-cializados, contrapondo-os a fim de que hou-vesse uma limitação recíproca, uma contençãodo poder pelo poder, por meio de um sistema defreios e contrapesos.

Todavia, com o passar do tempo, eviden-ciou-se que a fórmula do liberalismo para asolução dos problemas relativos ao arbítrioestatal não fornecia respostas válidas às neces-sidades materiais da sociedade, liberta dos ten-táculos do Estado, mas entregue à sorte dasregras de mercado, lastreadas na autonomia davontade, que nem sempre asseguravam a todoscondições dignas de existência4.

Observa Manuel Afonso Vaz que, estabele-cendo apenas

“uma delimitação de competência entretitulares do poder e restringindo o elencodos direitos fundamentais aos chamadosdireitos negativos (os que pressupõemou postulam uma abstenção dos poderespolíticos), a Constituição abstinha-se deencarar frontalmente os problemas daordem e da constituição económica”5.

Tais problemas provinham exatamente doabuso das liberdades individuais, notadamenteno plano das relações sócio-econômicas6.

O poder econômico de uma minoria (a bur-guesia) – manifestado por meio da detençãoparticular dos meios de produção – subjugavapopulações inteiras, privadas das necessidadesmais elementares de subsistência.

O Estado liberal, para não sucumbir àsdemandas das classes oprimidas, foi injungido, apartir do início do século XX, a intervir na vidasocial e econômica, que permanecia à sua margem.

Surge, então, a preocupação com o interessepúblico, com o bem-estar coletivo, em substi-tuição ao individualismo7.

Amplia-se o campo de atuação do Estado,que passa a tutelar, além dos direitos individuais,bens jurídicos de relevo social, como saúde,moradia, educação, trabalho, previdência, trans-porte, interferindo no domínio privado, instituindolimitações à liberdade e propriedade individuais,avocando e orientando atividades antes deixadasao inteiro talante da livre iniciativa.

Com muita percuciência, salienta MariaSylvia Zanella di Pietro que essa evolução trouxe

3 A expressão “separação dos poderes” é a técni-ca, pois todo poder político estatal é uno. São assuas funções que se separam. Todavia, o legisladorconstituinte brasileiro optou por essa nomenclatura,como se vê da leitura do art. 60, § 4º, III, da Constitui-ção Federal de 1988.

4 A respeito das teses defendidas pelos liberaisclássicos, Reinhold Zippelius escreve: “Era um opti-mismo grandioso que preenchia estas teses. No en-tanto, fracassou a ideia optimista de um Estado quepermitisse que a personalidade do indivíduo, a socie-dade e a economia se desenvolvessem de acordo comas suas próprias leis. A benção de uma economia quese desenvolvesse sem intervenções nem restriçõespor parte do Estado revelou-se, para os milhares deoperários apanhados pela engrenagem das novasfábricas e minas, como sistema de exploração desu-mana. Os empresários e operários eram, sem dúvida,juridicamente livres de celebrar e rescindir contratosde trabalho, mas em termos económicos esta liberdadeconsistia para o operário na escolha entre trabalharsob condições muitas vezes mais que indignas oumorrer de fome” (Teoria Geral do Estado. TraduçãoKarin Praefke-Aires Coutinho. 3. ed. Lisboa : Fun-dação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 379).

5 Direito Económico. 2. ed. Coimbra Ed. 1990. p.75.

6 Apontando os paradoxos do liberalismo clássico,Agustín Gordillo afirma: “O tempo demonstrou queo simples cumprimento dos postulados de liberdadee igualdade com proteção do Estado pode resultar emverdadeiros paradoxos pois a sociedade apresentaamiúde diferenças econômicas e sociais entre seuscomponentes, que se acentuam continuamente numregime que se contenta em proteger os direitos depropriedade e liberdade etc. tal e como os encontra,sem preocupação de melhorá-los quando de fato sãoinsuficientes. Se o Estado se limita a contemplarimpassível enquanto as diferenças sociais vão se acen-tuando de fato, sem tomar nenhuma ação para ajudaraos mais necessitados para progredir paralelamenteaos demais, estaria contribuindo praticamente parauma verdadeira negação dos direitos que postula paraos indivíduos. De nada serviria reconhecer a “todos”os indivíduos um direito à propriedade ou liberdadede trabalho ou de ensinar e aprender, se as condiçõessócio-econômicas imperantes (miséria, enfermidade,acidentes, ignorância, velhice) excluem permanente-mente alguns indivíduos de toda oportunidade de se-rem proprietários, trabalhar livremente ou aprender eensinar. Este é o paradoxo que o “Estado de Direito”,numa colocação muito tradicional, não tem logrado,ao que parece, superar” (Princípios gerais de DireitoPúblico. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1977. p.69-70).

7 “Do Estado como entidade necessariamentealheia ao processo de satisfação das necessidades

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conseqüências inevitáveis em matéria de con-trole jurídico do poder, porque os mecanismosidealizados para o Estado liberal, centradosfundamentalmente na proteção dos direitosindividuais, tornaram-se inadequados para umEstado de cunho social, intervencionista8.

De fato. Até então, o controle de legalidadelimitava-se a dizer da conformidade do ato estatalà lei, apenas sob o prisma formal, desvinculadoda idéia de justiça9.

Hoje, com o advento do Estado Democráticode Direito, requer-se, e efetivamente passa ahaver – muito embora ainda não tão eficaz-mente –, um controle administrativo abrangentede aspectos como desvio de poder, moralidade,legitimidade, economicidade, proporcionalidadedos meios aos fins, adequação dos fatos ànorma, qualificação jurídica dos fatos feita pelaAdministração Pública10; enfim, hodiernamente,cobra-se do Estado não somente a crua e formalsubmissão ao texto da lei: exige-se que sua açãotenha assomos de legalidade e conteúdo delegitimidade e licitude, atendendo, portanto, àvontade popular e à moralidade.

No Estado brasileiro de 1988, isso trans-parece com enorme clareza não só pela dic-ção do art. 1º da Constituição Federal,11 mas,antes, pelo próprio preâmbulo constitucio-nal12. Confira-se:

“Nós, representantes do povo brasi-leiro, reunidos em Assembléia NacionalConstituinte para instituir um EstadoDemocrático, destinado a assegurar oexercício dos direitos sociais e indivi-duais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade ea justiça como valores supremos de umasociedade fraterna, pluralista e sem pre-conceitos, fundada na harmonia sociale comprometida, na ordem interna einternacional, com a solução pacíficadas controvérsias, promulgamos, sob aproteção de Deus, a seguinte CONSTI-TUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVADO BRASIL”.

Pois bem. Como o Estado Democrático deDireito brasileiro consegue assegurar tão altivospropósitos?

A questão admite diversos enfoques, per-mitindo inúmeras análises. Entretanto, como nãose tenciona, aqui, teorizar sobre o assunto, massomente investigar o contexto no qual a Advo-cacia Pública se situa, pode-se afirmar que umdos mecanismos mais hábeis engendrados peloDireito Público contemporâneo para confinar aação do Estado aos quadrantes constitucionaisé o controle administrativo, para o qual, noregime constitucional de 1988, colaboram e con-correm decisivamente as chamadas “funçõesessenciais à justiça”.

Essa atividade de controle, prelecionaDiogo de Figueiredo Moreira Neto, é cometi-da a “órgãos técnicos, exercentes de umaparcela do poder estatal, mas destacados dosPoderes do Estado”13.

Com razão, pois, no título dedicado à or-ganização dos Poderes, depois de tratar doLegislativo, do Executivo e do Judiciário, aConstituição Federal elencou as funções es-senciais à justiça , instituindo o MinistérioPúblico (cf. arts. 127 a 130)14, a Defensoria

privadas – anota Ana Prata – passa-se ao entendi-mento de que ao Estado devem ser cometidas tarefasde realização do bem-estar dos cidadãos em sectoresconsiderados fundamentais, prioritários, vitais, aomesmo tempo que lhe incumbe intervir nas relaçõesinterindividuais de forma a, pelo assegurar de valoresmínimos de sã convivência, corrigir as conseqüênciasque a situação de real desigualdade dos sujeitos acar-reta” (A tutela constitucional da autonomia privada.Almedina, 1982. p. 38-39).

8 As carreiras jurídicas e o controle da Adminis-tração Pública. Revista Jurídica de Osasco, v. 3, p.72, 1996.

9 Em razão desse formalismo, o Poder Judiciárioadstringia-se a aferir a legalidade do ato da Adminis-tração somente sob aspectos de competência, formae objeto.

10 DI PIETRO, op. cit., p. 73.11 Prescreve o art. 1º da Constituição Federal que

“A República Federativa do Brasil, formada pela uniãoindissolúvel dos Estados e do Distrito Federal, cons-titui-se em Estado Democrático de Direito...”.

12 Embora seja discutível o caráter jurídico dopreâmbulo constitucional, pode-se entendê-lo, segun-

do preleciona Jorge Miranda, como um “conjunto deprincípios que se projectam sobre os preceitos e sobreos restantes sectores do ordenamento” (Manual deDireito Constitucional. 3. ed. Coimbra Ed. 1991. v.2, p. 237), de modo que dele se podem extrair osgrandes objetivos constitucionais.

13 As funções essenciais à justiça e as procuraturasconstitucionais. Revista de Informação Legislativa,v. 29, n. 116, p. 82, out./dez. 1992.

14 De acordo com o caput do art. 127 da Consti-tuição Federal, o Ministério Público é instituição per-manente, essencial à função jurisdicional do Estado,

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Pública (cf. art. 134)15 e a Advocacia Pública(cf. arts. 131 e 132)16.

A partir desse enunciado constitucional, afir-ma-se, sem exagero, que as funções essenciaisà justiça são tão relevantes quanto aquelas exer-cidas pelos três Poderes do Estado, exatamenteporque, pela sua atuação, assegura-se (ou seprocura assegurar) a perfeita correspondênciaformal e material dos atos administrativos aospostulados da legalidade, legitimidade e licitude,valores que se sintetizam no termo justiça, con-tido na expressão funções essenciais à justiça,17

aspiração maior do Estado Democrático deDireito brasileiro.

No que atina com a Advocacia Pública, essasfunções compreendem atividades preventivas(consultoria jurídica) e postulatórias (represen-tação)18.

À função preventiva cabe orientar a atuaçãoda Administração Pública, evitando, assim, ocometimento de injuridicidades; à função postu-latória, por seu turno, cumpre demandar, juntoao Poder Judiciário, a defesa dos interessesentregues à cura do Estado.

Conclui-se, assim, que a Advocacia Pública,no Estado Democrático de Direito brasileiro, in-sere-se basicamente no contexto do controlejurídico da função administrativa, acautelando,promovendo e defendendo os interesses públi-cos sob a ótica da justiça.

2. A atividade de consultoriae de representação a cargo

dos advogados públicosConsiderando que o regime jurídico-admi-

nistrativo, no Estado Democrático de Direito,tem como pilares a supremacia do interessepúblico sobre o privado e a indisponibilidade

dos interesses públicos pela Administração19, oPoder Público, seus órgãos e seus agentes têmo dever indeclinável de perseguir e tutelar taisinteresses. Para isso, a ordem jurídica confere àAdministração o poder de autotutela, possibi-litando sejam revogados atos administrativosinconvenientes ou inoportunos e anulados atosilegais20.

No bojo desse poder-dever, está o controleinterno da legalidade, tarefa para a qual osadvogados públicos foram constitucionalmenteconvocados (cf. arts. 131 e 132 da ConstituiçãoFederal).

Destarte, na medida em que a Carta Políticareservou, em caráter privativo, à AdvocaciaPública, a atividade de consultoria jurídica, éporque quis que órgão diverso daquele queemite a vontade político-estatal verificasse egarantisse a existência de sintonia formal ematerial do ato (ou do projeto de ato) aos câno-nes da justiça, síntese da legalidade, legitimi-dade e licitude, acautelando, promovendo edefendendo o interesse público.

A essa função se dedicam os advogadospúblicos consultores, os quais – é importante aobservação – não se sujeitam a qualquer Poderou autoridade estatal; pelo contrário, gozamda mais ampla autonomia no que concerne aoexercício do aludido controle.

Mas a Advocacia Pública não se resume aessa atividade, necessária ao asseguramento,no âmago da Administração, do interesse públi-co, supremo e indisponível. Há, ainda, a nãomenos elevada e relevante função de postula-ção, de que se encarregam os advogados públi-cos da área do contencioso.

Tais agentes, incumbidos da representaçãodo Estado, exercem a defesa ativa e passiva doente público perante os órgãos do Poder Judiciá-rio, nos mais diversos foros e instâncias.

Vale notar, para concluir este tópico, que,muito embora o advogado público, na atividadeincumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime

democrático e dos interesses sociais e individuaisindisponíveis.

15 Segundo o art. 134, caput, da ConstituiçãoFederal, a Defensoria Pública é instituição essencial àfunção jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe aorientação jurídica e a defesa, em todos os graus,dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.

16 Nos termos dos arts. 131 e 132 da Constitui-ção Federal, compete à Advocacia Pública a repre-sentação judicial e extrajudicial, além da consultoriajurídica da União, dos Estados e do Distrito Federal.

17 MOREIRA NETO, op. cit., p. 79-83.18 Ibidem, p. 88.

19 Sobre a contextura do regime jurídico-adminis-trativo, consultar Celso Antônio Bandeira de Mello,Curso de Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo :Malheiros, 1996. p. 22-51.

20 Nesse sentido, o verbete nº 473 da súmula doSupremo Tribunal Federal enuncia: “A administra-ção pode anular seus próprios atos quando eivadosde vícios que os tornam ilegais, porque deles não seoriginam direitos; ou revogá-los, por motivo de con-veniência ou oportunidade, respeitados os direitosadquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apre-ciação judicial”.

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contenciosa, tenha o dever de defender a teseestatal – e não propriamente a sua convicção –,isso não implica dizer que ele não exerça umaforma de controle de legalidade dos atos admi-nistrativos. Isso se evidencia quando, depa-rando-se com um ato ilegal, ele procede a repre-sentações às instâncias competentes, sugerindoprovidências de correção, de anulação e, até mes-mo, de responsabilização da autoridade pública,tudo visando a defender, eficientemente, o inte-resse público (e, também, proteger-se contraeventuais acusações).

Por conseguinte, mesmo reflexa ou indireta-mente, os advogados públicos investidos nafunção postulatória participam da atividade decontrole interno da legalidade, devendo contar,também, com a necessária autonomia.

3. Garantias da Advocacia Públicae seus agentes – A independência

institucional e a autonomia funcionalPara o eficaz desempenho da atividade de

controle interno de juridicidade da funçãoadministrativa, é imprescindível a previsão degarantias, tanto à instituição quanto aos agentesque dela se desincumbem.

Tais garantias devem existir com vistas aassegurar convenientemente a defesa dos inte-resses públicos e a incolumidade dos bens jurí-dicos confiados à guarda da AdministraçãoPública.

A ordem jurídica, portanto, municia e instru-menta a Advocacia Pública e seus membros comprerrogativas que, em suma, tornam possívelcontrolar, de forma altaneira, a legalidade dosatos administrativos.

Sem pretender exaurir a matéria, podem serapontadas as mais expressivas garantias, con-substanciadas nos predicados da independên-cia institucional e da autonomia funcional21.

Antes, porém, de versar sobre os mencio-nados atributos, cumpre salientar que a noçãode interesse público, supremo e indisponível,embora plurissignificativa, não pode ser preci-

sada a partir da singela idéia de que diz respeitoà Administração ou à autoridade pública.

Como preleciona Maria Sylvia Zanella diPietro, o vocábulo “público”, contido na expres-são interesse público, refere-se “aos beneficiá-rios da atividade administrativa e não aos entesque a exercem”22. Daí a magistral lição de RuyCirne Lima, quando diz: “Em direito público,designa, também, a palavra administração a ati-vidade do que não é senhor absoluto”23. “Ad-ministração (...) é a atividade do que não é pro-prietário, – do que não tem a disposição dacousa ou do negócio administrado”24.

Ora, se os interesses públicos residem nacoletividade, sua verdadeira titular, conseqüen-temente, à Administração e às autoridadespúblicas apenas cabe zelar por eles. É o que secompreende por indisponibilidade dos interes-ses públicos, princípio administrativo assimenunciado por Celso Antônio Bandeira deMello:

“A indisponibilidade dos interessespúblicos significa que sendo interessesqualificados como próprios da coletivi-dade – internos ao setor público – não seencontram à livre disposição de quemquer que seja, por inapropriáveis. O pró-prio órgão administrativo que os repre-senta não tem disponibilidade sobre eles,no sentido de que lhe incumbe apenascurá-los – o que é também um dever – naestrita conformidade do que predispusera intentio legis”25.

Na medida em que os interesses públicosnão se confundem necessariamente com aque-les manifestados pela Administração e seusagentes26, impende distinguir os interesses (pú-blicos) primários dos interesses secundários.

Pela sua difusão na doutrina nacional eestrangeira, mister se faz trazer à colação asjudiciosas palavras de Renato Alessi sobre otema. Diz ele:

“Estes interesses públicos, coletivos,cuja satisfação está a cargo da Adminis-

21 Lapidarmente, e com elogiável rigor científico,Diogo de Figueiredo Moreira Neto arrola os seguintesprincípios constitucionais referentes às procuraturas(Ministério Público, Advocacia Pública e DefensoriaPública): “essencialidade, institucionalidade, igualda-de, unidade, organicidade unipessoal, independênciafuncional, inviolabilidade, autonomia administrativae autonomia de impulso” (op. cit., p. 92).

22 Discricionariedade administrativa na Consti-tuição de 1988. São Paulo : Atlas, 1991. p. 163.

23 Princípios de Direito Administrativo. 6. ed.São Paulo : Revista dos Tribunais, 1987. p. 21.

24 Ibidem, p. 22.25 Op. cit., p. 31.26 Isso se verifica, por exemplo, quando o Estado

resiste a devolver imposto recolhido indevidamenteou a indenizar vítimas de danos causados injusta-mente por agentes públicos.

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tração, não são simplesmente o interesseda Administração entendida como apara-to organizativo autônomo, mas o que sechamou de interesse coletivo primário,formado pelo conjunto dos interesses in-dividuais preponderantes numa determi-nada organização jurídica da coletividade,enquanto o interesse do aparato – se éque se pode conceber um interesse doaparato unitariamente considerado – se-ria simplesmente um dos interesses se-cundários que se fazem sentir no seio dacoletividade, e que podem ser realizadossomente em caso de coincidência, e noslimites dessa coincidência, com o interes-se coletivo primário. A peculiaridade daposição jurídica da Administração Públi-ca reside justamente nisso, em que a suafunção consiste na realização do interes-se coletivo, público, primário”27.

Dessume-se, com facilidade, dessa citaçãoque, havendo conflito de interesses primários esecundários, aqueles devem preferir a estes, por-que são os únicos que podem ser validamenteperseguidos por quem os representa, por cor-responder aos interesses da coletividade e nãoapenas do Estado, titular de direitos patrimo-niais, ou do governante.

Pois bem. Se no exercício de sua funçãoessencial à justiça – que o obriga a velar pelalegalidade, legitimidade e licitude dos atos admi-nistrativos –, deve o advogado público preca-tar, empreender e proteger o interesse público,que prerrogativa o ordenamento jurídico lhe dáquando, defrontando-se com interesses secun-dários, meramente patrimoniais da Administra-ção, ou com interesses pessoais, políticos oueconômicos do governante, tenha de apontarilegalidades, ilegitimidades ou ilicitudes?

Mais ainda: que garantia a ordem jurídicareserva à instituição que, muito embora nãosendo um “quarto poder”, constitucionalmentese encarrega da atividade de controle de juridi-cidade dos atos administrativos?

A esse último questionamento se responde:a independência institucional, ou seja, a desvin-culação da Advocacia Pública de qualquerPoder do Estado no que tange ao exercício dasfunções que desenvolve.

Dessa forma, é defeso aos Poderes Legisla-tivo, Executivo e Judiciário interferir nas atribui-ções da Advocacia-Geral da União e das Procura-

dorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal.Fosse lícito aos Poderes Constituídos imis-

cuir-se nas funções essenciais à justiça, ditan-do-lhes os comportamentos e inculcando-lhesas suas “vontades políticas”, o discurso cons-titucional dos arts. 127 e seguintes seria letramorta, inócua tentativa de estatuir limites (dejustiça) à atividade do Estado, por meio da atua-ção de órgãos públicos independentes.

Acrescente-se, por fim, que de nada vale agarantia de independência institucional das pro-curaturas constitucionais se não for acompa-nhada de autonomia administrativa e financeira.

Nesse particular, bem andou a Constituiçãodo Estado do Rio de Janeiro, ao conferir à Pro-curadoria-Geral do Estado “dotação orçamen-tária própria, sendo-lhe assegurada autonomiaadministrativa e financeira” (cf. art. 173, § 5º).

Notadamente no que tange à autonomiaadministrativa, Maria Sylvia Zanella di Pietrosugere que o Advogado-Geral (ou Procurador-Geral) tenha “mandato determinado, para poderatuar com maior independência”28.

27 Principi di Diritto Amministrativo. 3. ed.Milão : A. Giuffrè, 1974. p. 226-227.

28 Advocacia pública. Revista Jurídica da Pro-curadoria Geral do Município de São Paulo, SãoPaulo, n. 3, p. 30, 1995.

Com esse mesmo propósito, o deputado estadualJosé Eduardo Ferreira Netto elaborou e apresentou,em 27 de junho de 1996, a seguinte proposta deemenda à Constituição do Estado de São Paulo:

“Proposta de Emenda Constitucional nº 9, de1996

Estabelece a nomeação do Procurador-Geral doEstado precedida de eleição pelos integrantes da Pro-curadoria Geral do Estado em lista tríplice e disciplinasua destituição

Artigo 1º - Dê-se ao parágrafo único do artigo100 da Constituição do Estado a seguinte redação:

O Procurador-Geral do Estado será nomeado peloGovernador, entre os procuradores que integram acarreira, mediante lista tríplice entre os mais votadospelos integrantes do quadro, com mandato de doisanos, permitida uma recondução e deverá apresentardeclaração pública de bens, no ato da posse e de suaexoneração, podendo ser destituído do cargo pordeliberação da maioria absoluta e por voto secreto daAssembléia Legislativa.

Artigo 2º - Esta Emenda Constitucional entraráem vigor na data de sua publicação.

JustificativaA Procuradoria Geral do Estado, nos termos do

artigo 98 da Constituição do Estado é orientada pelosprincípios da legalidade e da indisponibilidade dointeresse público, cometendo-se ao Procurador-Geral

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No que concerne ao advogado público, osistema constitucional garante-lhe autonomiafuncional.

Sendo certo que a Constituição Federaldestacou as funções essenciais à justiça dostradicionais Poderes do Estado, dedicando-lhesum capítulo próprio (vide Capítulo IV do TítuloIV), não é demasia alguma concluir, como alhuresse fez, que assim objetivou criar outras instân-cias de controle de adequação formal e materialdo ato administrativo (ou do projeto de ato) aosditames da legalidade, legitimidade e licitude,instâncias essas funcionalmente desvinculadasdas referidas esferas do Poder Político, comovisto.

A plenitude, a eficácia e a própria efetividadedessa atividade exercida pelos advogados pú-blicos dependem da liberdade, da independên-cia, da autonomia de que eles gozem. Em vistadisso, parece válida a assertiva: ou o advogadopúblico, no seu mister, possui autonomia funcio-nal ou a função que ele exerce não é essencial àjustiça.

De fato. Como poderia o procurador do Es-tado, por exemplo, emitir um parecer, visando aproteger a legalidade ou a moralidade do atoadministrativo, se estivesse sob o influxo deordens superiores ou de injunções políticas emdado sentido? De que forma o advogado públi-co exercitaria o seu múnus em juízo se lhe fossedeterminado argumentar ou fundamentar de talou qual jeito?

Ingerências desse jaez não estão amparadaspela Constituição Federal. Tanto nas relaçõesdos Poderes do Estado com as Procuradoriasquanto no relacionamento dos advogadospúblicos entre si, não há espaço para a hierar-quia, entendida como a “relação de subordina-ção existente entre os vários órgãos e agentesdo Executivo, com a distribuição de funções e agradação da autoridade de cada um”29. Não hálugar para imposição de ordens30. O que existe,diz Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “sãorelações legalmente definidas, que são incom-patíveis com a subordinação funcional”. “Nem

a responsabilidade pela orientação jurídica e adminis-tração da instituição, estando as funções do órgão emenumeração exemplificativa no artigo 99 da Consti-tuição do Estado.

Sem autonomia funcional o desempenho dessainstituição fica comprometido e vinculado aos capri-chos e à discricionariedade do Chefe do Poder Exe-cutivo, uma vez que lhe compete pelo texto vigentedestituir o Procurador-Geral, quando bem entenda,pois a nomeação se efetiva em comissão.

A Procuradoria Geral do Estado é instituição per-manente. No desempenho de sua função institucio-nal, tem na ordem jurídica vigente atribuições e res-ponsabilidades definidas sendo inconcebível, possaficar sujeita a injunções políticas, pois sendo o Pro-curador-Geral demissível ad nutum, pelo Sr. Gover-nador, indaga-se qual a independência que fica reser-vada à instituição para cumprir a sua vocação de operarcumprindo os preceitos de legalidade e da indisponi-bilidade do interesse público.

A atividade do advogado público orienta-se peloprincípio da legalidade e como ensina José Afonso daSilva, a lei “caracteriza-se como desdobramentonecessário do conteúdo da Constituição” (Curso deDireito Constitucional Positivo. 7. ed. São Paulo :Revista dos Tribunais, p. 107). Nesta nobre e impor-tante função é necessário que a Procuradoria não fiquea mercê de uma “filosofia política” do Chefe do PoderExecutivo porque o princípio da legalidade não é dúctilou impreciso.

Quando a Constituição do Estado, em seu artigo98 atribui à Procuradoria Geral do Estado a respon-sabilidade “pela advocacia do Estado”, está atribuin-

do-lhe a defesa do Erário, cujos bens, interesses edireitos, por indisponíveis e por comporem o patri-mônio público, não se prestam sequer à renúncia, àtransação ou a outra forma de composição. Trata-se,assim, de desempenho estritamente técnico-jurídico,infenso e imune à interferência de natureza diversa.

O advogado público não está obrigado a defendero que lhe impõe o Governador, porque a Procuradorianão foi criada para zelar pelos interesses do Chefe doPoder Executivo, mas sim, para preservar os interes-ses primários da Administração que não têm existêncialegítima à ilharga do princípio da legalidade” (DiárioOficial do Estado, Poder Legislativo, v. 106, n. 122,p. 2, 29 jun. 1996.).

29 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Adminis-trativo brasileiro. 17. ed. São Paulo : Malheiros, 1992.p. 105.

30 “Como o advogado particular, o advogadorepresentante do Estado, de órgão público, propria-mente dito, ou de instituição assemelhada, deve serindependente – e não simples mandatário da vontadedo poder dirigente –, para resguardar as prerrogativasprofissionais e da classe, consoante estipulado nodiploma estatutário (Lei n. 2.415, art. 87, VII). Valedizer que também não lhe cabe cumprir ordens, masoficiar nos processos judiciais ou administrativos,com autonomia de deliberação, respeitado o direitoou o interesse sob sua guarda profissional. A medidade sua atuação encontra-se na lei e no amparo dopatrimônio ou do interesse público, e não no arbítrioou no preconceito dos agentes da Administração.Servem-lhe de suporte, e ao mesmo tempo de adver-tência, a caracterização ampla do litigante de má fé ea definição de sua responsabilidade civil e proces-sual (Código de Processo Civil, arts. 16, 17 e 18)”

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mesmo em relação ao Chefe dos órgãos colegia-dos das procuraturas – finaliza – existe hierar-quia funcional: apenas administrativa”31.

Não se pode olvidar que os advogados pú-blicos pautam-se estritamente pelo dever deacautelamento, promoção e defesa dos interes-ses públicos primários e não dos interessessecundários destes divorciados. Por conse-guinte, é a autonomia funcional que lhes permitea insurgência contra arroubos ou ímpetos deilegalidade da Administração ou dos governan-tes. De outra forma, eles serviriam de fachadapara perpetração de ilegalidades, dando ao atoadministrativo dissonante da ordem jurídica apa-rência de legalidade.

A propósito, lembra Dalmo de Abreu Dallarique

“o Procurador Público é quem tornacerto que o Poder Público não é imune aoDireito. Compete-lhe defender os inte-resses sociais, particularizados numaentidade pública, sem excessos ou tran-sigências, sempre segundo o Direito.Conscientes de que o poder político e aatividade administrativa são expressõesda disciplina jurídica das atividades dedireção e administração da Sociedade, oProcurador, orientando ou promovendoa defesa de interesses, jamais deveráomitir o fundamento jurídico de seudesempenho. E sua consciência jurídicanão lhe há de permitir que, pela vontadede agradar ou pelo temor de desagradar,invoque o Direito segundo critérios deconveniência, para acobertar ações ouomissões injustas”32.

A autonomia funcional, portanto, há de serentendida como a prerrogativa que asseguraaos advogados públicos o exercício da funçãopública de consultoria e de representação dosentes políticos independente de subordinaçãohierárquica (seja a outro Poder, seja aos próprioschefes ou órgãos colegiados da AdvocaciaPública) ou de qualquer outro expediente (comomanipulação de remuneração) que tencioneinterferir, dificultar ou impedir o seu poder-deverde oficiar de acordo com a sua consciência e a

sua missão de velar e defender os interessespúblicos primários, sem receio de “desagradar”quem quer que seja, Chefes dos Poderes Execu-tivos, Ministros, Secretários, Advogado-Geralda União, Procuradores-Gerais de Estados,órgãos colegiados das Procuraturas (v.g., con-selhos), chefias mediatas ou imediatas, magis-trados ou parlamentares.

4. O controle da legalidade dianteda remoção e da inamovibilidade

dos advogados públicosNeste tópico, cumpre saber, de início, se os

institutos da remoção e da inamovibilidade –que, como se verá, atinam diretamente com ograu de estabilidade funcional dos advogadospúblicos – são, e em que medida, compatíveiscom as garantias da independência e da auto-nomia, estudadas no tópico anterior.

Em direito administrativo, remoção é o deslo-camento, a movimentação do agente público deuma para outra repartição, de um para outroserviço. Tem como únicos pressupostos a exis-tência de vaga no quadro administrativo e anecessidade (administrativamente comprovada)do seu provimento. Sua finalidade, explica CelsoAntônio Bandeira de Mello, é “preencher clarosde lotação”33.

Já a inamovibilidade traduz a idéia diame-tralmente oposta. Como define ThemistoclesBrandão Cavalcanti, “é a garantia legal que proí-be a remoção ou transferência de lugar ou decargo”34.

Pois bem. O advogado público – que per-tence a uma instituição independente e desem-penha, autonomamente, função de controle – éinamovível ou pode ser livremente removido?

Nem uma coisa nem outra.No ordenamento jurídico constitucional,

nenhum agente público, por mais conspícuo queseja, goza de inamovibilidade irrestrita. Da mes-ma forma, nem o mais humilde ocupante de cargopúblico pode ser removido sem propósito.

Tanto a inamovibilidade quanto a remoçãosofrem temperamentos em razão do interessepúblico e da essencialidade da função cometidaaos agentes públicos.(MARINHO, Josaphat. Advocacia pública. Revista

da Procuradoria Geral do Estado, São Paulo, v. 21,p. 14-15, dez. 1983.).

31 Op. cit., p. 96.32 O renascer do Direito. 2. ed. 2. tiragem, São

Paulo : Saraiva, 1996. p. 47.

33 Discricionariedade e controle jurisdicional, 2.ed. São Paulo : Malheiros, 1993. p. 68.

34 Tratado de Direito Administrativo. 5. ed. Riode Janeiro : Freitas Bastos, s/d, p. 370. v. 4.

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Partindo da interessante classificação pro-posta por Mário Bernardo Sesta, pode-se dizerque, no sistema constitucional em vigor, há agen-tes públicos de existência contingente – quese desincumbem de funções auxiliares – e agen-tes públicos de existência necessária – quedesempenham funções institucionais, essencial-mente estatais35.

Os que exercem as chamadas funções essen-ciais à justiça encartam-se na última categoria(são agentes públicos de existência necessá-ria), porque devem, em caráter privativo, indele-gável, velar e defender os interesses públicos,atividade eminentemente estatal. Em conse-qüência, a eles são deferidas certas prerroga-tivas, entre as quais, como referido, a autonomiafuncional.

Mas de nada ou de pouco adiantaria gozarde independência se eles não fossem resguar-dados das pressões daqueles que, pela Consti-tuição Federal, manifestam a vontade políticado Estado, os governantes.

Necessário, pois, assegurar-lhes estabili-dade funcional, sob pena de malograr toda aintenção constitucional de submeter o Poder eas ações estatais a um contexto de legalidade,legitimidade e licitude.

Nesse sentido, consta expressamente daCarta Política a garantia da inamovibilidade dosmembros do Ministério Público (cf. art. 128, §5º, I, b), a quem compete “a defesa da ordemjurídica, do regime democrático e dos interessessociais e individuais indisponíveis” (cf. art. 127,caput), ou seja, a advocacia da sociedade, parausar da denominação de Diogo de FigueiredoMoreira Neto. Aos integrantes das DefensoriasPúblicas, o constituinte também se mostroubastante atencioso, ao enunciar tal prerrogativano art. 134, parágrafo único36.

E, com relação aos advogados públicos, ofato de a Constituição Federal não lhes ter asse-gurado, explicitamente, a inamovibilidade signi-fica que eles podem ou não ser removidos?

Tomás Pará Filho relata o caso de um advo-gado público

“que, no estrito cumprimento dos deve-res de seu cargo junto ao Tribunal deContas do Estado, opinara contra a apro-vação de contas de antigo Secretário daEducação, concluindo, ainda, pela res-ponsabilidade do mesmo pela malversa-ção de dinheiros públicos; e, por assim oter feito, fôra intempestivamente e arbi-trariamente afastado de suas funções,pelo Governo da época”37.

O caso é bastante ilustrativo e de extremavalia para a demarcação das fronteiras garanti-doras das funções exercidas pelos membros daAdvocacia Pública.

Como sobejamente demonstrado, os advo-gados públicos não estão submetidos à hierar-quia administrativa de qualquer Poder do Estado;não recebem ordens de quem quer que seja.Afinal, exercem função essencial à justiça, con-trolando os atos administrativos sob a ótica dalegalidade, da legitimidade e da licitude, preser-vando, promovendo e assegurando os interes-ses públicos primários entregues à cura doEstado, misteres que, insista-se, não podem ficarcondicionados à relação de subordinaçãoadministrativa. Para tanto, a ordem jurídica lhesatribui prerrogativas de autonomia e de inde-pendência38.

35 Advocacia do Estado : posição institucional.Revista de Informação Legislativa, v. 30, n. 117, p.187-202. jan./mar. 1993.

36 Sílvio Roberto Mello Moraes, nas suas anota-ções à Lei Complementar nº 80/94 – que trata daorganização das Defensorias Públicas –, discorre sobrea inamovibilidade dos defensores públicos nestestermos: “A garantia da inamovibilidade foi outorgadaaos Defensores Públicos pela Constituição Federal(art. 134, parágrafo único) e é de suma importânciapara a independência funcional dos mesmos, uma vezque os coloca a salvo de eventuais ingerências políticasdas quais poderiam ser vítimas ao se digladiar compoderosos em defesa dos interesses daqueles menosfavorecidos. Além disto, não raras vezes, o DefensorPúblico contraria interesses de pessoas jurídicas dedireito público (v. art. 4º, § 2º desta LC), em razão da

propositura de ações civis públicas, ações populares,mandados de segurança, etc., despertando o interessedas autoridades atingidas pelo resultado desfavoráveldas medidas judiciais, na remoção do Defensor Públicode seu órgão de atuação ou até mesmo da Comarca emque atua, como forma de vingança e paralisação dotrabalho que vinha efetuando em prol da população.Em boa hora, pois, o Constituinte estendeu aosDefensores Públicos tal garantia (já existente para osmagistrados e agora também presente para os mem-bros do Ministério Público), que reverter-se-á emproveito do povo, podendo este contar com umDefensor Público mais independente e aguerrido”(Princípios institucionais da defensoria pública : LeiComplementar 80, de 12-1-1994 anotada. São Paulo :Revista dos Tribunais, 1995. p. 80).

37 A Advocacia do Estado. In: CONGRESSONACIONAL DE PROCURADORES DO ESTADO,1, 1969, São Paulo. Anais... São Paulo, 1969. p. 45,nota 22.

38 Convém ressaltar que não agride a independên-cia do advogado público do contencioso a expedição

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Com muita argúcia, observa FranciscoCampos:

“Toda vez que um serviço, por conve-niência pública, é erigido em instituiçãoautônoma, com capacidade própria dedecisão, ou com a capacidade de decidirmediante juízos ou critérios da sua própriaescolha, excluída a obrigação de observarordens, instruções, injunções ou avisosde autoridades estranhas ao quadroinstitucional, com o fito de evitar infiltra-ção de natureza política no exercício dasua competência deliberativa ou decisó-ria, impõe-se a garantia aos funcionáriosincumbidos de tomar as deliberações oudecisões institucionais, da necessáriaindependência, mediante a técnica eficaz,empregada em relação à Justiça, de lhesassegurar a estabilidade nas funções enos soldos”39.

A atividade desenvolvida pela AdvocaciaPública é potencialmente geradora de sérios egraves atritos e dissensões entre os seus mem-bros e os agentes políticos. Estes muitas vezespressionam os advogados públicos a elaborarpareceres em determinado sentido, a contestarsustentando certo ponto de vista, favorável aosseus interesses.

Todavia, interferências desse timbre não selegitimam a ponto de se poder remover compul-

soriamente o advogado público “incômodo”,que “atrapalha” o administrador público ao dizera ele o que a lei permite ou não permite fazer.Não se constituem, por outro lado, anteparo ouescusa para o advogado público que, renun-ciando à sua independência, oficia “por enco-menda”. “O advogado público que cede a essetipo de pressão – adverte Maria Sylvia Zanelladi Pietro – amesquinha a instituição e corre orisco de responder administrativamente por seuato”40.

Nesse sentido, os Advogados da União eos Procuradores dos Estados e do DistritoFederal são inamovíveis. São inamovíveis nãoapenas geograficamente, mas, sobretudo, fun-cionalmente (isto é, não podem ser deslocadosdas mesmas funções).

No entanto, a inamovibilidade que têm nãoé absoluta, como não o é a dos membros doMinistério Público (cf. art. 128, § 5º, I, b, da Cons-tituição Federal).

Isso porque o interesse público pode sus-citar o deslocamento de advogados públicos,com vistas à colmatagem de vazios de lotaçãoem determinada repartição, cargo ou função.

Somente para esse fim admite-se a remoçãona seara da Advocacia Pública, e, mesmo assim,como providência excepcional que é, atenden-do-se a rigorosos requisitos e princípios cons-titucionais, que, olvidados, rendem ensejo àinvalidação do ato de deslocamento, por eivade injuridicidade, e por configurar grave atentadoà autonomia funcional do procurador.

Entre os princípios, destacam-se o da finali-dade, o da motivação e o da impessoalidade.

Pelo princípio da finalidade41, “a Adminis-tração subjuga-se no dever de alvejar sempre afinalidade normativa, adscrevendo-se a ela”42.O administrador público deve-se cingir não só àfinalidade comum a todo comportamento esta-tal, qual seja, o interesse público, “mas também

de orientações (e não de ordens) sobre assuntos a eleafetos. Tais orientações são benvindas, pois fornecemao procurador elementos para a boa e eficiente repre-sentação do Estado em juízo. O que se requer, parase atingir um grau de excelência dessas orientações, éum pesado investimento na formação intelectual dosadvogados públicos, mediante a criação e manuten-ção, em caráter permanente, de Escolas de AdvocaciaPública, que teriam por objetivo aperfeiçoar osconhecimentos científicos da carreira sob um enfoqueinterdisciplinar (assim, por exemplo, um procuradorfiscal estudaria, além de matérias estritamente jurídi-cas, contabilidade, economia, matemática financeira,filosofia, ciência política, etc.). Além disso, soa salutara abertura de canais de comunicação mais informaisentre procuradores de banca e chefias, a fim de queaqueles que militam no foro possam subsidiar, com asua vivência, melhores orientações, em especial, comosugere Maria Sylvia Zanella di Pietro, representando“para que as decisões uniformes da jurisprudênciase aplicassem a todas as situações iguais” (Advoca-cia Pública. Revista Jurídica da ProcuradoriaGeral do Município de São Paulo, São Paulo, n. 3,1995. p. 30).

39 Parecer publicado na Revista de Direito Admi-nistrativo, v. 62, p. 328, out./dez. 1960.

40 Advocacia Pública. Revista Jurídica da Pro-curadoria Geral do Município de São Paulo, SãoPaulo, n. 3, 1995. p. 18.

41 O princípio da finalidade está expressamenteprevisto no art. 111 da Constituição do Estado deSão Paulo. Muito embora não tenha dicção expressano texto constitucional federal, ele é inerente ao prin-cípio da legalidade, insculpido nos arts. 5º, II, e 37,caput, da Carta Política, no sentido de que a prescri-ção legal somente é fielmente atendida se atingidos osseus fins.

42 MELLO, Curso de Direito Administrativo,p. 61.

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à finalidade específica abrigada na lei a queesteja dando execução”43.

Como já dito, a remoção destina-se a pre-encher claros no quadro administrativo. Des-se modo, age com desvio de finalidade aautoridade pública que, por exemplo, promo-ve remoções como forma de punição do advo-gado público.

A propósito, é ainda Celso Antônio Bandeirade Mello que, ao fornecer valioso exempláriodos casos de desvio de poder – vezo adminis-trativo que, lamentavelmente, ainda grassa noPaís –, observa:

“Entre nós, não é raro o uso da remo-ção como forma de sancionar um funcio-nário descumpridor de seus deveres,quando a finalidade deste instituto é a depreencher claros de lotação e não a depunir servidor faltoso, para não mencio-nar as hipóteses em que a remoção é uti-lizada como meio para prejudicar adver-sários políticos ou para perseguir inimi-gos”44.

Vê-se, pois, que, além de não constituir mo-dalidade punitiva45, o instituto da remoção nãose presta para satisfazer interesses ou conveni-ências dos governantes; não serve para darvazão a exacerbações personalistas, humores,paixões, ódios, simpatias, autoritarismos, favo-ritismos, perseguições. O ato administrativo deremoção tem por fito, apenas, colmatar vaziosde lotação nos quadros da Advocacia Públicaem razão de comprovado interesse público.

A motivação46, por seu turno, é outro pres-suposto de validade da remoção. Significafundamentação, requisito de ordem formal doato, princípio que obriga a autoridade públicacompetente para promover deslocamentos aenunciar as razões de fato e de direito, bem como

a “relação de pertinência lógica entre os fatosocorridos e o ato praticado”47.

Muito embora o ato administrativo de remo-ção seja ontologicamente discricionário, a moti-vação é necessária, pois é uma garantia de que,efetivamente, foram atendidos os requisitosdelineados pela ordem jurídica.

Além disso, a motivação fornece os elemen-tos para o contraste judicial da remoção com osprincípios que a norteiam. Uma vez explicitadose conhecidos os fundamentos de fato e de direitoque levaram à sua realização, permite-se verificar,com transparência, a sua conformidade ou nãocom aqueles mesmos princípios.

Logicamente, para se levar a cabo a movi-mentação de advogados públicos, não basta amera enunciação de expressões como “existên-cia de claro de lotação”, “interesse público” ou“conveniência do serviço”. É imprescindívelque a autoridade administrativa decline os fun-damentos fáticos e jurídicos que reclamam odeslocamento do procurador, sob pena de viola-ção dos princípios constitucionais da Advoca-cia Pública. Hão de ser demonstradas: 1) a exis-tência de vaga no quadro administrativo; 2) anecessidade do seu provimento.

Nesse sentido, o verbete nº 149 da súmulado Tribunal Federal de Recursos dispõe:

“No ato de remoção ex officio do ser-vidor público, é indispensável que o in-teresse da administração seja objetiva-mente demonstrado” (grifou-se).

A motivação, como se mostra às claras, cons-titui requisito impostergável do ato administra-tivo em exame.

Outro princípio que orienta as remoções,notadamente no que atina com a fixação dosseus critérios, é o da impessoalidade, previstono art. 37, caput, da Constituição Federal48.

Ensina Lúcia Valle Figueiredo:“Não pode a Administração agir por

interesses políticos, interesses particula-res, públicos ou privados, interesses degrupos”49. “A impessoalidade – esclare-ce – implica (...) o estabelecimento de regrade agir objetiva para o administrador, em

43 Ibidem, p. 62.44 Discricionariedade e controle jurisdicional,

p. 68.45 Se a remoção fosse meio de punir advogado

público faltoso, em hipótese alguma poderia serimplementada sem levar em consideração o requisitoda processualidade, qualificado, in casu, pela inafas-tável obediência aos ditames do contraditório e daampla defesa, prescritos no art. 5º, LV, da Constitui-ção Federal.

46 O princípio da motivação, na Constituição doEstado de São Paulo, tem guarida no art. 111. NaConstituição Federal, decorre implicitamente dos arts.1º, II, 5º, XXXV, e 93, IX.

47 MELLO, Curso de Direito Administrativo,p. 227.

48 Na Constituição do Estado de São Paulo, oprincípio da impessoalidade encontra-se alojado noart. 111.

49 Curso de Direito Administrativo, 2. ed. SãoPaulo : Malheiros, 1995. p. 53.

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todos os casos. Assim, como exemplocurial, em nomeações para determinadocargo em comissão, os critérios devemser técnicos, e não de favoritismos ouódios. Não pode a nomeação ser prêmioatribuído ao nomeado”50.

Imperioso, pois, que, em nome da impessoa-lidade, sejam fixados critérios objetivos para apromoção de remoções, evitando-se, dessaforma, que os deslocamentos de advogadospúblicos se procedam segundo particularidadesindividuais.

Convém notar ainda que remoções ex offi-cio, implementadas sem a adoção de critériosobjetivos, infundem sério e preocupante senti-mento de apreensão, gerando grave instabilida-de funcional nos quadros da Advocacia Públi-ca – pois qualquer procurador, independente-mente de motivos ou com base em critérios pu-ramente subjetivos, pode, de inopino, ver-sedeslocado de suas atribuições normais paraoutras, com as quais muitas vezes não tem afini-dade. E mais, a ausência de critérios objetivospara remoção, tanto quanto a falta de motiva-ção, enseja arbitrariedades, desde favoritismosaté perseguições, e dá azo ao cometimento deilegalidades e de irregularidades funcionais.Basta imaginar o deslocamento compulsório deadvogado público que, exatamente por estar noexercício regular, aguerrido e combativo de suasfunções, em sua banca, venha a contrariar inte-resses individuais, políticos ou econômicoseventualmente afetos ao governante ou aoadministrador público competente para promo-ver remoções.

A propósito, a prática de ato visando a fimproibido em lei ou regulamento ou diversodaquele previsto na regra de competência cons-titui, segundo o art. 11, I, da Lei nº 8.429/92, atode improbidade administrativa, sujeitando oinfrator a diversas sanções, de natureza penal,civil e administrativa (em particular, de acordocom o art. 12, III, do mesmo diploma legal, aoressarcimento integral do dano, se houver; àperda da função pública; à suspensão dosdireitos políticos de 3 a 5 anos; ao pagamentode multa civil de até 100 vezes o valor da remu-neração percebida pelo agente; e à proibição decontratar com o Poder Público ou receber bene-fícios ou incentivos fiscais ou creditícios, diretaou indiretamente, ainda que por intermédio depessoa jurídica da qual seja sócio majoritário,pelo prazo de 3 anos).

5. PropostasEm razão do que foi exposto, sugere-se como

medidas aptas a assegurar a estabilidade funcio-nal dos advogados públicos:

1) que as remoções sejam precedidas daexposição de razões fáticas e jurídicas que justi-fiquem a necessidade do deslocamento deadvogados públicos;

2) que haja critérios prévios, explícitos, obje-tivos, genéricos e impessoais para remoção,como, por exemplo, conhecimento técnico, apri-moramento cultural, eficiência funcional, dedi-cação e/ou pontualidade no cumprimento dasobrigações do cargo;

3) que, antes de se proceder à remoção com-pulsória, seja assegurado o direito de os inte-ressados optarem pela vaga existente (remoçãovoluntária), dando preferência, em havendo maisde um candidato, àquele que atender a determi-nado critério objetivo, genérico, impessoal, tam-bém previamente conhecido;

4) que o ato de remoção in concreto sejasempre acompanhado da necessária motivação,deixando transparente não só a causa do deslo-camento do procurador – que deve ser con-gruente com as razões expostas conforme oitem 1 –, mas também o critério objetivo aciona-do, na hipótese de existir mais de um – o qual háde guardar estreita adequação com a remoçãoefetuada;

5) que as remoções sejam processadasperante órgãos colegiados da Advocacia Públi-ca, tais como os Conselhos das Procuradorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal, garan-tindo-se, dessa forma, maior controle dos des-locamentos dos advogados públicos e efetivorespeito às suas garantias.

Por fim, quanto à inamovibilidade, nostermos em que neste trabalho foi posta, con-clui-se que nada obsta – pelo contrário, reco-menda-se – o seu reconhecimento explícito pelolegislador constituinte derivado.

Aliás, relata Roberto Lyra que, à luz das Cons-tituições Federais de 1934 e de 1937, em que osmembros do Ministério Público podiam, em tese,ser removidos ad nutum, pois não existia qual-quer impedimento constitucional em sentidooposto, já havia reconhecimento judicial dasua inamovibilidade (Teoria e Prática daPromotoria. 2. ed. Porto Alegre : Fabris, 1989.p. 37 e 38).50 Ibidem, p. 54.

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Assim, tal garantia seria uma decorrência dosistema constitucional, do regime jurídico decertas carreiras do Estado, não dependendo,rigorosamente, de enunciação expressa.

No entanto, para o melhor e mais eficazdesempenho das funções essenciais à justiçacometidas à Advocacia Pública e aprimoramentodas instituições estatais de controle de juridici-dade do Poder, é necessário se alcançar uma téc-

nica mais adequada para proteger os advogadospúblicos de ingerências políticas, de investidas àsua independência, sobressaindo, a título desugestão, aquela que lhes atribui maior grau deautonomia funcional, pondo-os a salvo não so-mente da discricionariedade do administrador pú-blico, mas, também, do Poder Legislativo. Portanto,as garantias dos membros da Advocacia Públicahão de ser objeto de norma constitucional.

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1. IntroduçãoA lei vigente estabelece os princípios gerais

que disciplinam a licitação e os contratos admi-nistrativos.

Constitui-se de normas gerais1, aplicáveisaos Poderes da União, dos Estados, do DistritoFederal e dos Municípios, e de normas espe-cíficas da União – incidentes, apenas, na órbitafederal.

O artigo 118 manda que os Estados, o Dis-trito Federal e os Municípios e as entidades daAdministração indireta2, compreendendo todosos entes descritos no artigo 119, adaptem suasnormas ao disposto nesta Lei, em harmonia como princípio da autonomia, inscrito na Constitui-ção Federal (arts. 1º, 25 a 32).

O artigo 119 comanda que as sociedades deeconomia mista, as empresas públicas, as fun-dações públicas e demais entidades controladasdireta e indiretamente pela União e pelas enti-dades referidas no artigo 118 deverão editar regu-lamentos próprios (ou adaptar os já existentes),devidamente publicados, ficando sujeitos às

Leon Frejda Szklarowsky, Subprocurador-Geralda Fazenda Nacional aposentado, é advogado, JuizArbitral da American Arbitration Association, de NovaYork, e Conselheiro e Juiz arbitral da Câmara deArbitragem da Associação Comercial do DistritoFederal, membro dos Institutos dos Advogados Bra-sileiros, de São Paulo e do Distrito Federal, acadêmicoda Academia Brasileira de Direito Tributário, doInstituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal(diretor-tesoureiro), membro da International FiscalAssociation, acadêmico e presidente da AcademiaMaçônica de Letras do Distrito Federal, da AssociaçãoBrasileira de Direito Financeiro e do Instituto Brasi-leiro de Direito Tributário, membro fundador da Aca-demia Paulista de Direito, Diretor de relações públicasda Associação de Imprensa de Brasília, membro daAsociacion Interamericana de Tributacion, Rosario(Argentina), membro do Sindicato dos Escritores doDistrito Federal, professor e conferencista doCEBRAD – Centro Ibero-Americano de Adminis-tração e Direito.

SUMÁRIO

Prazos contratuais

LEON FREJDA SZKLAROWSKY

1. Introdução. 2. Regra geral. 3. Exceções. 4.Interpretação do § 4º do artigo 57. 5. Reedição demedidas provisórias.

1 Sobre o assunto, consulte-se, de ATALIBA,Geraldo. Leis nacionais e leis federais no regimeconstitucional brasileiro. PRADO, Péricles. (org.).In: Estudos jurídicos em homenagem a Vicente Rao.São Paulo : Resenha Tributária, 1976.

2 Sobre o conceito de administração e suaabrangência, consulte-se nosso A AdministraçãoPública e a Lei 8666/93. Boletim de Licitações e Con-tratos, de São Paulo, v. 8, 1993.

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disposições, isto é, às normas gerais da Lei deLicitações e Contratos Administrativos – Lei8.666/93 (LLCA) e suas alterações posteriores.

O Tribunal de Contas da União, pelo seuPlenário, adotando voto do eminente Relator,Ministro Bento José Bulgarin, decidiu, por una-nimidade, que a entidade paraestatal, ao adotarregulamento próprio, deverá fazê-lo de confor-midade com as diretrizes da Lei 8.666/93. Entreessas entidades, engloba os serviços sociaisautônomos3, que são pessoas jurídicas de direitoprivado (SESC, SENAI etc.), cabendo sua orga-nização e direção à Confederação Nacional daIndústria (SENAI). Vinculam-se, todavia, ao Mi-nistério da Indústria e Comércio e, como escolasde ensino, submetem-se também à fiscalizaçãodo Ministério da Educação, integrando o rol dasunidades jurisdicionadas a essa Corte4.

Os regulamentos das empresas estatais(artigo 119) deverão ser aprovados pela auto-ridade competente superior e publicados na im-prensa oficial.

A autoridade superior é aquela designadanos regimentos, nos regulamentos e nos esta-tutos. A imprensa oficial é o veículo oficial dedivulgação dos atos da Administração. Para aUnião, é o Diário Oficial da União e, para osEstados, o Distrito Federal e Municípios, o quefor determinado pela legislação própria5.

Os fundos especiais são produtos dereceitas especificadas que, por lei, vinculam-seà realização de determinados objetivos ou servi-ços, facultada a adoção de normas peculiaresde aplicação. Poderão ser sujeito ativo e passivo,no contrato, ou seja, tal qual as entidades antesreferidas, poderão funcionar como contratantee contratado6. Isso é uma inovação introduzidapor esta lei. Não têm personalidade jurídica.Assemelham-se à massa falida, à herança e aocondomínio. O fundo é um patrimônio de ações,bens, dinheiro, afetado pelo Estado.

Também os órgãos dos Poderes Judiciário,Legislativo e do Tribunal de Contas reger-se-ãopor essas normas (normas gerais), no quecouber, nas três esferas administrativas – artigo1177.

Entre as normas gerais, que dizem respeito àessência, ao interesse público (da coletividade),distinguem-se: a publicidade, os prazos (du-ração de contrato), a obrigatoriedade de licitação,as modalidades de licitação, o objetivo da lici-tação (artigo 3º), as normas disciplinadoras doscontratos (artigos 54, 55, 57, 58, 59, 60, 61) etc.Também a regra, que determina sejam as minutasdos editais e dos contratos examinadas eaprovadas pela Assessoria Jurídica da Admi-nistração, constitui norma geral, que deve serobedecida por todos os entes da Administra-ção8.

Os princípios estão insculpidos no artigo 37da Constituição Federal, a que se deve submetera Administração.

O Tribunal de Contas da União sumulou queas decisões desta Corte relativas à aplicação denormas de licitação, sobre as quais cabe pri-vativamente à União legislar, devem ser acatadaspelos administradores dos Poderes da União,dos Estados, do Distrito Federal e dos Muni-cípios (Súmula 222, aprovada na SessãoAdministrativa de 8-12-94 e publicada no DOUde 3-1-95).

Essas normas aplicam-se no que couber aosconvênios, ajustes e instrumentos congêneres9.

2. Regra geralOs contratos administrativos têm sua

vigência adstrita ao exercício do crédito orça-mentário ou financeiro, de conformidade com aenérgica ordem do artigo 57 da Lei 8.666/93 esuas alterações posteriores.

O exercício financeiro, de acordo com o artigo34 da Lei 4.320/64, coincide com o ano civil, isto3 Cf. nosso Sujeito ativo da execução fiscal. Revista

de Processo, n. 41.4 Cf. Decisão 408/95, Ata 37/95, Sessão de

16.8.95. Este julgado cita, no mesmo sentido, inúmerasdecisões. BLC, n. 3, p. 143-146, mar. 1997.

5 Cf. artigo 6º,inciso XIII, da LLCA. Sobre apublicidade dos contratos e dos atos administrativos,consulte-se nosso A publicidade dos contratos admi-nistrativos. Revista dos Tribunais, v. 731, p. 56; Infor-mativo Consulex, n. 13, 25 mar. 1996.

6 Consulte-se o artigo 71 da Lei 4320 comentada,de J. Teixeira Machado Júnior e Heraldo Costa Reis.25. ed. IBAM, 1993. p. 128 e segs.

7 Cf. nosso A Administração Pública e a Lei nº8.666/96. Boletim de Licitações e Contratos, v. 8,1993.

8 Cf. o parágrafo único do artigo 38 da LLCA enossos trabalhos, Análise crítica da LLCA, publicadona RDA, n. 205, p. 13, e Anteprojeto de Nova LLCA,editado pelo Informativo Consulex, n. 29 e 30, 21 e28 jul. 1997.

9 Cf. nosso Convênio. Revista de InformaçãoLegislativa, n. 125 cit; BLC cit., mar. 1990; Revistados Tribunais, n. 669, p. 39; Correio Braziliense, 15set. 1997. Caderno Direito e Justiça.

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é, estende-se de 1º de janeiro a 31 de dezembro.Este pode ser alterado por lei complementar,segundo os ditames do § 9º do artigo 165 daConstituição.

A licitação de obras e serviços só é possívelquando existir previsão de recursos orçamen-tários que assegurem o pagamento das obriga-ções decorrentes da realização das obras ou dosserviços a serem executados no exercício finan-ceiro em curso, de acordo com o respectivocronograma (artigo 7º, III). Acrescenta, ainda, oinciso IV que o produto dela esperado deve estarcontemplado nas metas estabelecidas no PlanoPlurianual, mencionado no artigo 165 da Cons-tituição Federal.

Ainda, proclama a lei que as obras e serviçossomente poderão ser objeto de licitação quandohouver projeto básico aprovado pela autoridadecompetente e disponível para apreciação dosinteressados em participar da licitação, e existirorçamento detalhado, com as planilhas pro-jetando a composição de todos os custos uni-tários.

É vedado incluir no objeto de licitação aobtenção de recursos financeiros para sua exe-cução, qualquer que seja sua origem, excetoquando o empreendimento for executado e ex-plorado por meio de concessão.

A infração desse dispositivo induz anulidade dos atos e dos contratos e a respon-sabilidade de quem lhe der causa10.

Por outro lado, o artigo 167 da CF veda oinício de programas ou projetos não-incluídosna lei orçamentária.

A desobediência a essas disposições legaisimplica responsabilidade da autoridade respec-tiva, até criminalmente.

Os Tribunais de Contas têm-se mostradoextremamente zelosos nesse particular, nãosomente punindo os maus gestores da coisapública, mas, também, orientando-os na con-dução da aplicação do dinheiro público.

3. ExceçõesNão obstante, a lei excepcionalmente permite

a prorrogação ou a extensão desses contratosalém desse exercício, segundo os rígidos

pressupostos que impõe11, ou ainda se prevejasua duração por prazo superior no momentomesmo de sua formalização12.

A prorrogação deve ser justificada porescrito e previamente autorizada pela autoridadecompetente para celebrar o contrato.

A lei veda se façam contratos por prazoindeterminado (artigo 57, § 3º)13, o que tem sidoratificado pela jurisprudência da Corte Supremade Contas. Apesar de estar inscrito comoparágrafo desse artigo, trata-se de norma geralaplicável a todos os contratos, mesmo aos quese não sujeitam ao artigo 5714 (§ 3º do artigo62)15, verbi gratia: leasing, locação em que oPoder público seja locatário, financiamento,seguro etc.

Excepcionalmente, admite a lei que os con-tratos ultrapassem o exercício financeiro:

I - Em caso de projetos cujos produtosestejam contemplados nas metas estabelecidasno plano plurianual, os contratos poderão serprorrogados desde que haja interesse da Admi-nistração Pública e previsão no ato convocatório(e no contrato, evidentemente), com exceção das

10 Sobre a nulidade dos atos, vide nosso APublicidade dos Contratos cit., p. 11. Cf. também asSúmulas do STF 346 e 473 e os preciosos comentáriosde Roberto Rosas, em Direito Sumular. Revista dos

Tribunais, 1981. Consulte-se, também, O valorjurídico do Acto Inconstitucional, de Marcelo Rebelode Sousa. Lisboa, 1988.

11 Cf. nossos Duração do contrato administrativode prestação de serviços contínuos. BLC, p.81-6; dez.1988. Duração de contrato administrativo e a Lei 8666/93; Duração dos contratos de prestação de serviçocontínuo. Licitações e contratos administrativos.Algumas observações em face da Lei 8883/94 e daMP 681/94. Arquivos do Ministério da Justiça, n.185, jan./jun. 1995; idem na Revista de InformaçãoLegislativa, n. 125, jan./mar. 1995, com farta doutrinae jurisprudência. Idem, BLC, n. 10, p. 401-409, out.1993.

12 Sobre a diferença entre prorrogação e extensão,consultem-se nossos trabalhos: Duração de ContratosAdministrativos e a Lei 8666/93. Boletim de Licitaçõese Contratos, São Paulo, n. 10, 1993; Duração deContratos Administrativos. BLC, dez. 1988; Lici-tações e contratos administrativos. Arquivos do Mi-nistério da Justiça cit. Vide remissão anterior.

13 Os princípios inseridos na lei vigente preva-lecem no anteprojeto, versão Mare, de meados defevereiro de 1998.

14 Cf. nossa sugestão, para o aperfeiçoamento dalei, ao primeiro projeto governamental de alteraçõesdo citado diploma legal – Lei 8666/93 : análise críticae sugestões. Informativo Consulex, n. 30 e 31, 22 e 29jul. 1996, respectivamente; Informativo DinâmicoIOB, n. 65, 9 set. 1997.

15 MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Eficácia, p.280.

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hipóteses do § 1º do artigo 57 e do § 5º doartigo 79, que independem da referida previsão.

Alguns autores admitem que os contratosprevistos no inciso I se façam, de imediato, pelotempo máximo, correspondente ao Plano Plu-rianual. Entretanto, a melhor interpretação, emface da redação do inciso, em estudo, e do seuindicativo, leva à conclusão oposta. Pela dicçãodesse preceito, infere-se que o contrato deveser feito para vigorar no exercício financeiro,podendo, se for o caso, ser prorrogado, desdeque preenchidas as condições legais. Assim, ocaput fixa a duração dos contratos à vigênciados créditos orçamentários, mas excetua, entreoutros, os relativos aos projetos cujos produtosestejam contemplados nas metas estabelecidasno Plano Plurianual, os quais – contratos –poderão ser prorrogados, desde que haja inte-resse da Administração e tenha sido previstono ato convocatório e, obviamente, no contrato.O limite de cinco anos da lei anterior não maissubsiste.

II - Em caso de impedimento, paralisação esustação do contrato, o cronograma será auto-maticamente prorrogado por igual tempo. Talqual acontece com os casos previstos no § 1ºdo artigo 57, essas hipóteses são imprevisíveise não estarão inscritas nem no edital, nem nocontrato.

III - A prorrogação de contratos de serviçosa serem executados de forma continuada (nãopodem ser interrompidos, não podem sofrersolução de continuidade, pena de causar pre-juízo ou dano)16 rege-se atualmente pela MedidaProvisória 1.531-15, de 5 de fevereiro de 199817,que alterou profundamente o inciso II18, que já

sofrera substancial modificação, introduzida pelaLei 8.883, de 1994, oferecendo-lhe nova feição,desta feita agasalhando doutrina fartamentetrabalhada por autores do porte de Yara PoliceMonteiro e Jorge Ulisses Jakoby Fernandes19.

Este doutrinador analisa o inciso II, com aredação dada pela Lei 8.883, ofertando inter-pretação que, embora discordássemos, veio, afinal, provocar a produção legislativa, comrenovada e diversa redação, trazida pela MedidaProvisória citada20 e que melhor se afeiçoa àrealidade.

A atual postura legislativa assemelha asituação ali desenhada à marcada no inciso I,ou seja, o caput do artigo determina que aduração dos contratos fique adstrita à vigênciados respectivos créditos orçamentários, maspermite que essa duração se prorrogue por iguaise sucessivos períodos (no inciso I, permite que,naquela hipótese, a Administração prorrogue ocontrato, além do exercício), tendo em vistamelhores condições e preço para a Adminis-tração, não ultrapassando o prazo limite de 60meses do prazo comum da prorrogação, excep-cionada a esdrúxula faculdade de prorrogaçãomantida pela citada Medida Provisória, queacrescentou o § 4º ao referido artigo 57. Essedispositivo autoriza, em casos excepcionais,devidamente justificados e com permissão su-perior, a prorrogação do prazo previsto noaludido inciso em até doze meses. Além do prazocomum da prorrogação, há que se considerarainda este último.

Se, anteriormente, com a redação dada pelaLei 8.883, a contratante devia fazer, de imediato,

16 Cf. nosso Duração. Boletim de Licitações eContratos, n. 12, dez. 1994; idem, n. 2, p. 76, 1997;MOTTA, p. 277; FIGUEIREDO, Nelson de. Con-tratos administrativos. BLC, n. 11, p. 535, 1995; idem,n. 7, p. 15, 1996.

17 Esta Medida Provisória introduziu uma novi-dade, alterando o § 2º do artigo 65, para facultar queas partes, mediante acordo, ultrapassem os limitesestipulados no § 1º desse artigo.

18 A Medida Provisória 1.452, de 10 de maio de1996, publicada no DOU de 11 seguinte, já continhaa determinação para acrescentar o novo parágrafo 4ºao artigo 57. Já a Medida Provisória 1.500, de 7 dejunho de 1996, publicada no DOU de 10 deste mesmomês, repete o parágrafo 4º e introduz uma inovaçãoque será repetida interativamente, modificando oinciso II do aludido artigo. Em 21 de junho seguinte,o Chefe do Poder Executivo baixa o Decreto 1.937,ordenando que, na reedição de medidas provisórias,

serão mantidos os números originários, acrescidos donúmero correspondente à reedição, separados porhífen (artigo 12). Esse decreto foi publicado no DOUde 24 do mesmo mês.

19 Cf., de Jorge Ulisses Jakoby Fernandes, oexcelente comentário “A duração dos contratos deprestação de serviços a serem executados de formacontínua”. BLC, n. 2, 1996. Vide nosso “Licitações econtratos administrativos. Algumas observações emface da Lei 8.883/94 e da Medida Provisória 681/94”(Arquivos, do Ministério da Justiça, n. 185, 1995;Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados, n.134, p. 46; Revista de Informações Legislativa, n.125, p. 111. Nesse trabalho, tecemos a interpretaçãodo referido inciso II, com a redação da Lei 8.883/96,acolhida pela jurisprudência do Tribunal Maior deContas, atualmente superada pela Medida Provisóriacitada.

20 Nesse sentido, a culta advogada Yara PoliceMonteiro.

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o contrato, já prevendo o prazo que melhor seafeiçoasse aos interesses da Administração,21

só lhe restando a prorrogação suplementar pormais doze meses, hoje terá que fazer o contratopara vigorar no exercício, com a possibilidadede prorrogar essa duração por iguais e suces-sivos períodos, desde que prevista no atoconvocatório e no contrato. Resulta da dispo-sição legal que a prorrogação não é automática,como se poderia entender, numa interpretaçãoafoita e apressada.

O dispositivo confirma energicamente essaexegese, porquanto deve-se ler que: a duraçãodos contratos... ficará adstrita aos créditosorçamentários, exceto quanto aos relativos(caput): ... II) à prestação de serviços a seremexecutados de forma contínua, que poderá ter asua duração prorrogada ... Entenda-se que aduração de um exercício (prevista no caput)poderá ser (faculdade a ser exercida, não de formaautomática) prorrogada, tendo em vista aobtenção de melhor preço e condições maisvantajosas, que serão aferidos, não no momentodo contrato originário, como antes, mas porocasião da realização da prorrogação, se estarealmente for de interesse da Administração, emcomunhão com a tese que defendemos aocomentarmos a citada Medida Provisória22. Esseentendimento foi sufragado, recentemente, peladouta advogada da Consultoria da Editora NDJ,Dra. Eunice Leonel da Cunha. Sustenta, commuita propriedade, aplicarem-se essas alteraçõesaos contratos que se realizarem após a data daMedida Provisória inaugural, isto é, após a

Medida Provisória 1.500/96, por força do incisoXXXVI do artigo 5º da Lei Máxima23.

Destarte, fica proibida a previsão deprorrogação automática que se não concilia como espírito da lei. Caso contrário, o contratoexaure-se pela expiração do prazo não pror-rogado e nova licitação far-se-á, obrigato-riamente. Deve, assim, o administrador precaver-se e tomar as providências necessárias, a tempo.

Contudo, não se olvide a posição respeitávelde autores que permitem seja o contrato feito,de imediato, com prazo superior ao exercíciofinanceiro.

Interessante questão deve ser respondidaquanto à faculdade de se prever a prorrogaçãopor período menor que o originário.

Não vemos óbice nessa interpretação,desde que previsto no edital e no contrato, vistoque quem pode o mais pode o menos, e nãoseria razoável exigir-se da Administração quepreveja, no contrato, a prorrogação por igualperíodo do contrato originário, portanto superioràs reais necessidades, em detrimento de seuspróprios interesses, apenas para satisfazer ainterpretação literal e gramatical do texto,contrariando a melhor doutrina.

Toshio Mukai indaga se contrato de pres-tação de serviço continuado pode ser objeto deconvite e responde, com toda razão, apoiadonos ensinamentos de Márcio Cammarrosano,ser impossível fazerem-se contratos curtos,nessa hipótese, de sorte que se torna incon-ciliável “uma dispensa abaixo do convite oumesmo com os prazos cabíveis num certamedessa modalidade”24.

IV - É perfeitamente possível fazer-se aprevisão da extensão do contrato, até 48 meses,após o início da vigência, no caso de aluguelde equipamentos e utilização de programa deinformática. Segundo alguns autores, o equi-pamento de que trata a lei refere-se apenas àinformática, todavia, mantemos nossa posiçãode que os equipamentos não se referem necessa-riamente e tão-só a programas de informática25.

Essa hipótese assemelha-se à situaçãoanterior, à Medida Provisória cit., do inciso II,isto é, trata-se de extensão e é uma previsão, noato convocatório e no contrato, unilateral da

21 Consulte-se o citado Licitações e contratos eadministrativos de nossa autoria. O TCU sentenciouque o contratante se abstenha de incluir, nos pro-cessos de licitação e, portanto, nos contratos a seremfirmados, a previsão de prorrogação de prazo,quando se tratar de serviços de duração continuada,dimensionando-se claramente a duração dessesserviços, nos termos do inciso II do artigo 57 da Lei8.666/93, alterada pela Lei 8.883/94, Relator MinistroHumberto Guimarães Souto, Decisão 34/96, 1 Câ-mara, DOU de 18 de março de 1996, Seção I. Con-sultem-se, nesse sentido, de Roberto Bazilli, ContratosAdministrativos, Malheiros, Editores, 1996, p. 70;idem, Marçal Justen, Comentários à Lei de Licitaçõese Contratos Administrativos, 4ª edição, p. 364; JesséPereira Júnior, Comentários à Lei das Licitações eContratações da Administração Pública, Renovar,4ª edição, p. 398.

22 Cf. nosso Duração de contrato administrativos.Boletim de Licitações e Contratos, n. 2, p. 76-79, fev.1997.

23 A Duração dos contratos. BLC n. 1, p. 10-13,jan. 1998.

24 BLC cit., p. 591-2, dez. 1997.25 Cf. os trabalhos citados que tratam da duração

de contratos.

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Administração, aceita pela contratada, inde-pendentemente de aditivo ou justificação,porque feita concomitantemente com o con-trato26. Somente se admitirá qualquer prorro-gação se calcada numa das hipóteses previstasno § 1º do artigo 55, quando for o caso, ou do §5º do artigo 79, não se lhe aplicando o § 4º doartigo 57, porque incabível.

V - É também facultada a prorrogação dosprazos de início de etapas de execução,conclusão e entrega do objeto, desde que,mantidas as demais cláusulas, fique asseguradoo equilíbrio econômico-financeiro (caput doartigo 57) e ocorra um dos motivos previstos no§ 1º do artigo 57. Os fatos que autorizam a pror-rogação são posteriores ao início da vigênciado contrato, ou seja, surgem durante sua exe-cução e, portanto, nesse caso, não se há de falarem repactuação, para retomada do equilíbrioeconômico-financeiro, somente, após um ano,em vista da legislação que introduziu o PlanoReal, como querem alguns, equivocada eabsurdamente. A restauração do equilíbrioeconômico-financeiro da equação, se compro-vada a decomposição deste, far-se-á, obriga-toriamente, em qualquer época, porque assimexige a lei.

4. Interpretaçãodo § 4º do artigo 57

O § 4º do artigo 57 foi introduzido pelaMedida Provisória 1.081, de 28-7-9527, visandominorar os rigores da redação dada pela Lei8.883/94.

A Lei 8.883/94 modificou o texto originárioda Lei 8.666. Esse dispositivo modificado vemsendo repetido pelas Medidas Provisóriasulteriores, as quais chancelam os atos praticadoscom base na Medida Provisória anterior. Naverdade, esse ato é inconstitucional, visto quea Constituição, no parágrafo único do artigo 62,claramente, anuncia que as Medidas Provisóriasperderão eficácia, desde sua edição, se nãoforem convertidas em lei, no prazo de 30 dias apartir de sua publicação, devendo, então, oCongresso Nacional disciplinar as relaçõesjurídicas delas decorrentes. E, se não o fizer, temo súdito o remédio constitucional, que é o

Mandado de Injunção28. Destarte, no caso decontrato de prestação de serviço de formacontinuada, o administrador devia dimensionar,de imediato, o prazo que melhor se ajustasse àscircunstâncias, fazendo-o constar do edital e docontrato, ou seja, fazer uma prévia avaliação,auscultando preços e condições mais vanta-josos para a Administração, cabendo-lhe tam-bém avaliar o tempo de duração do contrato e ointeresse daquela. Essa era a determinaçãoditada pela Lei 8.883/94.

Feito o contrato, segundo as condições e oprazo estipulados no edital e no contrato, nãopodendo ultrapassar o limite de 60 meses, estavavedada qualquer extensão ou prorrogação, a nãoser nas hipóteses do § 1º do artigo 57 e do § 5ºdo artigo 79, e ainda do § 4º antes citado, com oaval do TCU e da melhor doutrina.

Assim, no caso de um contrato, celebradoem fevereiro de 1995, pelo prazo de 36 meses,não poderia ser objeto de extensão ou pror-rogação, salvo as hipóteses mencionadas acima.

O TCU, na Representação formulada nostermos do artigo 113, § 1º, da estudada lei, c/c oartigo 213 do Regimento Interno (artigo 34 daResolução TCU 29/95), seguindo o voto do cultoMinistro – Relator, Bulgarin, decidiu que aduração dos contratos fica adstrita à vigênciados créditos orçamentários, que, em regra,equivale ao exercício financeiro29.

Exatamente, para temperar os rigores dessasituação, o legislador (in casu, o Chefe doExecutivo) editou a citada Medida Provisória1.081 e enxertou o § 4º, facultando que aAdministração pudesse prorrogá-lo, em até dozemeses mais, desde que demonstrada a excepcio-nalidade e houvesse a autorização da autoridadesuperior. Essa prorrogação faz-se por adita-mento, submetendo-se a todas as formalidadesda lei.

Sem dúvida, não há que se indagar daexistência da previsão dessa faculdade nocontrato ou no edital, porque isso é impossível,por se tratar de caso excepcional e imprevisto,segundo a inteligência do dispositivo em tela.

26 Consulte-se nosso Duração do contrato admi-nistrativo e a Lei 8666/93. BLC, n. 10, p. 401-9, out.1993.

27 Publicado no DOU de 31.7.95, Seção I.

28 Cf. nosso artigo, em Cadernos de Direito Tribu-tário e Finanças Públicas, da Revista dos Tribunais,n. 1, 1979, coordenado pelo Professor Ives Gandrada Silva Martins.

29 Cf. Decisão 148/96, Pleno, de 27.3.96. Essedecisório cita ainda em seu apoio a Decisão 34/96, emque funcionou como Relator, o Ministro HumbertoSouto. BLC, n. 6, p. 300-304, jun. 1996.

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Contudo, estando em vigor o § 4º, por forçada referida Medida Provisória e porque asanteriores foram convalidadas pelas subse-qüentes Medidas Provisórias, embora, consti-tucionalmente, devesse sê-lo, pelo CongressoNacional, ex vi do disposto no parágrafo únicodo artigo 62 da Carta Maior, é forçoso concluirque esse dispositivo se aplica a todos os con-tratos que se fizeram ou fazem sob sua vigênciaou antes de sua vigência, mesmo que não pre-visto no contrato e no edital, porque impossíveltal previsão30.

A Consultoria da Editora NDJ enfatiza, commuita razão, que somente será possível aprorrogação, calcada no citado § 4º, se as futurascontratações ainda não foram feitas e se ainterrupção do contrato, dada a natureza dessesserviços, produzir danos irreparáveis e for devi-damente justificada pela autoridade compe-tente31.

Por óbvias razões, o contrato, para mereceresse favor, deve estar em pleno vigor.

5. Reedição demedidas provisórias

Marcelo Figueiredo 32, em substanciosoparecer para o Instituto dos Advogados de SãoPaulo, manifesta-se acerca da reedição dasmedidas provisórias, que vêm alterando iterati-vamente a LLCA, com azedas críticas a essa

prática, recusando-lhe legitimidade e foro deconstitucionalidade. Entretanto, data maximavenia, a reedição desses atos legislativos nãoestá proibida pela Constituição33. Se a Lei Maiorquisesse sua proibição, fá-lo-ia, expressamente.Se assim não fosse, não seria necessário que aPEC 1/95, em tramitação no Congresso Nacio-nal, previsse essa vedação, de forma clara einsofismável, permitindo apenas uma reedição.

Não negamos que a medida provisória, daforma como está incrustada na Lex Maior, tem-se mostrado tão nefasta que propusemos suamodificação34 e, na 33ª Jornada de IntegraçãoJurídico-Parlamentar, realizada, em BuenosAires, recentemente35, sugerimos profunda alte-ração, para, sem quebra dos princípios demo-cráticos, harmonizar-se com as necessidades doEstado moderno, que não pode prescindir deum instrumento dinâmico, ágil, como aliás o têmpaíses como a Argentina, Portugal e tantosoutros. Victor Uckmar, em precisa narração,apregoa que, em face da separação de poderes,deveria ficar vedada, ao Executivo, a competên-cia para legislar, especialmente em matéria tri-butária. Não obstante, em virtude da impossibi-lidade de os Parlamentos conhecerem certosproblemas práticos, ou por não poderem darvazão ao trabalho, consente nessa medidaexcepcional, porque o Poder Legislativo exercede fato o real controle sobre aquele Poder, demodo a não macular o princípio da legalidade36 e 37.

30 Essa é também a opinião do Professor ToshioMukai e do Dr. Lucas Azevedo Moreira dos Santos,da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.

31 BLC cit., p. 575, nov. 1997.32 BLC, n. 3, p. 131-135, mar. 1997.

33 Cf. nosso Medidas provisórias.Revista dosTribunais, 1991.

34 Ibidem.35 Cf. nossa conferência, na citada Jornada, pro-

movida pelo Centro Ibero-Americano de Adminis-tração e Direito, de Brasília, de 14 a 19 de fevereirode 1998, presidida pelo Professor Leo da Silva Al-ves.

36 Princípios comuns de Direito ConstitucionalTributário. Revista dos Tribunais, 1976. p. 30-37.Ainda, de Miguel Pellegrini e Susana Aguirre, LosDecretos de Necesidad y Urgencia, en la ConstituciónNacional de 1994, Marcos Lerner Editora Córdoba.República Argentina, e a Constitución de la NaciónArgentina, com prólogo de Dardo Perez Guilhou,1996.

37 O autor agradece ao Dr. Marcelo Palmieri adedicação e o esforço, na assistência à pesquisaempreendida.

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1. IntroduçãoO Grupo Banco Mundial compreende atual-

mente cinco organizações:– o Banco Internacional de Reconstrução e

Desenvolvimento (BIRD);– a Associação de Desenvolvimento Inter-

nacional (IDA);– a Corporação Financeira Internacional

(IFC);– a Agência Multilateral de Garantia de

Investimento (MIGA); e– o Centro Internacional para a Resolu-

ção de Conflitos sobre Investimentos (CIRCI-ICSID).

Este Centro foi criado pela Convenção sobreResolução de Conflitos relativos a Investimen-tos entre Estados e Nacionais de outros Esta-dos, assinada em Washington em 18 de marçode 1965, sob os auspícios do Banco Mundial. Oprincipal objetivo dessa Convenção era propor-cionar uma alternativa eficaz e confiável paradirimir conflitos legais surgidos do relaciona-mento entre empresas privadas e Estados dediferentes nacionalidades.

O intenso fluxo de capitais para países emdesenvolvimento e a ocorrência eventual demedidas de nacionalização, expropriação ou

O Centro Internacional para a Resoluçãode Conflitos sobre Investimentos (CIRCI -ICSID)

CELSO DE TARSO PEREIRA

Celso de Tarso Pereira é Diplomata, Mestre emDireito Internacional pela Universidade de Kiel, Ale-manha, Professor de Direito Internacional Público noCentro de Ensino Unificado de Brasília (CEUB).

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. A Convenção e o Centro. a)Estrutura institucional. b) Competência do Centro.b1) Consentimento. b2) Competência ratione materiae.b3) Competência ratione personae. 3. Algumas parti-cularidades do procedimento arbitral. 4. O laudoarbitral. 5. Proteção diplomática, a cláusula Calvo,a América Latina e o Brasil. a) A posição do Brasil.

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Revista de Informação Legislativa88

disposições fiscais e financeiras de caráter dis-criminatório formavam o contexto propício paraa criação de um mecanismo que favorecesse oambiente para investimentos internacionais. Apermanência de conflitos pendentes entre paísese investidores, por falta de um instrumento ade-quado de solução de controvérsias, opera comoum grave entrave ao comércio internacional. OsEstados geralmente recusam submeter-se aostribunais de outros países, enquanto os inves-tidores particulares sentem-se, algumas vezes,em posição desvantajosa ao terem de subme-ter-se aos tribunais e leis do local do investi-mento. A proteção diplomática, quando não dis-pensada pelo investidor (mediante um waiver),não garantia a participação do host governmentem um eventual tribunal internacional e poderialevar a uma politização indevida de interessescomerciais. A conclusão de acordos de arbitra-gem entre as partes, mesmo se detalhados, nãoimpedia o repúdio ao acordo, nem garantia aaceitação do laudo arbitral final por parte deEstados.

Por essas razões, os diretores executivos doBanco Mundial propuseram, em 1963, a realiza-ção de encontros regionais de experts para adiscussão preparatória de uma possível conven-ção sobre a matéria, a qual deveria ser formuladade maneira a obter, ao final, o maior número pos-sível de adesões. Especialistas de 86 paísesparticiparam das reuniões, que aconteceram emAdis-Abeba, Santiago, Genebra e Bangkok. UmComitê Jurídico, com representantes de 61governos, também foi chamado a colaborar naelaboração do documento.

O sistema de votação no Banco Mundial, aonão seguir o tradicional one country – one voteda maioria das organizações internacionais ebasear-se nas contribuições financeiras dosmembros, poderia ter sido um fator de desequi-líbrio numa convenção que se desejava a maisuniversal possível; adotou-se, por isso, o siste-ma de no-formal-vote nas reuniões correntes,nas quais se buscava o consenso em questõescentrais, o qual era posteriormente respeitadodurante as votações. Em 18 de março de 1965, aConvenção foi finalmente assinada e entrou emvigor em 14 de outubro de 1966, contando atual-mente com 139 Estados signatários e 125 ratifi-cações.

2. A Convenção e o CentroA Convenção – que tem 75 artigos e 10 capí-

tulos –, no seu intuito de proteger e promover

os investimentos privados no exterior, estabe-lece, vinculado ao BIRD em Washington, umCentro Internacional para a Resolução de Con-flitos sobre Investimentos – CIRCI, o qual ofe-rece mecanismos apropriados de conciliação(arts. 28-35) e arbitragem (arts. 36-55), tanto paraEstados como para entidades privadas. Deve-senotar que o Centro não concilia ou arbitra asquestões, mas simplesmente administra osprocedimentos de conciliação e arbitragemprevistos na Convenção.

a) Estrutura institucional

O CIRCI é uma pessoa jurídica de direitointernacional (art.18), a qual goza de imunidades,isenções e privilégios próprios (arts.19 a 24); opessoal a seu serviço, inclusive os conciliadorese árbitros, goza de privilégios e imunidadesratione officii, à semelhança dos cônsules.

Conforme o art. 3º, o Centro compõe-se deum Conselho Administrativo (com um represen-tante de cada Estado-parte e o presidente doBIRD como Chairman), da Secretaria-Geral ede um Panel de conciliadores e outro de árbitros.Cada um desses panels é composto por quatropessoas indicadas pelos Estados-parte (nãonecessariamente seus nacionais) e outros dezdesignados pelo Chairman, para um mandatorenovável de seis anos. Ao designar os compo-nentes de ambas as listas, o Chairman deverágarantir a representação dos principais sistemaslegais do mundo, bem como das principaisformas de atividades econômicas (art.13).

Um dos pontos mais inovadores da Con-venção é que ela estabelece a capacidade de umindivíduo ou uma empresa – tradicionalmentesem locus standi em tribunais criados por trata-dos entre Estados – integrar uma relação jurídicajunto com um ator estatal, dessa maneiracontribuindo para o reconhecimento do indi-víduo como sujeito de direito internacional.

b) Competência do Centro

B1) CONSENTIMENTO

A principal condição de competência (oujurisdição) do Centro é o consentimento, quetem um caráter duplamente voluntário: não sóseus membros são livres para juntar-se aoesquema Centro-BIRD ou não, mas, mesmodepois de o terem feito, são livres para decidirutilizar ou não as dependências do Centro, pormeio da aceitação, por escrito, de sua jurisdição

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a respeito de arranjos ou litígios específicos1.Como esclarecido no preâmbulo da Convençãoe no seu art. 25, a mera ratificação da Conven-ção, portanto, não acarreta a obrigação de sub-meter conflitos sobre investimentos à concilia-ção ou arbitragem.

Tendo, porém, ambas as partes expressa-mente consentido – antes (cláusula arbitral) oudepois do surgimento do litígio (compromissode arbitragem) –, já não lhes é lícito retirá-lo uni-lateralmente. Se uma das partes é uma agênciaou subdivisão política de um Estado-parte, faz-senecessária a aprovação daquele Estado. Alémdisso, o consentimento exclui o recurso a qual-quer outra medida judicial (art. 26).

B2) COMPETÊNCIA RATIONE MATERIAE

A jurisdição do Centro não é ampla, maslimitada a controvérsias legais (legal disputes)surgidas diretamente de um investimento.Nenhum dos termos é definido na Convenção.

Por controvérsias legais, contudo, quer-seenfatizar que meros conflitos de interesseestão fora do alcance da Convenção, no sen-tido do art. 36 do Estatuto da CIJ, que esta-belece que

“a controvérsia deve se referir à existên-cia ou alcance de um direito ou de umaobrigação legal, ou à natureza ou exten-são da reparação a ser feita por violaçãode uma obrigação legal”.

George Delaume esclarece que “...conflitos de interesse entre as partesque envolvam o desejo de renegociartodo o acordo ou alguns dos seustermos... ou disputas factuais, como asconcernentes à contabilidade ou inves-tigações de questões de fato... normal-mente estariam fora do alcance da con-venção”2.

Embora fundamental à implementação daConvenção, não se chegou tampouco a um con-senso sobre a definição de investimento. Ao seconsiderar, porém, o requisito essencial doconsentimento das partes para a ativação da

Convenção e, igualmente, a permissão dada aosEstados para notificar o Centro das classes dedisputas que poderão ser submetidas a suajurisdição (art. 25 IV), tem-se que a não-defini-ção de investimento confere uma maior flexibili-dade ao Centro e permite sua adequação à evo-lução de novas formas de associação entreEstados e investidores estrangeiros: se, à épo-ca de sua elaboração, pensava-se basicamenteem concessões e joint ventures relativas arecursos naturais e investimentos industriais,tem-se hoje as figuras de contratos de serviço egerenciamento, turn-key contracts, transferên-cia de know-how e tecnologia, etc. Por outrolado, a estipulação pelas partes, no instrumentode consentimento, de que a transação específicaentre elas constitui um investimento para osfins da Convenção geralmente é aceita pelostribunais do CIRCI, a não ser que a disputaesteja manifestamente fora do alcance da Con-venção, quando o próprio Secretário-Geral, nouso das atribuições do art. 28, III, recusará oregistro do requerimento de conciliação ouarbitragem.

B3) COMPETÊNCIA RATIONE PERSONAE

Outra limitação à competência do Centro éreferente à qualidade das partes: conforme o art.25, uma das partes deve ser um Estado – ousubdivisão política desse Estado ou sua agên-cia – e a outra deve ser uma pessoa física oujurídica de nacionalidade de um dos EstadosContratantes, mas diferente do Estado litigante(os binacionais são tratados como nacionais doEstado litigante). Estão, portanto, excluídas dajurisdição do Centro disputas entre Estados edisputas somente entre particulares. Tampoucoé necessário que a empresa, nacional de outroEstado-parte, seja totalmente de capital priva-do: a combinação de capitais privados e estataisnão a desqualifica como parte legítima sob aConvenção.

A nacionalidade da pessoa jurídica é deter-minada pelo critério do lugar do seu registro –place of incorporation – ou pelo local da sedesocial – siège sociale – ou ainda, conforme aúltima parte do art. 25, II, b, pelo acordo entre oEstado litigante e a empresa estrangeira, a qual,apesar de ter a nacionalidade do Estado litigante,esteja sob controle estrangeiro. Esta última pro-visão justifica-se pela condição imposta muitasvezes ao investidor estrangeiro, pelo Estadoreceptor, de conduzir seus negócios por inter-médio de uma empresa formada sob suas leis.

1 BROCHES, A. The Convention on the Settle-ment of Investment Disputes between States andNationals of Other States. Recueil des Cours, n. 2, p.348, 1972.

2 DELAUME, G. ICSID arbitration : practicalconsiderations. 1 J. Int’l Arb., n. 101, 1984. p. 101-102.

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Se não se fizesse exceção ao caso de empresassob controle estrangeiro mas registradas noEstado receptor, uma importante esfera deinvestimentos não seria abrangida pela Con-venção3.

3. Algumas particularidades doprocedimento arbitral

Após a requisição de arbitragem ter sidoregistrada pelo Secretário-Geral do Centro, quesó pode rejeitá-la se a disputa estiver manifes-tamente fora do alcance da Convenção, oTribunal Arbitral é constituído, sempre comnúmero ímpar de árbitros. O CIRCI estabeleceregras para que o Chairman aponte árbitros,caso o Tribunal não se constitua no prazo de 90dias (arts. 37 a 40).

O Tribunal, por força da Convenção, detéma chamada Kompetenz-Kompetenz, pela qual elemesmo pode julgar se é competente para atuarem determinada questão, sem ser necessáriorecorrer a qualquer instância judicial; isso sig-nifica que a arbitragem do CIRCI tem um caráterautônomo e exclusivo e os tribunais nacionaisnão podem interferir na questão da jurisdiçãodo Centro. Nas palavras de Delaume

“...se um tribunal de um Estado-parte tomaconhecimento que uma ação que lhe foiapresentada prevê arbitragem do CIRCI,ele deve interromper o curso da ação (staythe proceedings) até que uma definiçãoda questão seja dada pelo Centro”4.

É a rule of abstention, essencial à eficazimplementação da Convenção; sua violaçãopode acarretar a intervenção da CIJ, conformedispõe o art. 64.

A questão da lei a ser aplicada pelo TribunalArbitral é tratada pela Convenção nos arts. 42 a47. Deve-se distinguir a esfera da lei procedi-mental – arbitral procedural law – e da leimaterial aplicável – law applicable to the subs-tance of the dispute. Quanto à primeira, a Con-venção confere ampla liberdade às partes paraque a estipulem ou escolham, embora com algu-mas limitações, como quanto à nacionalidadedos árbitros e sua indicação ao Tribunal; aomesmo tempo, porém, ela trata diretamente dealguns aspectos, como a ausência de uma daspartes durante o procedimento (ex parte pro-ceedings), produção de provas e medidascautelares (provisional measures) (arts. 43 a 47).O local de arbitragem, normalmente Washington,não influencia a lei procedimental aplicável.Exceto se as partes convierem de outra maneira,outras questões procedimentais serão regula-das pelas Regras de Arbitragem votadas peloCentro e em vigor na data do consentimentobilateral de submissão à jurisdição ao Centro.

Enquanto as regras procedimentais encon-tram-se espalhadas por toda a Convenção, a leimaterial é objeto de um único artigo, o 42, queestipula a autonomia ilimitada das partes emrelação à lei material, quer seja nacional, inter-nacional ou combinação de ambas. Na ausênciadessa definição, o Tribunal aplicará o direito doEstado parte na disputa (inclusive suas regrasde conflito de leis) e normas de direito internacio-nal julgadas cabíveis. Dada a importância daescolha de lei material, cabe citar uma passagembastante elucidativa de Aron Broches:

“O Tribunal primeiro considerará a leido Estado parte na disputa e em princípioserá esta lei a ser aplicada ao mérito daquestão. O resultado será, então, testadofrente ao direito internacional. O proces-so não envolve confirmação ou negativada validade do direito do Estado receptor,mas pode resultar na sua não aplicaçãoquando aquele direito violar o direitointernacional. Neste sentido [...], o direitointernacional é superior hierarquicamenteao direito nacional conforme o art. 42”5.

As partes podem acertar ainda que o Tribu-nal pode decidir ex aequo et bono, ou seja, porpadrões de eqüidade, sem estar obrigado a

3 O caso Maritime International Nominees Esta-blishment v. The Republic of Guinea (Mine v. Guinea)é nesse sentido bastante interessante, pois a empresaMINE é registrada (incorporated) no Liechtenstein,que não é Estado Contratante. No acordo, contudo,concordaram as partes em tratar MINE como empresada Suíça, a qual é parte na Convenção. O art. 25, II, b,segundo a MINE, só se refere a empresas registradasno host state, não em um terceiro Estado. A Guinéinsistiu no caráter essencial do consentimento, quedaria às partes liberdade para determinar a nacionali-dade do investidor conforme apropriado às circuns-tâncias.

4 DELAUME, G. ICSID Arbitration and theCourts. AJIL, v. 77, p. 785, 1983. O caso Mine v.Guinea ilustra bem a implementação da rule of abs-tention. Apesar de existência de uma cláusula estipu-lando arbitragem CIRCI (argumento objetado, porém,pela MINE), a MINE levou a questão a uma DistrictCourt americana e à American Arbitration Association.A Guiné insistiu na jurisdição exclusiva do CIRCIpara analisar a questão e, após vários anos, esta teseprevaleceu. 5 BROCHES, op. cit., p. 392.

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aplicar regras estritas de direito material; naspalavras de Poznanski, ele está apto a

“resolve the dispute on the basis of whatis fair and just on the light of surroun-ding circumstances, rather than by a strai-ghtforward application of legal rules”6.

4. O laudo arbitralO reconhecimento e enforcement do laudo

arbitral é tratado de forma clara e incisiva nosarts. 53 a 55. O award é final and binding: nãocabe dele nenhum recurso e ambas as partesestão obrigadas a cumpri-lo integralmente. CadaEstado contratante, ademais, e não somente aspartes na disputa, deve reconhecer o laudocomo obrigatório e cumprir com as obrigaçõespecuniárias por ele impostas, como se o laudofosse uma sentença final proferida por um deseus tribunais (art. 54, I). Duas medidas podemser tomadas contra o Estado recalcitrante: o usodo direito de proteção diplomática por parte doEstado nacional do investidor (art. 27) e ajuiza-mento de ação na CIJ, conforme disposto noart. 64 da Convenção.

Somente os procedimentos do CIRCI sãocompetentes para responder a pedido de even-tual interpretação, revisão ou anulação, únicoscasos que podem, se fundamentados, adiar oenforcement do laudo proferido (arts. 50 a 52).Este é diretamente enforceable em qualquerEstado contratante sem necessidade de exequa-tur, e nenhum tribunal nacional pode revisá-losob nenhum pretexto, nem mesmo por razões deordem pública7.

Resta, contudo, a possibilidade de o Estadolevantar a tese da imunidade de execução: apesarde o art. 54 exigir o reconhecimento e execuçãodo laudo sem reservas, o art. 55 estipula que

“nada no artigo anterior derroga as leisem vigor nos Estados contratantes sobreimunidade de execução”.

As mudanças nas regras de imunidade deexecução nos últimos anos em vários países, e apossibilidade de aplicação das regras acimamencionadas dos arts. 27 e 64, bem como ainclusão de um waiver expresso de imunidadede execução nos contratos internacionais deinvestimento8, levam vários autores a crer que oart. 55 da Convenção raramente implicará obs-táculo para o enforcement de um laudo arbitraldo CIRCI. O temor de retaliação, em termosfinanceiros, por parte do Banco Mundial devidoao não-cumprimento do laudo e a possível perdade confiança de investidores privados tambémdevem ser levados em consideração.

5. Proteção diplomática, a cláusulaCalvo, a América Latina e o Brasil

O art. 27 da Convenção proíbe que“eleita a via arbitral, entre o particular e oEstado, venha o Estado da nacionalidadedaquele particular subrogar-se nas suaspretensões, pelo instituto da proteçãodiplomática, transformando assim um lití-gio sobre investimentos no qual uma par-te é particular, num litígio entre Estados”9.

A única exceção a esse waiver de proteçãodiplomática é o não-cumprimento do laudo arbi-tral por parte de um Estado.

Os Estados da América Latina, defensorestradicionais da Doutrina Calvo – que estipulavaque estrangeiros só podem ter os mesmos direi-tos que os nacionais e assim também só pode-riam buscar medidas judiciais nos tribunaislocais e conforme os dispositivos das leis nacio-nais –, não viram, porém, nesse artigo, motivosuficiente para mudar sua postura de não aceitara arbitragem internacional (mesmo que a validadeda cláusula Calvo seja de consistência duvidosa,já que o exercício da proteção diplomática é umdireito do Estado, não podendo, portanto, serobjeto de um waiver de um indivíduo – enquan-to, na Convenção-BIRD, a dispensa é feita pelotitular do direito: o Estado).

6 POZNANSKI, B. The nature and extent of anArbitrator’s powers in International CommercialArbitration. J. Int’l Arb., 1987. p. 76.

7 O caso Benvenutti and Bonfant v. the Govern-ment of the People’s Republic of the Congo comprovaa eficácia do sistema de validação de laudos: tendorecebido um laudo favorável do CIRCI em 1980, aB&B requereu seu reconhecimento num tribunal de1ª instância em Paris, o qual só foi reconhecido sobreservas, as quais foram posteriormente retiradas pelaCorte de Apelação, com fundamento no art. 54, quedetermina o reconhecimento de laudos sem reservas.A questão da imunidade de execução configura umasegunda fase, diversa da mera validação do laudo.

8 Como, por exemplo, o Acordo DIMINCO entreo Governo de Sierra Leone e Sierra Leone SelectionTrust (1970): “O Estado e a Diminco por esse instru-mento expressamente dispensam o direito de qualquerprivilégio de imunidade de jurisdição relativo aqualquer arbitragem sob esse Acordo ou a execuçãoou enforcement de qualquer laudo ou julgamento delaresultante”.

9 SOARES, G. Órgãos das soluções extrajudi-ciárias de litígios, p. 82.

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Durante muito tempo, nenhum Estado lati-no-americano assinou a Convenção, por nãoconsiderar o CIRCI como um fórum imparcial epor vê-lo talvez como um substituto da inter-venção diplomática contra os Estados da região,comum no século XIX. A noção de soberaniaadotada tampouco era favorável a qualquer tipode justiça que não fosse a estatal; isso explicaporque os países latino-americanos sempreforam reticentes não só com a adoção de con-venções internacionais de arbitragem, mas tam-bém com a adoção dessa alternativa de soluçãode controvérsias no âmbito de sua legislaçãointerna.

Outro possível motivo para a rejeição doCIRCI é a disposição do art. 42, I, (como relatadoacima), interpretado como um corretivo dequalquer disposição da lei nacional de umEstado latino que não esteja de acordo com odireito internacional10.

Desde a década de 80, porém, essa situaçãotem mudado: Paraguai (1983), Chile (1991), CostaRica (1993), Peru (1993) e Argentina (1994), entreoutros, já ratificaram a Convenção; Colômbia eUruguai assinaram e está em trâmite a ratificação.

a) A posição do Brasil

Alguns dos motivos da recusa brasileira emassinar a Convenção do BIRD podem ser apre-ciados no parecer (de cunho mais ideológicoque jurídico) proferido pelo então ConsultorJurídico do Ministério de Relações Exteriores,Dr. Augusto de Rezende Rocha, em 1964: a atua-ção do Centro-BIRD, segundo o parecer,

“seria a consagração do imperialismoeconômico e financeiro, ainda que disfar-çada. (...) não é crível que qualquer Estadonormalmente organizado, apresentandoinstituições asseguradoras de uma ordemjurídica primária, concorde de boa menteem sub-rogar funções públicas essenciaisa um tribunal internacional, que na suaorganização e funcionamento será passí-vel de sofrer influências prejudiciais àprópria soberania desse Estado. (...)nunca o Governo brasileiro, em qualquerépoca, deixou de acolher, diplomática oujudicialmente, as reivindicações de meri-torious cases de estrangeiros que lhefossem apresentadas”11.

Além de contratos de investimento entreEstados e empresas, desde a década de 60 jáeram firmados Acordos sobre Promoção e Pro-teção Recíproca de Investimentos entre paísesindustrializados e exportadores de capital epaíses em desenvolvimento – africanos e asiá-ticos – interessados em atrair investimentosestrangeiros diretos.

Só a partir de meados da década de 80 osprincipais países latino-americanos passam aintegrar esse processo, pois, confrontados coma crise da dívida, passam a adotar, principalmentea partir de 1990, políticas voltadas a uma inser-ção mais dinâmica na economia mundial. NoBrasil, percebeu-se que os investimentos priva-dos estrangeiros eram essenciais para reformulara estrutura produtiva da economia nacional eque havia uma acirrada competição por essesinvestimentos entre os países em desenvolvi-mento. Os Acordos sobre Promoção e ProteçãoRecíproca de Investimentos, nesse contexto,eram um instrumento importante para forneceruma moldura legal apropriada, ao conferir trans-parência, estabilidade e eqüidade ao tratamentode investimentos estrangeiros. A política devários países vizinhos de privilegiar a conclu-são de tais acordos, ademais, poderia contribuirpara criar desequilíbrios nos fluxos de investi-mentos na região.

Em conseqüência disso, vem ocorrendo umaevolução da postura brasileira, que tende a sedesvencilhar das tradicionais idéias vigentesquanto a investimentos e quanto à solução decontrovérsias nessa matéria. Essa mudança,contudo, dá-se pouco a pouco, já que o trabalhode compatibilização da legislação brasileira aosparâmetros internacionais já vigentes para oassunto deve ser simultâneo à obtenção de umconsenso entre os órgãos encarregados denegociar e implementar os investimentos estran-geiros.

A situação atual dos Acordos de Promoçãoe Proteção Recíproca de Investimentos assina-dos com onze países entre 1993 e 1994 (Portugal,Chile, Reino Unido, Suíça, França, Coréia, Dina-marca, Finlândia, Suécia, Noruega e Venezuela)não é alentadora, pois nenhum deles foi ratifica-do pelo Congresso. Tampouco o foi o Protocolode Buenos Aires (Decisão CMC 11/94), noâmbito do Mercosul. Alega-se a existência dedesajustes nas questões de transferências, nascondicionantes à adoção de medidas de nacio-nalização e desapropriação, e na solução decontrovérsias. Além disso, ao contrário de váriosoutros países da região, o Brasil não adotou, ao

10 ABBOT, A. Latin America and InternationalArbitration Conventions : the quandary of non-rati-fication. Harvard Int’l Law J., n. 17, 1976.

11 Apud Soares, op. cit., p. 80-82.

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iniciar o processo de negociação de Acordosde Investimento, medidas correlatas importan-tes – como a adesão à Convenção de Nova Yorksobre o Reconhecimento e Execução de Sen-tenças Arbitrais Estrangeiras, de 10 de junho de1958, ou ao CIRCI, de 18 de março de 1965.

A fórmula de compromisso encontrada paraa cláusula de solução de disputas ficou assim:a) permite-se ao investidor a opção entre orecurso aos tribunais locais do país receptor doinvestimento ou à arbitragem internacional; casose opte pela arbitragem internacional, admite-sea submissão do litígio b) ao CIRCI, estabelecidopela Convenção para a Resolução de ConflitosRelativos a Investimentos entre Estados eNacionais de outros Estados, quando ambas aspartes a ela houverem aderido; ou, até quecumpra essa condição, ao Mecanismo Adicio-nal para a Administração de Processos de Con-ciliação, Arbitragem e Verificação de Fatos(aberto a países não-signatários da convenção);ou c) a um tribunal de arbitragem ad hoc, esta-belecido de acordo com as Normas de Arbitra-gem das Nações Unidas para o Direito ComercialInternacional (UNCITRAL).

A promulgação da Lei nº 9.307/96 (originá-ria de Projeto de Lei do então Senador MarcoMaciel), que dispõe sobre a arbitragem no Brasil,significou um grande avanço no necessárioaggiornamento nessa matéria; espera-se agoraque isso se reflita no plano internacional, com aassinatura e ratificação de outros instrumentos,de modo a equiparar a legislação brasileira àposição majoritária da comunidade de nações ea facilitar, para o país e para o setor econômico,o intercâmbio comercial com o resto do mundo.

Quando se considera que os principais ins-trumentos multilaterais em matéria de arbitragemestão hoje em vigor em centenas de países12 eque um Estado com o peso específico do Brasilnão pode manter-se alheio em relação a impor-tantes questões discutidas no plano internacio-nal – como os Acordos Recíprocos de Investi-

mento e agora os debates sobre Acordos Regio-nais de Investimento (MERCOSUL, ALCA) ouMultilaterais (no âmbito da OCDE) –, umareflexão crítica sobre o tema arbitragem – na suavertente nacional e internacional – poderia levaro Brasil a adotar instrumentos adequados paramelhor enfrentar os desafios do comércio globa-lizado.

Bibliografia

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12 O CIRCI conta atualmente com 125 ratifica-ções e o número de casos a ele submetidos temaumentado: enquanto até 1983 16 controvérsiastinham sido apresentadas (resultando em 3 laudos),em 1995 tinha-se 5 casos pendentes, sendo 2 novos.Entre os casos apresentados, alguns são: AGIP v.Congo (1979); B&B v. Congo (1980); Amco Asia v.Indonesia (1984); Klöckner v. Cameroon (1983);LETCO v. Liberia (1984); Atlantic Triton v. Guinea(1986); MINE v. Guinea (1986); AAPL v. Sri Lanka

(1990). A inserção da cláusula CIRCI nos AcordosBilaterais, Regionais e Multilaterais dos anos 90 devecontribuir a uma maior utilização dos mecanismos doCentro.

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Mônica de Melo é Procuradora do Estado,Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP,Professora de Direito Constitucional da PUC/SP eDiretora do Instituto Brasileiro de Advocacia Pú-blica – IBAP.

1. IntroduçãoEm que pese a Constituição Federal de 1988

ter previsto a incidência do ICMS nos serviçosde comunicação há pelo menos 10 anos,outorgando competência aos estados-membrospara sua instituição e cobrança, pouco se temescrito a respeito desse imposto, que tem per-manecido à margem das inúmeras discussõesdoutrinárias e jurisprudenciais travadas acercados inúmeros aspectos controversos do Im-posto sobre Circulação de Mercadorias, sobrePrestações de Serviços de Transporte Interes-tadual e Intermunicipal e de Comunicação(ICMS).

Entretanto, a recente privatização dos ser-viços de comunicação, no Brasil, teve o condãode trazer à lume o debate acerca da incidênciado imposto sobre os serviços de comunicação,notadamente no que diz respeito à habilitaçãode telefones celulares.

No calor do processo da privatização,chegou-se a ensaiar a edição do Convênio ICMSnº 74 de 21 de julho de 1998, que dispunha sobrea não exigência do ICMS nos serviços detelefonia constituídos por habilitação, acesso,ativação, adesão, bem como a outros serviçossuplementares e facilidades adicionais que nãoestivessem previstos na lista exemplificativa doConvênio ICMS 2/96.

Da incidência do ICMS na habilitação detelefone celular

MÔNICA DE MELO

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Ilegitimidade ativa do consumi-dor final. 3. O ICMS sobre serviços de comunicação.4. Os serviços de comunicação e o Convênio ICMSnº 2/96. 5. A incidência do imposto sobre serviços decomunicação na modalidade telefonia celular: ahabilitação e o Convênio ICMS 69/98.

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Argumentava-se que a exigência dessesvalores oneraria a privatização, diminuindoconsideravelmente o ágio que porventura seobtivesse. Em meio a inúmeras manobras, ofen-sas e chantagens políticas, não foi obtida aunanimidade necessária à edição do Convênio,permanecendo a exigência do tributo sobre osserviços especificados, nos termos da legislaçãoregente e especialmente do Convênio ICMS 69de 19 de junho de 1998.

Entretanto, a extensiva e pouco informativacobertura que se deu ao caso fez com que sepusesse a exigência tributária em xeque. A partirdaí, algumas ações judiciais (mandados desegurança) ingressaram no Poder Judiciárioquestionando, principalmente, a cobrança doICMS na habilitação dos telefones celulares.Quem passou a acessar o Judiciário foram oscontratantes do serviço de telefonia celular,também chamados de consumidores. E bus-caram o Judiciário discutindo suposta violaçãoa anterioridade tributária, bem como questio-nando a adequação da espécie tributária eleita àexigência tributária em questão. Ou seja, oimposto não seria o tributo mais adequado, esim a taxa

Esse trabalho objetiva tecer alguns argu-mentos contrários a essa tese inicial, buscandoevidenciar a perfeita constitucionalidade elegalidade da incidência do ICMS sobre serviçosde comunicação, em especial sobre a habilitaçãode telefone celular.

2. Ilegitimidade ativado consumidor final

Inicialmente, incumbe assinalar que pessoafísica, consumidora final de serviços de comu-nicação prestados, está desobrigada de recolheraos cofres públicos qualquer quantia a título deICMS em razão da realização de serviços decomunicação. O tomador dos serviços de tele-fonia (de comunicação) não é o contribuinte doimposto, apenas suporta o ônus financeiro dotributo que vem embutido no preço do serviçocontratado. O sujeito passivo da obrigação tri-butária é o prestador do serviço, no caso a com-panhia telefônica.

Ora, como dispõe o art. 3º do CPC, parapropor ou contestar ação é necessário ter inte-resse e legitimidade (interesse jurídico, obvia-mente). E, ainda, o art. 6º do mesmo EstatutoProcessual impõe, com clareza, que “ninguémpoderá pleitear, em nome próprio, direito alheio,salvo quando autorizado por lei”.

Na qualidade de consumidor final do serviçoprestado, os que têm-se insurgido contra aexigência tributária são terceiros em relação àobrigação de recolher o tributo: não têm, pois,legitimação ativa para propor ação judicial emque se pretenda discutir essa obrigação, já queo Estado de São Paulo, sujeito ativo daobrigação tributária, nada lhes poderá exigir, poisnão são contribuintes do imposto.

Ou seja, os que têm acionado o Estado nãotêm nenhuma relação jurídica com o sujeitoativo. O imposto só pode ser exigido do sujeitopassivo da obrigação tributária, que, no casoem tela, não são os impetrantes dos mandadosde segurança propostos.

Segundo os ensinamentos de Paulo deBarros Carvalho1, os critérios para identificarmoso aparecimento de uma relação jurídica são dois:critério pessoal e critério quantitativo.

“O critério pessoal é o conjunto deelementos, colhidos no prescritor danorma, e que nos aponta quem são ossujeitos da relação jurídica – sujeito ativo,credor ou pretensor, de um lado, e sujeitopassivo ou devedor, do outro”.

A hipótese de incidência do tributo que sediscute é a descrita pela norma constitucional,art. 155, II, que dispõe:

“Art. 155 – Compete aos Estados e aoDistrito Federal instituir impostos sobre:

(...)II – operações relativas à circulação

de mercadorias e sobre prestações deserviços de transporte interestadual eintermunicipal e de comunicação, aindaque as operações e as prestações seiniciem no exterior;”

Ou seja, a regra matriz desse ICMS é prestarserviços de comunicação2. Na lição de RoqueAntonio Carraza:

“...há uma relação negocial entre o pres-tador e o usuário, que possibilita, a esteúltimo, a comunicação. É o quanto bastapara que o ICMS incida. Mesmo que ousuário mantenha os equipamentos des-ligados”3.

1 Curso de Direito Tributário. 5. ed. atual. SãoPaulo : Saraiva, 1991. p. 189.

2 Nesse sentido CARRAZA, Roque Antônio.ICMS. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo : Malheiros, 1995.p. 71.

3 Ibidem.

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No caso em questão, a companhia telefônica(TELESP-CELULAR)4 é a prestadora do serviço,a contribuinte do imposto e o impetrante, ousuário, aquele que contrata o serviço e quepaga ICMS na qualidade de consumidor final,pois este vem embutido no preço final doserviço. Mas, repetimos, não é ele o contribuintedo imposto. E, por não ser o contribuinte doimposto, jamais seria acionado pelo Fisco; poressa razão lhe falece legitimidade para vir a juízoquestionar valores que não lhe podem serexigidos, por parte do sujeito ativo que é oEstado de São Paulo.

Apenas para simplificarmos o entendimentoda questão em discussão, imaginemos a singelasituação em que alguém compra uma caneta emuma papelaria. O sujeito ativo do ICMS devidoé o Estado de São Paulo, o sujeito passivo daobrigação tributária é o comerciante que realizao fato imponível. E o consumidor final damercadoria arca com o custo final da mercadoria,que embutiu o valor do ICMS. Supondo-se quea papelaria-contribuinte do imposto, por algumarazão qualquer, tivesse recolhido erroneamenteo tributo, ou mesmo não o tivesse recolhido, dequem o sujeito ativo cobraria o adimplementoda obrigação com todos os consectários legais?Naturalmente do sujeito passivo, o contribuintedo imposto. O comprador da caneta que pagouo preço pedido jamais pode ser responsabilizadopor obrigação que lhe é de todo estranha.Repito: ele não é contribuinte do imposto.

Nesse sentido, o Excelso Pretório, pela una-nimidade de seu Colendo Plenário, já decidiunesses significativos termos:

“Só o titular de direito próprio podeimpetrar mandado de segurança, não lhecabendo vindicar em seu nome direitoalheio.” (STF. Pleno. RTJ, n. 110, p. 1026)

Recusar tal ponderação é o mesmo queadmitir que os consumidores finais de merca-dorias, onerados pelo encargo financeiro e nãotributário do tributo, teriam legitimidade para vira juízo discutir as incidências anteriores.

Ainda a propósito da legitimação ativa,transcrevo o ensinamento de Vicente Greco

Filho5, que judiciosamente esclarece:“Apesar de a legitimidade ser exa-

minada no processo e ser uma condiçãodo exercício da ação, a regra é a de que asnormas definidoras da parte legítimaestão no direito material, porque é ele quedefine as relações jurídicas entre ossujeitos de direito, determinando quaisos respectivos titulares. Assim, somentea análise cuidadosa das relações jurídicasentre os sujeitos, a serem submetidas aoJudiciário, é que determinará a legitimatioad causam.”

Tanto isso é verdadeiro que o ExcelsoPretório, julgando pedido de isenção doadquirente, que se dizia titular da mesma, masera consumidor-final das mercadorias, assimconcluiu:

“ICM. Isenção prevista para a saídade máquinas e equipamentos adquiridospara projeto de obra de interesse público,em execução. Convênios 9/75, 11/81 e 24/81. Revogação dessa isenção.

Quem tem direito à isenção em causanão é o ‘contribuinte de fato’, o compra-dor das máquinas e equipamentos nacio-nais destinados à implementação deprojetos que consultem aos interesses dopaís, mas, sim, o ‘contribuinte de direito’,que é o fabricante deles. A este não seexige que assuma qualquer obrigação emcontrapartida da isenção, nem lhe éconcedida por prazo determinado. Por-tanto, essa isenção, por não ser condi-cionada, nem a termo, para seu titular,pode ser revogada a qualquer tempo,inexistente direito adquirido a ela.”

Com base nesse voto, do Exmo. Sr. MinistroMoreira Alves, a Primeira Turma do ExcelsoPretório, por unanimidade, negou provimentoao RE 116.848–0/SP (Centrais Elétricas de GoiásS/A e Estado de São Paulo), tendo a SegundaTurma da mesma Corte se manifestado emidêntico sentido, no julgamento dos RR.EE. 115.443–8 e 117.068–9/RJ, relator o Exmo. Sr.Ministro Célio Borja, este último Acórdãofazendo referência expressa ao entendimentonesse sentido, fixado pelo Pretório Excelso, emdecisão majoritária de seu Colendo Plenário, noRE nº 113.149–7/SP, verbis:

“ICM – Isenção – Equipamentosvinculados a projeto de interesse nacio-

4 No decorrer desse texto optamos por utilizar aantiga denominação “TELESP”, que atualmente ain-da é o nome pelo qual é conhecida a companhia tele-fônica que opera no Estado de São Paulo e que permi-te uma comunicação mais eficiente com o leitor, nes-se momento de transição.

5 Direito Processual Civil brasileiro. 3. ed. SãoPaulo : Saraiva. p. 71. v.1.

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nal, incentivado – Revogação do bene-fício fiscal que não implica contrariedadea direito adquirido, uma vez que a isenção(sem prazo certo e sem condição) éconcedida ao contribuinte de direito enão ao contribuinte de fato, como é arecorrente. Entendimento fixado peloSupremo Tribunal Federal em decisãomajoritária de seu Plenário. Precedenteespecífico que deve ser observado pelasTurmas (RE nº 113.148-7-SP). RE nãoconhecido.” (RE nº 117.068-9-RJ. v. u. j. 2de outubro de 1990. DJU, p. 11.487, 19out. 1990. Seção 1, ementa)

Portanto, impossível é atribuir a condiçãode sujeito passivo a impetrante de ação, quandoaquele é consumidor final.

“Sujeito passivo da relação jurídicatributária é a pessoa – sujeito de direitos –física ou jurídica, privada ou pública, dequem se exige o cumprimento da pres-tação: pecuniária, nos nexos obrigacio-nais;” 6

A matéria é regulada de forma geral noCódigo Tributário Nacional, que, em seu art. 121,define o sujeito passivo da obrigação principalcomo a pessoa obrigada ao pagamento dotributo ou penalidade pecuniária, sendo que osujeito passivo pode assumir a condição decontribuinte, quando tenha relação pessoal edireta com a situação que constitua o respectivofato gerador (art. 121, I), ou responsável, quando,sem revestir a condição de contribuinte, suaobrigação decorra de disposição expressa delei (art. 121, II c/c art. 128 do CTN).

No caso em tela, o consumidor final não écolhido por nenhuma dessas circunstâncias, ouseja, não é contribuinte, nem responsável pelotributo, pois não é, em nenhuma dessas formas,o sujeito passivo perante o Fisco, que é o sujeitoativo da relação obrigacional.

De maneira específica, ao dispor sobre oICMS, temos a Lei Complementar nº 87/96, quetambém trata dos contribuintes do imposto aodispor que:

“Art. 4º Contribuinte é qualquerpessoa física ou jurídica, que realize, comhabitualidade ou em volume que carac-terize intuito comercial, operações decirculação de mercadorias ou prestaçõesde serviços de transporte interestadual eintermunicipal e de comunicação, ainda

que as operações e prestações se iniciemno exterior. (grifo nosso)

(...)Art. 6º Lei estadual poderá atribuir a

contribuinte do imposto ou a depositárioa qualquer título a responsabilidade peloseu pagamento, hipótese em que ocontribuinte assumirá a condição desubstituto tributário.”

O Código Tributário Nacional já dispunhaquando ainda o imposto era de competência daUnião:

“Art. 70 – Contribuinte do imposto éo prestador do serviço.”

Mais uma vez, denota-se que foi o queocorreu no Estado de São Paulo, que, emconsonância com a Constituição Federal de 1988(art. 155, II) e de conformidade com a LC 87/96,estabeleceu como sujeito passivo do impostosobre serviços de comunicação aquele querealiza prestação de serviço de comunicação,que é a companhia telefônica e não o consumidorfinal.

Vejamos a lei estadual:“TÍTULO IIDa Sujeição PassivaCAPÍTULO IDo Contribuinte(...)Artigo 7º – Contribuinte do imposto

é qualquer pessoa, natural ou jurídica, quede modo habitual ou em volume carac-terize intuito comercial, realize operaçõesrelativas à circulação de mercadorias oupreste serviços de transporte interes-tadual ou intermunicipal ou de comuni-cações. (Redação dada pelo inciso III doart. 1º da Lei 9.399, de 21-11-96. DOE, 22nov. 1996)

Artigo 7º – Contribuinte do impostoé qualquer pessoa, natural ou jurídica que,de modo habitual, realize operaçõesrelativas à circulação de mercadorias oupreste serviços de transporte interes-tadual ou intermunicipal ou de comuni-cação.

§ 1º – Incluem-se entre os contribu-intes do imposto:

1 - o industrial, o comerciante, oprodutor, o extrator e o gerador;

2 - o prestador de serviços de trans-6 CARVALHO, op. cit., p. 204.

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porte interestadual e intermunicipal ede comunicação;

3 - a cooperativa;4 - a instituição financeira e a segu-

radora;5 - a sociedade civil de fim econômico;6 - a sociedade civil de fim não

econômico que explore estabelecimentode extração de substância mineral oufóssil, de produção agropecuária, indus-trial ou que comercialize mercadoria quepara esse fim adquira ou produza;

7 - os órgãos da AdministraçãoPública, as entidades da Administraçãoindireta e as fundações instituídas emantidas pelo Poder Público;

8 - a concessionária ou permis-sionária de serviço público de transporteinterestadual e intermunicipal, decomunicação e de energia elétrica;

9 - o prestador de serviços nãocompreendidos na competência tributáriados municípios que envolvam forne-cimento de mercadoria;

10 - o prestador de serviços compre-endidos na competência tributária dosmunicípios que envolvam fornecimentode mercadoria, com incidência do impostoestadual ressalvada em lei complementar;

Tampouco ao mencionar as hipóteses em queé possível o estabelecimento do contribuintepor substituição tributária encontra-se contem-plado o consumidor final, conforme demonstrao artigo oitavo da Lei nº 6.374/89, já que oprestador do serviço de comunicação é consi-derado o contribuinte do imposto. Ninguémmais.

Portanto, e em conclusão, a ilegitimidadeativa do consumidor final é induvidosa, razãopela qual deve incidir nas ações intentadas aextinção do processo sem julgamento do mérito,nos termos do artigo 267, VI, do CPC.

Na hipótese específica, sequer ocorre orequisito necessário para requerer a tutelajurisdicional, no caso, mandado de segurançapreventivo. Ou seja, não há ameaça a direito doimpetrante, que não é sujeito passivo daobrigação tributária.

Segundo Hely Lopes Meirelles7,

“O mandado de segurança normal-mente é repressivo de uma ilegalidade jácometida, mas pode ser preventivo deuma ameaça a direito líquido e certo.”

A Constituição Federal de 1988 consagrouque nem lesão nem ameaça a direito serãoexcluídas da apreciação do Poder Judiciário (art.5º, XXV). Ocorre que não há ameaça quepossibilite o ingresso do mandado de segurançapreventivo, pois o sujeito ativo – Estado de SãoPaulo – não tem relação obrigacional com oconsumidor final.

Ademais, sob o ponto de vista da liquidez ecerteza do direito, também é precária a posiçãodo consumidor final.

O art. 5º, LXIX, da Constituição Federalpontifica com clareza que:

“... conceder-se-á mandado de segurançapara proteger direito líquido e certo, nãoamparado por habeas corpus ou habeasdata, quando o responsável pela ilega-lidade ou abuso de poder for autoridadepública ou agente de pessoa jurídica noexercício de atribuições do Poder Pú-blico;”

Por sua vez, definindo com a costumeiraprecisão o conceito de direito líquido e certo,consoante exigido no texto constitucional, HelyLopes Meirelles8 assim se manifestou:

“Direito líquido e certo é o que seapresenta manifesto na sua existência,delimitado na sua extensão e apto a serexercitado no momento da impetração.Por outras palavras, o direito invocado,para ser amparável por mandado desegurança, há de vir expresso em normalegal e trazer em si todos os requisitos econdições de sua aplicação ao impe-trante: se a sua existência for duvidosa;se o seu exercício depender de situaçõese fatos ainda indeterminados, não rendeensejo à segurança, embora possa serdefendido por outros meios judiciais.

Quando a lei alude a direito líquido ecerto, está exigindo que esse direito seapresente com todos os requisitos para oseu reconhecimento e exercício nomomento da impetração. Em últimaanálise, direito líquido e certo é direitocomprovado de plano. Se depender decomprovação posterior não é líquido nemcerto, para fins de segurança.

7 Mandado de segurança, ação popular, açãocivil pública, mandado de injunção e habeas-data.14. ed. atual. por Arnoldo Wald. São Paulo : Malhei-ros, 1992. p. 18. 8 Ibidem, p. 25 e segs.

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As provas tendentes a demonstrar aliquidez e certeza do direito podem serde todas as modalidades admitidas em lei,desde que acompanhem a inicial. O quese exige é prova preconstituída dassituações e fatos que embasam o direitoinvocado pelo impetrante”.

Em outras palavras: direito líquido e certo édireito expresso em norma legal, por um lado, e,por outro, fatos e situações de plano com-provados e perfeitamente delimitados nos autos.

Ora, como o consumidor final não é ocontribuinte do imposto, não tem como compro-var que a administração fazendária lhe estariaexigindo o imposto ou estaria em vias de fazê-lo.

O Convênio 69/98 autoriza a administraçãofazendária a exigir o ICMS sobre os serviços decomunicação do prestador do serviço, que é acompanhia telefônica.

Realmente, o Judiciário, como se sabe, nãolegisla: não pode, pois, o órgão jurisdicional,suprindo a ausência de uma norma legalautorizadora do procedimento que consumidorfinal pretenda ver reconhecido como correto,proferir provimento que se erija em verdadeirosubstitutivo do dispositivo da lei instituidorado ICMS no Estado que dispõe manifestamenteem contrário, convertendo-se em regra deconduta a ser observada pela autoridadeadministrativa.

Assim, se não há ameaça ou lesão de direitodo consumidor final, inexiste fato certo e com-provado de plano, portanto, descabe falar-seem liquidez e certeza do direito invocado, quenão pode ser apreciado mediante via manda-mental, sob pena de descaracterizar-se a feiçãoconstitucional e legalmente atribuída ao remédioheróico pelo art. 5º, LXIX, da Constituição daRepública e 1º da Lei nº l.533/51, normatizadorado mandado de segurança, motivo pelo qualtambém incidiria nessa hipótese a extinção doprocesso sem o julgamento do mérito, com baseno art. 267, IV e VI, do Código de Processo Civil.

3. O ICMS sobreserviços de comunicação

O cerne desse trabalho cinge-se à apreciaçãodo imposto estadual sobre prestação de serviçosde comunicação. Nesse sentido, é completa-mente inútil tecer considerações sobre opera-ções relativas à circulação de mercadorias, queé objeto totalmente estranho a essa incidênciatributária.

Portanto, nosso objetivo é traçar o contornodo imposto estadual sobre serviços de comu-nicação, que nos capacitará para o ponto nodaldeste trabalho: a incidência do ICMS sobrehabilitação de telefone celular.

No regime constitucional anterior, competiaà União instituir impostos sobre serviços decomunicação, ressalvados os de naturezaestritamente municipal (art. 21, VII, c/c art. 68, II,do CTN). Ou seja, os serviços de comunicaçãosujeitavam-se de maneira geral à tributaçãofederal e de forma específica à tributaçãomunicipal.

Segundo relata José Eduardo Soares deMelo9, durante vários anos, a União não exerceusua competência, somente vindo a fazê-lo coma edição do Decreto-Lei 2.186, de 20-12-84,instituindo o imposto sobre serviços de comu-nicações. E, mesmo assim, a tributação eraparcial, uma vez que o tributo tinha como fatogerador unicamente a prestação de serviços detelecomunicações destinadas ao uso público.Os demais serviços de comunicações, de âmbitointermunicipal ou interestadual, não eramtributados pela União. Cabia aos municípios atributação sobre as comunicações interligandoapenas pontos de emissão e recepção dentrodo território municipal, sem ultrapassá-lo, nemconectar-se com redes de outros municípios, oude territórios estrangeiros.

Só após a promulgação da ConstituiçãoFederal de 1988, o imposto sobre serviços decomunicações passou a ser de competênciaestadual, com a criação do ICMS – Impostosobre operações relativas à circulação demercadorias e sobre prestações de serviços detransporte interestadual e intermunicipal e decomunicação, nos seguintes termos:

“Art. 155. Compete aos Estados e aoDistrito Federal instituir impostos sobre:

(...)II - operações relativas à circulação

de mercadorias e sobre prestações deserviços de transporte interestadual eintermunicipal e de comunicação, aindaque as operações e as prestações seiniciem no exterior”; (grifo nosso)

Nos termos do inciso XII do § 2º do art. 155,foi editada a Lei Complementar 87 de 13 desetembro de 1996, que entrou em vigor em 1º denovembro de 1996. A respeito do imposto sobre

9 ICMS, teoria e prática. 2. ed. rev. atual. de con-formidade com a lei complementar 87/96. São Paulo :Dialética. 1996. p. 98.

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serviços de comunicação, previu a LC 87/96 oseguinte:

“Art. 1º – Compete aos Estados e aoDistrito Federal instituir o Imposto sobreOperações Relativas à Circulação deMercadorias e sobre Prestações deServiços de Transporte Interestadual eIntermunicipal e de Comunicação - ICMS,ainda que as operações e as prestaçõesse iniciem no exterior.

Art. 2º – O imposto incide sobre:(...)III – prestações onerosas de serviços

de comunicação, por qualquer meio,inclusive a geração, a emissão, a recep-ção, a transmissão, a retransmissão, arepetição e a ampliação de comunicaçãode qualquer natureza;”

Nos termos preconizados por GeraldoAtaliba10 e com fundamento na ConstituiçãoFederal de 1988 e na LC 87/96 (antes o Convênio66/88), a lei paulista 6.374/89 desenha a hipótesede incidência, faz a descrição legal do fato, faz aformulação hipotética, prévia e genérica do fato:prestar serviços de comunicação . Expres-samente dispõe o art. 1º da lei paulista que:

“Artigo 1º – O Imposto sobre Ope-rações Relativas à Circulação de Merca-dorias e sobre Prestações de Serviços deTransporte Interestadual e Intermunicipale de Comunicação – ICMS – tem comofato gerador as operações relativas àcirculação de mercadorias e as prestaçõesde serviços de transporte interestadual eintermunicipal e de comunicação, aindaque as operações e as prestações seiniciem no exterior.”

A partir daí, com a realização do fatoimponível, o fato concreto, localizado no tempoe no espaço, acontecido efetivamente nouniverso fenomênico, e a sua subsunção àhipótese de incidência, perfaz-se o caminhonecessário para a exigência do tributo. Naspalavras literais de Ataliba, “dá nascimento àobrigação tributária”11. O autor traça um es-quema do que a hipótese de incidência deveconter: descrição genérica e hipotética de umfato, conceito legal, designação do sujeito ativo,critério genérico de identificação do sujeitopassivo, critério de fixação do momento de con-

figuração, eventual previsão genérica de circuns-tâncias de modo e lugar e critério genérico demensuração (base imponível ou base de cál-culo)12.

Acima demonstramos a existência cons-titucional e legal da hipótese de incidência. Aseguir, para completarmos todos os itenscomponentes da obrigação tributária, trataremosdos demais componentes.

Não descuidou a legislação de designar osujeito ativo, conforme decorre claramente doart. 155, II, da CF/88, do art. 1º e 2º,III, da LC 87/96 e do art. 1º da Lei 6.374/89: o sujeito ativo dotributo é o Estado de São Paulo, conformedenota-se nos artigos já transcritos acima.

Quanto ao critério genérico de identificaçãodo sujeito passivo, dispõe a LC 87/96, em seuart. 4º, e a lei paulista, em seu art. 7º, que:

“Art. 4º – Contribuinte é qualquerpessoa, física ou jurídica, que realize, comhabitualidade ou em volume que carac-terize intuito comercial, operações de cir-culação de mercadorias ou prestações deserviços de transporte interestadual eintermunicipal e de comunicação, aindaque as operações e as prestações se ini-ciem no exterior.”

“Artigo 7º – Contribuinte do impostoé qualquer pessoa, natural ou jurídica, quede modo habitual ou em volume carac-terize intuito comercial, realize operaçõesrelativas à circulação de mercadorias oupreste serviços de transporte interes-tadual ou intermunicipal ou de comuni-cações. (Redação dada pelo inciso III doart. 1º da Lei 9.399, de 21-11-96. DOE, 22nov. 1996)

Artigo 7º - Contribuinte do imposto équalquer pessoa, natural ou jurídica que,de modo habitual, realize operaçõesrelativas à circulação de mercadorias oupreste serviços de transporte interes-tadual ou intermunicipal ou de comuni-cação.

§ 1º - Incluem-se entre os contri-buintes do imposto:

(...)8 - a concessionária ou permis-

sionária de serviço público de transporteinterestadual e intermunicipal, decomunicação e de energia elétrica;”(grifo nosso)

10 Hipótese de incidência tributária. 5. ed. SãoPaulo : Malheiros. 1992. p. 53 e segs.

11 Ibidem, p. 61. 12 Ibidem, p. 67.

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Ou seja, a legislação pertinente mencionaclaramente que o contribuinte do imposto não éo consumidor final e sim a companhia telefônica,concessionária do serviço público de comu-nicação. É ela o sujeito passivo da obrigaçãotributária.

Quanto à fixação do momento de confi-guração da hipótese de incidência, não sãomenos claras as seguintes disposições norma-tivas:

LC 87/96 – “Art. 12 – Considera-seocorrido o fato gerador do imposto nomomento:

(...)VII – das prestações onerosas de

serviços de comunicação, feita porqualquer meio, inclusive a geração, aemissão, a recepção, a transmissão, aretransmissão, a repetição e a ampliaçãode comunicação de qualquer natureza;”

Lei 6.374/89 – “Artigo 2º – Ocorre ofato gerador do imposto:

(...)IX – na geração, emissão, trans-

missão, retransmissão, repetição, amplia-ção ou recepção de comunicação dequalquer natureza, por qualquer pro-cesso, ainda que iniciada ou prestada noexterior, exceto radiodifusão (vetado);”

Por fim, quanto ao critério genérico demensuração (base imponível ou base de cálculo),temos:

LC 87/96 – “Art. 13 – A base decálculo do imposto é:

(...)III – na prestação de serviço de

transporte interestadual e intermunicipale de comunicação, o preço do serviço;”

Lei 6.374/89 – “Artigo 24 – Ressal-vados os casos expressamente previstos,a base de cálculo do imposto nas hipó-teses do artigo 2º é:

(...)VII – quanto aos serviços aludidos

nos incisos VIII e IX, o respectivo preço;”“Da Alíquota(...)Artigo 34 – As alíquotas do imposto,

salvo as exceções previstas neste artigo,são:

(...)8 – 25% (vinte e cinco por cento), nas

prestações de serviços de telecomuni-cação;” (Acrescentado pelo inciso I doart. 4º da Lei nº 7.646, de 26-12-91. DOE,27 dez. 1991)

De todo o exposto, é possível constatar queestão presentes todos os elementos necessáriosà efetiva cobrança, por parte do Estado de SãoPaulo, do imposto sobre serviços de comuni-cações.

Ou seja, a legislação tributária constitu-cional e infraconstitucional responsável pordar suporte ao imposto sobre prestação deserviços de comunicação atende plenamentetodos os requisitos necessários à imposiçãotributária.

Não menos diferente se adotarmos a dou-trina de Paulo de Barros Carvalho13 da regra-matriz de incidência, conseqüente da norma, eas relações jurídicas tributárias daí decorrentes.Segundo o tributarista nos ensina:

“Se a hipótese, funcionando comodescritor, anuncia os critérios concep-tuais para o reconhecimento de um fato,o conseqüente, como prescritor, nos dá,também, critérios para a identificaçãodo vínculo jurídico que nasce, facul-tando-nos saber quem é o sujeito por-tador do direito subjetivo; a quem foicometido o dever jurídico de cumprircerta prestação; e seu objeto, vale dizer,o comportamento que a ordem jurídicaespera do sujeito passivo e que satis-faz, a um só tempo, o dever que lhe foraatribuído e o direito subjetivo de queera titular o sujeito pretensor.”

Ou seja, os elementos trazidos por Paulo deBarros Carvalho para que a obrigação tributáriase constitua plenamente são os mesmos que jáforam analiticamente tratados acima, embora oautor utilize uma terminologia diferenciada.

Portanto, por qualquer ângulo que anali-semos a questão, a legislação tributária estadual,fundada na Constituição Federal e na LC 87/96,traz todos os elementos necessários para acobrança estadual do imposto sobre serviçosde comunicação.

Outra importante questão que a partir deagora enfrentaremos é saber o que devemosentender por serviços de comunicação. E, assimsendo, passemos ao tópico seguinte.

13 Op. cit., p. 188 e segs.

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4. Os serviços de comunicação e oConvênio ICMS nº 2/96

A Constituição Federal de 1988 e a legislaçãoque a ela se segue adota a seguinte terminologia:o imposto incidirá sobre serviços de comu-nicação.

Ao tratar da interpretação constitucional,o constitucionalista português J.J. GomesCanotilho14, diante das dificuldades de inves-tigação do conteúdo semântico da norma, vaiobservar que

“A investigação do conteúdo semân-tico das normas constitucionais implicauma operação de determinação (= ope-ração de densificação, operação demediação semântica) particularmentedifícil no direito constitucional porque:

(1) os elementos linguísticos dasnormas constitucionais são muitas vezes,polissémicos ou plurisignificativos.”

É o que acontece com o conceito trazido pelaCF/88, que precisa ser densificado, determinado,para que possamos compreender seu autênticosignificado e alcance.

É possível observar, desde logo, a opçãopor uma terminologia que comportasse especifi-cação e detalhamento posterior. Ciente dacrescente complexidade e dos inúmeros avançostecnológicos, que, num mundo globalizado,crescem em proporção geométrica, não quis olegislador, sabiamente, enclausurar-se numalista estática de serviços de comunicação. Poressa razão, adotou claramente a terminologiaserviços de comunicação, ou seja, todos osserviços de comunicação que hoje são pres-tados e outros que advirão.

Há pouquíssimos anos atrás, ninguémpoderia supor que nos comunicaríamos por meiode telefones celulares, pagers, internet etc.Logo, resta evidente que a melhor técnicalegislativa para tratar dessa questão foi autilizada pelo legislador constitucional e infra-constitucional. É uma forma de garantir esta-bilidade e segurança para o sistema jurídico, quenão precisa ser alterado a toda nova introduçãotecnológica, gerando o que se costuma chamarde inflação legislativa.

Entretanto, os sujeitos passivos do impostoestadual sobre serviços de comunicaçãosouberam, ignorando os princípios maiselementares de moralidade, ética e cidadania, tirar

proveito, no mau sentido, da técnica legislativautilizada e passaram a utilizar uma estratégia depagamento do imposto que reduzia ao máximoos fatos imponíveis. Ou seja, as companhiasconcessionárias do serviço público selecio-navam, de forma mais reduzida possível, o quepoderia ser considerado fato gerador doimposto sobre serviços de comunicação.

Dessa forma, não obstante as empresas-contribuintes prestassem inúmeros serviços decomunicação, tais como “salto”, “atendimentosimultâneo”, “siga-me”, “telefone virtual”,recolhiam o imposto sobre as singelas trans-missões e recebimentos de mensagens tele-fônicas: sobre a ligação entre dois pontos pormeios eletrônicos.

Ocorre que os avanços tecnológicospermitem, por exemplo, que o contribuinte presteo serviço que permite conectar, por meioeletrônico, não dois, mas três simultaneamente(chamado pela TELESP de atendimento simul-tâneo). E esse não seria, por acaso, um serviçode comunicação prestado?

Em face dessa realidade, ou seja, do não-recolhimento correto pelos contribuintes doimposto sobre serviços de comunicação que elesprestavam ao consumidor, é que foi editado oConvênio 2/96:

Convênio ICMS nº 2/96, de 22-3-96.DOU, 27 mar. 1996.

“Firma entendimento em relação àincidência do ICMS nas prestações dosserviços de telecomunicação que espe-cifica.

O Ministro de Estado da Fazenda eos Secretários de Fazenda, Finanças ouTributação dos Estados e do DistritoFederal, na 81ª reunião ordinária doConselho Nacional de Política Fazendária,realizada em Brasília, DF, no dia 22 demarço de l996, tendo em vista o dispostonos arts. 102 e 199 do Código TributárioNacional (Lei nº 5.172, de 25 de outubrode 1966),considerando que o ICMS incide sobre aprestação dos serviços de telecomuni-cações e que há dúvidas por parte dealguns contribuintes, no que se refere adeterminados serviços;considerando a necessidade de unifor-mizar os procedimentos tributários nasprestações de serviços de telecomu-nicações;

14 Direito Constitucional. 5. ed. ref. aum. Coim-bra : Almedina, 1992. p. 224.

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considerando a necessidade de escla-recer o contribuinte, para que correta-mente possa cumprir suas obrigaçõestributárias, resolvem celebrar o seguinte

C O N V Ê N I OCláusula primeira – Os signatários

firmam entendimento no sentido de que,em razão da incidência do ICMS sobre aprestação dos serviços classificadospelas empresas de telecomunicações sobas denominações a seguir indicadas, paracálculo e recolhimento daquele imposto,incluem-se na sua base de cálculo o valorcorrespondente ao respectivo preço:

I) assinatura de telefonia celular;II) ‘salto’;III) ‘atendimento simultâneo’;IV) ‘siga-me’;V) ‘telefone virtual’.”

O Convênio, portanto, Não criou novashipóteses de incidência, simplesmente densi-ficou o conteúdo semântico da expressão ser-viços de comunicação.

A TELESP distribui para seus tomadores deserviço uma lista de Serviços TELESP. Entreesses serviços, temos alguns denominadosfacilidades CPA , que, segundo a contribuinte:

“São serviços que permitem aosclientes de Centrais CPA (centrais tele-fônicas com controle por programa arma-zenado) novos recursos para a utilizaçãoda linha telefônica”.

Alguns desses serviços prestados tambémestão disponíveis para a telefonia celular. Eoutros só existem na telefonia móvel celular,como, por exemplo, o correio de voz (caixapostal – secretária eletrônica).

Os serviços de comunicação possíveis naslinhas CPA oferecidos pela TELESP são:

1) atendimento simultâneo: é a facilidadeque permite, durante uma chamada telefônica,atender a uma segunda chamada sem desligar aprimeira;

2) transferência de chamadas (“siga-me”):é a facilidade que permite a pessoa programar otelefone para transferir automaticamente paraoutro número telefônico predeterminado todasas chamadas feitas para o primeiro número, oque pode ser feito também para quando otelefone toca e não responde, ou em caso delinha ocupada;

3) consulta e conferência: permite falar comdois telefones diferentes ao mesmo tempo, fazeruma conferência ou ainda falar com um de cada

vez, consultar um para depois falar com outro;permite também fazer uma segunda ligaçãotelefônica sem desligar a primeira e, se houvernecessidade, desligar o telefone fazendo comque os dois números com os quais se estavafalando permaneçam interligados;

4) não perturbe: permite não receberchamadas durante um certo período, uma men-sagem gravada avisa a quem ligar que o telefonenão está recebendo chamadas temporariamente.

Esses são apenas alguns exemplos dosinúmeros serviços de comunicação prestadospela TELESP. Nada obsta a criação de outros, eprovavelmente muitos outros ainda serãocriados. Todos esses serviços devem compor abase de cálculo do imposto sobre serviço decomunicação em São Paulo.

Note-se que alguns dos serviços mencio-nados sequer constam do Convênio 2/96, queobviamente é exemplificativo , por todas asrazões já expendidas acima. Ademais, o Con-vênio foi realizado tendo-se em vista a realidadede todos os estados da federação, e não espe-cialmente do Estado de São Paulo. Além disso,as denominações dos serviços de comunicaçãovariam de uma telefônica para outra, bem comoa própria disponibilidade dos serviços.

Note-se que a própria Constituição fala emserviços – no plural –, logo, a interpretação querestringe os serviços de comunicação a apenasa comunicação entre dois pontos, primeiro, faz-se de cega para as inúmeras possibilidades exis-tentes de comunicação e que se consubstanciamem serviços prestados pelas telefônicas e,segundo, recusa-se a aceitar a própria termino-logia empregada – serviços –, que está clara-mente a indicar a existência de mais de um serviçode comunicação, além do mais óbvio e que já éprestado há muito tempo.

Após a edição do Convênio, as contri-buintes passaram a recolher o ICMS sobreaqueles serviços normalmente. E não houvequalquer questionamento no sentido de nãoconsiderar aquelas situações específicas comoserviços de comunicação plenamente tributadospelo ICMS.

Do exposto, é possível concluir que aexpressão “serviços de comunicação” é muitomais ampla do que querem fazer crer aquelesque questionam o imposto.

Por fim, resta a questão do serviço dehabilitação na telefonia celular e sua relação como imposto sobre serviço de comunicação, doque trataremos a seguir.

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5. A incidência do imposto sobre serviços decomunicação na modalidade telefonia celular:a habilitação e o Convênio ICMS 69/98

Sendo o telefone celular uma nova moda-lidade de comunicação telefônica com prati-camente as mesmas possibilidades da linhatelefônica comum, embora de tecnologia muitomais avançada, possibilita a comunicação pormeio de um sistema de telefonia móvel emcontraposição ao antigo sistema fixo. O telefonecelular é um transmissor e receptor de rádio.Quando ligado, ele recebe e transmite energiade radiofreqüência (RF). E, como é um sistemade rádio, não existem fronteiras exatas.

A TELESP, concessionária do serviço móvelcelular, é a responsável pela prestação dosserviços de comunicação, denominada, nessecaso específico, de serviço móvel celular. Deacordo com o contrato de adesão padrãoutilizado por ela, o serviço somente é prestadomediante a habilitação, que acaba por integraros serviços de comunicação nesse sistema detelefonia. Por meio da habilitação, é fornecidoum serviço consistente no registro do númerode série da unidade móvel, relacionando-o a umnúmero fornecido pela concessionária quepossibilitará o acesso aos demais serviços decomunicação.

Pela prestação do serviço móvel celular, aconcessionária cobra: valor de habilitação,assinatura correspondente à disponibilidadedo serviço, a utilização efetiva do mesmo eserviços suplementares/eventuais.

Sobre todos esses valores incide o impostosobre serviços de comunicação, nos mesmosmoldes da telefonia comum, nos termos dalegislação constitucional e infraconstitucionalque rege os serviços de comunicação.

É documento oficial da TELESP o manualque dispõe sobre os serviços de comunicaçãodisponíveis e seus valores. Nesse manual,encontramos elencada a habilitação, assinatura,utilização, serviços complementares tais como:transferência temporária de chamada, consultae conferência, chamada em espera, correio devoz e serviços eventuais. Segundo o própriomanual, os valores expressos em reais contêmos impostos devidos, bem como os encargossociais.

A habilitação, segundo a própria conces-sionária, é necessária para a especificação daestação móvel para a área de mobilidade, dentroda qual não são cobrados valores adicionais.Há áreas de mobilidade dentro do Estado de

São Paulo e sempre são cobrados valores adi-cionais quando a estação móvel encontra-se forade sua área de mobilidade.

Portanto, a habilitação é parte inerente dosserviços de comunicação prestados pelaconcessionária.

Mas, ainda que assim não se entenda, recentedecisão do Superior Tribunal de Justiça, ao tratarda incidência do ICMS sobre radiochamada(BIP), entendeu que instrumentos da atividade-fim da comunicação devem ser compreendidospelo imposto sobre a prestação de serviços decomunicação. Vejamos:

Agravo de Instrumento Nº 63.963-0/RS. Relator: Ministro Milton Luiz Pereira.p. 11.555. DOU, 2 maio 1995.

ICMS. Serviço de Comunicação. Ra-diochamada. (“BIP”).

“Incide o ICMS sobre a prestação deserviço de comunicação de radiochamada.Afasta-se a incidência do tributo muni-cipal sobre serviços listados de secretáriae aluguel de equipamento, eis que nãoconstituem substancialmente o serviçoprestado, mas instrumentos da atividade-fim de comunicação”.

Do exposto, é possível constatar que oSuperior Tribunal de Justiça entendeu que atémesmo serviços porventura considerados poralguns não-integrantes do serviço de comu-nicação – como a secretária e aluguel de equipa-mento presentes no serviço de comunicação –,modalidade radiochamada, na verdade integrama base de cálculo, fazem parte da hipótese deincidência do imposto sobre serviços de comu-nicação, pois são instrumentos essenciais parao desenvolvimento da atividade-fim.

Portanto, ainda, na remota hipótese de seconsiderar a habilitação fora da atividade-fimda concessionária, é indubitável que ela éinstrumento necessário da atividade-fim, nosmesmos moldes preconizados pelo referidoacórdão da lavra do Superior Tribunal de Justiça.

A própria concessionária assim afirma nocontrato de adesão, por ela formulado paraobrigar seus tomadores de serviço: sem a habi-litação, não é prestado o serviço objeto docontrato.

A mesma conclusão é possível extrair daleitura de Roque Antonio Carrazza15:

“Note-se que o ICMS não incidesobre a comunicação propriamente dita,

15 Op. cit., p. 71.

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mas sobre a ‘relação comunicativa’, istoé, a atividade de, em caráter negocial,alguém fornecer, a terceiro, condiçõesmateriais para que a comunicaçãoocorra.

Isto é feito mediante a instalação demicrofones, caixas de som, telefones,rádio-transmissores etc. Tudo, enfim, quefaz parte da infra-estrutura mecânica,eletrônica e técnica necessárias àcomunicação.

(...)São irrelevantes, para fins de ICMS,

tanto a transmissão em si mesma consi-derada (“relação comunicativa”), como oconteúdo da mensagem transmitida”.(grifo nosso)

Essas considerações vão na mesma linhaargumentativa do julgado do Superior Tribunalde Justiça, ou seja, tudo o que faz parte da infra-estrutura necessária para que a comunicaçãoocorra é tributado pelo ICMS sobre prestaçãode serviço de comunicação.

De forma que, mesmo argumentando-se, porhipótese, que a habilitação não é comunicaçãopropriamente dita, ela indubitavelmente faz parteda “relação comunicativa”, nos exatos termospreconizados por Carrazza. Faz parte da infra-estrutura técnica, mecânica e eletrônica neces-sária à comunicação, parte integrante da basede cálculo, como reconhece expressamente aTELESP em seu contrato com o tomador doserviço.

Portanto, também a habilitação é um fatoimponível que se subsume à hipótese deincidência: prestar serviços de comunicação, nostermos da Constituição Federal, Lei Comple-mentar 87/96, Lei 6.374/89 e mais recentementeo Convênio 69 de 19 de junho de 1998, o qual osconsumidores finais pretendem ver declaradoinconstitucional incidenter tantum, que assimdispôs:

“Convênio ICMS 69 de 19 de junhode 1998

O Ministro de Estado da Fazenda eos Secretários de Fazenda, Finanças ouTributação dos Estados Membros e doDistrito Federal, na 90ª reunião ordináriado Conselho Nacional de Política Fazen-dária, realizada em Campos do Jordão, SP,no dia 19 de junho de 1998, tendo em vistao disposto no art. 199 do Código Tribu-tário Nacional e no artigo 13, § 1 º, II, alínea“a” da LC 87/96

considerando a necessidade deuniformizar os procedimentos tributáriosnas prestações de serviço de comuni-cações e de esclarecer o contribuinte, paraque corretamente possa cumprir suasobrigações tributárias, resolvem celebraro seguinte Convênio:

Cláusula primeira – Os signatáriosfirmam entendimento no sentido de quese incluem na base de cálculo do ICMSincidente sobre prestações de serviçosde comunicação os valores cobrados atítulo de acesso, adesão, ativação,habilitação, disponibilidade, assina-tura e utilização dos serviços, bem comoassim aqueles relativos a serviçossuplementares e facilidades adicionaisque otimizem ou agilizem o processo decomunicação, independentemente dadenominação que lhes seja dada.

Cláusula segunda – Este Convênioentra em vigor na data de sua publicaçãono Diário Oficial da União, ficandorevogado o Convênio ICMS 2/96.” (rati-ficado no Estado de São Paulo peloDecreto 43.317 de 15.7.98).

Como se vê, esse Convênio tem a mesmanatureza do Convênio 2/96. É um convênio denatureza interpretativa da expressão “serviçosde comunicação”. E a habilitação, adesão,acesso, ativação, ou qualquer outro nome quetenha, só veio a constar agora pela mesma razãoda edição do Convênio 2/96, ou seja, asconcessionárias não vinham recolhendo otributo devido sobre o serviço de habilitação.

Embora o Convênio 2/96 já fosse por suaprópria natureza exemplificativo, as conces-sionárias contribuintes continuaram a nãorecolher o imposto na forma devida, o que aca-bou por gerar esse segundo Convênio, quetenta sepultar definitivamente quaisquerdúvidas que possam pairar sobre o que integraos chamados serviços de comunicação na áreade telefonia. E o Convênio, ciente das crescentesinovações, teve a devida prudência de nãoconstruir uma lista fechada.

Evidentemente, reforça-se mais uma vez o jáexpendido, não se trata de novas hipóteses deincidência, mas sim da determinação de umconceito plurisignificativo, polissêmico, que foiutilizado pelo legislador constitucional einfraconstitucional. Portanto, o ICMS sobreesses serviços de comunicação sempre existiuapós a CF/88, com a nova definição de compe-tências.

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Sendo assim, descabe falar-se em retroati-vidade da cobrança. Em nenhum momento seestá a realizar uma cobrança vedada pela Cons-tituição (art. 150, III, “a”). Ou seja, esse Convênionão sofre da eiva da inconstitucionalidade, nãofere o princípio da anterioridade constante daslimitações ao poder de tributar. A hipótese deincidência existe desde 1988. Foi instituída peloConvênio 66/88 e hoje tem previsão expressa naLC 87/96 e na lei paulista 6.374/89. Cobrar o quenão foi fulminado pela decadência é o que devefazer em nome da indisponibilidade do interessepúblico.

Só uma interpretação divorciada de todo osistema jurídico brasileiro pode entender queos serviços de comunicação previstos noordenamento jurídico são apenas a comunicaçãoentre dois pontos. Vai contra a letra da Cons-tituição que menciona expressamente “Ser-viços”.

De forma que, sendo o imposto há muitodevido, se o contribuinte não o recolheu, foipor sua própria conta e risco, se o computou nopreço do serviço e não o repassou ao sujeitoativo, está indevidamente em poder de verbaspúblicas.

Se havia qualquer dúvida no tocante aorecolhimento, cabia ao contribuinte do imposto(a concessionária) ter consultado a Adminis-tração para saber como proceder e agir de formaautorizada pela administração tributária. Paraisso, a legislação tributária (Lei nº 6.374/89, art.104) põe à disposição do contribuinte do impostoo instituto da Consulta Tributária, que inclusivesuspende procedimento fiscal apuratório:

“Artigo 104 – Todo aquele que tenhalegítimo interesse pode formular consultasobre interpretação e aplicação da legis-lação tributária estadual, nas condiçõesestabelecidas em regulamento.

§ 1º – A apresentação da consultapelo contribuinte ou responsável, inclu-sive pelo substituto, impede, até o tér-mino do prazo fixado na resposta, o iníciode qualquer procedimento fiscal desti-nado à apuração de infração relacionadacom a matéria consultada.”

O contribuinte, assumindo todos os riscos,nunca buscou certificar-se das suas obrigações

tributárias. Portanto, agora terá que assumir todoo ônus de sua desídia.

Por derradeiro, gostaríamos de fazer mençãoao argumento utilizado em algumas ações, quediz estarmos diante de uma hipótese de cobrançade taxa por prestação de serviço e não deimposto.

Mais uma vez se confunde institutos básicos,elementares do direito constitucional e tributário.Um imposto não pode ser confundido com umataxa, quando assim determina a própria Consti-tuição Federal:

“Art. 145. A União, os Estados, oDistrito Federal e os Municípios poderãoinstituir os seguintes tributos:

I – impostos;II – taxas, em razão do exercício do

poder de polícia ou pela utilização, efetivaou potencial, de serviços públicos espe-cíficos e divisíveis, prestados ao contri-buinte ou postos a sua disposição;

III – contribuição de melhoria, decor-rente de obras públicas.

(...)§ 2º – As taxas não poderão ter base

de cálculo própria de impostos.”A taxa pode ser cobrada pela utilização,

efetiva ou potencial, de serviços públicosespecíficos e divisíveis, prestados ao contri-buinte ou postos a sua disposição. O serviçode comunicação é um serviço público prestadopelo regime de concessão. Ocorre que esseserviço público já é base de cálculo própria deimposto, do imposto previsto pelo art. 155, II,da CF/88. Logo, PREVALECE O IMPOSTO SOBRE OSERVIÇO PÚBLICO DE COMUNICAÇÃO DENOMINADO ICMSE DE COMPETÊNCIA DOS ESTADOS E DISTRITO FEDERAL.Jamais taxa, nos exatos termos do § 2º do art.145 da CF/88.

Ou seja, quando o fato imponível de prestarserviço público já for apanhado pela hipótesede incidência de um imposto, prevalece oimposto. Só poderia haver taxa sobre serviço decomunicação se ela não fosse base de cálculode imposto, do ICMS.

Ademais, vale registrar que os própriosconsumidores finais estão admitindo, com essaargumentação, que a habilitação é um serviço.É um bom começo!

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1. Introdução. 2. A defesa da concorrência e ofenômeno da globalização. 3. A livre concorrênciana Constituição de 1988. 4. A atividade vinculada doCADE. 5. Os motivos de conveniência e de oportuni-dade na concentração de empresas. 6. Implicaçõesconstitucionais do poder de apreciar atos de concen-tração de empresas. 7. Concentração de empresasno Brasil e o CADE.

1. IntroduçãoA internacionalização das economias nacio-

nais, materialmente integradas pela revoluçãonos transportes e nas comunicações, está a exi-gir percepção atenta à nova ordem de valores ecomportamentos que esse fenômeno gera, coma possível modificação ou superação de con-ceitos que se tornaram ultrapassados em faceda nova realidade.

Nesse quadro, inclui-se a atividade consa-grada aos Estados de preservar o ambiente con-correncial, oferecendo segurança jurídica aosagentes econômicos que nele atuem ou venhama operar, impedindo que práticas danosas aosistema da livre iniciativa prosperem e frustremos resultados que dela se espera.

A livre concorrência constitui princípio ba-silar que informa o sistema político econômicodos Estados Unidos, país que, ao contrário doBrasil, sempre preservou a livre iniciativa e aconcorrência como valores fundamentais danação. Leis foram promulgadas, estudos feitos,casos julgados, formando incomensurável acer-vo sobre a matéria, que tem servido de basepara quantos tenham de enfrentar questõesdessa natureza.

A concentração de empresas e acompetência do CADE

JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES

ONOFRE CARLOS DE ARRUDA SAMPAIO

José Carlos de Magalhães é Advogado, ProfessorAssociado da Faculdade de Direito da USP, Mestreem Direito (Yale University), Doutor em Direito(USP), Livre Docente (USP) e Presidente do RamoBrasileiro da International Law Association.

Onofre Carlos de Arruda Sampaio é Advogado eespecialista em Direito da concorrência.

SUMÁRIO

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Mesmo na Europa, a livre concorrênciajamais constituiu princípio norteador das eco-nomias nacionais, registrando-se práticas mono-polísticas e formação de cartéis em diversospaíses, a atestar a falta de universalidade doprincípio da livre concorrência. Só recentemente,em virtude do inusitado processo de concen-tração de empresas, para fazer frente à crescenteconcorrência internacional e ante a constituiçãoda União Européia, é que aqueles países passa-ram a dar ênfase às disposições dos arts. 85 e 86do Tratado de Roma, que regulam o assunto1.

Essa modificação de comportamento coin-cide com o surgimento do fenômeno da globali-zação da economia, em que se registrou aumentosignificativo de aquisições, fusões e incorpora-ções de empresas, em todo o mundo, fazendocom que decisões paradigmáticas em tempospassados se mostrassem impróprias para regularconcentrações empresariais motivadas por rea-lidades distintas, antes desconhecidas.

2. A defesa da concorrênciae o fenômeno da globalização

Esse fenômeno fez com que a concentraçãode empresas passasse a ser encarada sob óticadiversa da que se registrava no passado. Osparâmetros adotados para mercados nacionaisfechados, que operavam em ambiente diversodo atual, tornaram-se inadequados para a reali-dade presente em que as empresas são força-das a formar alianças e a realizar ajustes de con-centração, com fusões, incorporações ou acor-dos de cooperação, que lhes permitam ampliar aeconomia de escala e sinergia, para enfrentar aconcorrência cada vez mais acirrada e, assim,sobreviverem. São mudanças estruturais reali-zadas sob as mais diversas formas jurídicas, como objetivo de criar condições para enfrentar con-correntes, que, por sua vez, procuram ser maiseficientes, redesenhando seus perfis e estraté-gias.

Nos estados nacionais de economia fecha-da, as autoridades muitas vezes tiveram êxitoem interferir e condicionar a estrutura e o com-portamento de certos setores da economia, me-diante intervenção direta, com regulamentações,ou indireta, com estímulos fiscais ou creditícios.Esse poder é hoje de certa forma limitado,sobretudo pelas normas da Organização Mun-dial do Comércio, que impede a adoção de polí-ticas de subsídios, ou protecionismos formais,como a abandonada reserva de mercado na áreade informática feita pelo Brasil, fazendo com queos Estados venham a depender dos agenteseconômicos internos e internacionais, estes cadavez mais interdependentes e livres para atuarem economias abertas.

A adoção da política de fronteiras abertas,com o abandono da prática da substituição deimportações, que, por longos anos, informou aatuação dos países não-industrializados, sobre-tudo dos latino-americanos, entre os quais oBrasil, fez crescer a preocupação em dar contor-nos novos à legislação antimonopólio.

De fato, embora o Brasil já dispusesse, desde19452, de lei específica sobre o assunto, refor-mulada em 19623, e de órgão estatal encarregadode disciplinar o abuso do poder econômico e asinfrações à ordem econômica, o Conselho Admi-nistrativo de Defesa Econômica – CADE, jamaisfoi incorporada ao espírito da burocracia estatal,tenazmente apegada ao exercício do poder e aointervencionismo que a tem caracterizado.

Pelo contrário, o protecionismo tarifário4

contra importações, a proteção à empresa nacio-nal, mediante incentivos, a imposição de barreirastarifárias e não-tarifárias, que excluíam o produtoestrangeiro similar ao nacional, mesmo quandoeste fosse mais caro e de pior qualidade tecno-lógica, o controle da importação de tecnologia5,

1 Esse controle, na verdade, visou mais evitar queempresas sediadas fora da área comunitária adquiris-sem empresas locais, ou com elas se fundissem, comoforma de ingressar na União Européia e gozar dasprerrogativas por ela oferecidas, do que as concentra-ções em si. A edição da Resolução 4.064, de 1989, daComissão Européia, que entrou em vigor em 1991, éfruto dessa preocupação e da necessidade de se iden-tificar concentrações de empresas cujos efeitosrestringem-se a um país, distinguindo-as das queinterferem na Comunidade.

2 Lei Agamenon Magalhães, Decreto-Lei 7.666,de 1945.

3 Lei 4.137, de 10 de setembro de 1962, em vigoraté a edição da Lei 8.884, de 11 de junho de 1994, quea revogou expressamente (art. 92).

4 A Lei 3.244/57, denominada Lei das Tarifas, quecriou o Conselho de Política Aduaneira, e o Decreto-Lei 63/66 conferiram base legal para a política deimportações, freqüentemente ampliada pela Carteirade Comércio Exterior – Cacex, que exercia, de fato, opoder burocrático de controlar as importações, nãoraro à margem da lei, mediante expedientes própriosda burocracia.

5 O famigerado Ato Normativo nº 15, do InstitutoNacional da Propriedade Industrial – INPI, tardia-mente revogado, estabelecia critérios rígidos para a

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o monopólio estatal de certos produtos e servi-ços, tidos como estratégicos, a política de con-trole de preços, os sucessivos congelamentosde preços e salários, que o processo inflacioná-rio agudo provocou, criaram, sobretudo naburocracia estatal, mentalidade incompatível coma livre concorrência e com o mercado aberto.

Essa mentalidade intervencionista contrasta,atualmente, com o interesse dos países neo-industrializados, como o Brasil, que podem seros reais beneficiários do processo de integra-ção econômica mundial, se forem capazes deatrair investimentos de capital para a instalaçãode indústrias voltadas à produção de bens paraos mercados nacional e internacional. A essepropósito, salienta Jagdish Bhagwati6 que ospaíses do Sul vêem na integração com a econo-mia mundial uma oportunidade, mais do que umperigo, de que estão temerosos os países doNorte, sobretudo ante o declínio do valor dossalários dos empregados não-qualificados nosEstados Unidos e o declínio do emprego naEuropa, verificado nos anos 70 e 80. Esse fenô-meno tem sido apontado como responsável pelapolítica protecionista daqueles países, inverten-do a situação anterior em que a proteção erabuscada pelos países menos industrializados7.Curiosamente, são países como o Brasil queagora enfrentam o protecionismo norte-ameri-cano e europeu, disfarçado sob as mais diver-sas formas, compelindo o país a provocar aintervenção da OMC para impedir a continuaçãode tal política.

3. A livre concorrênciana Constituição de 1988

Se, no plano externo, essa realidade eviden-cia o interesse do Brasil, como país neo-indus-trializado, na abertura e integração econômica,

contrastando com o interesse dos países desen-volvidos em adotar práticas protecionistas paradefender salários e empregos, no plano interno,nota-se resistência de setores do empresariadonacional, acostumados a dispor de mercado ca-tivo e não-concorrencial e do auxílio do Estado,bem como da própria burocracia estatal nemsempre disposta a abrir mão de poder. Os longosanos de prática intervencionista deixaram marcasprofundas que a nação resolveu apagar, ao optar,na Constituição de 1988, pela livre iniciativa epela não-intervenção do Estado na economia.

Essa opção se revela nos princípios geraisda atividade econômica, inscritos no art. 170 eseguintes da Constituição, que dão ênfase àlivre concorrência, à defesa do consumidor edefesa do meio ambiente, entre outros, com oafastamento do Estado da exploração da ativi-dade econômica, salvo quando necessária aosimperativos da segurança nacional ou em virtu-de de relevante interesse coletivo (art.173).

Coerentemente, dispôs a Constituição, noparágrafo 4º do art. 173, que “a lei reprimirá oabuso do poder econômico que vise à domina-ção dos mercados, à eliminação da concorrên-cia e aumento arbitrário dos lucros”, após haver,no parágrafo único do art. 170, assegurado “atodos o livre exercício de qualquer atividade eco-nômica, independentemente de autorização deórgãos públicos, salvo nos casos previstos emlei”.

Assim, no que tange à problemática da con-corrência, os parâmetros traçados pela Consti-tuição se fixaram no abuso do poder econômicoque objetive à dominação dos mercados, quevise à eliminação da concorrência ou queresulte no aumento arbitrário dos lucros, signi-ficando isso que o que veda a Lei Maior é oabuso do poder econômico, por qualquer dasformas de que se revista e que tenda a alcançarum ou alguns dos fins previstos. Não se cogitado poder econômico legítimo, assim configuradoo alcançado mediante mecanismos próprios daatividade mercantil. Mesmo o monopólio é lícito,desde que não resulte de processo, gradual ounão, de eliminação de concorrentes, medianteabuso do poder econômico. Quem é titular deuma patente detém um monopólio legal, e suaexploração somente se tornará ilegítima se delaresultar aumento arbitrário dos lucros, ante aausência de processo concorrencial que impeça,controle ou imponha limite em tais lucros.

A eliminação da concorrência é, igualmente,aceita pela ordem jurídica, se decorre da atividadeindustrial ou mercantil melhor desenvolvida, com

importação de tecnologia, podendo-se a ele atribuircerta responsabilidade pelo atraso tecnológico queafetou e afeta a indústria brasileira.

6 BHAGWATI, Jagdish. The agenda of the WTO.DIJCK, Pitou van, FABER, Gerrit. (Org.) Chalengeto the New World Trade Organization. Kluwer LawIntenational, 1996. p. 29.

7 Segundo BHAGWATI, os salários reais dostrabalhadores não-qualificados nos Estados Unidoscaíram sensivelmente nas últimas décadas. Em 1973,o salário por hora era de US$8,55; em 1992, caiu paraUS$7.43, montante equivalente ao percebido no finalda década de 60. Se continuasse a tendência anterior,esse salário estaria em US12.00 por hora. Op.cit., p. 30.

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oferta de produtos com melhor tecnologia emelhor preço, sem que haja abuso do poder eco-nômico. A disputa pelo cliente tem como panode fundo a diminuição do poder do concorrentee tende a eliminá-lo, não sendo, por si só, ilegí-tima essa eliminação se não houver abuso depoder econômico ou atividade desleal ou ilícita.Esta, a propósito, a norma do parágrafo 1º doart. 20 da Lei 8.884/94, que não caracteriza comoilícita a dominação de mercado relevante de bense serviços, mediante processo natural, fundadona maior eficiência do agente econômico.

Vê-se, do texto constitucional, que o funda-mento para a repressão consiste sempre no abu-so do poder econômico. E a Lei 8.884/94, aodispor sobre a prevenção e a repressão às infra-ções contra a ordem econômica, tendo de seater aos princípios constitucionais que a infor-maram, e deles não se podendo apartar, sob penade inconstitucionalidade, deve ser interpretadade acordo com tais preceitos. Dentro dessaótica, o art. 1º da Lei 8.884/94 declara:

“Art. 1º – Esta Lei dispõe sobre a pre-venção e a repressão às infrações contraa ordem econômica, orientada pelosditames constitucionais de liberdade deiniciativa, livre concorrência, funçãosocial da propriedade, defesa dos con-sumidores e repressão ao abuso do podereconômico.”

As infrações e condutas capituladas nosarts. 20 e 21 não podem, por isso, estar dissocia-das daqueles ditames. Da mesma forma, o art. 54da Lei 8.884/94, ao regular o controle de atos econtratos que possam limitar ou prejudicar a livreconcorrência ou resultem na dominação de mer-cados, deve ser aplicado com observância dosmesmos princípios constitucionais referidos noart. 1º, quais sejam, liberdade de iniciativa, livreconcorrência, função social da propriedade erepressão ao abuso do poder econômico. Daíestarem, na base de qualquer interpretação quese queira dar a tal preceito, os pressupostos darepressão ao abuso do poder econômico, daliberdade de iniciativa, livre concorrência edefesa dos consumidores.

4. A atividadevinculada do CADE

Presentes os princípios constitucionais queinformam a matéria e reiterados no art. 1º da Lei8.884/94, quaisquer atos que possam prejudicara livre concorrência ou resultar na dominaçãode mercados relevantes de bens ou de serviços

devem ser submetidos à apreciação do CADE,para o exame de eventual abuso, em cumprimentoao que dispõe o art. 54 da mesma lei, assim redi-gido:

“Art. 54. Os atos, sob qualquer formamanifestados, que possam limitar ou dequalquer forma prejudicar a livre concor-rência, ou resultar na dominação de mer-cados relevantes de bens ou serviços,deverão ser submetidos à apreciação doCADE.”

Verifica-se que o artigo estabelece que osatos nele mencionados devem ser submetidos àapreciação do CADE, não os vedando, nemcriando exceções nos seus parágrafos, que selimitam a prever parâmetros para essa aprecia-ção. Mesmo porque a competência da autarquianesse ponto, definida no art. 7 º, XII, da Lei 8.884/94, é de “apreciar os atos ou condutas, sobqualquer forma manifestados, sujeitos à apro-vação nos termos do art. 54, fixando compro-misso de desempenho, quando for o caso”.

O CADE não poderá classificar o ato de ile-gal – e, por isso, determinar-lhe a desconsti-tuição – se dele advierem os resultados previs-tos nos quatro incisos do parágrafo primeiro doart. 54 da Lei 8.884/94, quais sejam, o aumentoda produtividade, melhora da qualidade dosbens ou serviços, eficiência e desenvolvimentotecnológico ou econômico; distribuição eqüita-tiva desses benefícios entre os participantes doato e os consumidores e a não-eliminação departe substancial do mercado relevante dos bense serviços objeto do ato, com observância estritados limites necessários a se atingir os objetivosvisados.

Da mesma forma, deverá considerá-lo regularse três das quatro condições estabelecidas noreferido parágrafo primeiro do art. 54 forem aten-didas, desde que haja motivo de preponderanteinteresse da economia nacional e do bem comum,como esclarecido no parágrafo segundo domesmo artigo.

A atuação do CADE está, dessa forma,subordinada à lei, qualificando-se seus atoscomo atos vinculados da Administração, nãodispondo o administrador de ampla liberdadede decisão. Pois, como ensina Hely LopesMeirelles,

“Nessa categoria de atos administra-tivos, a liberdade de ação do administra-dor é mínima, pois terá que se ater à enu-meração minuciosa do direito positivopara realizá-lo eficazmente. Deixando de

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atender a qualquer dado expresso na lei,o ato é nulo, por desvinculado do seutipo-padrão”8.

A jurisprudência dos tribunais brasileirostem dado apoio à limitação do poder de decisãoda Administração, em casos em que a lei esta-belece critérios precisos para orientar sua ativi-dade. A esse respeito, o mesmo Hely LopesMeirelles reproduz julgado do Supremo TribunalFederal, que sintetiza a matéria, com a ementaseguinte:

“A legalidade do ato administrativo,cujo controle cabe ao Poder Judiciário,compreende não só a competência para aprática do ato e de suas formalidadesextrínsecas, como também os seus requi-sitos substanciais, os seus motivos, osseus pressupostos de direito e de fato,desde que tais elementos estejam defini-dos em lei como vinculadores do atoadministrativo”9.

Essa hipótese aplica-se inteiramente aoCADE, cuja competência, definida na Lei 8.884/94, restringe-se à apreciação de atos que possamprejudicar a livre concorrência ou resultarem nadominação de mercados, além das infrações àordem econômica definidas como tal pelos arts.20 e 21 da mesma lei.

5. Os motivos de conveniência e deoportunidade na concentração de empresas

O parágrafo segundo do art. 54, por sua vez,dispõe que o CADE não poderá impugnar osatos referidos no caput se três das condiçõesdo parágrafo primeiro estiverem presentes,desde que demonstrada a necessidade pormotivos preponderantes da economia nacionale do bem comum e ausência de prejuízo ao con-sumidor ou usuário final.

Nesse caso, a atuação do CADE, na aprecia-ção do ato de concentração, deve levar em contaos motivos preponderantes da economia nacio-nal e do bem comum que o inspirou e que podemestar suportados por critérios de conveniênciae de oportunidade, de competência exclusivado Executivo. A discricionariedade para a iden-tificação de motivos preponderantes da econo-mia nacional e do bem comum não se confunde

com arbitrariedade, pois trata-se de poder exer-cido dentro de certos limites estabelecidos porlei, podendo, se ultrapassados tais limites,caracterizar desvio de poder10. Ou, como acen-tua Celso Antonio Bandeira de Mello,

“Já se tem reiteradamente observado,com inteira procedência, que não há atopropriamente discricionário, mas ape-nas discricionariedade por ocasião daprática de certos atos. Isto porque ne-nhum ato é totalmente discricionário, dadoque conforme afirma a doutrina prevalen-te será sempre vinculado com relação aofim e à competência, pelo menos. Comefeito, a lei sempre indica, de modo obje-tivo, quem é competente com relação àprática do ato – e aí haveria inevitavel-mente vinculação. Do mesmo modo, afinalidade do ato é sempre e obrigatoria-mente um interesse público, donde afir-marem os doutrinadores que existe vin-culação também com respeito a esteaspecto”11.

Os limites desse poder estão claramente esta-belecidos no parágrafo segundo do art. 54 daLei 8.884/94, que justifica atos que prejudiquema livre concorrência, ou resultem na dominaçãode mercados relevantes de bens ou serviços, seestiverem presentes pelo menos três das quatrocondições previstas no parágrafo primeiro domesmo artigo. Se apenas uma ou duas dessascondições forem atendidas, não poderá o CADEconsiderar regular o ato submetido a sua apre-ciação, ainda que se invoque motivo preponde-rante da economia nacional e do bem comum. E,se assim o fizer, poderão os interessados, ou oMinistério Público, impugnar o ato perante oPoder Judiciário, pois os pressupostos legaispara sua admissão, não estando presentes, nãopoderão ser validamente considerados.

Da mesma forma, não poderá a autarquiadeterminar-lhe o desfazimento se três das quatrocondições forem preenchidas e existir motivopreponderante da economia nacional e do bemcomum.

8 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Adminis-trativo brasileiro. 4. ed. São Paulo : Revista dos Tri-bunais, p. 88

9 Idem, nota 7, p. 89. Revista de Direito Adminis-trativo, n. 42, p. 227.

10 Segundo Hely Lopes Meirelles, “A discricio-nariedade administrativa encontra fundamento e justi-ficativa na complexidade e variedade dos problemasque o Poder Público tem que solucionar a cada passoe para os quais a lei, por mais casuística que fosse,não poderia prever todas as soluções, ou pelo menosa mais vantajosa para cada caso ocorrente”. Nota 7,p. 137.

11 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Cursode Direito Administrativo. 8. ed. p. 249. Malheiros.

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Uma indagação que o dispositivo, desdelogo, sugere é se compete exclusivamente aoCADE decidir se há motivo preponderante daeconomia nacional e do bem comum para justifi-car determinados atos, ou se tal competência édo Estado, como um todo, assim consideradasquaisquer entidades que integram o aparatoestatal. Em outras palavras, se outro órgão daadministração federal, dentro de sua esfera decompetência, entender que certo ato deve serpraticado por consultar aos interesses da eco-nomia nacional e do bem comum, pode o CADEapreciar esse fundamento e, assim, impedi-lo?A lei não esclarece, limitando-se a dispor que,se houver motivo preponderante da economianacional e do bem comum que o justifique, edesde que não haja prejuízo ao consumidor ouusuário final, o ato pode ser considerado legíti-mo – sem esclarecer quem tem o poder de assimqualificar tal motivo. Sendo assim, é lícito con-cluir que qualquer outro órgão da administra-ção federal, dentro de sua esfera de competên-cia, estaria legitimado a emprestar tal qualifica-ção ao ato.

Essa questão tem que ver com a atuação deoutros órgãos da administração federal, como éo caso das novas agências reguladoras de ati-vidades econômicas sujeitas a regulamentosespeciais, ou do Conselho Monetário Nacionale do órgão encarregado de dar cumprimento asuas determinações, o Banco Central do Brasil,que tem competência para regular as atividadesdas instituições financeiras em geral. Consideraro CADE como o único órgão do Estado comincumbência para definir um ato como de inte-resse preponderante da economia nacional e dobem comum significaria conferir a essa autar-quia um monopólio que vai muito além de suasatribuições específicas.

O poder discricionário conferido, com exclu-sividade, ao CADE é o de alterar o percentualde 20% de participação em um mercado relevan-te, estabelecido pelo parágrafo 3º do art. 20 daLei 8.884/94, para caracterizar posição dominantepresumida, desde que para setores específicosda economia. Embora o dispositivo legal nãoestabeleça parâmetros, é óbvio que, tratando-sede poder discricionário, tem a autarquia o deverde motivar sua decisão, como qualquer atoadministrativo. Isso porque é princípio consti-tucional que ninguém é obrigado a fazer oudeixar de fazer alguma coisa senão em virtudede lei (art. 5º, II, da CF), estando a Administra-ção submetida ao princípio da legalidade, impes-soalidade, moralidade, publicidade, além deoutros (art. 37 da CF) .

6. Implicações constitucionais do poder deapreciar atos de concentração de empresas

A apreciação, pelo CADE, dos atos de con-centração ou de quaisquer outros que possamprejudicar a livre concorrência ou resultar nadominação de mercados relevantes de bens ouserviços está prevista no art. 54 da Lei 8.884/94.Se não houver abuso do poder econômico, masde um ato determinado resultar dominação demercado, eliminação da concorrência ou aumen-to arbitrário dos lucros12, não poderia a lei sim-plesmente vedá-lo sem ferir os limites estabele-cidos pela Constituição. Sendo a livre iniciativaum dos fundamentos da República, juntamentecom os valores sociais do trabalho, do qual nãose pode apartar o objetivo de desenvolvimentonacional, previsto pelo inciso II do art. 2º, devepreponderar sobre quaisquer outros que dispo-nham sobre a atividade econômica que com elaeventualmente conflitem.

Complementando essas disposições, o inci-so XVII do art. 5º da Constituição assegura aplena liberdade de associação para fins lícitos,e o XVIII afasta a necessidade de autorizaçãopara a criação de quaisquer associações, salvopara as cooperativas, que subordinou ao que alei dispuser13. Nessa mesma linha, dispôs aConstituição, no art. 174, que o Estado, comoagente normativo e regulador da atividade eco-nômica, exercerá as funções de fiscalização,incentivo e planejamento, “sendo este determi-nante para o setor público e indicativo para osetor privado”.

A essas normas agrega-se a do parágrafoúnico do art. 170 da Constituição Federal, que,ao assegurar o livre exercício da atividade eco-nômica, independentemente de autorização deórgãos públicos, ressalvou os casos previstosem lei. Esse preceito poderia induzir à interpre-

12 É importante ressaltar que o aumento arbitrá-rio dos lucros somente pode ser condenado se advémdo abuso do poder econômico, como é o caso depatentes de invenção, em que somente o titular temqualidade para explorá-las. Não sendo assim, aindaque ocorra aumento arbitrário dos lucros, desde quehaja concorrência, não se pode coibi-lo legalmente.

13 Segundo José Afonso da Silva, o texto consti-tucional abrange as sociedades lucrativas, concluindoque “... a liberdade de associação inclui tanto as asso-ciações em sentido estrito (em sentido técnico estri-to, associações são coligações de fim não lucrativo) eas sociedades (coligações de fim lucrativo)”. Cursode Direito Constitucional Positivo. 7. ed. Revista dosTribunais, p. 236.

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tação de que constitui fundamento à exigênciade autorização, pelo CADE, o exercício de ativi-dade econômica resultante de uma concentra-ção de empresas. A norma constitucional, con-tudo, refere-se ao exercício de determinado tipode atividade econômica, como a desenvolvidapelas instituições financeiras ou de seguro, oude outras atividades sujeitas a normas e regula-mentos especiais, como as telecomunicações etransportes, em que o interesse público exigecontrole e fiscalização, e que, por isso, depen-dem de autorização governamental ou estãosujeitas a regulamentação específica.

A interpretação do texto constitucional devesempre ter como suporte os princípios básicosque a nação elegeu como fundamentais e, dentreestes, sobressai o da livre iniciativa, inscrita logono art. 1º, IV, da Constituição, que, por ser umdos fundamentos mesmo da República, deveprevalecer sobre quaisquer outros na própriaConstituição previstos. Por isso, lícito é con-cluir que a liberdade de associação, indepen-dentemente de autorização governamental, afi-nando-se com o princípio da livre iniciativa,abrange a atividade econômica em suas diver-sas formas14. E, ademais, estando a liberdade deassociação prevista no art. 5º, que estabeleceos direitos e garantias individuais, constituigarantia não modificável até por emenda cons-titucional, como previsto pelo art. 60, parágrafo4º, IV, da Constituição.

Se há liberdade de associação, independen-temente de autorização governamental, é lícitaqualquer forma de concentração econômicaresultante de uma associação entre empresas,desde que, é óbvio, dessa associação nãoresulte afronta ao princípio da livre iniciativa,nem resulte de abuso de poder econômico.Mesmo porque o dispositivo constitucional (art.5º, XVII) dispõe que há liberdade de associaçãopara fins lícitos, ou seja, para fins não-vedadospor lei.

Daí que o art. 54 da Lei 8.884/94, afinadocom o texto constitucional e com a realidadeatual, confere poderes ao CADE para apenasapreciar atos ou condutas de que tratam o cita-do artigo, exercendo, nesse passo, uma ativida-de preventiva, destinada a averiguar se a asso-ciação sob seu exame fere a lei, que, por sua vez,não pode ultrapassar os limites constitucionaisda atividade legislativa, que se deve pautar pelos

princípios fundamentais já referidos. Se, nessaapreciação, o CADE constatar que um ato járealizado fere os princípios constitucionais dalivre iniciativa e decorre de abuso de poder eco-nômico, incumbe-lhe determinar o desfazimentodo ato, como previsto na lei.

Em outras palavras, a lei não pode vedar umato de natureza econômica ou uma associaçãode empresas – e, assim, uma concentração – senão resultar de abuso de poder econômico,mesmo que venha a afetar a concorrência.

Tratando-se de mera atividade preventivade exame de atos, não se pode considerar que oCADE possua o poder de autorização daquelesatos. Essa atribuição seria inconstitucional, porferir o princípio da livre iniciativa e o da não-intervenção do Estado na economia (art. 174 daConstituição).

É verdade que o parágrafo primeiro do art.54 diz que o CADE poderá autorizar os atos aque se refere o caput se presentes as condiçõesestabelecidas nos seus incisos. Mas a palavraautorizar foi utilizada com evidente improprie-dade, não podendo significar ato que preceda,necessariamente, a prática de determinado atopelo agente econômico, sob pena de nulidade.Tanto que o parágrafo 9º determina a descons-tituição dos atos que não venham a ser aprova-dos, “seja através de distrato, cisão de socieda-de, venda de ativos, cessação parcial de ativi-dades ou qualquer outro ato ou providência queelimine os efeitos nocivos à ordem econômica...”.Todos esses atos pressupõem a eficácia – e,portanto, a validade – dos atos cuja desconsti-tuição, distrato ou cisão se exige pela constata-ção, no processo de apreciação a posteriori, deque representam infração à ordem econômica.Daí por que a lei fala em desconstituição e nãoem nulidade. Somente se desconstitui o que foiconstituído e somente se distrata o que foi vali-damente contratado, somente se vende bem queintegra o patrimônio do vendedor. Essa dispo-sição revela também a impropriedade do vocá-bulo eficácia empregado no parágrafo 7º domesmo art. 54 – “a eficácia dos atos de que trataeste artigo condiciona-se a sua aprovação, casoem que retroagirá à data de sua realização;...”.Se ato é ineficaz, não produz efeito e, se nãoproduz efeito, não há que se falar em desconsti-tuição mediante distrato, cisão, venda, etc.

Essa impropriedade terminológica da lei nãoobscurece o sentido global da atuação da Au-tarquia estabelecida nos arts. 1º, 7º e 54, quenão lhe conferem poderes para autorizarquaisquer atos pelos agentes econômicos, mas

14 Sobre a noção de atividade econômica, videEros Roberto Grau, A ordem econômica na Consti-tuição de 1988. 3. ed. Malheiros. 1997. p. 121 e segs.

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o de prevenir e reprimir infrações à ordem eco-nômica.

Se é verdade que a Constituição admitiu certaintervenção no domínio econômico, para repri-mir abusos do poder econômico e preservar alivre concorrência, é verdade também que deli-mitou essa intervenção à fiscalização para aquelefim. Pois, como adverte o Professor MiguelReale,

“houve, por conseguinte, iniludível opçãode nossos constituintes por dado tipo, otipo liberal do processo econômico, o qualsó admite a intervenção do Estado paracoibir abusos e preservar a livre concor-rência de quaisquer interferências, querdo próprio Estado, quer do embate eco-nômico que pode levar à formação demonopólios e ao abuso do poder econô-mico visando ao aumento arbitrário doslucros.”15

Por isso que, ao se interpretarem as disposi-ções da Lei nº 8.884/94, não se pode perder devista os princípios constitucionais que a infor-mam, não se devendo erigir a Autarquia em órgãocartorário, ao qual os agentes econômicosdevem recorrer para obter autorização para arealização de quaisquer atos negociais ou asso-ciações de empresas. Sua competência é sem-pre a de apreciação desses atos, para verificarse há ou não abuso do poder econômico ououtra infração à ordem econômica, como taldefinida em lei.

Ademais, as associações de empresas são,via de regra, negociadas sob o maior sigilo, paraevitar prejuízos de imagem e de credibilidadedas participantes e anunciadas quando asnegociações se encerrarem, com a assinaturade instrumento que assegure o cumprimento dosajustes. A submissão da eficácia desses ajustesà condição suspensiva constitui precaução queas partes podem tomar, quando há dúvida sobreos eventuais efeitos no mercado e a apreciaçãoque deles fizer o CADE. E, não obstante as deci-sões da Autarquia possam ser questionadasperante o Judiciário, é evidente que nenhumaempresa espera discuti-las por longo período,realizando investimentos e tomando iniciativasempresariais, sem ter a certeza de que a associa-ção que realizou não venha a ser consideradacomo violadora da ordem econômica.

7. Concentração de empresasno Brasil e o CADE

A análise dos limites da competência atribuí-da ao CADE até agora feita justifica-se pelaimportância que a Autarquia assumiu, no pro-cesso de transformação por que passa o Brasil,com o abandono da política de substituição deimportações e com a abertura da economia, e aconseqüente admissão das importações emgeral, ensejando maior volume de ingresso denovos investimentos de risco, muitos em asso-ciação com empresas nacionais, outros median-te aquisição de controle acionário, em nítido pro-cesso concentracionista, em que nem semprefica claro qual seja o mercado relevante a serconsiderado, se o nacional, o comunitário doMercosul, ou o internacional. A atuação daAutarquia passou a ser relevante diante da pos-sibilidade de impedir ou dificultar esse processo,com a imposição de condições e entraves quedesestimulem o ingresso de capitais destinadosà instalação de indústrias e empresas.

Mais do que isso, enquanto no passadoconstituía órgão de atuação quase que irrele-vante, pois a Lei 4.137/62, que lhe deu nova con-figuração e contornos, contrariava a políticaeconômica geral do país, intervencionista e favo-rável ao cartel, ao controle oficial de preços e àreserva de mercado, doravante sua existência éplenamente justificada para preservar a livre con-corrência, desde que, contudo, não incorra novício comum de ampliar sua competência, paratornar-se órgão intervencionista.

O país tem registrado número crescente defusões e aquisições de empresas, realizadas como objetivo primordial de adquirir competitividadelocal ou internacional, diante do fortalecimentode concorrentes em ambas as esferas, sobretudono exterior, estes de maior relevância, ante aabertura econômica generalizada verificada emtodo o mundo, inclusive nos países do lesteeuropeu, ávidos de investimentos estrangeirose com mercados promissores.

As aquisições ou associações de empresastêm sido apreciadas sob os critérios estabeleci-dos pelo art. 54 da Lei 8.884/94 e, via de regra,consideradas dentro de padrões aceitáveis, nãose tendo registrado, ordinariamente, casos deabuso de poder econômico, mesmo em situa-ções em que se constatou ampliação expressivada participação das empresas envolvidas emdeterminado mercado relevante16. Essa orienta-

15 REALE, Miguel. Inconstitucionalidade de conge-lamentos. Folha de São Paulo, 19 out. 1988. p. A-3,transcrito por Eros Roberto Grau, nota 12, p. 203.

16 De fato, o CADE aprovou os seguintes atos deconcentração, até abril de 1997: Alcan/Ficap (AC 18/94); Ferinela/Índico (AC 42/95); Minasgás/São Felí-

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ção do CADE está afinada com a tendênciainternacional de formação de blocos econômi-cos e de concentração de empresas. A essepropósito, é oportuno registrar opinião que,sobre o assunto, esposa o Professor JoséAfonso da Silva:

“O que cumpre reconhecer é que nãoexiste mais economia de mercado, nemlivre concorrência desde que o modo deprodução capitalista evoluiu para asformas oligopolistas. Falar hoje em eco-nomia descentralizada, como economia demercado, é tentar encobrir uma realidadepalpável, de natureza diversa. A econo-mia está centralizada nas grandes empre-sas e em seus agrupamentos. Daí por quese torna praticamente ineficaz a legisla-ção tutelar da concorrência”17.

Na verdade, pode-se dizer que, ao contráriode ineficazes, as legislações sobre concorrên-cia ganharam impulso inusitado nos últimosanos, adaptando-se à nova realidade, constituin-do instrumento indispensável para assegurar olivre jogo do mercado, impedindo o abuso dopoder econômico, com a conseqüente necessi-dade de cooperação entre agências estataisdedicadas ao assunto.

De fato, a abertura generalizada das frontei-ras nacionais, impostas até pelo sucesso daRodada Uruguai do GATT, que resultou naOrganização Mundial do Comércio, motivouagrupamentos de empresas para enfrentar, nasesferas nacional e internacional, a concorrênciade grupos cada vez mais fortalecidos pela eco-nomia de escala conquistada em mercados am-pliados. Esse fenômeno, percebido a tempopelas ciosas autoridades encarregadas de zelarpela preservação da livre competição nos Esta-dos Unidos, gerou o que naquele país se apo-dou de Antitrust Revolution, em que se admitiu

maior flexibilidade à política de fusões e aquisi-ções de empresas, em face da realidade econô-mica atual18.

Essa flexibilização, na verdade, constituiadaptação de conceitos a fatos não mais tidoscomo ilícitos ou violadores dos princípios quenorteiam a livre concorrência. É a dinâmica dosnegócios e, mais do que isso, da atividade em-presarial que aconselha a revisão dessesconceitos. Assim, se um ato é legítimo em deter-minado momento, pode ser considerado ilegalem outro, impondo-se sua revisão ante o novoquadro em que se verificou. É o caso, por exem-plo, da aplicação extraterritorial das leis antimo-nopólio, que, no início do século, era inadmis-sível em virtude da jurisdição territorial dosEstados e que, desde meados do século, pas-sou a ser acolhida, inicialmente com restrições eobjeções dos países afetados, sendo atualmenteadmitida pela generalidade dos Estados, comoforma de controlar a atividade transnacional dasempresas que atuam na esfera internacional19.

Registrou-se, também, mudança de orienta-ção na apreciação das associações de empresas,visando adquirir força econômica para competirem determinados mercados, em que os partici-pantes são constituídos, em sua maioria, porgrandes corporações, com grande poder eco-nômico e tecnológico. Nos Estados Unidos, aconcentração na atividade bancária foi conse-qüência de diversos fatores que motivaram aaquisição, por bancos maiores, de pequenos

cio/SHV Energy (AC 49/95); Crown/Grace (AC 4/95;Basf/Routtand/Scandiflex (AC 38/95); Exxon/Nalco(AC 28/95); Akzo Nobel/PPG (AC 65/96); Carfepe/Santista (AC 25/95); Colgate/Kolinos (AC 27/94); Elec-trolux/Oberdorfer (AC 62/95); Cobrasma/Iochpe-Ma-xion (AC 03/94); Karibê/Paramount/Moinho Santista(AC 30/95); Akzo Nobel/Flexys/Monsanto (AC 40/95); Linhas Corrente/Microlite (AC 51/95); KCC/Kenko (AC 90/96); Cargil Agrícola/Cargil T&C/SãoValentin (AC 98/96); Ethyl Brasil/Ethyl Co./TexacoBrasil (AC 82/96); Echlin Mecano Fabril/Trats (AC50/96); Alcan/TI Brasil Ltda. (AC 93/96) e SmithlineBeecham PLC./Sterling Winthrop Inc. (AC 32/94). Cfe.Relatório Anual 1996 do CADE.

17 SILVA, José Afonso da, nota 12, p. 667.

18 MORGAN, Thomas D. Modern antitrust lawand its origin. West Publishing, 1994. p. 850 e segs.;sobre o assunto, vide também estudo de CarlosAlberto Bello, Uma avaliação da política antitrustefrente às fusões e aquisições, a partir da experiênciados EUA. REVISTA DO IBRAC, v. 4, n. 3, p. 9-35,mar. 1997.

19 Ao decidir o caso American Banana versusUnited Fruit, a Suprema Corte dos Estados Unidos,invocando doutrina tradicional do país, exposta peloJustice Marshall, absteve-se de condenar esta últimapelo abuso de sua posição dominante no território daCosta Rica, sob o fundamento de que os fatos teriamocorrido fora da jurisdição americana e, portanto, nãoalcançáveis pelo Sherman Act. A partir da década de50, a mesma Corte mudou de posição, aplicando asleis antitruste a fatos ocorridos fora do territórioamericano. Sobre o assunto, vide José Carlos deMagalhães, Aplicação extraterritorial de leis nacio-nais. Revista de Direito Público, v. 66, p. 63-79, abr./jun.1983. Vide também, Evelyne Friedel-Souchu,Extraterritorialité du Droit de la concurrence auxÉtats-Unis et dans la Communauté Européene.L.G.D.J., 1994.

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bancos, incapazes de atender às restrições sobrelimites de empréstimos e de suportar os custosda atividade. Segundo Kronstein, Miller eDommer20, durante o período de 1950 a 1959,1.503 bancos comerciais desapareceram, regis-trando-se a média de 150 bancos extintos porano, em grande parte em razão do forte movi-mento de fusão que se verificou naquele perío-do. Os bancos preferiam adquirir bancos locais,ao invés de formarem novos estabelecimentos,diante dos inconvenientes que teriam de enfren-tar e que abrangiam desde o atendimento dosseveros requisitos impostos pela legislaçãolocal para o exercício da atividade até a captaçãode clientela, em processo demorado e custoso.

Posteriormente, procurou-se evitar quefusões ou aquisições similares fossem feitas,sob o fundamento de que, ao invés de adquiriruma empresa local, ou a ela se associar, realizan-do uma joint venture, por exemplo, era de inte-resse público a constituição de nova empresa,que passaria a aumentar a concorrência, por setornar mais um participante no mercado relevanteafetado. É a tese que ficou conhecida como “con-corrência potencial”, pela qual, em certas e espe-cialíssimas circunstâncias, não se permite a umconcorrente potencial ingressar em um merca-do por meio de uma associação com um produtorjá estabelecido, no pressuposto de que tal impe-dimento o obrigue a fazê-lo ingressar isolada-mente, passando então a constituir-se em maisum concorrente. Com isso, estaria aumentandoa concorrência e desconcentrando referidomercado.

Essa doutrina, na verdade mais teoria do quevisão realista dos efeitos de uma aquisiçãohorizontal, foi efetivamente utilizada nos Esta-dos Unidos na década de 60 e 70, em númerolimitado de casos, tornados paradigmáticos,menos pela decisão adotada, e mais pela polê-mica e dúvidas que gerou.

Todavia, o ambiente econômico em que talteoria foi aplicada naquele país é sensivelmentediverso do atual, em que empresas operam emmercados cada vez maiores, exigindo maiorvolume de capitais e tecnologia, impondo asso-ciações e parcerias para fazer frente a essa reali-dade.

Registram-se, a propósito, expressivo núme-ro de pactos empresariais nos Estados Unidosque permitiram o ingresso, naquele país, de em-presas japonesas, mediante associações comempresas norte-americanas, ainda que tempo-rárias e de efeitos limitados, como foi o caso deToyota e General Motors, em 1983; Mitsubishie Chrysler, em 1985; Suzuki e General Motors,em 1986; Mazda e Ford, em 1986; Honda e Rover,em 1986; Mitsubishi e Volvo, em 1990, comonoticiam Laurent Cohen Tanugi e outros21. Idên-ticas referências são feitas por William Greider,que relata associações ou contratos de coope-ração industrial envolvendo VW e MercedesBens, Motorola, Toshiba e Philips; Nec e Sam-sung; IBM, Toshiba e Siemens e muitas outras22.Segundo esse autor, as empresas de telecomu-nicações empreenderam a mais visível e dramá-tica ação para firmar alianças, fazendo acordospara unir poder de mercado e ativos tecnológi-cos em sistemas de cabo e de telefonia, trans-missão radiofônica, produtoras de filmes, ediçãoe outros meios de comunicação, ao mesmo tempoem que buscavam sócios no exterior para explo-rar tal mercado23.

As associações entre gigantes empresariais,veementemente condenadas no passado, porconstituírem ameaça de dominação econômica,com prejuízo ao consumidor, passaram a ser, até,defendidas pelo governo, como se percebe pelaexpressiva manifestação do Presidente Clintonem favor da fusão de Boeing e McDonaldDouglas, contestada pela União Européia, cujaComissão, embora resistindo, acabou por apro-vá-la, impondo certas restrições24. Vê-se, dessapendência, a preocupação com o fortalecimentode uma atividade empresarial concentrada, naverdadeira disputa entre blocos econômicos,modificando o quadro anterior em que prevale-cia o enfoque de defesa da concorrência no

20 KRONSTEIN, Henrich, MILLER, John T.DOMMER, Paul P. Major American AntitrustLaws. New york : Institute for International andForeign Trade Law; Oceana : Dobbs Ferry, 1965.p. 298-299.

21 TANUGI, Laurent Cohen. La PratiqueCommunautaire du Controle des Concentrations.Droit/Económie -DeBoeck Université- 1995. p.194)

22 GREIDER, William. One world ready or not :the manic logic of global capitalism. Simon andSchuster, 1997. p. 171-191.

23 Nota 21, p. 182.24 Segundo notícia publicada em O Estado de São

Paulo do dia 17 de julho de 1997, p. B12, o Presidente“Clinton disse que os motivos apresentados por Bru-xelas, para opor-se à aquisição da McDonald Douglas,eram inconsistentes e seu governo estava dandoandamento a um plano de uma possível retaliação,caso a EU rejeitasse a fusão”.

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mercado nacional. Atualmente a atenção volta-separa a área internacional, para os mercadosglobais que se formaram e que transformaramas economias nacionais em meras peças de umcomplexo jogo econômico internacional.

A inter-relação das economias nacionais e adiversidade de interesses entre elas, a esse pro-pósito, têm motivado sugestões para a formaçãode um grupo de trabalho sobre a concorrência,para desenvolver uma agenda mundial sobre oassunto, ante a disparidade de entendimento eorientação entre os dois maiores blocos econô-micos do mundo, a União Européia e os Esta-dos Unidos25, já havendo acordos firmados aesse respeito, como os celebrados entre osEstados Unidos e a União Européia, e entreCanadá e Estados Unidos.

Na verdade, embora posto em evidênciarecentemente, o fenômeno constitui evoluçãonatural da estratégia da empresa multinacional,à qual foi dada muita ênfase nos anos 60 e 70,merecendo até a instalação de uma Comissãoda Empresa Transnacional, pela Organização dasNações Unidas, para controlar-lhes as ativida-des transnacionais26. A chamada “empresaglobal”, atualmente em voga, nada mais é doque a empresa multinacional, ou transnacional,em contínua evolução.

Essa nova configuração da atividade empre-sarial é que fez com que a política das autorida-des federais americanas também se modificassee influenciasse a Suprema Corte daquele país,que passou a considerar lícitas as concentrações,ante a constatação de que tais associações eramnecessárias para fazer frente a vultosos investi-mentos e se beneficiarem de tecnologias dosparceiros, e, assim, adquirirem condições decompetir no mercado mundial. Por isso, opera-ções anteriormente proibidas, em nome da purezado sistema da livre concorrência, passaram aser aceitas, sobretudo na administração dosgovernos Reagan e Bush, e mesmo Clinton,influenciada pela teoria da escola de Chicago,

que põe em evidência os efeitos positivos dasconcentrações empresariais27.

Não foi, pois, por acaso que o legisladorbrasileiro, ao editar a Lei 8.884/94, quando a ten-dência internacional concentracionista já semanifestava há algum tempo, estabeleceu a com-petência do CADE, restringindo-a à aprovaçãode atos e contratos que “possam limitar ou dequalquer forma prejudicar a livre concorrênciaou resultar na dominação de mercado relevantede bens e serviços”, sem vedar as concentra-ções, antes admitindo-as, tratando apenas deestabelecer certos parâmetros, deixando deprever normas sobre o estímulo à concorrência.

De fato, as condições previstas no parágrafoprimeiro do art. 54 da Lei 8.884/94 dizem respeitoa atos ou associações de empresas reconheci-dos como lícitos, ainda que reduzam ou limitema concorrência, mas que tenham por objetivo oaumento da produtividade, a melhora da quali-dade de bens e de serviços, a eficiência e desen-volvimento tecnológico; os benefícios sejameqüitativos e distribuídos com os consumido-res – a evidenciar a preocupação com o interessepúblico; a não-eliminação da concorrência departe substancial de mercado relevante de bense serviços e que sejam observados os limitesestritamente necessários para atingir os objeti-vos visados.

Todas essas condições versam sobre adefesa e não o estímulo à concorrência. Ade-mais, há que se ter em mente que, em determina-das situações, não se pode mais examinar osefeitos, na concorrência, de determinado ato noquadro estreito do país, ou do bloco econômicoa que pertence, mas no âmbito da economiainternacional em geral, ante a permeabilidade dasfronteiras econômicas, que permitem a qualquerparticipante atuar nas economias nacionais.

Daí que teorias, como a da concorrênciapotencial, aplicadas para estimular – e nãodefender – a concorrência não sejam acolhidasna legislação antimonopólio brasileira, pois, emúltima análise, pretende que a empresa interes-sada em participar de um mercado novo o façaindividualmente, por si própria, ou mediante aconstituição de uma subsidiária, com o que acir-rará a concorrência local. Segundo essa teoria,a associação ou fusão de empresas, mesmo quelícita, pelos benefícios que traz, ou ausência deprejuízos à concorrência, não deveria ser admi-tida, por evitar a instalação de novo ator, cujo

25 Vide excelente artigo de Eleanor Fox, Towardworld antitrust and market access”. American journalof internation law, v. 91, n. 1, jan. 1997. p. 1-25.

26 A matéria foi objeto de extensa literatura, naquelaépoca, ante a preocupação dos Estados, com econo-mias organizadas nacionalmente, em controlar umfenômeno que ultrapassava suas fronteiras. Sobre oassunto, vide José Carlos de Magalhães, A empresamultinacional : descrição analítica de um fenômenocontemporâneo. Revista Forense, v. 253, p. 167-181,1976.

27 MORGAN, Thomas D. Nota 15, p. 802 esegs. ; TANUGI et al. Nota 17, p. 132.

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ingresso faria aumentar a competição em deter-minado mercado. Mesmo nos Estados Unidos,onde a teoria foi empregada em alguns casos,como ressaltado, há sérias dúvidas sobre sualegalidade, como a levantada por HerbertHovenkamp :

“A doutrina do concorrente potencialreal comete alguma violência ao texto doparágrafo 7º, que condena fusões somen-te quando elas ‘possam diminuir subs-tancialmente a concorrência’. A doutrinado concorrente potencial real condenauma fusão porque ela não aumenta a con-corrência, não porque prejudica a con-corrência existente de qualquer forma”28.

A aplicação dessa teoria no Brasil implicariaaguda intervenção do Estado na ordem econô-mica privada, com a imposição de diretrizes com-pulsórias para o ingresso em determinado mer-cado relevante, ferindo, com isso, os princípiosconstitucionais que regem a matéria, sobretudoo da livre iniciativa.

Assim, pode-se dizer que, diante da legisla-ção brasileira, o CADE não é, nem pode ser,órgão formulador de política de fomento à con-corrência, à semelhança do antigo Conselho deDesenvolvimento Industrial, cuja atuaçãoestava voltada ao desenvolvimento da indús-tria brasileira, mediante incentivos concedidosem cada caso. A competência legal do CADEcinge-se em prevenir e reprimir condutas quepossam “limitar ou, de qualquer forma, prejudicara livre concorrência ou resultar na dominaçãode mercados de bens e serviços”.

Por isso, uma empresa, presentes essas pre-missas legais, ao procurar entrar em determinadomercado, tem o direito de fazê-lo pelo modo quejulgue mais fácil e menos custoso, até porque,

assim agindo, estará observando o princípioconstitucional da livre iniciativa e assumindoos risco inerentes a sua decisão.

Mas não é só à empresa que ingressa queinteressa a questão. Também a que aceita ouprocura a associação com novo parceiro temmotivos que devem ser considerados. Ninguémadmite um sócio em uma atividade se não temnecessidade, seja porque lhe falta capacidadeeconômica para expandir suas atividades, sejapor carência de tecnologia de que dispõe o par-ceiro, seja, ainda, para não sucumbir, ou por outrarazão relevante.

À Autarquia encarregada da defesa da con-corrência cabe apenas e tão-somente aferir se aconcentração resultante é ou não lícita diantedo que dispõe a Lei 8.884/94, e, não havendolimitação à concorrência existente, ou, ainda quetal ocorra, estando preenchidos os pressupos-tos dos parágrafos 1º e 2º do art. 54, não poderáimpedi-la. Mesmo porque o CADE age sob oprincípio constitucional da reserva legal, deven-do suas decisões serem motivadas com base notexto da lei, para terem efeito jurídico vinculante.

Não obstante tais considerações, é oportunolembrar duas decisões do CADE em sentidocontrário29, aplicando a teoria da concorrênciapotencial e, assim, contrariando orientaçãoanterior da própria Autarquia30. Em uma delas31,a conclusão da maioria dos membros da Autar-quia é a de que

“A opção pela associação, se racio-nal do ponto de vista microeconômico,ao prolongar-se por tempo virtualmenteindeterminado, é danosa à competiçãoporque, de acordo com os ensinamentos

28 Ou, no texto original: “The actual potentialentrant doctrine does some violence to the languageof par. 7, which condemns mergers only when theymay substantially lessen competition. The actual po-tential entrant doctrine condemns a merger becauseit fails to increase competition, not because it damagesexisting competition in any way”. Herbert Hovenkamp,Federal antitrust policy : The law of competition andits Practice. West Publishing, 1994. p. 512. O autornota, ainda, que, no caso Marine Bancoporation, aSuprema Corte declinou de uma segunda oportuni-dade para adotar a teoria do concorrente potencialreal, acrescentando: “It held that at the very least thegovernment must show that the suggested alternativemethod of entry was feasible and that, if used, wouldhave produced ‘deconcentration of (the target) marketor other significant procompetitive effects’”, p. 512.

29 AC 58/95 – Cia. Cervejaria Brahma/MillerBrewing Co. e Miller Brewing M 1855, Inc. e AC 83/96 – Cia. Antárctica Paulista/Anheuser Bush Inter-national Inc/ABII, Anheuser Bush InternationalHolding Inc – ABIH

30 Segundo levantamento feito pelo Presidente doCADE, Sr. Gesner de Oliveira, em seu voto dissidenteno processo AC 83/96: Cia. Antártica Paulista/Anheuser Bush, publicado na Revista do IBRAC, v. 4,n. 5, p. 148-154, as decisões anteriores são: AC 28/95: Nalco/Exxon; AC 49/95: SHV Energy/Minasgás;AC 118/97: Isolde/Basf; AC 71/96: Electrolux/Umua-rama; AC 82/96: Ethyl/Texaco; AC 50/95: Echlin/Mecano/Trats e AC 90/96: KCC/Kenko.

31 AC 83/96 – Cia. Antárctica Paulista/AnheuserBush International Inc/ABII, Anheuser Bush Inter-national Holding Inc – ABIH, na Revista do IBRAC,v. 4, n. 5, p. 37-244.

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da jurisprudência internacional na maté-ria, elimina a competição potencial perce-bida e efetiva entre a firma estabelecida ea potencial entrante. Considerando aindaque a opção pela associação com as maio-res fabricantes da indústria de cerveja foia escolhida por outras potenciais entran-tes no mercado....a aprovação da presen-te operação por este CADE excluiria apossibilidade de entrada efetiva no mer-cado da maior cervejaria do mundo, o que,além de promover a concorrência, impli-caria real aporte de investimento, tecno-logia, know-how e aumento da eficiência,além de inibir a entrada de novos partici-pantes efetivos, que haveriam de depa-rar-se além das barreiras à entrada veri-ficadas com força da marca e da presençade Anheuser-Bush no mercado brasi-leiro.32”

Constata-se, dessa conclusão, o surgimentode certo vezo intervencionista da Autarquia, aopretender ampliar sua competência legal paraassumir papel de órgão tutelar da atividade em-presarial, desconsiderando os limites constitu-cionais a que sua atividade está sujeita. É de sedestacar, contudo, a falta de unanimidade emambas as decisões. Um dos votos dissidentesproferido no processo AC 83/96 (Antarctica/Anheuser) dá ênfase à inaplicabilidade, no

Brasil, da teoria da concorrência potencial paraestimular a concorrência, concluindo:

“É duvidosa, neste caso, a aplicaçãodesta versão da doutrina ao caso brasi-leiro, haja vista que a Lei 8.884/94, nocaput do art. 54, afirma que serão subme-tidos à apreciação do CADE os atos so-bre qualquer manifestados, que posamlimitar ou de qualquer prejudicar a livreconcorrência. Se o ato não prejudica aconcorrência, não está sob escrutínio.33”

Outro voto dissidente no mesmo processosalientou que

“Até agora a doutrina de concorrên-cia potencial não preponderou na análisedo CADE. Isto não quer dizer, natural-mente, que sua aplicação rigorosa, comas devidas provas e evidências fartamentepreenchidas, não possa constituir algopositivo e inovador”34.

Ante a polêmica que as decisões geraram,com manifestações contrárias generalizadas, éprovável que o CADE não insista na aplicaçãode teorias destinadas a impulsionar a concor-rência, mas sim se fixe na previsão constitucio-nal de atuar nos limites da prevenção e darepressão ao abuso do poder econômico quevise falsear a concorrência, prejudicando a livreiniciativa.

32 Voto da Conselheira Relatora, Lúcia HelenaSalgado e Silva, na Revista do IBRAC, p. 87-88

33 Voto do Conselheiro Arthur Barrionuevo Filho,na Revista do IBRAC, v. 4, n. 5, p. 107-125.

34 Voto do Presidente Gesner de Oliveira, naRevista do IBRAC, v. 4, n. 5, p.131-148.

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Rodrigo Garcia da Fonseca é advogado no Rio deJaneiro e em São Paulo e pós-graduado em Direito daEmpresa (PUC-RJ).

1. Colocação do problemaA questão da responsabilidade civil do

Estado 1, e das pessoas jurídicas de direitopúblico em geral, há muito que é das mais deba-tidas na doutrina e na jurisprudência. E nãopoderia ser de outra forma, diante da onipresençado Estado na sociedade moderna e da crescenteprocura dos particulares pelo Poder Judiciário,buscando o ressarcimento dos danos queentendem provocados pelos entes estatais.

Mas a responsabilização do Estado peranteos particulares coloca desde logo um outro pro-blema, o do ressarcimento aos cofres públicosdas quantias dispendidas com as indenizações.O Estado não é uma entidade abstrata, que tudopode e fabrica impunemente o seu própriodinheiro, como muitas vezes parece ao desavi-sado.

Os recursos do Estado, em última análise,são provenientes dos contribuintes. Assim,cada vez que o Estado é condenado a pagaruma indenização a quem quer que seja, essecusto acaba repartido pela sociedade como umtodo.

Ora, se interessa à sociedade ter um Estadoorganizado, e é para isso que as pessoas pagam

A responsabilidade civil do Estado e adenunciação da lide ao funcionário

RODRIGO GARCIA DA FONSECA

SUMÁRIO

1. Colocação do problema. 2. A responsabilidadecivil do Estado. 3. Da denunciação da lide. 4. A açãoregressiva contra o funcionário e a denunciação dalide. 5. Conclusões.

1 Para efeitos do presente trabalho, as expressões“Estado” e “Administração” são utilizadas lato sensu,englobando quaisquer pessoas jurídicas de direitopúblico.

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os seus impostos, não é justo que todos repar-tam os prejuízos das indenizações devidas peloEstado nas situações em que for possível iden-tificar um servidor responsável pela provoca-ção do dano imputado ao ente estatal.

Assim, em princípio, cumpre ao funcionário,causador do dano ao terceiro, a obrigação dereembolsar o erário, regressivamente.

Resta saber se a ação regressiva do Estadocontra o funcionário pode ser resolvida nosmesmos autos da ação movida pelo lesadocontra o Estado, mediante o emprego da denun-ciação da lide. É esse o questionamento do pre-sente trabalho.

2. A responsabilidadecivil do Estado

A responsabilidade civil do Estado, comoconhecemos hoje no direito brasileiro, é frutode longa evolução histórica, bem resumida porHely Lopes Meirelles:

“A doutrina da responsabilidade civilda Administração Pública evolveu doconceito de irresponsabilidade para o daresponsabilidade com culpa , e destepara o da responsabilidade sem culpa.Por outras palavras, passou-se da faseda irresponsabilidade da Administraçãopara a fase da responsabilidade civilís-tica e desta para a fase da responsabili-dade pública em que nos encontramos”2.

Na realidade, a fase da total irresponsabili-dade da Administração por quaisquer atos seidentifica com o surgimento dos Estados unitá-rios europeus da Idade Média, com todos ospoderes centrados na mão do monarca absolu-tista. Dentro dessa concepção política, vigoravao princípio the king can do no wrong, pelo quala Administração estava absolutamente isentade qualquer responsabilidade por seus atos.

A regra da irresponsabilidade, embora já afas-tada na maioria dos países ocidentais, vigorouna Inglaterra e nos Estados Unidos até poucodepois da Segunda Guerra Mundial, aindabaseada no velho brocardo medieval3.

No Brasil, já no início do século, o CódigoCivil passou a regular a responsabilidade civil

da Administração, estabelecendo-a na modali-dade subjetiva, ou seja, sujeitando-a a repararos danos causados por sua culpa. Assim dispõeo art. 15 do Código Civil:

“Art. 15. As pessoas jurídicas dedireito público são civilmente responsá-veis por atos dos seus representantes quenessa qualidade causem danos a tercei-ros, procedendo de modo contrário aodireito ou faltando a dever prescrito porlei, salvo o direito regressivo contra oscausadores do dano”.

Vê-se, portanto, que, no sistema do CódigoCivil, a responsabilidade civil das pessoas jurí-dicas de direito público se assemelha à respon-sabilidade civil dos particulares em geral (art.159), e em especial dos patrões por atos de seusprepostos (arts. 1.521, III, e 1.523). A responsa-bilidade só surgiria quando o funcionário agisse“de modo contrário ao direito ou faltando adever prescrito por lei”.

Já se verifica no Código Civil, por outro lado,a preocupação em ressalvar ao Estado a açãoregressiva contra o servidor responsável pelodano, de modo que a sociedade não pague, elatoda, pelo ato ilícito do funcionário.

A partir da Constituição de 1946, porém, aresponsabilidade civil do Estado, no direito bra-sileiro, passou à modalidade objetiva, dispen-sando-se a prova da culpa para o surgimento daobrigação de indenizar. Incorporou-se ao direitopátrio, assim, a teoria do risco administrativo4.

A regra da Constituição de 1946 sobre amatéria vinha no art. 194, reproduzido compequenas alterações no art. 105 da Constituiçãode 1967 e no art. 107 da Emenda Constitucionalnº 1 de 1969. A norma constitucional vigente é ado § 6º do art. 37 da Constituição de 1988, coma seguinte redação:

“Art. 37. (...)§ 6º As pessoas jurídicas de direito

público e as de direito privado prestado-ras de serviços públicos responderãopelos danos que seus agentes, nessaqualidade, causarem a terceiros, assegu-rado o direito de regresso contra o res-ponsável nos casos de dolo ou culpa”.

A novidade da última carta constitucionalfoi a extensão do regime da responsabilidadecivil da Administração também às pessoas jurí-

2 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Adminis-trativo brasileiro. 16. ed. Revista dos Tribunais, 1991.p. 546 – grifos originais.

3 Ibidem; DIAS, José de Aguiar. Da responsabi-lidade civil. 9. ed. Forense, 1994. v. 2, p. 556.

4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabili-dade civil. 8. ed. Forense, 1996. p. 133.

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dicas de direito privado que prestem serviçospúblicos5.

A responsabilidade objetiva do Estado,independente da prova da culpa, justifica-seteoricamente pelos riscos inerentes à atividadeestatal6 (daí o nome “teoria do risco administra-tivo”), que é, necessariamente, de potencial le-sivo aos particulares. Sendo assim, é justo queesse risco do desempenho das funções públicasseja diluído por toda a sociedade, que, ao menosem tese, beneficia-se dessas atividades. Emresumo, como as atividades do Estado aprovei-tam à coletividade, todos os cidadãos devemarcar com as conseqüências delas decorrentes7.

Nesse regime de responsabilidade civilobjetiva, basta ao lesado provar o dano e o nexode causalidade entre esse dano e a atividade dapessoa jurídica de direito público. Feitas asprovas, a indenização será devida, mesmo quenão haja qualquer ilicitude no comportamentoda Administração, pelo princípio de que a satis-fação geral da comunidade não deve ser realiza-da às expensas de setores restritos da sociedade,repartindo-se os prejuízos, assim, por todos8.

O estágio atual do direito brasileiro, nesteparticular, pode ser resumido no seguinte julga-do do Supremo Tribunal Federal, de 1996, quefaz um apanhado geral do tema:

“A teoria do risco administrativo,consagrada em sucessivos documentosconstitucionais brasileiros, desde a CartaPolítica de 1946, confere fundamento dou-trinário à responsabilidade civil objetivado Poder Público pelos danos a que osagentes públicos houverem dado causa,por ação ou por omissão. Essa concepçãoteórica, que informa o princípio constitu-

cional da responsabilidade civil objetivado Poder Público, faz emergir, da meraocorrência de dano pessoal e/ou patri-monial sofrido, independentemente decaracterização de culpa dos agentes es-tatais ou de demonstração de falta doserviço público.

Os elementos que compõem a estru-tura e delineiam o perfil da responsabili-dade civil objetiva do Poder Público com-preendem (a) a alteridade do dano, (b) acausalidade material entre o eventusdamni e o comportamento positivo (ação)ou negativo (omissão) do agente público,(c) a oficialidade da atividade causal elesiva, imputável a agente do PoderPúblico, que tenha, nessa condição fun-cional, incidido em conduta comissiva ouomissiva, independentemente da licitude,ou não, do comportamento funcional(RTJ, n. 140, p. 636) e (d) a ausência decausa excludente da responsabilidadeestatal (RTJ, n. 55, p. 503 – RTJ, n. 71, p.99 – RTJ, n. 91, p. 377 – RTJ, n. 99, p. 1155– RTJ, n. 131, p. 417).

O princípio da responsabilidade ob-jetiva não se reveste de caráter absoluto,eis que admite o abrandamento e, atémesmo, a exclusão da própria responsa-bilidade civil do Estado, nas hipótesesexcepcionais configuradoras de situaçõesliberatórias – como o caso fortuito e aforça maior – ou evidenciadoras de ocor-rência de culpa atribuível à própria vítima(RDA, n. 137, p. 233 – RTJ, n. 55, p. 50)”9.

Por outro lado, não se justificaria que o fun-cionário causador do dano respondesse regres-sivamente pela indenização em qualquer hipó-tese, mesmo quando não tivesse agido comculpa e nem praticado qualquer ilícito.

O risco administrativo dos prejuízos causa-dos por atos lícitos da Administração deve sersuportado pela sociedade, e não pelo funciona-lismo. O funcionário obrigado a reembolsar aindenização paga pelo Estado é aquele que agiucom desídia, que foi o culpado por um dano,causado a um terceiro, dano que poderia ter sidoevitado se ele tivesse atuado corretamente, pois,nessa hipótese, não se justifica a imposição doônus, em última instância, aos cofres públicos.

5 A prestação de serviços públicos envolvenecessariamente riscos aos usuários do serviço e aterceiros. Como essa prestação, por pessoas jurídicasde direito privado, é sempre remunerada, o legisladorconstituinte entendeu apropriado estender-lhes ateoria do risco, sujeitando-as à responsabilidade civilobjetiva. Trata-se de ônus da atividade, que o empre-sário deve levar em consideração quando do cálculode sua remuneração.

6 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obri-gações. 5. ed. Revista dos Tribunais, 1990. p. 273.

7 BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade civildo Estado. Estudos em Homenagem ao ProfessorSílvio Rodrigues. Saraiva, 1989. p. 55.

8ALTERINI, Atilio A. Lesión al crédito y respon-sabilidad del Estado. Buenos Aires, Abeledo-perrot,1990. p. 127.

9 STF. 1ª Turma. Recurso Extraordinário nº109.615-2-RJ. Relator: Ministro Celso de Mello.Revista de Direito Renovar, n. 6, p. 99.

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Assim, podemos resumir a questão, semmedo de errar, afirmando que, perante terceiros,a Administração está sujeita à responsabilidadecivil objetiva, tendo direito à ação regressiva,contra o funcionário causador do dano, apenasna modalidade subjetiva.

3. Da denunciação da lideA denunciação da lide, por sua vez, é moda-

lidade de intervenção de terceiros consagradano Código de Processo Civil vigente e que per-mite à parte ressarcir-se, nos próprios autos, deeventuais prejuízos numa demanda judicial.

Na definição de Moacyr Amaral Santos, a“denunciação da lide é o ato pelo qual oautor ou o réu chamam a juízo terceirapessoa, que seja garante do seu direito, afim de resguardá-lo no caso de ser venci-do na demanda em que se encontram”10.

Para Sálvio de Figueiredo Teixeira, “é meio paraobter indenização do denunciado, por prejuízoque o denunciante sofrer com a perda da ação”11.

O objetivo principal da denunciação da lideé agilizar a prestação jurisdicional, permitindoque duas relações jurídicas (autor vs. réu e de-nunciante vs. denunciado) sejam solucionadasnum mesmo processo, numa única sentença.Trata-se de instituto intimamente ligado ao prin-cípio da economia processual.

Ocorrendo a denunciação da lide, estabele-ce-se uma nova relação processual, entredenunciante e denunciado, paralela àquela entreautor e réu. Embora nos mesmo autos, tecnica-mente são duas ações diferentes, ainda queconexas.

O inciso III do art. 70 do Código de ProcessoCivil tem a seguinte redação:

“Art. 70. A denunciação da lide é obri-gatória:

(...)III – àquele que estiver obrigado, pela

lei ou pelo contrato, a indenizar, em açãoregressiva, o prejuízo do que perder ademanda”.

A doutrina é francamente dominante no sen-tido de que, no caso do inciso III, a “obrigatorie-

dade” da denunciação é relativa, ou seja, a suafalta impede o regresso nos mesmos autos dademanda originária, mas não acarreta a perdado direito regressivo12.

A hipótese do inciso III do art. 70 é muitofreqüente no foro, sendo comum a propositurade uma ação indenizatória contra um réu queformula, por sua vez, a denunciação da lide a umterceiro que esteja obrigado a reembolsar-lhe oprejuízo regressivamente (por exemplo, umacompanhia de seguros obrigada contratual-mente ao reembolso)13.

Ora, como a própria Constituição ressalvaàs pessoas jurídicas de direito público a açãoregressiva contra o funcionário culpado peloprejuízo causado a terceiros, em princípio, ahipótese enquadrar-se-ia no inciso III do art. 70do Código de Processo Civil (obrigação legalou contratual de indenização regressiva), caben-do a denunciação da lide. Mas a questão não étão simples.

Na interpretação do dispositivo legal citadoacima, a corrente majoritária pende no sentidode restringir a admissibilidade da denunciaçãoda lide para os casos de ação regressiva auto-mática, de reembolso independente de indaga-ções. Assim, seria cabível apenas nos casos dachamada garantia própria, afastada a sua possi-bilidade nas situações de garantia imprópria.

A admitir-se a denunciação em qualquer tipode ação regressiva, o prejudicado acabariasendo o terceiro litigante, pois a demandasecundária, com provas e contraditório diver-sos da demanda principal, acabaria retardandodemasiadamente o desfecho do caso. A celeri-dade processual, maior razão de ser do institutoda denunciação da lide, acabaria sendo prejudi-cada por esse seu emprego alargado.

Theotônio Negrão, citando farta jurisprudên-cia, inclusive do Supremo Tribunal Federal e doSuperior Tribunal de Justiça, anota que “não épossível introduzir nos autos uma nova deman-da, com prova pericial e testemunhal, entredenunciante e denunciado”14.

10 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhasde Direito Processual Civil. 11. ed. Saraiva, 1987. v.2, p. 27.

11 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Código deprocesso civil anotado. 6. ed. Saraiva, 1996. p. 52.

12 BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao códigode processo civil. 10. ed. Forense, 1998. p. 253-4.Nessa última edição, o autor reviu a sua posiçãoanterior, aderindo à doutrina majoritária. A perda dodireito só ocorre no caso do inciso I, na hipótese deevicção.

13 Sobre a denunciação da lide à seguradora, verBarbi, op. cit., p. 254.

14 NEGRÃO, Theotônio. Código de processocivil. 29. ed. Saraiva, 1998. p. 134, nota 11b ao art. 70.

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Em resumo, não será possível, na denuncia-ção da lide, afastar-se da ação proposta emprimeiro lugar, não devendo ser admitida aintrodução de qualquer fundamento novo noprocesso que exija dilação probatória diversadaquela necessária para o deslinde da ação ori-ginal. Ou como coloca Vicente Greco Filho:

“Parece-nos que a solução se encon-tra em admitir, apenas, a denunciação dalide nos casos de ação de garantia, não aadmitindo para os casos de simples açãode regresso, isto é, a figura só seráadmissível quando, por força da lei ou docontrato, o denunciado for obrigado agarantir o resultado da demanda, ou seja, aperda da primeira ação, automaticamente,gera a responsabilidade do garante.

Em outras palavras, não é permitida,na denunciação, a intromissão de funda-mento jurídico novo, ausente na demandaoriginária, que não seja responsabilidadedireta decorrente da lei e do contrato”15.

A jurisprudência dos Tribunais Superioresé tranqüila em aceitar a limitação à introduçãodo fundamento novo, como se pode ver dediversos arestos, dos quais se tem uma pequenaseleção abaixo:

“Intervenção de Terceiro. Denuncia-ção da lide. Descabimento. Denunciadoque não figura na relação jurídica origi-nária com obrigação de garantir o denun-ciante. Impossibilidade de conter a peti-ção fundamento jurídico novo, ausentena demanda primitiva, que não seja a res-ponsabilidade direta decorrente da lei edo contrato”16.

“Em relação à exegese do art. 70, III,CPC, melhor se recomenda a corrente quenão permite a denunciação nos casos dealegado direito de regresso cujo reconhe-cimento requeira análise de fundamentonovo não constante na lide originária”17.

“Não se defere denunciação da lideque introduzir na demanda fundamentonovo”18.

“Inadmissível é a denunciação da lidenos casos de alegado direito de regresso,cujo reconhecimento importe em análisede fundamento novo não constante dademanda originária”19.

Cabe indagar, portanto, se a denunciaçãoda lide ao funcionário, na ação indenizatóriamovida contra o Estado, implica introdução defundamento novo, ausente na demanda origi-nária. Em caso positivo, será, em princípio, neces-sário reconhecer-se o descabimento de taldenunciação.

4. A ação regressiva contra ofuncionário e a denunciação da lide

Como se viu, mesmo que seja tida comoadmissível a denunciação da lide ao funcioná-rio, a sua falta não acarretará a perda do direitoregressivo da pessoa jurídica de direito públicoacionada pelo terceiro lesado.

Aliás, há casos em que, ex vi legis, nenhumadenunciação é cabível, a priori, mesmo se tra-tando de regresso automático. Assim é nashipóteses de procedimento sumário (CPC, art.280, I), que é obrigatório em ações de ressarci-mento por danos em prédios (CPC, art. 275, II,“c”) ou decorrentes de acidentes de veículos(CPC, art. 275, II, “d”), por exemplo. Tambémnão é cabível a denunciação nas ações cautela-res ou de execução20, e tampouco na ação moni-tória ou em procedimentos especiais.

Assim, a discussão cabe, essencialmente,nas ações de indenização pelo procedimentoordinário.

Parte significativa da doutrina entende quea denunciação da lide ao funcionário, pela pes-soa jurídica de direito público, é descabida, porenvolver a introdução de fundamento novoausente da demanda originária. Com efeito, se aação do lesado contra o Estado é fundada naresponsabilidade civil objetiva, a demandaregressiva, fundada na responsabilidade subje-tiva, envolverá elementos relativos à culpa e àilicitude da atuação do funcionário, que sãoirrelevantes para a ação principal21.

15 GRECO FILHO, Vicente. Da intervenção deterceiros. 3. ed. Saraiva, 1991. p. 91.

16 STF. 2ª Turma. Recurso Extraordinário nº114.332–1–PR. Relator: Ministro Francisco Rezek,RT, n. 631, p.255.

17 STJ. 4ª Turma. Recurso Especial nº 49.418–4–SP. Relator: Ministro Sálvio de Figueiredo. DJU, p.19.572, 8 ago. 1994.

18 STJ. 4ª Turma. Recurso Especial nº 65.007–MA. Relator : Ministro Ruy Rosado de Aguiar. DJU,

p. 40.896, 27 nov. 1995.19 STJ. 4ª Turma. Recurso Especial nº 74.520–

SP. Relator: Ministro Barros Monteiro. DJU, p.12.577, 22 abr. 1996.

20 TEIXEIRA, op. cit.,21 Nesse sentido, por exemplo: MEIRELLES, op.

cit., p. 557; NERY JÚNIOR, Nelson, NERY, Rosa

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A opinião de Vicente Greco Filho é incisivae dá os argumentos favoráveis a essa corrente:

“Ao prejudicado que demanda contrao Estado não interessam a culpa ou o dolodo servidor, porque nossa Constituiçãoadotou a teoria do risco administrativoquanto à responsabilidade civil da admi-nistração pública. Ora, porque não lheinteressam o dolo ou culpa do funcioná-rio não servem como de fundamento jurí-dico para a demanda de reparação dodano. Como, portanto, admitir que numasimples petição, que pede a citação, numademanda implícita, se responsabilize ofuncionário que tem o direito de respon-der segundo as regras do contraditórioao fundamento jurídico que só apareceagora, o dolo ou a culpa?

(...)Especificamente no que se refere ao

direito de regresso do Estado contra ofuncionário, Hely Lopes Meirelles endos-sa nossa tese e expressamente afirma nãoser possível o chamamento do agentecausador do dano na ação de indeniza-ção que o particular intentar contra aadministração para haver os prejuízossofridos, uma vez que o fundamentodessa causa é diverso do da ação regres-siva”22.

A jurisprudência brasileira dominante, tradi-cionalmente, endossou a tese do descabimentoda denunciação da lide ao funcionário na açãode responsabilidade civil do Estado. Essa era aposição do Supremo Tribunal Federal, resumidano seguinte julgado:

“1) Constitucional. ResponsabilidadeCivil do Estado. Seus pressupostos. 2)Processo Civil. A ação de indenização,fundada em responsabilidade objetiva doEstado, por ato de funcionário (Consti-tuição, art. 107 e parágrafo único), nãocomporta obrigatória denunciação a este,na forma do art. 70, III, do Cód. Proc. Civil,para apuração da culpa, desnecessária àsatisfação do prejudicado”23.

Há diversas decisões de Tribunais Estaduaisnessa mesma direção, como se verifica dosseguintes exemplos, ambos já na vigência daConstituição de 1988:

“Intervenção de Terceiros. Denuncia-ção da lide. Ato praticado por agentepúblico no exercício de suas funções.Dano causado a terceiro. Denunciação doservidor público. Inadmissibilidade. Res-ponsabilidade objetiva da Fazenda Públi-ca, cabendo a esta o direito de regresso.Artigo 37, § 6º da Constituição da Repú-blica. Recurso parcialmente provido”24.

“Processual Civil Administrativo.Responsabilidade Civil do Estado poratos atribuídos a agente seu. Denuncia-ção à lide. Descabimento.

Sendo de natureza objetiva a respon-sabilidade do ente público, não é de ser oservidor denunciado à lide por fundamen-to diverso (culpa), a frustrar a finalidadedo instituto, associado à célere prestaçãojurisdicional”25.

Essa jurisprudência parece correta, por darao instituto processual da denunciação da lidea sua interpretação adequada. Não obstante, háopiniões em sentido diverso.

Em primeiro lugar, deve ser considerada ahipótese na qual a causa petendi invocada napetição inicial seja a atuação culposa (culpa emsentido amplo) do Estado e de seu funcionário.Em tal situação, a denunciação da lide nãointroduzirá qualquer fundamento novo nademanda, e será, em princípio, cabível.

Com efeito, embora a responsabilidade civilda Administração se revista de caráter objetivo,nada impede que o lesado, ao ajuizar o seu pedi-do indenizatório, faça-o com base na responsa-bilidade subjetiva, se estiver caracterizada a atua-ção culposa do ente estatal responsável. Emassim fazendo, estará abrindo ao Estado a opor-tunidade de efetuar a denunciação da lide ao(s)servidor(es) que tenha(m) praticado os atos emquestão.

Maria Andrade. Código de processo civil comentado.3. ed. Revista dos Tribunais, 1997. p. 352, citandofarta jurisprudência; MELLO, Celso AntônioBandeira de. Curso de Direito Administrativo. 7. ed.Malheiros, 1995. p. 598.

22 GRECO FILHO, op. cit., p. 93.23 STF. 2ª Turma. Recurso Extraordinário nº

93.880-RJ, Relator: Ministro Décio Miranda. RTJ,

n. 100 p. 1.352 (a referência é feita à Constituição de1969). Na mesma linha, a título de exemplo, pode sercitado o RE nº 95.091-RJ. Relator: Ministro CordeiroGuerra. RTJ, n. 106 p. 1.054.

24 TJSP. 2ª Câm. Civ. Agravo de Instrumento nº120.427-1. Relator: Des. César Peluso. RJTJESP, n.122 p. 304.

25 TJRJ. 7ª Câm. Cív. Agravo de Instrumento nº35/97. Relator: Des. Luiz Roldão F. Gomes. DOERJ,p. 190, 11 set. 1997.

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Ocorre que há também significativas opi-niões admitindo a denunciação qualquer queseja a causa petendi da ação movida peloterceiro prejudicado contra a Administração.Nesse sentido, destaca-se a posição de Hum-berto Theodoro Júnior, para quem a denuncia-ção, nessa hipótese, em nada agrava a situaçãodo autor, e, se for requerida, não poderá serindeferida26.

Embora até pouco fosse minoritária, essalinha de entendimento vem sendo prestigiadapelas decisões mais recentes do Superior Tri-bunal de Justiça, inclusive sob o argumento daeconomia processual do ponto de vista daAdministração (em oposição à celeridade doponto de vista do autor), pois o réu não terá depromover uma nova ação para obter o ressarci-mento da indenização que tiver de pagar ao parti-cular.

Na esteira dessa mudança de posiciona-mento da jurisprudência, podemos citar doisacórdãos, um de cada uma das Turmas de DireitoPúblico do Superior Tribunal de Justiça:

“A denunciação da lide contra servi-dor público autor do ato ilícito discutidoem ação de responsabilidade civil pro-posta contra o Poder Público, se por esterequerida, não pode ser indeferida pelojuízo. A adoção desse sistema de fixaçãode tal relacionamento processual visahomenagear o princípio da economia pro-cessual, evitando-se uma nova demanda.Efeitos da ação regressiva. Recurso pro-vido”27.

“Responsabilidade Civil. ServidorPúblico. Denunciação à lide. Artigo 70,III, do CPC. Nada impede que a Adminis-tração Pública denuncie à lide, na quali-dade de terceiro, o seu funcionário naforma estabelecida no artigo 70, inciso IIIdo CPC. Recurso especial conhecido eprovido”28.

Diante dessa situação, é lícito concluir que,embora minoritária na doutrina, e rejeitada peloSupremo Tribunal Federal, a admissão desse

tipo de denunciação da lide passou a ser acatadapelas decisões mais recentes do Superior Tri-bunal de Justiça, o que indica uma tendência demodificação na interpretação do art. 70, III, doCódigo de Processo Civil.

Embora respeitável a tendência mais recente,não concordamos com a mesma, por implicarexcessivo alargamento do instituto da denun-ciação da lide, prejudicando os autores dasdemandas em benefício dos réus, o que nãoparece ser de boa política, especialmente nummomento em que tanto se reclama da morosidadedo Judiciário. Ademais, trata-se de interpretação,a nosso ver, menos técnica do que a contrária,pelos motivos já expostos acima.

Outra questão interessante, por fim, é quantoà aceitação da denunciação nas hipóteses emque a Administração, em sua contestação, negaa prática do ato danoso por parte de seu funcio-nário, mas mesmo assim formula a denunciaçãoda lide.

Independentemente da opinião quanto aocabimento da denunciação (em tese), ela serásempre inadmissível quando for logicamenteincompatível com as razões da contestação. Ora,se o Estado nega a prática do ato, ou defende asua licitude, não será coerente pretender exercerum direito de regresso contra o funcionário queele mesmo isentou de qualquer responsabili-dade no evento danoso.

A manifestação de Rui Stoco nos pareceperfeita, quando afirma que

“será incoerente negar, a priori, a culpado preposto e, mesmo assim, buscar suaintegração à lide justamente para asse-gurar o direito de regresso contra ele”29.

Como a denunciação da lide se caracteriza comouma nova ação, entre denunciante e denun-ciado, o pedido de citação nessas condiçõesserá forçosamente inepto, merecendo o indeferi-mento, pois da narração dos fatos não decorrerálogicamente a conclusão (CPC, art. 295, I eparágrafo único, II).

Também há jurisprudência sobre o tema,como se vê do seguinte acórdão do SuperiorTribunal de Justiça:

“Intervenção de Terceiro. Denuncia-ção da lide. Ação de Indenização contraa Fazenda Pública.

26 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso deDireito Processual Civil. 10. ed. Forense, 1993. p.127-8.

27 STJ. 1ª T. Recurso Especial nº 95.368-SP.Relator: Ministro José Delgado. DJU, p. 44.489, 18nov. 1996.

28 STJ. 2ª T. Recurso Especial nº 15.614-0-SP.Relator: Ministro José de Jesus Filho. RSTJ, n. 62 p.216.

29 STOCO, Rui. Responsabilidade civil e suainterpretação jurisprudencial. Revista dos Tribunais,1994. p. 442.

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Se a própria ré expressamente afastaa responsabilidade, no evento, dos seusservidores, não se justifica a denuncia-ção da lide destes, pois a participação noprocesso em tal caso, conforme se extraido texto constitucional, pressupõe a prá-tica, pelo agente, de ato culposo ou dolo-so”30.

Não obstante, noutro aresto mais recente,da mesma 2ª Turma do Superior Tribunal de Jus-tiça, decidiu-se, por maioria, que a denunciaçãoda lide ao funcionário seria cabível mesmo quenão lhe fosse desde logo atribuída a culpa pelodano, nos seguintes termos:

“Na ação reparatória, pode a entidadepública promover a denunciação da lideao seu preposto, sem a necessidade deatribuir-lhe, desde logo, a culpa pela ocor-rência”31.

Mais uma vez se verifica a tendência recentede ampliar excessivamente o cabimento dadenunciação da lide ao servidor, nessa hipóte-se, contrariamente a inúmeros princípios pro-cessuais. Com efeito, essa forma de denuncia-ção, como se viu, é tecnicamente inepta.

A contrario sensu, porém, entendemos que,se a Administração desde logo admitir a culpade seu preposto, e o caso comportar a denuncia-ção (ação fundada em culpa), a mesma poderáser aceita32.

Por último, deve ser lembrada a situação daspessoas de direito público que estejam sujeitasa leis específicas quanto ao exercício do direitode regresso frente aos seus servidores.

Nessa situação encontra-se, sobretudo, aUnião, cuja ação regressiva está disciplinadana Lei nº 4.619/65. O art. 2º desse diploma legalestabelece que a ação regressiva da União con-tra seus funcionários será ajuizada dentro desessenta dias da data em que transitar emjulgado a condenação imposta à Fazenda.

Assim, por expressa norma de lei, a Uniãonão poderá fazer a denunciação da lide, pois oseu direito regressivo só pode ser exercido apartir do trânsito em julgado de sua condena-

ção. Há decisões nesse sentido, como uma doantigo Tribunal Federal de Recursos:

“Não há denúncia da lide ao funcio-nário causador do dano na ação que olesado promove contra a pessoa de Di-reito Público. A Constituição determinaque a responsabilização por dolo ouculpa do servidor se faça por ação regres-siva, observada a Lei nº 4.619, de 1965”33.

Assim, tratando-se de servidor da União, umdos requisitos para o ajuizamento da açãoregressiva é a própria condenação prévia daAdministração34.

Há outras leis com regras semelhantes, emvários Estados e Municípios, como lembraMilton Flaks, sempre com o objetivo de preser-var o servidor público das despesas inerentes àsua defesa judicial, “pelo menos até que se con-cretize, de forma definitiva, o prejuízo ao erá-rio”35. Também se preserva a própria Adminis-tração, que, no caso de improcedência da açãoindenizatória, não terá de arcar com a sucum-bência, na ação regressiva, em favor do servidor.

Assim, finalizando, também será incabível adenunciação da lide, qualquer que seja o proce-dimento ou a causa petendi, sempre que uma leiespecífica regule a ação regressiva da pessoajurídica de direito público, de modo a só admiti-ladepois de transitada em julgado a condenaçãona indenização pleiteada na demanda originá-ria, como é o caso com a União.

5. ConclusõesDe todo o exposto acima, resume-se que: (i)

atualmente, a responsabilidade civil das pessoasjurídicas de direito público, no direito brasileiro,é de natureza objetiva; (ii) a ação regressivacontra o funcionário causador do dano ao ter-ceiro é de cunho subjetivo; (iii) a denunciaçãoda lide ao funcionário, pelo Estado-réu emdemanda indenizatória, costuma implicar aintrodução de fundamento novo ausente dademanda originária, e em princípio deve serindeferida; (iv) quando a ação indenizatória ori-ginária for fundada em culpa, a demanda regres-siva será admissível mediante a denunciação dalide, pois os fundamentos de ambas as ações

30 STJ. 2ª T. Recurso Especial nº 89.507-SP.Relator: Ministro Pádua Ribeiro. Adv-Coad Juris-prudência, ementa 80216, p. 653, 1997.

31 STJ. 2ª T. Recurso Especial nº 44.503-SP.Relator: Ministro Hélio Mosimann. DJU, p. 76. 16mar. 1998.

32 STOCO, op. cit.,

33 Apelação nº 41.953... apud PAULA, Alexandrede. O processo civil à luz da jurisprudência. Forense,1982. v. 1, nº 2.072. p. 484.

34 MEIRELLES, op. cit., p. 557.35 FLAKS, Milton. Denunciação da lide. Forense,

1984. p. 175.

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serão os mesmos; (v) a denunciação deve serindeferida quando o Estado-réu negar a culpado seu funcionário, ou a própria prática do atodanoso, por incompatibilidade lógica entre adenunciação e a contestação; (vi) tambémdeverá ser indeferida a denunciação se houverlei específica impedindo a denunciação (comono caso do procedimento sumário) ou vinculan-do a ação regressiva da Administração à suaprévia condenação transitada em julgado (comoocorre com a União).

As afirmações acima correspondem à opi-nião do autor, com base nos argumentos expos-tos ao longo do texto, tendo em vista as dispo-sições legais, a doutrina e a jurisprudência. Dequalquer maneira, cumpre deixar registrado queas decisões mais recentes do Superior Tribunalde Justiça têm sido bastante tolerantes com aAdministração, na medida em que vêm admitindoa denunciação da lide em casos nos quais,segundo a estrita técnica processual, ela seriaincabível.

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1. IntroduçãoO sistema normativo deve, antes de tudo,

servir para coibir o vício e promover a solidarie-dade. Em semelhante linha, não há como ser-mos refratários a formas jurídicas novas, nosexatos limites em que se prestarem a tais fun-ções superiores. Com essa observação inicial,forçoso asseverar que, com as devidas caute-las, as organizações sociais podem desempe-nhar papel precioso de colmatação de lacunasda ação estatal. Todavia, não devem agir demaneira substitutiva ou excludente. Em face daeleição dessa premissa maior, focalizamos asorganizações sociais como alternativas ten-dencialmente úteis, a serem, sem maniqueísmo,encartadas no terceiro setor (nem estatal, nemexclusivamente privado), com a indispensávelprudência. Nessa ótica, aliás, a disciplina nor-mativa, no plano dos Estados e Municípios, nãodeve reprisar imprecisões e defeitos da legisla-ção federal. Com ênfase, sobretudo, há de serevitado o ensejo para possíveis desvios no sen-tido de uma operacionalização do instituto comoforma de privatização dissimulada ou despidadas imperativas precauções.

Destarte, adotando prisma crítico em rela-ção ao modelo federal, porém reconhecendo, atépor motivos empíricos, os insofismáveis méri-tos potenciais do instituto em tela (por exemplo,

As organizações sociais: sugestões parao aprimoramento do modelo federal

JUAREZ FREITAS

Juarez Freitas é Professor de Direito Adminis-trativo da UFRGS e do Mestrado em Direito daPUCRS.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. O instituto das organizaçõessociais. Regime peculiar: pessoas jurídicas de direi-to privado, sem finalidade lucrativa, não-integrantesda Administração Pública indireta e submetidas aprincípios juspublicistas. 3. Sugestões para o apri-moramento do modelo federal. 4. As principais con-clusões.

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Revista de Informação Legislativa134

na vitalíssima área da saúde), é que se encami-nham as considerações que seguem.

2. O instituto das organizações sociais.Regime peculiar: pessoas jurídicas de direito

privado, sem finalidade lucrativa, não-integrantes da Administração Pública indireta

e submetidas a princípios juspublicistasNo âmbito federal, a Lei 9.637/98 apresen-

tou, com alguma imprecisão, os aspectos con-ducentes à conceituação das organizaçõessociais. Apenas refere que o Poder Executivopoderá (numa censurável abertura excessiva àdiscrição) qualificar como tais as pessoas jurí-dicas de direito privado (associações civis efundações) que, sem fins lucrativos, desempe-nharem determinadas atividades arroladas noreferido diploma (ensino, pesquisa científica,desenvolvimento tecnológico, preservação domeio ambiente, cultura e saúde) e observaremos requisitos específicos elencados no art. 2º(registro do ato constitutivo com todos os ele-mentos ali constantes e – noutro perigoso ex-cesso de submissão a parâmetros políticos –aprovação, quanto à conveniência ou à oportu-nidade, de sua qualificação, pelo titular de ór-gão supervisor ou regulador da área de ativida-de e do Ministro da Administração Federal e daReforma do Estado. Em outras palavras, as or-ganizações sociais ocupam zona mesclada, in-termediária entre o público e o privado, clara-mente integrantes do emergente e valiosíssimoterceiro setor. Convém notar, ainda, que essasentidades ocupam lugar característico que asdiferenciam das demais organizações da socie-dade civil de caráter público, porquanto a “pu-blicização” do regime aparece em maior escala,embora não sejam catalogáveis como pessoasjurídicas integrantes da estrutura da Adminis-tração Pública Federal indireta. De qualquersorte, sob pena de tautologia, não é adequadopensá-las apenas como pessoas jurídicas dedireito privado designadas como tais, uma vezque preencham determinados requisitos. Alémde lacunosa, essa definição se arrima, bem dever, na incompreensão de fundo do próprio re-gime misto e na excessiva discricionaridade notocante à habilitação, somente menos grave doque aquela destinada à desqualificação (nostermos do art. 16 : “O Poder Executivo poderáproceder à desqualificação da entidade comoorganização social, quando constatado o des-cumprimento das disposições contidas no

contrato de gestão”). Ora, sobremaneira nesteúltimo caso, mostra-se incontornável dever –nunca uma mera faculdade – efetuar a desquali-ficação, revelando-se manifesto o lapso na op-ção efetuada pelo legislador, que preferiu, noponto, uma politização exacerbada do regimede tais organizações, quiçá visando a acelerar oprocesso de privatização, paradoxalmente pu-blicizando uma parcela do terceiro setor, comose vê no art. 20 do diploma em tela, tema queserá retomado no tópico terceiro deste estudo.

Com efeito, o regime das organizações soci-ais desponta como atípico. Não atuam por dele-gação nos moldes de concessionárias ou per-missionárias de serviços públicos, tampoucopodem almejar finalidade lucrativa. Logo, nãoexecutam serviços públicos nos moldes do art.175 da Constituição Federal, mas recebem dele-gação (a “qualificação” do art. 2º da Lei 9.637/98). De outra parte, estão obrigadas a outorgarampla publicidade de seus atos, comprometen-do-se com o cidadão-cliente e podem receberrecursos humanos públicos (com ônus para ori-gem), assim como permissão de uso de benspúblicos. Não integram a Administração Públi-ca indireta e se prestam a absorver atividadesdesenvolvidas por entidades públicas extintaspor lei específica. Ainda: representantes doPoder Público devem, sob pena de não-qualifi-cação, participar do Conselho de Administra-ção. Decididamente, obedecem a um regime suigeneris, não-estatal, porém certamente domi-nado por regras de direito privado e princípiosde direito público (útil a distinção de RobertAlexy em Theorie der Grundrechte. Suhrkamp,1994. p. 71-154. A calhar convém ter presente aobservação de Hartmut Maurer em AllgemeinesVerwaltungsrecht. München : C.H. Beck’scheVerlag, 1985. § 3º, 3, 9, p. 25-27, quando põe emrealce que a administração pública apenas seutiliza das formas do direito privado, mas nãoda liberdade ou da autonomia no sentido priva-tista. Lembrando a conhecida expressão de HansJ. Wolff (Verwaltungsrecht. München : C.H.Beck’sche Verlag, 1974. § 23, p. 104-112), Mau-rer deixa claro que, no “direito administrativoprivado” (Verwaltungsprivatrecht), se de umlado há conexão, de outro, há dominância do di-reito público sobre o direito privado:

“Der Verwaltung stehen nur die pri-vatrechtlichen Rechtsformen, nicht dieFreiheiten und Möglichkeiten der Priva-tautonomie zu. Man spricht daher in die-sem Zusammenhang von Verwaltungs-

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privatrecht (Wolff): Es ist das öffentlich-rechtlich überlagerte und gebundene Pri-vatrecht, das der Verwaltung bei derWahrnehmung von Verwaltungsaufga-ben zur Verfügung steht” (op. cit., p. 26).

Tal dominância de princípios públicos, nãode regras, parece dever existir também fora daestrutura formal da Administração). No intuitode robustecer as assertivas anteriores, urge des-tacarmos os traços peculiares do regime de taispessoas jurídicas de direito privado, integran-tes do terceiro setor. Ei-los:

(a) os objetivos das organizações sociaisdevem ter relevância; em realidade, prestam ser-viço público lato sensu ou, para evitarmos quere-las terminológicas desnecessárias, serviços derelevância pública, em que pese o fato de seremprestados por pessoas privadas (art. 2º, I, a);

(b) a finalidade das mesmas deve ser não-lucrativa, razão pela qual seus excedentes de-verão, forçosamente, ser reinvestidos em suasatividades sociais (art. 2º, I, b), vedada a distri-buição de bens ou de parcela do patrimônio lí-quido (art. 2º, I, h);

(c) devem respeitar a previsão de participa-ção, no órgão colegiado de deliberação superi-or, de representantes do Poder Público, sendo,na órbita federal, de vinte a quarenta por centode membros natos no Conselho de Administra-ção (arts. 2º, I, d, e 3º, I, a), regra que, malgradosua boa intenção, não deve ser imitada à riscapelos legisladores estaduais e municipais, poiso referido Conselho é que deve aprovar o con-trato de gestão da entidade (art. 4º, II), sendoeste celebrado entre o Poder Público e a entida-de qualificada, donde segue a recomendaçãode evitar uma relação possivelmente não-isenta das partes;

(d) precisam observar a obrigatoriedade depublicação oficial dos relatórios financeiros ede execução do contrato de gestão (art. 2º, I, f),além do dever de prestar contas que brota daprópria Constituição (na redação dada pelaEmenda Constitucional 19/98, vide o art. 70 daLei Maior);

(e) devem averbar, no ato constitutivo, a hi-pótese de incorporação do patrimônio, em casode extinção ou desqualificação, ao de outra or-ganização social devidamente qualificada ou aopatrimônio público; neste último caso, numa li-geira atecnia, porquanto os bens públicos aserem alocados devem continuar sendo públi-cos, devendo haver, em regra, tão-só permissão

de uso, não doação dos mesmos (art. 2º, I, j),ainda que admitida a permuta (art. 13);

(f) submetem-se à necessidade de um con-trato de gestão, a ser celebrado entre PoderPúblico e a respectiva organização social, ten-do em vista a execução das atividades mencio-nadas (art. 5º), sendo mister assinalar que talcontrato deve guardar obediência aos princípi-os juspublicistas, inclusive moralidade e impes-soalidade (art. 7º), assim como oferecer agasa-lho expresso aos critérios objetivos de avalia-ção de desempenho e estipulação de tetos paradespesas com remuneração e vantagens dequalquer natureza, implicando desqualificaçãoo descumprimento das disposições contidas noreferido contrato (art. 16), o qual deveria inte-grar, desde logo, o rol dos requisitos específi-cos do art. 2º, não se justificando este descom-passo temporal, seja por razões operacionais,seja por razões estratégicas. Observe-se, antesde ir além, que a dispensa do certame licitatório(a teor da Lei 9.648/98, art.24, XXIV) somenteocorrerá se as organizações sociais estiveremdesempenhando atividades contempladas nocontrato público de gestão;

(g) desfrutam da possibilidade de destina-ção de recursos orçamentários e bens públicosimprescindíveis ao cumprimento do contrato degestão (art. 12, § 1º), bem como da cedênciaespecial de servidor público com ônus para aorigem (art. 14), o que as força a prestar asreferidas satisfações ao Tribunal de Contas.

Pois bem, em face dos traços extraídos daLei 9.637/98, resta claro que o regime de taispessoas jurídicas de direito privado é mesmoatípico. Em minha ótica, há uma dominância deregras de direito privado e simultânea prepon-derância de princípios de direito público, umavez que se encontram imantadas pelas suaspróprias e inescapáveis finalidades de cogen-tes matizes sociais. Certo está, como assinala-do, que esse regime peculiar não o é em escalabastante para que se as considerem partesinerentes à estrutura formal da AdministraçãoPública. Pertencem – convém reiterar – ao cha-mado terceiro setor; contudo, a elas se aplica,por exemplo, a legislação de combate à improbi-dade administrativa, sempre que, de algummodo, houver uso indevido dos recursos públi-cos (Lei 8.429/92). Da mesma sorte, a responsa-bilidade por danos causados por essas entida-des, dado que se constituem pessoas jurídicasprestadoras de serviços de relevância social, emacepção ampla (estaríamos diante de um servi-

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ço privado de interesse público, como sugerePaulo Modesto em Reforma Administrativa emarco legal das organizações sociais no Brasil:as dúvidas dos juristas sobre o modelo das or-ganizações sociais. Revista do Serviço Públi-co, n. 2, p. 42, 1997), também haverá de recebero influxo parcial da regência publicista. Alémdisso, essa parceria qualificada bem deve servista como devendo acatar princípios publicis-tas por duas razões superlativas: primeira, ocontrato de gestão, no reconhecimento do pró-prio legislador infraconstitucional, precisa serelaborado em consonância com os princípiosda impessoalidade, da moralidade, da publici-dade, da economicidade, entre outros (vide oart. 7º). Ademais: a organização social deveráobedecer, na contratação de obras e serviços,bem como para compras com emprego de recur-sos oriundos do Poder Público, a uma regula-mentação (nos termos do art. 17), certamenteem conformidade com os mesmos princípios. Vaidaí que seja misto o regime das organizaçõessociais, porquanto, no plano das regras, revela-se dominantemente de direito privado, mas, noplano mais alto das diretrizes do sistema, a supe-rioridade pertence aos princípios juspublicistas.

Assim caracterizado o regime, merece men-ção que o novel instituto comporta riscos deutilização indevida se se prestar a um processode privatização mais ou menos dissimulada.Senão vejamos: as entidades qualificadas comoorganizações sociais são declaradas de inte-resse social e utilidade pública, para todos osefeitos, embora apresentem nuanças adicio-nais e singularizantes (v.g., a possibilidade deaproveitamento, sem ônus, de servidores ouempregados públicos e de bens estatais), quelhes habilitam, na prática, a assumir as funçõesdesempenhadas pelas entidades federais extin-tas por lei específica, v.g., no âmbito da saúde(art. 18) ou as atividades de rádio e televisão(art.19), dentro do mencionado paradoxal pro-grama de “publicização” (criado, aliás por merodecreto), que visa assegurar a referida absorçãode atividades desenvolvidas por entidades ouórgãos públicos (art. 20). Diferentemente e ao re-vés, a “publicização”, na perspectiva que advo-go, nada mais deveria significar que o alerta paraque estas ONGs guardem observância aindamaior às normas de ordem pública no cotejo comas demais integrantes do terceiro setor (a propó-sito, em documento do Ministério da Reforma doEstado, Caderno 2, 1998, restou dito, à p. 15:

“a desvinculação administrativa em rela-ção ao Estado não deve ser confundida

com uma privatização de entidades daadministração pública. As organizaçõessociais não serão negócio privado, masinstituições públicas que atuam fora daAdministração Pública para melhor seaproximarem de suas clientelas (...)”.

Já à p. 17, o mesmo documento admite, inso-fismavelmente:

“A implementação de organizaçõessociais implica duas ações complementa-res: a publicização de determinadas ativi-dades executadas por entidades estatais(que serão extintas); e a absorção des-sas atividades por entidades privadasqualificadas como OS, mediante contratode gestão”.

Os riscos, pois, de a publicização se conver-ter numa privatização, efetuada sem as devidascautelas, não são nada menosprezáveis.

De outra parte, por força da maior contribui-ção de recursos orçamentários e bens do Esta-do, convém sublinhar que maior haverá de sero grau de comprometimento das mesmas com aobediência de requisitos específicos, bem comoàs cláusulas estipuladas no contrato público degestão (definido este, nos termos do art. 5º,como “o instrumento firmado entre o Poder Pú-blico e a entidade qualificada como organizaçãosocial, com vistas à formação de parceria entreas partes para fomento e execução de ativida-des relacionadas no art. 1º”), em cuja elabora-ção (reza o art. 6º), moralidade e impessoalida-de, entre outros princípios administrativistas,precisarão ser observados com rigor. Destarte,não se há de admitir que a “publicização”, aocontrário de induzir uma louvável complemen-taridade, venha a se converter numa “privatiza-ção assistida”, subsidiada ou auxiliada peloPoder Público, com cedência de pessoal, per-missão de uso de bens públicos e valores, a parda remessa dos servidores para quadros em ex-tinção, sem maior justificativa à luz do interessepúblico. Por tudo, se se configurar o desvirtua-mento, o modelo federal poderá ter produzidoum modo extremamente afrontoso de contornarexigências oriundas dos próprios princípiosnorteadores dos contratos de gestão, bem comoterá ofendido regras nucleares de preservaçãodo patrimônio público.

3. Sugestões para o aprimoramento domodelo federal

No desiderato de contribuir para o aperfei-çoamento do modelo federal e, concomitante-

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mente, sugerir formatações mais adequadaspara os regimes a serem adotados no âmbitodos Estados e dos Municípios, convém sulcaras mais relevantes observações críticas à Lei9.637/98.

Como visto, no campo dos requisitos espe-cíficos, há um excesso de discricionariedadeconferida ao Poder Executivo. Este “poderá”qualificar, ou não, as organizações sociais, con-soante o art. 1º. Depende, tal qualificação, dejuízo favorável, quanto à conveniência, abrindomargem a discriminações arbitrárias, certamen-te porque o governo temia uma explosão (ino-corrente) de pedidos de qualificação. E o que émais grave: na dicção equivocada tecnicamentedo art. 16, é dito que o Poder Executivo “pode-rá” proceder à desqualificação da entidade comoorganização social, quando constatado o des-cumprimento das disposições contidas no con-trato de gestão. Aqui, mais do que nunca, veri-fica-se uma impropriedade técnica, pois é co-gente a desqualificação, não se devendo admi-tir terrenos férteis a juízos subalternos ou acondescendências impertinentes.

No âmbito ainda dos requisitos específicos,merece reparo a exigência de participação, noórgão colegiado de deliberação superior, de re-presentantes do Poder Público (art. 2º, I, d, nospercentuais do art. 3º, I, a). Trata-se de regraque não deve ser reprisada nas legislações es-taduais e municipais. De início, convém apontara generalidade excessiva da norma, o que a fazoperacionalmente inviabilizadora da qualifica-ção em inúmeros casos. Depois, bem de ver,como asseverado ao início, ao examinarmos ostraços peculiares do regime, o Conselho, do qualparticipam os representantes do Poder Público(na composição tripartite), é que aprovará a pro-posta do contrato de gestão da entidade (nostermos do art. 4º), gerando uma relação perigo-sa e sem maiores vantagens sociais. Finalmen-te, convém ponderar que o terceiro setor nãoprecisa nem deve ser “publicizado” por esse tipode ingerência para que seja efetivamente con-trolado pela sociedade (diretamente ou por meiodos mecanismos institucionais vigentes).

Outra crítica deve ser endereçada ao aludi-do descompasso temporal na celebração docontrato de gestão, que deveria ser requisitoespecífico e restou desvinculado, em certa me-dida, do momento da qualificação, do qual, pelomenos, deveria ser próxima senão contemporâ-nea. Contudo, a mais penetrante ressalva temque ver com o modo solto pelo qual as organi-zações sociais passaram a poder absorver ati-

vidades desenvolvidas por entidades públicasextintas, desfigurando a precípua natureza com-plementar e não-substitutiva do terceiro setor,algo que, à guisa de fortalecê-lo, suscita resis-tências culturais significativas e naturais.

Perante tais equívocos, resulta claro que asorganizações sociais precisariam se adstringir aatuar, ao menos preferencialmente, de modocomplementar à ação estatal, remanescendo,apenas para situações marcadamente excepcio-nais, o agir das mesmas no espaço dantes ocu-pado por entidades públicas, desde que, com-provadamente, não possam ser mantidas na es-fera pública estatal e prestem serviços em rela-ção aos quais não se mostra conveniente (aointeresse público) o regime de execução indire-ta, por meio de concessões, permissões ou au-torizações (que supõem lucratividade). Nessediapasão, as brechas involuntárias do regimefederal – repito – não devem ser subestimadas,sobremodo pelos legisladores estaduais e mu-nicipais, que, ao versarem sobre a matéria, pre-cisam operar, na fixação dos pressupostos paraa qualificação, de maneira ainda mais cautelosae comedida que aquela esposada pelo legisla-dor federal.

Entretanto, tais desalinhos não são de portea se tornarem paralisantes e, nos limites pro-postos, são sobrepujáveis, em larga medida,pelos benefícios do florescimento deste insti-tuto. Com efeito, v.g., hospitais, escolas, mu-seus e orquestras são alguns dos muitíssimoscasos de organizações sociais que, por certo,não substituem necessariamente, mas podemacrescentar qualidade e eficiência aos deficien-tes e faltosos serviços públicos (essenciais, pordefinição). As organizações sociais, portanto,devem existir, na peculiaridade do seu regime,como um dos vários instrumentos (não-exclu-dentes) de concretização das inadiáveis tare-fas socialmente relevantes, sob a forma de as-sociações civis ou de fundações privadas (nobojo do terceiro setor) aptas a, com certo de-sembaraço, oferecer aporte inestimável em áre-as tragicamente carentes, assim como se cons-tata no setor de saúde. Decerto, devem rece-ber, na estrita medida de suas necessidades, oauxílio público, tão-somente à proporção em quese mostrarem fiéis ao resguardo, em forte senti-do, dos princípios administrativos, no seiodestas “esferas públicas autônomas” (na expres-são de Habermas em Direito e Democracia. RJ: Tempo Brasileiro, 1997. p. 186). Em outras pala-vras, entre os riscos e os benefícios, apesar dasressalvas feitas à Lei federal, compensam os

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méritos do instituto, residindo o maior dos quaisna ocasião de fazer com que o Poder Público,titular da prestação de serviços públicos, admi-ta mais uma modalidade de execução indiretados serviços de utilidade pública (in casu, pormeio da atuação de parceiros qualificados ou,como parece melhor dizer, de uma aliança coo-brigante sem finalidade lucrativa, à diferençado que sucede, por exemplo, nas concessões. Emais: a sociedade, ela mesma, assume, nassuas mãos (não raro dispostas a gestos de ex-trema e belíssima solidariedade anônima), a metade sobrepassar desassistências crônicas, avan-çando no sentido da maioridade-cidadã, um dosvetores máximos na fundamentação do Estadoem novas e promissoras bases.

4. As principais conclusõesDo exposto, extraem-se estas como as prin-

cipais conclusões:(I) As organizações sociais podem ser extre-

mamente benfazejas, se representarem, no pla-no concreto, um mecanismo complementar deatuação da sociedade civil na consecução, semfinalidade lucrativa, de tarefas de interesse so-cial, perfeitamente catalogáveis como serviçopúblico lato sensu ou de relevância pública.

(II) Já pela natureza dos serviços prestados,já pela intensa colaboração do Poder Públicono desenvolvimento das atividades encetadaspor tais organizações, estas pessoas jurídicasde direito privado precisam obedecer, de modoprecípuo, a princípios de ordem pública, dondedimanam as diretrizes relacionadas ao controlesocial de suas ações de modo transparente.

(III) Os vários mecanismos de controle nãodevem descurar que, a despeito da letra da lei,inexiste discricionariedade, sobremodo em ma-téria de desqualificação, com todos os consec-tários (art. 16), sendo de não manter, no planodos Estados e Munícipios, a exigência de apro-vação “política”, para efeitos de qualificação,por temerariamente aberta a juízos descoinci-dentes com o interesse público.

(IV) É forçoso, não obstante a busca, aomáximo, de reciprocidade e de harmonizaçãolegislativa, um maior rigor na disciplina dos pres-supostos de tais organizações na seara dosMunicípios e Estados, ao mesmo tempo em quese deve, na órbita federal, cogitar de uma apro-ximação normativa maior, em termos de regime,com as demais organizações da sociedade civilde relevo público.

(V) Indispensável se revela que a absorçãodas atividades de entidades públicas extintasnão se converta numa espécie de privatizaçãosem as cautelas obrigatórias, ou seja, numa es-pécie de “publicização” desdestinada, deven-do a mesma ser entendida tão-só como ênfasedo caráter predominantemente publicista do re-gime destas pessoas componentes do terceirosetor.

(VI) A ênfase proclamada no cidadão-clien-te (art. 20 da Lei 9.637/98) bem demonstra que olegislador reconhece que tais organizações de-vem estrita observância a dispositivos de or-dem pública, entre os quais os que cuidam daproteção do consumidor, cumprindo, no atinen-te à responsabilidade, ser recordada, em suaampla gama de efeitos, a condição de prestado-ra de serviços públicos relevantes.

(VII) O regime das organizações sociais de-veria deixar mais nítida a vinculação a regrascomo as relativas à probidade administrativa,sem embargo de se buscar, de lege ferenda, emvários outros aspectos, um entrosamento maisprodutivo entre Poder Público e o terceiro setor,que se apresenta como uma das mais fecundaspossibilidades de mobilização das melhoresenergias da sociedade, aquelas forças anímicasque mantêm vivas e consistentes as nossas es-peranças de viabilizar uma “terceira via”, quenão afaste o Estado de seu papel interventivo,tampouco reduza o cidadão a espectador de umaguerra globalizada de todos contra todos: umEstado que mereça, processual e substancial-mente, o qualificativo “democrático”, mercê deum respeito às exigências decorrentes da pró-pria maioridade cívica.

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COMUT, reprografia e direito autoral

Há cerca de quinze anos, o COMUT (Con-selho de Comutação Bibliográfica) procurou oCNDA (Conselho Nacional de Direito Autoral)para saber sobre as implicações do direito auto-ral sobre seu procedimento. O processo tevecomo relator o conselheiro Carlos Alberto Bit-tar, que, em artigo publicado na Revista de In-formação Legislativa, escreveu o seguinte:

“A integração do sistema de comuta-ção ao de cobrança de direitos autorais.Avanço significativo, nesse sentido, foidado, entre nós, em recente decisão doConselho Nacional de Direito Autoral – aque pertencemos –, que, apreciando con-sulta formulada pelo representante doSistema Nacional de Comutação Biblio-gráfica (COMUT), respondeu afirmativa-mente quanto à incidência dos direitosautorais na extração de cópias de obrasintelectuais realizadas pelas bibliotecasque o integram.

Em nosso voto como relator no pro-cesso – acompanhado à unanimidadepelo Conselho –, deixamos evidenciadoque esses direitos, por destinarem-se aoamparo da mais nobre criação humana,devem ser respeitados mesmo que os finsvisados na extração sejam de interesseda coletividade, desde que exista cobran-ça – como no caso – de um determinadovalor, mesmo a título de recuperação dedespesas. Caso contrário, estaríamos sa-crificando o criador às custas do benefí-cio trazido ao, ou pelo, serviço de repro-dução.”1

NEWTON PAULO TEIXEIRA DOS SANTOS

Newton Paulo Teixeira dos Santos é Mestre eDoutor em Comunicação, membro do Instituto dosAdvogados Brasileiros, da Associação Brasileira dePropriedade Intelectual, da Associação dos Arqui-vistas Brasileiros e do Instituto de Pesquisa em Pro-priedade Intelectual Henri Debois (Paris), Advogadoe perito judicial para questões referentes ao DireitoAutoral e Direito à Imagem. Foi professor da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro e membro do Conse-lho Nacional de Direito Autoral.

1Revista de informação legislativa, ano 20, n. 80(out. dez. 1983).

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Essa referência serve para mostrar como oproblema é antigo no próprio COMUT. Nós pró-prios já trabalhamos a questão em comunicaçãofeita ao II Seminário de Direitos Autorais, pro-movido pela Biblioteca Nacional (Rio de Janei-ro), em agosto de 19952. Por se tratar de umaquestão complexa, que vai-se tornando maiscomplexa a cada avanço tecnológico, vamos tra-tá-la por partes.

Em sentido amplo, reprografia designa qual-quer processo ou técnica de reprodução mecâ-nica de escritos, imagens e sons. Em sentidoestrito (e é o que interessa ao COMUT), signifi-ca apenas a reprodução mecânica de escritos ecorresponde à definição vista no Aurélio:

“conjunto de processos de reproduçãoque, em vez de recorrerem aos métodostradicionais de imprimir, recorrem às téc-nicas de fotocópias, eletrocópias, micro-filmagem, heliografia, xerografia, etc.”

É verdade que, nesse sentido, já se deveincluir o COMUT on line. Como se lê no folderda instituição:

“Você já pode solicitar cópia de docu-mentos por meio eletrônico. Para ter aces-so a este novo serviço, navegue pela In-ternet, até o IBICT, pelos seguintes en-dereços.”

A questão sobrevém (é claro) quando o con-teúdo do documento solicitado está protegidopelo direito autoral, o que exclui os que estive-rem em domínio público (v. art. 45 da Lei nº 9.610/98) e outros documentos como textos legais,decisões judiciais, documentos bancários, no-tícias do dia, etc. Isso importa em dizer que cadadocumento há de ser avaliado caso por caso.Às vezes é muito fácil; outras, nem tanto, comoocorre com as traduções, por exemplo, em queo tradutor também tem um direito autoral, ouquando ocorre a morte de um autor e a conta-gem do prazo de proteção se torna complicada.

Dá para sentir a enormidade do problema.Se formos adotar as lições do direito autoral clás-sico, haveremos de seguir os conselhos de Car-los Alberto Bittar e nos afogarmos em um dilú-vio de normas legais. Nem a ameaça penal es-tampada nas “Advertências”, que costumampreceder as reproduções gráficas, fonográficasou de multimídia, estancou o fenômeno repro-gráfico. Como diz José de Oliveira Ascensão:

“Não se estanca um oceano com uma declara-ção de princípios”3. Por isso é imperioso repen-sarmos a questão.

Ora, podemos apreciar de três ângulos di-versos o fenômeno da reprografia:

a) do ponto de vista sociológico;b) do ponto de vista econômico;c) do ponto de vista jurídico.Do ponto de vista sociológico, estamos di-

ante de um fenômeno dos mais ricos, pronto asustentar nossos processos de troca de infor-mações, e é dessa troca que nossa sociedade sealimenta. Seríamos loucos se tentássemos frearesse processo. Tanto mais que ele ocorre espe-cialmente no domínio das publicações científi-cas de alto nível, como documentam as esta-tísticas do COMUT. Devemos até estimulá-lo, paraque se processe uma farta distribuição do saber.

Do ponto de vista econômico, é indiscutívelque o consumidor sai ganhando, em virtude dobarateamento dos suportes. O prejuízo que pos-sa trazer ao autor e/ou ao editor é muito maisaparente que real. Há um discurso já instaladonesse setor que fala em milhões de dólares per-didos anualmente pelos autores e/ou editores.Não é bem assim. Vejam só: as fontes, isto é, asbibliotecas precisam adquirir o livro ou a revistapara reproduzi-los; em princípio, o usuário nãovai satisfazer-se com o texto reprografado, aocontrário, vai ser estimulado pela bibliografia ci-tada, e muitas vezes vai adquirir o próprio livropara complementar seu conhecimento, ou paraguardá-lo como livro de referência. Diga-se, ain-da, que é bem pouco provável que ele o compras-se se não houvesse o estímulo da cópia. Copiam-se muito as revistas técnicas, e dizem que elassaem prejudicadas; mas elas sempre tiveram umatiragem reduzida. Apesar das cópias, assiste-se,hoje, a uma expansão dessas publicações.

Do ponto de vista jurídico (e aqui chegamosao ponto), é preciso distinguir:

– a obra não está protegida, portanto não háimplicações com o direito autoral;

– a obra está protegida. Então temos quedistinguir:

a) trata-se de cópia única para uso pri-vado? Então não há como pensar em re-compensa para o autor e/ou editor;

2V. Reprografia e reprodução em massa, in Re-vista de informação legislativa, ano 32, n. 128, p.157-60.

3Vamos acompanhar o pensamento lúcido de Joséde Oliveira Ascensão em seu recente Direito autoral.2a. ed. Refundida e ampliada. Rio de Janeiro, Reno-var, 1997.

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b) não se trata de uso privado. Ago-ra, sim, temos uma questão jurídica. Mastemos ainda que distinguir:

b.1) ocorre uma comercialização ilíci-ta: isso é crime, é violação de um direitoautoral. Se o usuário multiplica a cópiapara tirar um proveito econômico, come-te um ato ilícito. É caso de pirataria, quese visualiza mais nos fonogramas que nostextos literários ou científicos, mas podeocorrer;

b.2) outras formas de utilização, comonas escolas, nas universidades, nas em-presas. Aqui está o ponto mais delicado,porque há interesses legítimos dos titu-lares da obra que devem ser satisfeitos,em virtude da multiplicação não autoriza-da e concorrente, embora esta tenha umfim (digamos) didático ou cultural.

Portanto, só nos casos em que não há usoprivado, ocorre necessidade de soluções one-rosas e/ou punitivas. As punitivas serão entre-gues à polícia. Vejamos as onerosas.

Essas soluções têm sido procuradas nomundo inteiro e às vezes pretendem tributar opróprio uso privado, a chamada cópia única.Como remunerar o autor devidamente? Entrenós, há mais de vinte anos, estão sendo feitastentativas. Autoralistas renomados como An-tônio Chaves e Antônio Carlos Bittar fizerampropostas que não frutificaram. Em 1992, foi fun-dada a Associação Brasileira de Direitos Repro-gráficos (ABDR). Depois de seis anos, é preci-so avaliar seu desempenho.

O vilão já não é só a fotocópia ou o fax,porque o documento já pode ser acessado on-line. Mas o fax ainda é um dos maiores respon-sáveis pela reprodução de textos literários oucientíficos. Deixem-me lembrar que o fax (abre-viatura de fac simile) não pode ser tido comotecnologia de ponta. Ele foi inventado em 1907por Edouard Belin, que chamou a sua invençãode belinógrafo, invenção capaz de transmitirimagens fixas por meio do telefone. Foi um fra-casso; até que os japoneses aperfeiçoaram ainvenção, pois viram nela um meio ideal paratransmitir seus ideogramas. Sua difusão foi es-petacular. Tanto a vida das empresas como avida social se transformaram. Há muito tempo,no Japão, os alunos já fazem o dever de casa e oenviam por fax à escola; quando, no dia seguin-te, chegam à escola, o dever já está corrigido. Eo fax recuperou, reabilitou uma coisa que esta-va sendo desprezada – a expressão escrita, a

letra manuscrita. E com ela a autenticidade damensagem.

Também o fax vem desfazendo aquela fron-teira que havia entre a vida profissional e a vidaprivada, pois um fax doméstico permite que setenha um escritório em casa, enviando e rece-bendo cópias reprográficas. Na Itália, o suces-so foi tão grande, que a Igreja precisou anunciarque a confissão por fax não estava autorizada...

Por tudo isso, temos que distinguir dois tra-tamentos quando ocorre reprodução de textoprotegido:

a) a cópia única para uso privado;b) outras formas de utilização da cópia de

um texto protegido.O segundo caso é criminoso, e a violação já

está prevista no Código Penal (arts. 184 a 186).O primeiro caso (cópia única) é uma limita-

ção hoje prevista pelo art. 46, I, da Lei nº 9.610/98, que diz assim:

“Não constitui ofensa ao direito au-toral:

I – a reprodução em um só exemplarde pequenos trechos, para uso privadodo copista, desde que seja feito por este,sem intuito de lucro.”

Essa norma está autorizada pela Convençãode Berna, art. 9.2:

“Fica reservada às legislações dos pa-íses da União a faculdade de permitirem areprodução das referidas obras, em cer-tos casos especiais, desde que tal repro-dução não prejudique a exploração nor-mal da obra nem cause um prejuízo injus-tificado aos legítimos interesses do au-tor.”

O nosso Código Civil, de 1917, assimilou aregra da Convenção, em seu art. 661, VI:

“Não se considera ofensa aos direi-tos do autor:

(...) VI – a cópia, feita à mão, de umaobra qualquer, contanto que não se des-tine à venda.”

Quando chegou a lei de 1973, a redação foiatualizada. Veja-se o art. 49:

“Não constitui ofensa aos direitos doautor:

(...) II – a reprodução, em um sóexemplar, de qualquer obra, contantoque não se destine à utilização com in-tuito de lucro.”

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Já não se exigiu que a cópia fosse feita “àmão”, pois a fotocópia estava bem difundida.

Agora é que a nova lei introduziu algumasexpressões perturbadoras. Fala em “pequenostrechos”, o que pode sugerir uma citação, masnão é o caso de uma citação, porque esta estáautorizada expressamente no inciso III.

Será, então, um capítulo, um artigo, parte dolivro, etc. O conceito de “pequenos trechos”ficou em aberto. Talvez sejam aqueles que nãodigam o que seja principal na obra, mas nada émais subjetivo.

Não é só. A lei diz que a reprodução “deveser feita por este” (o copista).

O que significa? É preciso que eu tenhauma máquina fotocopiadora? Parece ser o en-tendimento de Eduardo Ss. Pimenta, em obrarecente:

“A alínea II autoriza cópias da obrase estas ocorrerem em aparelho de foto-cópia próprio; não está autorizado o usode aparelhos de terceiros, como um cen-tro de reprodução”4.

No entanto, ele cita o art. 19 da lei suíça, de9 de outubro de 1992, sobre direitos autorais,que diz assim:

“Utilisation de l’oeuvre à des fins pri-vées.

2 – la personne qui est autorisée àréproduire des exemplaires d’une oeuvrepour son usage privé peut aussi en char-ger un tiers; les bibliothèques qui met-tent à disposition de leurs utilisateurs unappareil pour la confection de copies sontégalement considerées comme tiers ausens du présent alinea.”

Essa citação me parece auxiliar muito a inter-pretação do texto brasileiro, que não pode serrigorosa, mesmo levando-se em conta o que dizo art. 4º, que fala em interpretação restrita;mas, a rigor, aqui não se trata de um negóciojurídico5.

No entanto, o próprio Ascensão, apesar dediscursar longamente sobre a necessidade derepensar o direito autoral quando se fala em re-prografia, não avança muito e diz:

“Assim, a instituição científica que to-masse a iniciativa de enviar cópias de

obras protegidas a quem as solicitasse,mesmo sem intuito de lucro, estaria decerto agindo de modo que os limites maisamplos da reprografia não podem tolerar.A distribuição de cópias ao público, in-discriminadamente, é sempre vedada”6.

Esse rigor é um pouco inquietante, pois égrande o número de instituições científicas quese prevalecem dessa limitação ao direito dos au-tores.

Ora, há quase vinte anos, Eduardo VieiraManso já visualizara a questão com muita niti-dez, ao comentar nossa lei de 1973:

“Contudo, dada a licença que o novodireito confere ao usuário de realizar có-pias mecanicamente, não mais exigindosua pessoal atuação em manuscritos, épreciso ater-se ao fato de que, nem sem-pre (melhor ainda será afirmar que quasenunca) esse usuário é, ele próprio, pro-prietário dos aparelhos que fornecem ascópias e, quase sempre, essas reprodu-ções são onerosas.”

E continua o saudoso Eduardo Vieira Manso:“Assim, enquanto o interessado na

obtenção da cópia visa unicamente a uti-lizar a obra para fins meramente intelectu-ais, fazendo estrito uso privado da pró-pria obra, segundo a natureza desta, aque-la pessoa (no geral uma pessoa jurídica)que possui a máquina copiadora estarátirando um proveito econômico da mes-ma obra, mediante um preço que cobrapela cópia que fornece. Há, pois, em cena,dois interesses que se satisfazem comdiferentes formas de usar a obra: um, tira-lhe o proveito natural, que é a sua utiliza-ção intelectual (para a qual se vale decópia); outro, um proveito anormal, quan-do não autorizado para tal.”

Veja-se com que propriedade o ilustre VieiraManso vai adiante e vem em nosso socorro:

“O primeiro, enquanto se mantiver noslimites do uso pessoal, ou privado, serálivre e não implicará violação de direitosautorais; o segundo, que ultrapassa oconceito de puro uso, eis que colhe al-gum fruto da utilização, não deveria serlivre, ou, ao menos, gratuito, e muito bempoderia a lei ter instituído uma licença le-gal para ele. É que, enquanto da parte doque tira proveito intelectual, há uma úni-

4PIMENTA, Eduardo Ss., Código de direitosautorais. São Paulo, Lejus, 1998. P. 160.

5Art. 4 - Interpretam-se restritivamente os negó-cios jurídicos sobre os direitos autorais. 6Ob. Cit., p. 251.

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ca cópia, do lado do proprietário da má-quina copiadora o número de exemplarescopiados é ilimitado, podendo constituirverdadeiras ‘edições’. E, nesta hipótese,nada poderia impedir que também se fa-lasse em verdadeira ‘pirataria sobre obraliterária’”7.

Como agir?Na comunicação que fiz por ocasião do refe-

rido II Seminário organizado pela Biblioteca Na-cional, reduzi as soluções já propostas para ocaso de reprografia a um quadro que contem-plava: 1 – a arrecadação; 2 – a distribuição dosdireitos autorais.

Propus que a arrecadação abandonasse aidéia impraticável de recolher um direito autoralsó de obras protegidas e depois distribuísse essefundo aos respectivos titulares. Ao contrário,pensei em onerar a máquina e o suporte, inves-tindo-se o resultado em favor da cultura. Vejo,no entanto, que isso seria o mesmo que criar umnovo imposto, nada tendo que ver com o direitoautoral, que pressupõe um determinado autor euma determinada obra. Seria mais ou menos igual

7MANSO, Eduardo Vieira. Direito autoral. SãoPaulo, José Bushatsky Ed., 1980. p. 303, n. 180.

*Notas bibliográficas conforme original.

ao atual imposto sobre o cheque, que pretensa-mente é arrecadado em favor da saúde...

Mas não há outra maneira.À vista do exposto, proponho os seguintes

procedimentos:– Em cada reprodução feita por fotocópia ou

enviada por fax, inscreva-se, de forma bem visí-vel, a advertência: REPRODUÇÃO PROIBIDA.

– Nas mensagens enviadas on-line, acres-cente-se o seguinte: ADVERTÊNCIA: Ao usu-ário é concedido um direito individual, não co-letivo e não exclusivo, sobre o conteúdo do do-cumento. Ele pode salvá-lo com a intenção detornar a visualizá-lo em sua tela, ou imprimi-loem um só exemplar. São proibidas as reprodu-ções e todas as formas de difusão em rede, mes-mo que parcial. Esse direito é pessoal e para usoexclusivo do usuário. Qualquer outro uso de-pende de autorização prévia e expressa do CO-MUT. As violações a essas normas submetemo contraventor e todas as pessoas responsá-veis às penas civis e criminais previstas em lei.

Este é um parecer, e, portanto, sujeito a me-lhor juízo.

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Eduardo Talamini é Advogado em Curitiba, Pro-fessor na Faculdade de Direito da UFPr e Mestrandoem Direito Processual na Faculdade de Direito daUSP.

1. IntroduçãoÉ indiscutível a existência de uma série de

fatores que autorizam falar em “teoria geral doprocesso jurisdicional”. Processo civil e penalinstrumentalizam a atuação da mesma funçãoestatal. Ambos têm, na sua essência, um sistemade garantias constitucionais em prol do jurisdi-cionado. Identificam-se, igualmente, na plurali-dade de escopos: atuação imparcial da ordemjurídica; pacificação social; garantia da liber-dade – e assim por diante.

Até tendências aparentemente antagônicasde um e outro têm na sua base, no mais dasvezes, o mesmo elemento unificador. Significa-tivo, nesse sentido, é o destaque que se dá à“ampla defesa” no processo penal e ao “acessoà justiça” no processo civil: ambos têm por

Prova emprestada no processo civil epenal

EDUARDO TALAMINI

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Conceito, forma e valor. 3.Admissibilidade da prova emprestada – perspectivaconstitucional. 3.1. Prova emprestada e contraditório.3.2. Prova emprestada e oralidade. 3.3. Provaemprestada, juiz natural e inafastabilidade da juris-dição. 4. Outros requisitos de admissão e produçãolegítimas. 5. Prova emprestada no quadro da vali-dade das provas. 6. A natureza do vício. 6.1. Conse-qüências da inobservância dos requisitos constitucio-nais. 6.2. Inobservância dos requisitos “legais” deprodução e admissão – decorrências. 7. Irrelevânciados possíveis destinos do processo anterior. 8. Em-préstimo ex officio de prova. 9. Prova produzida sobsegredo da Justiça e prova obtida mediante intercep-tação autorizada. 10. Empréstimo de depoimentopessoal. 11. A recente disciplina da juntada de verbalino processo penal italiano. 12. Conclusão: funções efundamentos da prova emprestada – notas finaissobre sua admissibilidade e valor – a proporcio-nalidade.

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móvel a preocupação com as garantias do juris-dicionado em face do Estado. É explicável domesmo modo o realce à liberdade das provas eaos poderes probatórios do juiz, no processocivil, em confronto com a maior regulamentaçãodos meios probatórios e a intensificação dosistema acusatório, no processo penal: as duasorientações têm em vista a efetivação de maiorequilíbrio entre as partes1.

De outro lado, é também inegável a existên-cia de regimes diferenciados em determinadospontos dos processos civil e penal. A relaçãoprocessual civil, por exemplo, normalmente sesatisfaz com a possibilidade do contraditório; apenal, exige-o efetivo. No processo civil, o “prin-cípio da verossimilhança” ganha, a cada dia, maisespaço, fazendo com que, antes de o juiz lançarmão das regras de distribuição dos ônus proba-tórios para decidir, valha-se intensamente dasmáximas da experiência, das deduções lógicas,ampliando as hipóteses de tutela de urgênciaetc. Já no processo penal, a garantia da presun-ção de inocência impõe que, na situação dedúvida, o juiz decida contra a acusação, quetitulariza a substancialidade dos ônus probató-rios. E não deixa de ser interessante que mesmoessa diversidade de regimes decorra de aspectocomum: a permeabilidade do processo – civil oupenal – ao direito material. É precisamente emface da essencialidade dos bens sempre envol-vidos na causa penal – a liberdade ou, quandomenos, a honra do que se vê acusado – que seestabelece regime de garantias mais rígido naesfera penal. Tanto é assim que, toda vez que acausa civil tem por conteúdo matéria de indis-ponibilidade mais intensa, o processo civil “apro-xima-se” do penal.

No campo probatório, dá-se o mesmo. “Es-trutural” e “funcionalmente”, a prova civil e apenal não se distinguem2 (razão pela qual –antecipe-se – não há nenhum óbice ao trasladode prova de um para o outro3, desde que cum-pridos os requisitos adiante expostos). Toda-via, a diferença de intensidade do sistema degarantias de um e outro processo espelha varie-dades nas respectivas disciplinas probatórias.

Pretende-se examinar o empréstimo de provatanto no processo civil quanto no penal sem

que se perca de vista o complexo de igualdadese variações que caracteriza o confronto entre osdois ramos – sob a perspectiva do direito proces-sual constitucional. Vai-se tentar verificar em quemedida o “traslado de prova” é constitucional-mente legítimo e quais valores constitucionaispodem, por meio dele, vir a ser concretizados.

2. Conceito, forma e valor4

A prova emprestada consiste no transportede produção probatória de um processo paraoutro. É o aproveitamento de atividade proba-tória anteriormente desenvolvida, mediantetraslado dos elementos que a documentaram.

A prova emprestada ingressa no segundoprocesso sob a forma de documento.

São trazidos do primeiro processo todos oselementos documentais em que se consignou aatividade probatória a ser reaproveitada. “Toma-se emprestada” perícia elaborada em outro pro-cesso, por meio da juntada de cópias autentica-das das folhas de que constaram: a decisãodefinidora do objeto da perícia; os quesitosformulados pelas partes e (ou) pelo juiz; o laudopericial; os possíveis quesitos de esclarecimentodo laudo e sua resposta; as manifestações dosassistentes técnicos; o eventual termo de ouvi-da do perito e dos assistentes em audiência – eassim por diante. Igualmente, caso se empresteprova testemunhal, trasladam-se reproduçõesde todas as folhas dos autos do primeiro pro-cesso que documentaram a produção dessa pro-va. É indispensável o transporte de todas aspeças atinentes à atividade probatória objetodo empréstimo ou de certidão com esse teor.Apenas assim o juiz do segundo processo po-derá verificar a presença dos requisitos de legiti-midade da prova emprestada (itens 3 e 4, adiante).Mais do que isso, só dessa forma ele poderávalorá-la adequadamente.

Em sentido parcialmente diverso, DevisEchandía afirma que seria “conveniente”, “masnão necessário”, juntarem-se todas essas peças.Segundo ele, seria “presumível” a validade daprova que se emprestou. A parte contrária à que

1 Sobre o tema, v. DINAMARCO. Instrumenta-lidade... cap. 2; CINTRA, DINAMARCO, GRINO-VER. Teoria geral... passim e em esp. p. 65-66; GRI-NOVER. Liberdades públicas... p. 102-103, nota 117.

2 CARNELUTTI, Prove civili... p. 3.3 3ª Turma. V.u. Resp. 135.777-GO. Relator :

Ministro Eduardo Ribeiro. DJU, p. 89, 16 fev. 1998.

4 Sobre conceito, forma e valor da prova empres-tada, confiram-se, entre outros: ECHANDÍA. Devis.Teoría general... v.1, esp. p. 367; ARAGÃO. Monizde. Exegese... v. 4, t. 1 p. 62; ARANHA. Camargo.Da prova ... p. 196-197; DA SILVA, Ovídio B.Curso... v. 1, p. 295; GRINOVER, Prova empresta-da, p. 66; SANTOS. Amaral. Prova judiciária... v. 1,esp. p. 307 e 326; LESSONA. Trattato dele prove...v. 1, esp. p. 14-15.

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está pleiteando o empréstimo é que teria o ônusde provar, por meio de cópias, o vício no pro-cesso anterior5. Ora, a “presunção” de validadesomente se estabelecerá quando apresentadatoda a documentação do iter probatório. Daíque incumbe à parte que requer o empréstimotrazer aos autos a integralidade dessas peças.Isso feito, se a produção original da prova forinválida em face de algum aspecto externo aoprocedimento probatório (por exemplo, a nuli-dade da citação), então sim, será ônus da partecontrária comprovar a existência do defeito.

Mesmo sendo apresentada no segundo pro-cesso pela forma documental, a prova empres-tada não valerá como mero documento. Terá apotencialidade de assumir exatamente a eficá-cia probatória que obteria no processo em quefoi originariamente produzida. Ficou superada aconcepção de que a prova emprestada recebe-ria, quando muito, valor de documento, “provainferior” ou “ato extrajudicial”6. O juiz, ao apre-ciar as provas, poderá conferir à emprestadaprecisamente o mesmo peso que esta teria sehouvesse sido originariamente produzida nosegundo processo. Eis o aspecto essencial daprova trasladada: apresentar-se sob a formadocumental, mas poder manter seu valor origi-nário. É tal diversidade que confere à provaemprestada regime jurídico específico – o qualnão se identifica com o da prova documentalnem com o da prova que se emprestou, em suaessência de origem.

Bem por isso, o traslado de prova documen-tal já apresentada em outro processo não cons-titui “prova emprestada”7. Não há, nesse caso,o contraste entre forma e valor potencial.

3. Admissibilidade da prova emprestada –perspectiva constitucional

Só se poderá conferir à prova emprestada ovalor acima mencionado quando ela for reputadalegítima. Como se dá em relação a todos os meiosprobatórios, existem requisitos para sua admis-sibilidade. De muito se destaca a falácia quereside na busca incondicionada da suposta “ver-dade real”.

A reconstrução histórica dos fatos da causanão é valor absoluto; não é a meta final do pro-

cesso. Escopo do processo é a atuação doordenamento jurídico, com a conseqüente paci-ficação social que tal atuação trará. E a verifica-ção dos fatos ocorridos é apenas uma etapa paraa consecução desse objetivo. É óbvio que, pararealizar tal fim, o juiz deverá fazer o possível paraapurar a verdade dos fatos. Mas a “verdade” –conceito absoluto – é inatingível. A falibilidadedo ser humano não lhe permite alcançá-la;melhor dizendo: não lhe permite sequer saber see quando a está de fato alcançando. Um eventoque ocorreu no passado talvez jamais possa serreconstituído exatamente como foi8.

Isso não quer dizer que o juiz deva renunciarao ideal de atingir a verdade. Daí ser inadequadodistingui-la em três graus: a) a “verdade absolu-ta”; b) a “verdade material” (que seria a atingidano processo penal); c) e a “verdade formal” (daqual se ocuparia o processo civil). Todo pro-cesso jurisdicional, como uma das etapas para aconsecução de seus objetivos, visa, da mesmaforma, à reconstituição dos fatos envolvidos nacausa9. Mas existem outros valores a considerar.

De um lado, é impossível que a controvérsiapermaneça indefinidamente irresolvida, em umabusca eterna da verdade – sob pena de denega-ção de tutela jurisdicional. Ainda que não con-vencido sobre “a verdade dos fatos”, em umdado momento o juiz haverá de decidir – na últi-ma das hipóteses, contra quem não se desin-cumbiu de seus ônus probatórios (no processopenal, contra a acusação – em face da garantiada presunção de inocência do acusado –, CF,art. 5º, LVII).

De outro lado, a investigação probatória temde ser compatibilizada com a série de princípioscondensados na fórmula do devido processolegal. A atuação do ordenamento por meio doprocesso não se dá só com a prestação da tutela

5 Op. cit., p. 377-378.6 Era o que afirmavam, por exemplo, Bentham

(Tratado... v. 2, p. 5-6), Sabatini (Teoria delle prove...p. 426) e Florian (Delle prove penale, p. 128-130).

7 LESSONA, op. cit., p. 14; SILVA, O. B. da. op.cit., p. 296; SANTOS, A. op. cit., p. 309.

8 V., por todos, CALAMANDREI. Verità... p.165-166, e CARNELUTTI. Diritto e processo,p. 254.

9 “A contraposição ‘verdade material’ - ‘verdadeformal’, diz Castro Mendes, ‘foi, em nossa opinião,das invenções mais perniciosas para a clareza dasidéias neste campo” (ARAGÃO, op. cit., p. 83).Como observam Grinover, S. Fernandes e M. GomesFº, se algum sentido tem a qualificação da “verdade”como “material”, esse há de ser o de que o juiz nãofica adstrito, no campo das provas, à mera atividadedas partes (As nulidades... p. 111). E isso já não épeculiaridade do processo penal em contraposiçãoao civil (sobre os poderes probatórios do juiz noprocesso civil, cf. por todos Bedaque, Poderes pro-batórios... esp. p. 57).

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final. Também a incidência das garantias funda-mentais no curso do processo é forma de atua-ção da ordem jurídica. Portanto, seria contra-senso que a atividade de reconstrução dosfatos – que só se explica como instrumento paraa atuação do ordenamento – se desenvolvesseao arrepio dos valores consagrados nessemesmo ordenamento. E isso vale igualmente parao processo penal e o civil.

Nesse passo, a “presença das partes” e a“presença do juiz” são reconhecidas comoaspectos essenciais para a validade e eficáciadas provas10. Em face desse binômio, que temstatus constitucional (art. 5º, XXXV, XXXVII,LIII e LV), é que se há de examinar a admissibili-dade da prova emprestada.

3.1. Prova emprestadae contraditório

As partes do segundo processo têm de ha-ver participado em contraditório do processoem que se produziu a prova que se visa a apro-veitar. Mais precisamente, é imprescindível quea parte contra a qual vai ser usada essa provatenha sido parte no primeiro processo11.

Amaral Santos sustenta que, no “sistemado juiz ativo”, em que o julgador tem “predomi-nante função” na formação da prova, a negativade valor à prova emprestada de processo entre

terceiros teria de ser acolhida “com certa reser-va”, vez que “a prova é do juízo”. Para ele, orequisito do contraditório no processo anteriorsó teria sentido no processo “dispositivo”(sic)12. Não há como concordar com a afirma-ção. Em qualquer caso, o contraditório terá deser respeitado. Em primeiro lugar, porque sem-pre – mesmo em um hipotético sistema de mo-nopólio da iniciativa probatória pelas partes –as provas são “do juízo”, enquanto a ele se des-tinam. Depois, a concessão de maiores poderesao juiz não autoriza a restrição dos poderes daspartes – que permanecerão sujeitos no processo,jamais se tornando seu objeto. Aliás, é precisa-mente no sistema de amplos poderes judiciaisque maior relevância assume a garantia do con-traditório como forma de controle do corretodesempenho da função jurisdicional.

Na esfera civil, é mais freqüente a hipótesede não coincidirem integralmente as partes doprocesso em que se produziu a prova e as doprocesso para o qual se pretende emprestá-la.Haverá de se verificar se aquele a quem desfa-vorece a prova emprestada participou de ambos.Já no processo penal, em regra, um dos pólosda relação processual será ocupado peloMinistério Público. Daí que o traslado de provaem favor da defesa de um processo penal paraoutro, normalmente, não esbarrará no requisitoora examinado: sendo uno e indivisível o Minis-tério Público, no mais das vezes ele terá partici-pado de ambos. Mas não é correto afirmar que,por isso, a necessidade de verificação da pre-sença do requisito só geraria dificuldades, noâmbito penal, quando a prova emprestada fosseusada contra o acusado13. Ainda que excepcio-nalmente, pode-se estar diante de ação penal“privada”. Nessa hipótese, a prova emprestadacontrária à acusação submeter-se-á, do mesmomodo, ao requisito do contraditório. Se o quere-lante não houver sido parte no processo origi-nário, não se admitirá, em princípio, o emprésti-mo. Além disso, ainda quando se tratar de açãopenal pública, a prova emprestada em prol da

10 Vede, entre outros: COUTURE. Fundamen-tos... p. 253; GRINOVER. O conteúdo... p. 21-24;GRINOVER, FERNANDES, GOMES Fº, op. cit.,p. 106-107.

11 Afirmando a necessidade da presença de ambasas partes, entre outros: LESSONA, op. cit.; ARA-GÃO, op. cit., p. 62; ALVIM, Arruda, ALVIM,Teresa A. Manual... v. 2, p. 233. Afirmando apenas anecessidade da presença do desfavorecido pela prova,entre outros: ECHANDÍA, op. cit., p. 367-368;COUTURE, op. cit., p. 255-256; MARQUES, F.Instituições... v. 3, p. 305, e Elementos..., v. 2, p. 307-308; DA SILVA, O. B. op. cit., p. 295; ARANHA,Camargo. Da prova... p. 197; GRINOVER, Provaemprestada, p. 66. O STF, em processo civil, já deuprovimento a recurso extraordinário para reconhecerofensa ao contraditório no empréstimo de provacolhida sem a participação da parte contra a qualdeveria operar (RTJ n. 56 p. 283). Em outra ocasião,em causa penal, o STF reiterou esse entendimento,mas denegou habeas corpus por considerar que asentença de pronúncia não se fundou na provaemprestada (RT n. 690 p. 380). Vede ainda: RePro,n.11/12 p. 347, em. 165; RT n. 300 p. 229; RT n. 615p. 69; RT n. 667 p. 267; RT n. 673 p. 146; RT n.719p. 166; JTA n. 106 p. 207; JTA n. 111 p. 360; RJTJESPn. 105 p.217; RJTAMG n. 29 p. 224; TRF-1ª Região,

Ap.Cív. 0103499-MG. DJU, p. 17737, 5 ago 1991;Idem. Ap.Cív. 0112779-MG. DJU, p. 01881, 10 fev.1992; Idem. Ap. Cív.0116986-MA. DJU, 5 mar. 1990;Idem Ap. Cív. 0108237-MG. DJU, p. 21397, 9 maio1994; Idem. Ap. Cív. 0126637-MG. DJU, p. 32265,20 jun. 1994; Idem. R. Ord. Trab. 0105655-DF. DJU,p. 48389, 5 set. 1994; TRF - 4ª Região. Ap. Cív.0408315- RS. DJU, p. 08834, 22 fev. 1995.

12 Op. cit., p.312.13 Como faz ARANHA, op. cit., p. 197.

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defesa pode vir a ser inadmissível. Basta imagi-nar a hipótese de ela haver sido originariamentecolhida em processo civil de que não participouo Ministério Público. (Porém, em tais casos, res-salve-se a eventual aplicação do princípio daproporcionalidade – v. item 12).

Não procede a assertiva de que seria desne-cessária a participação do prejudicado no pro-cesso anterior, bastando que se lhe desse opor-tunidade de manifestação sobre a prova depoisde seu traslado14. É que o contraditório não con-siste na simples garantia de defesa em face daprova já produzida. Mais do que isso, por meiodele assegura-se a possibilidade de participa-ção efetiva em toda atividade judicial destinadaà formação do convencimento do magistrado.Há o direito de “fiscalizar” e “influenciar” odesenvolvimento da instrução, inclusive a pro-batória15.

Sob o prisma do contraditório, comumentese aponta apenas a necessidade de que a partecontra a qual a prova emprestada operará tenhaparticipado do processo anterior. Mas, para queo traslado da prova não seja incompatível comessa garantia, ainda outros dois aspectos devemser observados.

Não basta a mera participação no processoanterior daquele a quem a prova transportadadesfavorecerá. É preciso que o grau de contra-ditório e de cognição do processo anterior te-nha sido, no mínimo, tão intenso quanto o quehaveria no segundo processo. Por exemplo, podeser inadmissível o empréstimo de elementosprobatórios produzidos em procedimento dejurisdição voluntária que dispense o exame maisprofundo das questões fáticas (v.g., inventário)para outro de jurisdição contenciosa16.

Há ainda outro tópico, com acentuada rele-vância para o processo penal. O direito proces-sual civil geralmente se satisfaz com a potencia-lidade de contraditório: basta que se dê às partesa oportunidade de participar. O direito proces-

sual penal exige o contraditório efetivo. A defesatécnica é indisponível. Assim, não pode seremprestada para processo penal (ou para pro-cesso “civil” em que prevaleça a indisponibili-dade da defesa) prova para ser usada contraalguém que, conquanto tenha formalmentefigurado como parte no primeiro processo, delenão tenha participado em efetivo contraditório.A prova produzida contra revel em processocivil, v.g., não pode ser utilizada por empréstimocontra esta mesma pessoa em processo penal.Não fosse assim, por meio de caminho tortuoso,seria inobservada a regra da indisponibilidadeda defesa técnica.

Mas as partes não têm só o direito ao contra-ditório. Possuem o direito de exercê-lo peranteo órgão jurisdicional17. Por isso, a legitimidadeconstitucional do empréstimo de prova tem deser examinada também diante de outros valoresprocessuais constitucionalmente consagrados.

3.2. Prova emprestadae oralidade

A oralidade, enquanto complexo de subprin-cípios (imediação, identidade física, concentra-ção, irrecorribilidade das interlocutórias, poderesprobatórios do juiz...), estabelece como diretriza necessidade de o julgador ter contato pessoal,direto e recente com os elementos formadoresde sua convicção para a decisão da causa18.

Na medida em que serve para garantir proce-dimento rápido (e, portanto, uma resposta célere)e a melhor formação do convencimento do juiz(e, portanto, uma resposta mais justa), a orali-dade tem direto suporte constitucional nasgarantias da adequada tutela jurisdicional (art.5º, XXXV) e do devido processo legal (art. 5º,LIV). Ainda, um processo mais rápido e com juizatuante e em contato direto com as provas e aspartes amplia o acesso à Justiça (também contidona fórmula do inc. XXXV do art. 5º), aproximan-do-a dos menos favorecidos (eis porque a orali-dade é adotada pelos juizados especiais)19.

14 Com esse argumento, o STF admitiu provatrazida de processo do qual a parte por ela desfavore-cida não havia participado (RTJ, n. 129 p. 727). Nomesmo sentido: TRF-1ªR. Ap.Cív. 0110064-MG.DJU, p. 17444, 15 jun. 1992.

15 Cf. entre outros: COUTURE. op. cit., p. 253-254; DINAMARCO. Execução civil, p. 168-169;GRINOVER, O conteúdo... p. 19-21; GRINOVER,FERNANDES, GOMES Fº. op. cit., p. 107; GOMESF.º. Sobre o direito à prova... p. 141.

16 Exemplo semelhante é dado por O. B. da Silva,p. 296.

17 Cf. por todos COMOGLIO. La garanzia... p.217, e TROCKER, Processo civile... p. 514-515.

18 Chiovenda, Saggi... v. 1: Lo stato attuale delprocesso civile in Italia... Relazione sul progeto diriforma... Saggi... v. 2 : Lo stato attuale del processocivile in Italia... Saggi... v. 2 : L’oralità e la prova eInstituições... v. 3, p. 45-65. Outras referências biblio-gráficas e mais amplas considerações sobre a naturezae a extensão da oralidade constam de A nova disciplinado agravo... p. 126-132, de minha autoria.

19 TALAMINI, A nova disciplina... p. 127. Porisso, não parece correto pura e simplesmente afirmarque a identidade física e a imediação “não vigoram no

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Mas, em si mesma, a oralidade não constituigarantia direta e absoluta, que valha em si e porsi. É sempre desdobramento e meio de conse-cução de outros valores – esses, sim, constitu-cionais. Daí que ela jamais pode ser imposta emtermos absolutos. Cede espaço toda vez queexistam outros mecanismos mais adequados aoconseguimento dos mesmos fins por ela visa-dos – o que, aliás, é inerente ao Direito.

A recorribilidade de interlocutórias, por exem-plo, prevista tanto no processo civil como noprocesso penal brasileiro, mitiga a oralidade. Aprópria possibilidade de revisão da decisão finalpelo órgão de grau superior também lhe trazlimitação, na medida em que se permite novadecisão por magistrados que não tiveram neces-sariamente contato direto com a produção dasprovas. Ainda, a utilização das cartas rogató-rias, precatórias e de ordem igualmente diminuema incidência da imediação. Enfim, há diversashipóteses em que a oralidade não prevalece –sem que, por isso, verifique-se afronta ao siste-ma de garantias constitucionais do processo.Pelo contrário, a supressão desses mecanismosmitigadores da oralidade é que acabaria por gerarinconstitucionalidades: não se conceberia sis-tema constitucionalmente legítimo sem nenhumduplo grau; em que as interlocutórias fossemsempre irrecorríveis por via autônoma; em quese vedassem as provas que tivessem de ser pro-duzidas em outra localidade... – e assim pordiante.

A prova emprestada insere-se perfeitamentenesse quadro. Outros valores a autorizam (v.item 12), ainda que ela represente diminuição deincidência da diretriz da oralidade.

Isso não significa que, de algum modo, aoralidade não possa influir na avaliação da provaemprestada: precisamente porque não teveparticipação direta e imediata na atividade deprodução originária da prova, o juiz, em face deoutros elementos probatórios com ela incompa-tíveis, pode conferir-lhe fundamentadamentevalor menor do que aquele que receberia setivesse sido produzida diretamente no segundoprocesso (sobre o tema, v. item 12). Isso, entre-tanto, não é peculiaridade da prova emprestada.Pode acontecer em qualquer caso em que não

se dê a imediação do juiz com as provas (colhei-ta por carta; substituição de juiz no curso doprocesso...).

É levando em conta tal aspecto que se há dedefinir a possibilidade de empréstimo da inspe-ção judicial. Trata-se da verificação direta depessoas ou coisas pelo juiz, para se esclarecersobre fato que interesse à decisão da causa (CPC,art. 440 e segs.; cabível também no processopenal, vez que moralmente legítima e não veda-da expressamente). A imediação é inerente à ins-peção judicial. Esta só terá valor específico ediferenciado do de outros meios probatóriosquando realizada precisamente por aquele quejulgará o feito. Isso, contudo, não obsta seu“empréstimo”. Mas é a única prova que, se em-prestada, não tem absolutamente como mantero valor originário (o que a afasta do aspectocomum aos demais empréstimos de prova, con-sistente na potencialidade de ser mantida aforça probante original – v. 2, acima). De qual-quer modo, a restrição ao valor da inspeção nãoocorrerá só nos casos de traslado, mas toda vezque o juiz que inspecionar não vier a ser o mesmoque julgará: para o segundo magistrado, suadocumentação terá valor apenas enquantoveiculadora do depoimento do primeiro.

3.3. Prova emprestada, juiz natural einafastabilidade da jurisdição

O princípio constitucional do juiz naturaldesdobra-se em dois âmbitos: vedação a tribu-nais de exceção (art. 5º, XXXVII, da CF) egarantia do juiz competente (art. 5º, LIII, da CF).O princípio do juiz competente assegura àspartes não só o direito de serem sentenciadaspor autoridade jurisdicional cuja competênciapara tanto tenha sido previamente estabelecida,mas também a garantia de que a instruçãoprocessual ocorra perante essa mesma autori-dade (“ninguém será processado nem sentenci-ado senão pela autoridade competente”).

Tal exigência estabelece limitação ao emprés-timo da prova? A prova, para que possa seremprestada, tem de haver sido produzida pe-rante juiz que também seria competente para ojulgamento do segundo processo20?

Um primeiro passo para a resposta à indaga-ção pode ser dado mediante o exame da (exten-são da) constitucionalidade da regra segundo aprocesso penal” (como fazem, p. ex., MORAIS, P.

H. de. LOPES. J. B. Da prova penal... p. 45). Maisacertada é a observação de Greco Fº, de que a identi-dade física não é “regra cogente” no processo penal,mas elemento “importante para a descoberta da ver-dade” (Manual... p. 201).

20 A admissibilidade da prova emprestada não temsido examinada à luz dessa garantia. Como exceção,confira-se Grinover (Prova emprestada, p. 63-66) –que chega a solução diversa da aqui preconizada.

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qual são nulos apenas os atos decisórios prati-cados pelo juiz incompetente (CPC, art. 113, §2º; CPP, art. 567). Caso se considere constitucio-nalmente possível que provas colhidas peranteo juiz incompetente sejam aproveitadas noprosseguimento do mesmo processo junto aoórgão competente, não haverá o que justifiquea rejeição do empréstimo da prova tão-só pelofato de o juiz do primeiro processo não detercompetência para a causa objeto do segundo.

Podem ser resumidas em quatro as correntesde entendimento acerca do destino dos atos não-decisórios praticados pelo juiz incompetente: (a)seriam nulos (ou inexistentes) em qualquer caso,por ofensa à garantia do juiz competente: a leiinfraconstitucional não poderia abrir exceçãonão-prevista pela Constituição; (b) seriam nulos(ou inexistentes) apenas nos casos de violaçãoàs normas constitucionais de repartição de com-petência; quando a incompetência decorressede ofensa a norma infraconstitucional, seria apli-cável a regra de aproveitamento dos atos não-decisórios igualmente estabelecida em âmbitoinfraconstitucional; (c) seriam nulos (ou inexis-tentes) somente nos casos em que os processosfossem instaurados perante a “Justiça Especial”quando competente a “Justiça Comum”, vez quesó os órgãos desta estariam idealmente inves-tidos de toda a jurisdição; (d) seriam sempreválidos, vez que a Constituição limita-se arepartir competências: a economia processualjustificaria o estabelecimento de regras infra-constitucionais de aproveitamento dos atos não-decisórios21.

Tem-se entendido que, no processo civil, éintegralmente aplicável, sem violação à Consti-tuição, a regra do aproveitamento dos atos não-decisórios (CPC, art. 113, § 2º)22 – com a ressal-va de que, remetidos os autos para o órgão com-petente, esse tem poderes para reexaminar todosesses atos já praticados. Não que o processocivil seja infenso ao princípio do juiz competente.

Este vigora também na esfera civil: a incompe-tência acarreta a invalidade dos atos decisóriosinstrumentais e finais; o desrespeito à compe-tência absoluta enseja a rescisão da sentençade mérito transitada em julgado (CPC, art. 485,II). Todavia, reputa-se que a economia proces-sual possui relevância axiológica suficiente paramitigar o rigor da exigência de integral proces-samento da causa perante juiz competente.

Isso é o que basta para reconhecer, no âmbitocivil, que a incompetência do juiz do primeiroprocesso, relativamente à causa objeto dosegundo, não é obstáculo ao empréstimo daprova.

No direito processual penal, entretanto, émais freqüente a afirmação de que não seria apro-veitável nenhum ato do processo desenvolvi-do perante juiz constitucionalmente incompe-tente. A norma do art. 567 do CPP só se aplicariaaos casos em que a incompetência decorressede violação a preceitos infraconstitucionais23.

É dispensável, aqui, a verificação do acertoda tese. Para os fins do texto, é suficiente consi-derar os três aspectos que poderiam fazer justi-ficável solução diferente daquela a que se chegano processo civil: (a) a exigência de integral pro-cessamento perante o órgão competente asse-gura, no caso da ação penal pública, que aprópria denúncia seja proposta pelo órgãoacusatório competente; (b) garante, além disso,que o juiz constitucionalmente competente – eapenas ele – decida acerca do recebimento dadenúncia ou queixa (a pendência da demandapenal é muito mais gravosa para o réu do que alitispendência civil); (c) no mais das vezes, veri-ficada a incompetência por ofensa a normasconstitucionais, o aproveitamento de atos não-decisórios é impraticável em virtude da radicaldiversidade entre o procedimento penal jádesenvolvido perante o órgão incompetente eaquele que se deverá efetivar frente ao órgãocompetente24.

Ainda que razoáveis tais argumentos, paraexplicar a nulidade ab initio do processo penal21 Sobre as várias correntes, vede: CINTRA,

DINAMARCO, GRINOVER, op. cit., p. 238; Ap.34.847, do 2ª TACivSP, colhida por Arruda Alvim eoutros em Competência... p. 338-339; voto do Min.Moreira Alves no RExt. 80.226-BA (RTJ n. 89 p.478-479).

22 Tal entendimento tem prevalecido perante osTribunais: v., p. ex., os acórdãos do STF e do 2ºTACivSP, indicados na nota anterior; ainda: STF.RExt 88131-1. DJU p. 5.846, 10 ago. 1979. TRF-1ªR. Ap.Cív 0121993-DF. DJU p. 48251, 3 ago.1995. Em doutrina, A. Alvim indica expressamente oaproveitamento de atos instrutórios (p. 175). Na Itá-

lia, Romboli – examinando o princípio do juiz naturalinclusive sob o prisma do juiz competente – aponta anecessidade de, como se dá com todo princípio, “co-ordená-lo”, “balanceá-lo” e “temperá-lo” com osdemais valores constitucionais (Il giudice... p. 237-238).

23 Nesse sentido: BREDA, Efeitos da declara-ção... p. 186-189; GRINOVER, FERNANDES, EGOMES Fº, op. cit., p. 45-46.

24 Quanto a esse último aspecto, vede BREDA.op. cit., p. 188.

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praticado frente ao juízo incompetente, nenhumdeles interfere na legitimidade constitucional doempréstimo da prova produzida perante juízoque não deteria competência para processar ejulgar o feito para o qual se fará o traslado. Por-tanto, mesmo no processo penal, é dispensávelque o juiz que presidiu a colheita da prova a seemprestar detenha competência para conhecera causa do segundo processo.

Um último requisito constitucional impõe-seindistintamente para o empréstimo de provatanto no processo civil quanto penal. A provatem de haver sido originariamente colhida emprocesso frente a órgão jurisdicional. Trata-sede decorrência direta da inafastabilidade dajurisdição e do devido processo legal (CF, art.5º, XXXV e LIV). Não há apenas o direito de serouvido e receber uma resposta do órgão jurisdi-cional. Mais ainda, existe o direito de, peranteesse – e com o completo sistema de garantiasque peculiariza o processo jurisdicional –,desenvolverem-se as atividades destinadas a“far valere sul piano probatorio le proprieragione e di influire sullo svolgimento dellacontroversia”25. Nesse ponto, “presença daspartes” e “presença do juiz” interagem.

Não se tratando de prova inerentemente pre-constituída, sempre que possível (v. 12, adiante),deve ser produzida no processo jurisdicional,sob o pálio de suas garantias. Nesses casos,não é cabível o mero empréstimo de “prova”produzida em processo ou procedimento admi-nistrativo, inclusive inquérito policial26.

Tampouco se admite o empréstimo de provacolhida em procedimento arbitral. Dentro de

certos limites, a arbitragem não ofende o princí-pio constitucional da inafastabilidade da juris-dição, representando importante meio alterna-tivo de solução de conflitos. Todavia, não pos-sui caráter jurisdicional27. O compromisso arbi-tral constitui ato de autonomia privada, noâmbito do direito material, pelo qual as partessubmetem ao julgamento de terceiro controvér-sia que envolva direito disponível. Além disso,a matéria subtraída à apreciação do juiz limita-seprecisamente à solução do tema objeto do com-promisso. Para a resolução de outros conflitos,alheios ao que foi objeto da arbitragem, os atosinstrutórios desenvolvidos perante o árbitro nãose revestem de valor especial28.

É igualmente inviável o empréstimo de provaproduzida no exterior29. Órgãos, ainda que juris-dicionais, de outros Estados não exercem juris-dição brasileira (por isso a sentença estrangeirasó adquire eficácia no Brasil se homologada peloSTF). Todavia, em todos aqueles casos em quea prova não tenha como ser realizada no Brasil,torna-se admissível seu traslado de processo jádesenvolvido em outro Estado (por exemplo: aouvida de testemunhas no exterior; exame peri-cial sobre bem situado fora do território nacio-nal etc.). Afinal, a exigência de que as provas seproduzam frente à jurisdição brasileira tem seulimite na própria possibilidade de tal produção –sob pena de haver desarrazoada restrição aodireito de provar (v. 12, adiante). Daí por que,nesses casos, não se põe em dúvida a legitimi-dade constitucional da carta rogatória. Conse-qüentemente, a economia processual autorizaque, presentes os demais requisitos, empreste-sea prova já produzida no exterior, em vez de seexpedir carta rogatória para a repetição do ato.

4. Outros requisitos de admissão eprodução legítimas

Há ainda requisitos que poderiam ser cha-mados de “legais” – embora indiretamente tam-bém atendam a valores constitucionais. Terão

25 TROCKER, op. cit., p.. 514-515, comentandoo reconhecimento da inconstitucionalidade de lei quena Itália entregava a órgão administrativo, com exclu-sividade, a comprovação de determinados fatos. Tra-tando do mesmo caso, Comoglio destaca que haveriainconstitucionalidade ainda que existisse a possibili-dade de contraditório frente à administração (op. cit.,p. 218-219).

26 Nesse sentido: LESSONA, op. cit., p. 31-32(note-se que, quando o autor admite o empréstimo deprova de giudizio amministrativo, está a referir-se aoprocesso jurisdicional desenvolvido perante a Gius-tizia amministrativa; a seguir, não aceita o traslado deprova colhida na pratica od inchiesta amministrati-va). Na jurisprudência, afastando o empréstimo deprova colhida em inquérito, vejam-se: RJTJESP n. 99p. 201; RePro n. 43 p. 289; RTJ n. 56 p. 283 (nos trêscasos, porém, embora se fizesse menção à inadmissi-bilidade também por ser proveniente de inquérito,não se preenchia igualmente o requisito do contradi-tório).

27 Vede, entre outros, CHIOVENDA. Institui-ções... p. 78; FAZZALARI, Istituzioni... p. 505.

28 Em sentido contrário: ECHANDÍA. op. cit.,p. 376.

29 Nesse sentido: LESSONA. op. cit., p. 31-32.Em sentido contrário, Echandía (op. cit., p. 376-377),afirmando incorretamente que essa também seria aposição de Lessona. Lessona admitia, isso sim, apro-veitamento de provas produzidas frente à “jurisdiçãoconsular” e aos “tribunais coloniais”, que na épocaintegravam a jurisdição italiana.

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de ser observadas as prescrições atinentes ànatureza originária da prova, tanto no primeiroprocesso quanto no segundo. Além disso, noprocesso para o qual a prova está sendo empres-tada, terão de ser observadas as normas atinen-tes à prova documental, já que é sob esta formaque se dá o traslado30.

Cabe aqui uma diferenciação.A exigência de que a prova, no primeiro pro-

cesso, tenha sido regularmente colhida é requi-sito de admissibilidade para seu empréstimo.

Do mesmo modo, a observância, no segun-do processo, das normas que disciplinam aadmissibilidade da prova em sua essência origi-nária também é pressuposto de admissibilidadedo empréstimo. Exemplificando: em tese, nãoseria possível o empréstimo de prova testemu-nhal para a comprovação de fatos que nãoadmitem prova mediante testemunha (v.g., CPC,art. 401). Esse requisito tende a ser mitigado, namedida em que as tarifações legais de prova vãorecebendo interpretação cada vez mais restriti-va (por exemplo, confira-se a tendência juris-prudencial limitadora do alcance e da extensãodo art. 401 do CPC, nas notas ao preceito apos-tas por T. Negrão, CPC..., p. 307).

Ainda, inclui-se entre os pressupostos deadmissibilidade da prova emprestada o respei-to, no segundo processo, às normas que traçamos limites e condições para a juntada de docu-mento.

Já a observância do procedimento da ativi-dade probatória documental por ocasião doempréstimo não constitui um pressuposto parasua admissão – e sim parâmetro de regularidadedo traslado. Não é um requisito da sua aceita-ção, mas da sua produção válida, depois deaceita, no segundo processo (a distinção temrelevância porque podem ser diferentes as con-seqüências da admissão indevida e da produ-ção indevida do empréstimo).

A mais significativa das normas relativas àprodução da prova documental é a que assegurao contraditório. Nos termos do art. 398 do CPC,será ouvida a parte contrária à que requereu oempréstimo. Tendo sido o traslado determinadoex officio, ouvem-se ambas31.

Embora o CPP não possua regra genéricadeterminando a observância do contraditóriopor ocasião da juntada aos autos da provadocumental, também no processo penal o juizdeverá dar ciência do traslado às partes. A essaconclusão se chega quer pela aplicação exten-siva (CPP, art. 3º) do art. 475 do CPP (que proíbe“a produção ou leitura de documento que nãotiver sido comunicado à parte contrária, comantecedência, pelo menos, de três dias”), querpela aplicação subsidiária do art. 398 do CPC –senão pela incidência direta da garantia consti-tucional do contraditório (art. 5º, LV)32.

Por isso, não parecem acertadas as decisõesque consideram desnecessária a abertura devista à parte depois do empréstimo, sob o argu-mento de que ela já exercera o contraditório porocasião da produção originária da prova33. Aparte tem o direito de se manifestar sobre aadmissibilidade do empréstimo, sobre o valorque, concretamente, no segundo processo, aprova trasladada deve merecer – e assim pordiante. Para tanto, tem de lhe ser dado conheci-mento da juntada.

Há quem ainda estabeleça outro pressupostoda prova emprestada: a identidade ou semelhançado fato probando nos dois processos34. Não é,porém, requisito específico da prova empresta-da, senão o pressuposto genérico de pertinên-cia e relevância a ser considerado para a admis-são de qualquer meio probatório35.

É no âmbito da relevância e pertinência quese insere a questão da possibilidade de emprés-timo de prova sobre a saúde mental do acusado.Como observa Vicente Greco Filho:

“O exame será sempre específico paraos fatos relatados no inquérito ou no pro-cesso, e não pode ser substituído porinterdição civil ou exame de insanidaderealizado em razão de outro fato. Istoporque, em virtude do sistema biopsico-lógico sobre a inimputabilidade acolhidopelo Código Penal, os peritos devem res-ponder se à época do fato o acusado era,

30 ARANHA, Da prova... p. 197; GRINOVER,Prova emprestada, p. 66.

31 Sobre o contraditório em relação às provascolhidas de ofício, v., por todos, GRINOVER. Oconteúdo... p. 24-27.

32 Nesse sentido, entre outros: GRINOVER, Oconteúdo... p. 26; Gomes Fº. op. cit., p. 163; GrecoFº. op. cit., p. 210.

33 TRF-3ªR. Ap.Cív. 03007150-SP. DOE, p. 80,2 abr. 1990. TRF-3ªR. Ap.Cív. 03024861-SP. DOE,p. 173. 3 ago. 1992.

34 SANTOS. op. cit., p. 314; ARANHA. Daprova... p. 197.

35 Nesse sentido, GRINOVER. Prova empres-tada, p. 67.

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ou não, capaz de entender o caráter crimi-noso do fato e de determinar-se segundoesse entendimento. Logo, não pode haveraproveitamento de outro exame referentea outro fato”36.

Essa constatação limita bastante, mas nãoexclui por completo o empréstimo de provaacerca da sanidade. Pode ter havido, em outroprocesso, perícia relativa ao estado mental doacusado precisamente à época do fato. Alémdisso, o empréstimo pode destinar-se a com-provar insanidade superveniente – a qual tam-bém tem repercussão jurídica (CPP, art. 152). Foradessas hipóteses, o traslado de exame seráinadmissível, posto que tem por objeto fatoirrelevante.

5. Prova emprestada no quadroda validade das provas

Tem prevalecido, na doutrina brasileira, clas-sificação que distingue as provas “ilegais” em“ilícitas” e “ilegítimas”. Nas palavras de AdaGrinover, reportando-se a terminologia deNuvolone,

“a prova pode ser ilegal, por infringir ànorma, quer de caráter material, quer decaráter processual. (...) Vê-se daí que adistinção entre prova ilícita e prova ilegí-tima se faz em dois planos. No primeiroenfoque, a distinção diz com a naturezada norma infringida ou violada: sendo estade caráter material, a prova será ilícita;sendo de caráter processual, a prova estáilegítima. No segundo plano, a distinçãoé estabelecida quanto ao momento em quese dá a violação, isso porque a prova seráilícita infringindo, portanto, norma mate-rial, quando for ‘colhida’ de forma quetransgrida regra posta pelo direito mate-rial; será, ao contrário, ilegítima, infringin-do norma de caráter processual, quandofor ‘produzida’ no processo, em violaçãoà regra processual”37.

A prova emprestada que não atenda aospressupostos apresentados nos dois itensanteriores se insere na categoria das provas “ile-gítimas”, vez que violadora de normas que tute-lam valores atinentes “à lógica e à finalidade do

processo”. No item 9, examinam-se especiaishipóteses em que o empréstimo da prova pode-sedar com a ofensa a normas de direito material,tornando-a “ilícita”.

6. A natureza do vícioA natureza do vício e as conseqüências do

empréstimo ilegítimo variam, contudo, confor-me os requisitos que tenham sido desatendidos.

6.1. Conseqüências da inobservância dosrequisitos constitucionais

Inobservados os requisitos constitucionais(item 3), a prova trasladada é juridicamente ine-xistente; é uma “não-prova”, arremedo de pro-va38. Outra não pode ser a conseqüência dafrontal violação às normas constitucionais.Enquanto prova constitucionalmente ilegítima:

(a) Não poderá ser nem anexada ao pro-cesso, por expressa cominação constitucional(art. 5º, LVI). Embora a fórmula empregada noinc. LVI do art. 5º da CF tenha aludido a provas“ilícitas”, a sanção ali estabelecida aplica-se atoda prova ofensiva a valores constitucionaisfundamentais, inclusive os processuais.

De mais a mais, e diferentemente de outrasespécies de provas produzidas em desrespeitoa regras processuais, não há como se sanar ovício nesse caso: não há o que se fazer se aparte contra a qual se pretendia usar a provaemprestada não participou do processo anterior;igualmente nada há que supra a circunstânciade o órgão perante o qual se produziu origina-riamente a prova não ter caráter jurisdicional.Logicamente, a repetição, no segundo processo,da prova que se pretendia emprestar não é “sa-neamento” do empréstimo ilegítimo. Nesse caso,não se estará suprindo defeito na prova trasla-dada, mas se desenvolvendo exatamente a ati-vidade probatória que em princípio seria dis-pensável se a prova emprestada fosse válida39.

(b) Se indevidamente juntada, terá de serdesentranhada. Esse é o sentido do vocábulo

36 Op. cit., p. 170 – com destaque no original.37 Provas ilícitas, p. 170-171. Vede ainda de

Grinover: Interceptações... p. 61, e Liberdades... p.96-99; e, em conjunto com FERNANDES, GOMESFº op. cit., p. 113.

38 Ibidem, p. 20-21 e 121.39 Nesse ponto, não há como não se mencionar a

peculiar disciplina da prova emprestada no direitoprocessual civil colombiano. Se aquele contra quemvai ser empregada não participou do processo ante-rior, a prova testemunhal emprestada é admissíveldesde que se proceda à sua “ratificação”: a testemu-nha é chamada ao segundo processo para confirmar oque disse no primeiro (ECHANDÍA. op. cit., p. 367-

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“inadmissibilidade”. No processo penal italiano,a “inutilizzabilità” da prova proibida chegou aser interpretada por alguns como sua tão-sóimpossibilidade de utilização no momento davaloração. O CPP de 1988 (art. 191) e os debatesque o precederam deixaram claro que a “inutilizza-bilità” consiste na inviabilidade de aproveita-mento da prova desde o início do procedimentoprobatório: mais do que ser desconsideradaquando da decisão, a prova vedada não podenem ser admitida40. A Constituição brasileira foiprecisa. O termo empregado evidencia que oprocedimento probatório não poderá nem mes-mo passar da etapa de admissão. Desrespeitadaa regra e admitido o que não poderia sê-lo, san-ciona-se com o desfazimento da admissão ofen-siva à norma constitucional.

(c) De qualquer modo, caso permaneça nosautos, não poderá ser considerada no julga-mento. O poder de livre valoração de que éinvestido o julgador pressupõe provas legais.Antes, delimitam-se as provas constitucional-mente admissíveis: dentro desse universo é quese desenvolve a liberdade para a formação deum convencimento motivado.

(d) Se utilizada pelo juiz, acarretará a nuli-dade absoluta da decisão.

As decorrências apontadas até aqui sãobasicamente as que afirma Ada Grinover, emparecer que envolvia caso penal41. Aplicam-seigualmente ao processo civil. Ressalve-se, ape-nas, que a incidência do princípio da proporcio-nalidade pode vir a afastar tais conseqüências,tanto no processo civil, quanto no penal (v.item 12).

A ilustre processualista destaca ainda outroaspecto. A nulidade absoluta de que será eivadaa decisão fundada na prova emprestada ilegítimaocorrerá independentemente de se considerar aparte que requereu o empréstimo. Isso porque,em primeiro lugar, à nulidade absoluta não seaplica o “princípio do interesse”. Depois, emface do “princípio da comunhão”, a prova é dojuiz e não das partes – sendo irrelevante quem arequer42.

A constatação é válida, como regra, para oprocesso penal. Especialmente em virtude daindisponibilidade da ação pública e da defesa

técnica, as partes não podem dispor do contra-ditório perante o juiz constitucionalmente com-petente.

Já no processo civil, em que a regra geral é ada disponibilidade das posições processuais,tem de ser outra a solução. Se a própria parte aquem a prova desfavorece requereu seu emprés-timo (ou não o impugnou), fica afastado o óbicede ela não haver participado em contraditóriono processo anterior. A situação não será emnada diversa daquela que haveria se, no pró-prio processo em que a prova foi produzida,houvesse sido dada a oportunidade de contra-ditório a essa parte e ela tivesse aberto mão deseu exercício. Ainda, quando, no processo civil(em que prevaleça a disponibilidade da ação eda defesa), a própria parte desfavorecida porprova não-produzida perante a Jurisdição équem pleiteia seu empréstimo, ou com ele con-corda, também então este não será inadmitido.De todo modo, ficará sempre ressalvada a hipó-tese de o juiz, com base nos seus poderes pro-batórios, fundamentadamente determinar novaprodução da prova – a despeito da concordân-cia das partes quanto ao empréstimo (aliás, emqualquer caso, o juiz sempre terá essa possibili-dade – v. item 12).

6.2. Inobservância dos requisitos “legais” deprodução e admissão – decorrências

Quando não se tiverem observado, no pro-cesso de origem, os pressupostos de produçãoválida da prova (v. item 4), será também inad-missível seu empréstimo – aplicando-se o regimediscriminado no tópico anterior. Como já seexpôs, não há como corrigir, no segundo pro-cesso, os vícios ocorridos no primeiro. Eventu-almente, o processo de origem ainda não seencerrou e o vício de que padece a prova ésanável. Nessa hipótese, suprido o defeito noprimeiro processo, poderá ser admitido seuempréstimo para o segundo.

Já se o defeito disser respeito exclusivamenteao segundo processo (v. item 4: inobservânciadas normas atinentes à prova em sua essênciaoriginal ou das normas atinentes à prova docu-mental), terão de ser diferenciadas duas hipóte-ses: (a) inobservância das regras de admissibi-lidade da prova documental ou da prova emsua essência de origem; (b) inobservância dasregras sobre a produção da prova documental.

Relativamente ao primeiro caso (desrespeitoàs regras de admissibilidade), as conseqüênciasserão semelhantes às do item anterior. Então,

368). Ora, aí não há empréstimo nenhum, mas novaprodução da prova.

40 GALANTINI. L’inutizzabilità... p. 85.41 Prova emprestada, p. 65, 67-68.42 Ibidem.

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caso se junte prova emprestada no procedimentodo júri sem o respeito à limitação de juntada ouleitura de prova documental constante do art.475 do CPP, terá de ser desentranhada dosautos. Decisão a que se chegue depois de suajuntada ou leitura será nula. Caso o júri delatenha tomado conhecimento, impor-se-á suadissolução. Afinal, como o júri é dispensado deapresentar a motivação do seu convencimento,não haveria como se verificar se ele valeu-se detal prova inadmissível.

Diante da segunda hipótese (ofensa àsnormas de produção da prova documental), aresposta variará conforme a natureza do vício –submetendo-se à disciplina geral das nulidadesno campo probatório e havendo a repetição deatos, quando necessário. Assim, por exemplo,se, por ocasião da juntada aos autos das peçasque documentam a prova emprestada, não seder vista às partes (ou à parte adversária da querequereu o traslado), a decisão que nela sefundar será nula, por ofensa ao contraditório.Todavia e por óbvio, a conseqüência não será ainadmissibilidade do empréstimo, mas a cassa-ção do ato decisório e a concessão da oportuni-dade do contraditório que antes faltou.

7. Irrelevância dos possíveisdestinos do processo anterior

O resultado do processo anterior, em simesmo, não repercute sobre a definição daadmissibilidade e eficácia da prova emprestada.

Assim, não importa qual foi a influência daprova no convencimento do juiz do primeiro pro-cesso. O que se transporta de um processo parao outro não é a convicção a que chegou o julga-dor e sim as peças que documentaram a produ-ção probatória43. Feito o traslado, o juiz dosegundo processo poderá chegar a conclusãodiversa da adotada pelo primeiro juiz relativa-mente à mesma prova. Por isso, é irrelevante seo processo anterior recebeu ou não julgamentode mérito e, em caso positivo, qual a valoraçãoque nele mereceu a prova objeto do empréstimo –até porque a regra geral é a de que não se reves-tem da autoridade da coisa julgada as conclu-sões acerca da existência ou inexistência de fatoscontidas na motivação da sentença (CPC, art.469, II). Pode-se até emprestar prova de processoque ainda nem se encerrou.

Havendo a extinção do processo sem julga-mento de mérito, só será vedado o empréstimo

quando os atos de produção da prova tiveremsido atingidos pelo vício que acarretou o fimanormal do feito. Mas tal não significa umrequisito para o empréstimo diferente dos jáindicados acima. Apenas se estará levando emconta a exigência de que a prova tenha sidoregularmente produzida no processo anterior(item 4, acima). O mesmo vale para o processoanulado. Apenas não se admitirá o empréstimose a anulação decorrer de vício em ato anterior eque constitua antecedente lógico à produçãoda prova44.

8. Empréstimoex officio de prova45

O juiz poderá determinar de ofício o emprés-timo de prova – observados os requisitos acimaexpostos. Aplica-se a regra do art. 130 do CPC.Nem se diga que, por conhecer de antemão oresultado probatório, sabendo a qual parte oempréstimo favorecerá, o juiz estaria violandoseu dever de imparcialidade. Basta inverter aquestão para demonstrar o erro desse argumen-to: deixando de determinar o empréstimo, o juizestará sendo parcial em favor daquele que seriaprejudicado pela prova.

Se a reconstituição dos fatos determinadade ofício vem a beneficiar quem tem razão, nãohá nisso infração ao dever de imparcialidade,mas o adequado cumprimento da função juris-dicional. A imparcialidade se concretiza pelaconcessão de iguais oportunidades aos litigan-tes e a consideração mais isenta possível deseus argumentos – e cessa aí. As vantagensque advêm no processo a alguma das partes,precisamente porque e na medida em que estatem razão, não são mais do que conseqüênciasda correta atuação imparcial.

Não fosse assim, toda vez que se emitisseprovimento jurisdicional ou se efetivasse medidaexecutiva em favor de um dos litigantes, faltariaimparcialidade. Na feliz expressão de Fazzalari,

43 ECHANDÍA. op. cit., p. 369.

44 Ibidem, p. 371-372, 375-376; LESSONA. op.cit., p. 21. A. Santos afirma possível o empréstimoapenas quando a anulação decorre de defeito emmomento subseqüente à atividade probatória (op. cit.,p. 318), não se apercebendo de que o vício pode estarem ato anterior à produção da prova sem que afete avalidade dessa, por não lhe ser um antecedente lógico.

45 O tema é examinado, à luz do dever de impar-cialidade, por Ivan Righi em Os poderes do juiz, que,inclusive, relata interessante caso com que se defron-tou, na condição de magistrado.

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o provimento jurisdicional é, nesse sentido,“squisitamente parziale, é tutto a favore di chiha ragione”46.

9. Prova produzida sob segredoda Justiça e prova obtida mediante

interceptação autorizadaCabe o exame de duas hipóteses particula-

res de empréstimo de prova, em que sua realiza-ção poderá importar violação de normas dedireito material.

Há processos que, em atenção ao direito àintimidade ou ao interesse público, têm suapublicidade restrita às partes e seus procurado-res (CF, art. 5 º, LX; CPC, art. 155; CPP, art. 792).

Alguém que seja terceiro em relação a talprocesso não poderá pleitear o empréstimo deprova nele produzida, por não ter conhecimentodo que nele ocorre. Se o tiver, poderá inclusiveestar caracterizado crime de quebra de segredoda Justiça (Lei 9.296/96, art. 10). No mesmo tipopenal, este terceiro incidirá quando, por contaprópria e independentemente de autorizaçãojudicial, trouxer para os autos do feito em que éparte cópia de termos que documentaram a pro-dução de prova em processo de publicidaderestrita. O empréstimo, nessa hipótese, caracte-rizará prova “ilícita” (v. item 5), vez que produzi-do em violação a direito de intimidade ou aointeresse público. Os documentos juntados pelaparte terão de ser desentranhados, sendo inuti-lizáveis no processo (v. item 6.1).

As partes do processo que tramita sob segre-do da Justiça não poderão pretender o emprés-timo de prova nele produzida para outro em quequalquer delas litigue contra terceiro – quandomenos, porque isso afrontaria a garantia do con-traditório (item 3.1).

Resta a hipótese do empréstimo de prova doprocesso de publicidade restrita para outro envol-vendo exatamente as mesmas partes. Põem-seduas alternativas: (a) constata-se que, emboraintegrante de processo que tramita sob segredoda Justiça, a prova não implica a necessidadede sigilo – trasladando-se-a, simplesmente; (b)ou, não sendo assim, passa a vigorar a publici-dade restrita às partes e seus procuradores tam-bém no processo para o qual a prova é empres-tada. Nesse último caso, o empréstimo não serápossível se o segundo processo envolver, comolitisconsorte ou assistente de qualquer daspartes, alguém que seja terceiro em relação ao

primeiro processo – a não ser que o segredo daJustiça esteja tutelando exclusivamente interesseda própria parte que pleiteia o empréstimo, aqual, assim, concorda em estender o conheci-mento da matéria sigilosa aos participantes dosegundo feito.

A Constituição autoriza excepcionalmente acolheita de provas mediante interceptação decomunicações previamente autorizada por ordemjudicial, para fins de investigação criminal ouinstrução processual penal (art. 5º, XII, partefinal). A Lei 9.296/96 disciplinou o tema, fixandoos pressupostos da interceptação e restringin-do-a à investigação ou comprovação de fatosque constituam crimes puníveis com reclusão(art. 2 º).

Indaga-se da possibilidade de, autorizada ainterceptação em determinado processo penal,emprestar-se para outro processo a prova obtidapor meio dela.

Na doutrina, há quem já tenha admitido talempréstimo – inclusive para processo civil, noqual o juiz jamais poderia diretamente autorizara interceptação telefônica47. Barbosa Moreiraresume os argumentos essenciais contra e afavor do empréstimo, nos seguintes termos:

“(...) pode argumentar-se que, uma vezrompido o sigilo, e por conseguinte sa-crificado o direito da parte à preservaçãoda intimidade, não faria sentido que con-tinuássemos a preocupar-nos com o riscode arrombar-se um cofre já aberto. Mas,por outro lado, talvez se objete que assimse acaba por condescender com autênti-ca fraude à Constituição. A prova ilícita,expulsa pela porta, voltaria a entrar pelajanela...”48.

Não cabe, aqui, examinar o acerto da opçãopolítica do Constituinte ao restringir drastica-mente o emprego das provas ilícitas e das hipó-teses de autorização de interceptações – mas,apenas, precisar o conteúdo da disciplina esta-belecida no ordenamento.

A definição da questão exige que se consi-dere o regime que a Lei 9.296/96 conferiu àsinterceptações autorizadas. É nos estritos limi-tes desse diploma que opera a exceção à garan-tia da inviolabilidade das comunicações. Tantoé assim que, antes, o STF havia negado validadea interceptações telefônicas, mesmo quandoautorizadas pelo juiz em processo penal, por

46 op. cit., p. 470.

47 NERY JR. Princípios... p. 145-146.48 A Constituição e as provas... p. 153.

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reputar que a parte final do inc. XII do art. 5º daCF dependia de regulamentação legislativa49. Oparágrafo único do art. 2º da Lei 9.296/96 impõeque, “em qualquer hipótese”, seja “descrita comclareza a situação objeto da investigação”. E,nos termos do art. 9º, toda a gravação que nãointeressar à prova de tal situação

“será inutilizada por decisão judicial,durante o inquérito, a instrução proces-sual, ou após esta, em virtude de requeri-mento do Ministério Público ou da parteinteressada”.

É, portanto, absolutamente inaproveitável paraqualquer outro fim a gravação que não diga res-peito à comprovação da situação apresentadaao juiz quando se requer a interceptação – aindaque se preste à comprovação de outros fatos.Essa mesma diretriz há de vigorar para as grava-ções que interessem à situação investigada esejam levadas ao processo penal: apenas nesteserão utilizáveis – não se permitindo seu empre-go para outras finalidades, mediante empréstimode prova.

Nos casos ora examinados, em que se con-cluiu pela negativa de empréstimo, fica tambémressalvada a possível aplicação do princípio daproporcionalidade (v. item 12).

10. Empréstimode depoimento pessoal

Enquanto espécie probatória, também odepoimento pessoal é passível de empréstimopara outro processo – desde que presentes osrequisitos antes examinados. Exclui-se dessa afir-mação a confissão ficta ou presumida, que, quan-do cabível, não é mais do que conseqüência dapreclusão da possibilidade de cumprimento deum ônus – sendo, por isso, necessariamentelimitada ao processo em que ocorre.

Carlo Lessona, depois de admitir o emprés-timo de confissão, apresenta grave ressalva aesse entendimento, mediante um exemplo: emprocesso em que se buscava provar ser nulo otestamento por demência do testador, “confes-sa-se” que o testamento foi feito em 17 de abril –e não 16, conforme constara do respectivo ins-trumento – com a certeza de que isso não teriarelevância para o feito; extinguindo-se o pro-cesso sem julgamento de mérito, o sucumbente

propôs nova ação, alegando falsa data do tes-tamento e invocando a anterior “confissão”.Para Lessona, a anterior admissão de que a datado testamento era falsa não poderia ser apro-veitada como confissão no segundo processo,porque faltaria o animus confitendi (a intençãode o depoente fornecer, por meio de sua decla-ração, uma prova para o adversário)50.

Não é de se concordar com tal assertiva. Aconfissão tem, em nosso sistema, natureza deato probatório. Não constitui ato de disposi-ção, de submissão à pretensão do adversário. Éprecisamente por isso que não se identifica como reconhecimento do pedido e a renúncia aodireito em que se funda a ação. No âmbito sub-jetivo do confitente, a única exigência que sepõe é a da voluntariedade da confissão – nosentido de ser livremente apresentada, sem quehaja coação. É irrelevante que o confitente tenhaa intenção de, ao admitir fatos como verdadei-ros, favorecer seu adversário. Daí que, presentesos demais requisitos (v. itens 3 e 4), pode sertrasladado para um segundo processo, servindocomo confissão, o termo de depoimento pessoalem que a parte admitiu como verdadeiros fatosque, para o primeiro processo, eram irrelevantes.

Pondere-se, entretanto, que, como as demaisfontes probatórias, a confissão tem valor relati-vo, submetendo-se à avaliação livre e motivadaque o juiz desenvolve (CPC, art. 131; CPP, arts.197 e 200).

A esse aspecto somam-se outros, no pro-cesso penal, que mitigam a importância da con-fissão emprestada. O acusado tem o direito aointerrogatório. Este, mais do que ato de instru-ção, é ato de defesa: é a oportunidade que se dáao réu do processo penal de apresentar direta epessoalmente ao juiz sua versão dos fatos. Afalta desse ato acarreta a nulidade do processo(CPP, art. 564, III, e)51. Assim, e mesmo quandotrazido de empréstimo o depoimento do acusa-do prestado em outro processo, é indispensá-vel a realização do interrogatório – ocasião emque inclusive o réu será inicialmente informadode seu direito de permanecer em silêncio (CF,art. 5º, LXIII). Além disso, a confissão é retratá-vel: o acusado pode negar fatos que antes ad-mitira – cabendo ao juiz, livre e motivadamente,ponderar qual versão deve prevalecer (CPP, art.200).

49 HC 69.912-RS. DJU 26 nov. 1993 (v. Infor-mativo STF, n. 36, 29 jun. 1996); Ação Penal 307(RTJ, n. 162 p. 3).

50 LESSONA, op. cit., p. 628.51 Vede, por todos: GRECO Fº, op. cit., p. 200;

MARQUES. Elementos... v. 2, p. 321; GRINOVER,FERNANDES, GOMES Fº, op. cit., p. 71.

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11. A recente disciplina da juntada deverbali no processo penal italiano

O CPP italiano de 1988, na parte destinada àprova documental, disciplinou a admissibilida-de da juntada de verbali (termos a que se redu-zem determinados atos processuais, inclusive acolheita de certas provas) de outros processos(art. 238, comma 1º a 3º). O dispositivo não sig-nifica a regulamentação integral da prova em-prestada, pois nem toda prova se documentaem verbali.

Se os verbali foram produzidos em outroprocesso penal, a admissibilidade de sua junta-da submete-se aos seguintes requisitos: (a) de-vem retratar atos desenvolvidos com as garan-tias devidas para valer como prova. Como ob-serva Grevi, já esse requisito exclui as provasproduzidas em audiências ou inquéritos preli-minares52; (b) o traslado tem de ser consentidopor ambas as partes, que renunciam ao direitode elaborar tal prova no processo em curso.

Caso os verbali tenham sido produzidos emprocesso civil, sua juntada aos autos do pro-cesso penal só é possível se o processo de ori-gem já tiver sido definido com sentença transi-tada em julgado. Siracusano destaca que a con-vicção acerca das provas formada no primeiroprocesso não vincula o julgador do segundo53.

Por fim, os verbali que documentam atosque “não são repetíveis” têm seu traslado per-mitido independentemente desses requisitos.

Embora as normas ora noticiadas estejamprevistas apenas para o processo penal, é ine-gável sua repercussão (por analogia ou aplica-ção subsidiária) sobre o processo civil italiano.Assim, Proto Pisani, depois de, em princípio,negar o cabimento do empréstimo de prova noprocesso civil, admite que a nova disciplina es-tabelecida para o processo penal “è destinata ariaprire e a porre su nuove basi di diritto posi-tivo il problema”54.

12. Conclusão: funções e fundamentosda prova emprestada – notas finaissobre sua admissibilidade e valor –

a proporcionalidadeA função primeira e imediata do empréstimo

da prova é a economia processual. Busca evitara repetição desnecessária de atos a fim de que,

com menor dispêndio de tempo e recursos ma-teriais, o processo seja mais acessível a todos(é aplicação do célebre “princípio econômico”,formativo do processo). Sendo essa a funçãonormal da prova emprestada, impõem-se, comrigor, a observância dos requisitos antes mencio-nados e a sanção por seu descumprimento. Afi-nal, a pura e simples economia processual nãojustificaria o olvido dos valores constitucionaisindicados acima. Também por ser essa a funçãoprimária da prova emprestada, justifica-se adiferença de seu regime – em determinadospontos – no processo penal e civil, precisamenteem virtude da diversidade de valores envolvidosem um e outro.

Dentro dos parâmetros antes delineados, éa economia processual, somada à circunstânciade que nenhuma garantia constitucional estásendo violada, que autoriza o empréstimo daprova a despeito de inexistir sua previsãogenérica no ordenamento. Como observavaCouture – exatamente ao analisar a provaemprestada –, a admissão de um meio de provanão depende tanto de sua expressa previsãolegal, quanto de sua consonância com os valo-res constitucionais55.

Assim, preenchidos os pressupostos es-pecíficos e genéricos, a parte tem direito a quese proceda ao empréstimo. Nessa hipótese, asimples possibilidade de sua reprodução não émotivo para a inadmissão.

Isso não significa, contudo, que a prova em-prestada receberá sempre, absoluta e neces-sariamente, o valor que talvez possuísse em suaessência originária. Também não é correto dizerque, mesmo sendo admissível, ela não poderájamais assumir tal valor. O juiz, no caso concretoe motivadamente, conferir-lhe-á o valor que elamereça. Poderá até determinar que se repita aprova. Mas nisso, aliás, a prova trasladada nãose diferencia dos outros meios probatórios: emqualquer caso, o juiz, concreta e fundamentada-mente, avaliará a prova conforme sua convic-ção, podendo mandar repeti-la.

Por outro lado, ausentes os requisitos cons-titucionais para sua admissão, não é concebívelnem mesmo sua permanência nos autos dosegundo processo. Não parece acertada a afir-mativa de que, em tais situações, poderia seraproveitada como “simples indício” ou “argu-mento de prova”56.

52 Prove, p. 200.53 Le prove, p. 439.54 Lezioni... p. 481.

55 Op. cit., p. 255.56 Admitem, nesses termos, o empréstimo de

prova ofensivo a garantias processuais, entre outros:

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Basta que se considere o significado de “in-dício”: é o fato (“secundário”) já conhecido quepossibilita, mediante procedimento lógico (“pre-sunção”), a conclusão quanto à existência ouinexistência de outro fato (“primário”). Quandose fala em “prova indiciária”, está a referir-se aomeio probatório que demonstra a existência doindício (a “prova do fato secundário”) ou à pró-pria presunção. Então, a diferença entre “provadireta” e “prova indiciária” (ou indireta) não seencontra primordialmente na maior ou menoridoneidade de uma ou outra. Reside no objetosobre o qual recaem: a primeira, diretamentesobre a afirmação atinente ao fato principal,“constitutivo, impeditivo ou extintivo” do direi-to em discussão (“A causou lesões corporaisem B”; “X é pai de Y”); a segunda, sobre a afir-mação de um fato que permite conclusão lógica,mais ou menos segura, sobre a existência, ounão, do fato principal (“A estava em outro paísno momento em que B foi agredido”; “X é abso-lutamente impotente”). Ora, a prova que se pre-tende emprestar pode ter por objeto tanto a afir-mação de fato principal quanto de fato secun-dário. Nesse sentido, sempre poderá ser prova“direta” ou “indireta” (“indiciária”). Não é a cir-cunstância de não se preencherem os requisitospara seu empréstimo que transmudará seuobjeto.

A tese ora criticada pura e simplesmentetorna utilizável prova inconstitucional: a afirma-ção de que ela pode ser utilizada como indício éapenas um primeiro passo; passo seguinte e ine-vitável é o reconhecimento de que, em face dolivre convencimento, também tal “indício” podeembasar a decisão do juiz. Daí que o resultadofinal será o aproveitamento dessa prova, comooutra qualquer. Nem se diga que, em tais casos,a prova inconstitucional serviria apenas para“corroborar” outros elementos probatórios, poisde duas uma: ou bem esses elementos probató-rios por si só já bastariam (e então a prova incons-titucional seria até dispensável, não havendorazão para permanecer nos autos); ou tais ele-mentos seriam insuficientes e precisamente aprova inconstitucional é que faria a diferença(ou seja, estaria sendo aproveitada como ele-mento decisivo – em frontal colisão com adeterminação constitucional de inaproveitabili-dade). Enfim, a manutenção da prova inconsti-tucional nos autos como “simples indício” acaba

servindo de expediente para burlar a vedaçãoao seu emprego57.

Ocorre que, eventualmente, o empréstimo deprova não se destina apenas à economia pro-cessual. Há casos em que a prova é irrepetívelou, quando menos, sua repetição só se faria aum custo bastante alto e despropositado. Aprova emprestada, então, assume função diversae especial: evitar a perda da prova irrepetível oude difícil repetição. Seu fundamento passa a sero próprio direito à prova – radicalmente ligado àampla defesa e ao acesso à jurisdição: ou permi-te-se o traslado ou priva-se a parte de provarsua razão.

Em tais situações, não estando presentesos requisitos constitucionais da prova empres-tada, surgirá conflito de valores igualmente fun-damentais. Caso admitido o empréstimo, sairãosacrificadas as garantias que estão à base da-queles requisitos. Na hipótese contrária, o direitoà prova e os que lhe servem de supedâneo éque sofrerão o prejuízo.

A única solução concebível será a aplica-ção do princípio da proporcionalidade. Taisvalores (e também os que estão em jogo nospróprios pólos da situação controvertida, obje-to do processo) terão de ser ponderados demodo a se verificar quais entre eles são os mais“urgentes e fundamentais” no caso concreto58.

Por isso, não se descarta, em termos absolu-tos, a admissão da prova emprestada que nãopreencha os requisitos antes mencionados.Outras situações-limite semelhantes à oraexposta poderão surgir e a admissão do trasladodestinar-se-á a evitar resultados desarrazoadose desproporcionais. É sob essa ótica que, em

LESSONA, op. cit., p. 15, 31, 32-33; ECHANDÍA,op. cit., p. 374; SANTOS, A. op. cit., p. 307, 312-313; ARAGÃO, op. cit., p. 62.

57 Confira-se panorama jurisprudencial acerca dasprovas ilegalmente obtidas em processo penal apre-sentado por Scarance Fernandes e Magalhães GomesFº (Os resultados... esp. p. 94): em vários casos, adespeito de se reconhecer a invalidade da confissãoexclusivamente perante a polícia, admitiu-se-a sob oargumento de que foi corroborada por outros ele-mentos.

58 Sobre o princípio da proporcionalidade (Verhäl-tnismässigkeitprinzip ), vede por todos Larenz,Metodologia... p. 490. Quanto à sua aplicação emtema de provas, confiram-se, entre outros: ARAGÃO,op. cit., p. 80; GRINOVER, FERNANDES GOMESF.º, op. cit., p. 115-116, 119-120; MOREIRA,Barbosa. A Constituição e as provas... passim. Nestasduas últimas obras, há referências jurisprudenciais,inclusive do STF. Ainda que sem referir-se expressa-mente ao princípio, Barbosa Moreira dele faz aplica-ção precisamente no tema da prova emprestada, naconferência “Provas atípicas” (p. 125).

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muitos casos, justificar-se-á o transporte deprova favorável ao acusado, mas que não pre-enche as condições iniciais de admissão. Tam-bém assim, a prova produzida em processo ouprocedimento administrativo desfavorável àprópria administração poderá ser aproveitada.

E, em todas essas hipóteses, admitido o em-préstimo, caberá ao juiz, motivadamente, dar àprova o valor que, em concreto, ela mereça.

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1. IntroduçãoConforme ocorre com os fatos históricos,

também as grandes construções jurídicas sópodem ter a devida valoração a posteriori. Háalguns processos, no entanto, que, não obs-tante a cautela recomendada pelo devenir histó-rico, podem, de imediato, projetar-se como exem-plares de magna criação.

O direito comunitário, recentemente cons-truído no âmbito da União Européia, é, nessesentido, um vigoroso e rutilante exemplo.Assente mais que em tratados e normativascomunitárias, o direito das comunidades euro-péias tem, em verdade, se desenvolvido na efeti-vidade e realismo das decisões da Corte doLuxemburgo (o tribunal de justiça supranacio-nal criado pelo Tratado de Roma de 25 de marçode 1957), que, ampliando os horizontes do quefora previsto pacticiamente, deu à Europa inte-grada, por meio da jurisprudência, a dinâmica ea consistência garantidoras do seu contingentesucesso histórico.

A construção de um direito não-estatal, nosentido de gerado além das instâncias internas

A construção jurisprudencial do direitocomunitário europeu1

JORGE FONTOURA

Jorge Fontoura é Doutor em Direito Internacionalpela Universidade de Parma, Itália, e Universidade deSão Paulo, é Consultor do Senado Federal e daComissão Parlamentar do Mercosul, Membro-Consultor do Conselho Federal da OAB em Brasília-DF; foi Professor dos Cursos de Pós-graduação daUnB e da UFPR, e Professor-titular do Instituto RioBranco, do Ministério das Relações Exteriores.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Direito comunitário originárioe derivado. 3. A jurisprudência como metamorfoseessencial do direito europeu. 4. Primazia: o acórdãoCosta/Enel. 5. Efeito direto: o acórdão Van Geend enLoos. 6. O direito comunitário de segunda geração:o acórdão Francovich. 7. A natureza do caso Fran-covich.

1 Texto revisto e anotado da conferência proferidano XV Seminário Roma-Brasília, UnB / UniversidadeLa Sapienza, de Roma, (“Latinidade e IntegraçõesJurídicas e Continentais”), Brasília, 29 de agosto del998.

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de municipal law e não proveniente da negocia-ção estatal soberana e expressa, pelo viés dotratado internacional, ou mais remotamente peloconsentimento tácito com opinio juris, na formado costume, conforme vem-se construindo odireito comunitário europeu, é prática inusitadae extravagante sob o ponto de vista do direitointernacional público clássico, por excelência“estatólatra” e “soberanófilo”. Nesse sentido,seu ineditismo e atipia têm sido objeto de críticasde grande densidade doutrinária, com o trabalhode interpretação construtiva e aplicação intera-tiva das normativas comunitárias européias pelaCorte de Justiça, sendo considerado por muitosjuristas como o colapso branco da velha demo-cracia iluminista, com a imprecação de ter a UniãoEuropéia se construído à revelia dos parlamen-tos, sob a égide ilegítima da magistratura comu-nitária, em uma inaceitável Europe des juges.

Não há como se negar, de fato, a substancialnatureza pretoriana da construção do direitocomunitário, cujos princípios basilares vêmsendo deduzidos a partir da jurisprudêncialuxemburguesa, proferida por quinze juízes que,formal e materialmente, não representam seusEstados, senão o compromisso apátrida da con-solidação e do aprofundamento comunitários.Os quinze juízes e os nove advogados-geraisque compõem a Corte são nomeados de comumacordo pelos governos, por seis anos renová-veis por mais seis. De fato, cada um dos Estados-membros designa um juiz, e os cinco maiorespaíses, Alemanha, França, Itália, Reino Unido eEspanha, dispõem cada um de um advogado-geral permanente, estabelecendo-se um sistemade rodízio para os quatro demais postos. Con-tando com três assessores pessoais, les réfé-rendaires, os magistrados comunitários usam oFrancês como idioma de trabalho, com a culturajurídico-comunitária impondo-se de forma a nãoidentificá-los como representantes ou prepostosnacionais.

O aperfeiçoamento das relações políticas,econômicas e culturais dos Estados comunitá-rios europeus tem sido, com efeito, rigidamenteconduzido por uma neonata ordem jurídica, detodo inovadora em seus princípios e propósitos.A maciça adesão ao processo de integraçãoeuropéia que se tem verificado, o seu inexorávelsucesso político, recomenda, no entanto, dentrode uma concepção da Ciência do Direito comodúctil caudatária dos influxos sociais, antes queinflexível e dogmática condutora das socieda-des, que à Europe des juges se contraponha aidéia correlata, porém distinta em essência, deEurope du Droit Communautaire.

2. Direito comunitáriooriginário e derivado

A novicidade e atipia do fenômeno de inte-gração de Estados soberanos com o objetivode formar blocos econômicos, surgido a partirdo Tratado de Paris, de 18 de abril de 1951, esubstancialmente sofisticado com o Tratado deRoma, que instituiu as Comunidades Européias,em 25 de março de 1957, determinaram a imediatacriação do Direito Comunitário Europeu. Tomandopor referencial o modelo adotado, que poderia,grosso modo, ser seguido em análogos proces-sos de integração, o ordenamento jurídico comu-nitário comportaria três grupos de normas jurí-dicas, diferenciados a partir de suas fontes.

O primeiro grupo, dito direito comunitáriooriginário ou primário, seria composto pelasnormas previstas nos tratados de integração,incluindo seus eventuais protocolos modifica-tivos ou complementares. Trata-se, a toda evi-dência, de normas que, enquanto inseridas emtratados geradores de obrigações recíprocasentre Estados soberanos, diriam respeito clara-mente ao direito internacional público tout court,em cujo âmbito podem receber o específico trata-mento e valoração. Não é sem mais razão que osprimeiros estudiosos de direito comunitário sãooriundos da área do direito público externo, coma percepção para o approche com as questõesjurídico-comunitárias sendo eminentemente de“direito das gentes”. Trata-se, porém, de meroinício, logo superado pelo turbilhão de deman-das que se vão formulando. Veja-se, por exem-plo, o caso do corriqueiro particularismo dosdireitos comerciais de países comunitários: oque fazer diante de títulos de crédito específi-cos de um único direito comercial, na emergênciade um mercado onde circulam livremente bens,serviços, pessoas e capitais?

Cumpre assinalar que, nesse sentido, umdos fatores complicadores para o entendimentojurídico da integração reside, em nosso País, nopouco estudo que temos dedicado ao direitointernacional público, considerado por signifi-cativa parte da comunidade jurídica como “per-fumaria” de pouca ou nenhuma utilidade. Celsode Albuquerque Mello registra, com muita pro-priedade, no prefácio da 8ª edição de seu anto-lógico Curso de Direito Internacional Público,Editora Renovar, o surrealismo da propaladaabertura do Brasil para o mundo, em oposição àcarência quase que absoluta de conhecimentosjurídicos para a empreitada. Em verdade, ainda épossível o bacharelado jurídico em prestigiosas

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faculdades brasileiras sem cursar-se a disciplinade direito internacional público, meramentefacultativa ou mesmo “não oferecida”, não obs-tante ter sido incluída no currículo mínimo dagraduação em Direito, do Ministério da Educa-ção, em l994.

No segundo grupo de normas jurídicas ati-nentes a um proposto direito comunitário, agorade natureza derivada, teríamos aquelas que sereferem ao ordenamento jurídico interno dosorganismos comunitários comuns. Se algumasdessas normas podem derivar do texto dos tra-tados, é claro que outras tantas promanam dospróprios organismos comunitários, no sentidode disciplinarem suas atividades internas e seufuncionamento geral. Do ponto de vista formal,tal normatividade representa um sistema clara-mente distinto daquele derivado dos tratados,destinando-se ao âmbito restrito do organismoinstitucional comunitário. O estudo dessesegundo grupo apresenta virtualmente maiorcomplexidade, não propriamente pelo seu ine-ditismo, mas pelo fato de tais normas exprimi-rem-se por meio de regras interna corporis enão em relação a direitos e deveres recíprocosde prosaicos sujeitos de direito internacionalpúblico. Com toda a cautela que deve derivardas comparações fáceis, poderíamos aqui entre-ver o nítido delinear de um incipiente direitoadministrativo intracomunitário.

No terceiro grupo, teríamos as normas legis-ladas pelos próprios organismos e autoridadescomunitárias, nos limites de suas competênciasde elaboração normativa previstas pelos trata-dos institutivos e eventuais protocolos comple-mentares, destinadas a serem aplicadas nosterritórios dos Estados comunitários, em cujosespaços jurisdicionáveis se devem concretizar.

No modelo da União Européia, seriam exem-plos de normas de tal espécie os Regulamentose as Diretivas, provenientes do Conselho e daComissão Européia, nos termos do art. 189 doTratado de Roma de 25 de março de 1957.

Em que pese estarmos há poucas décadasdo início e ainda em pleno processo de consoli-dação e aprofundamento da Europa de institui-ções comuns, já é, no entanto, possível asseverarque a construção comunitária é fundamental-mente um processo de construção jurídica. Etambém é a experiência recente que tem demons-trado a vitalidade e a oportunidade da jurispru-dência, diante do silêncio obsequioso dostratados em relação a matérias vitais ou politica-mente indesejáveis em determinado momentohistórico, o que não vincula a posterior facul-

dade decisória de uma instância judicial supra-nacional.

As características originárias do direitocomunitário europeu deduzidas a partir do Tra-tado de Roma têm sido identificadas comoautonomia, obrigatoriedade e uniformidade deaplicação e interpretação. O modelo seguidopelo direito europeu para conformar tal unifor-midade foi surpreendente: valendo-se do insti-tuto que se constitui na chave mestra ou válvulaestabilizadora de todo o direito comunitário, osjuízes nacionais, que são, em última análise, seusefetivos aplicadores, podem, sempre que amatéria permita, consultar, por via “pré-judicial”,a Corte do Luxemburgo, para que esta pronun-cie a correta interpretação aplicável ao caso con-creto. O ineditismo do julgamento com via “pré-judicial”, bem como os princípios de indepen-dência e livre convicção do juiz que adotamos,seguramente nos distanciam em muito de talsolução. O julgamento com a consulta préviafeita pelo juiz singular (facultativa), ou colegia-do de última instância (obrigatória), em buscade um prius logico que conforme a sentença,por mais extraordinário que possa parecer, já éaplicado corriqueiramente na União Européia,conforme ordena o emblemático art. 177 do Tra-tado de Roma, assim redigido em sua versãooficial para a língua portuguesa:

“O Tribunal de Justiça é competentepara decidir a título prejudicial :

a) Sobre a interpretação do presenteTratado;

b) Sobre a validade e interpretação dosactos adoptados pelas Instituições daComunidade;

c) Sobre a interpretação dos estatutosdos organismos criados por um acto doConselho, desde que estes estatutos oprevejam.

Sempre que uma questão desta natu-reza seja suscitada perante qualquerórgão jurisdicional de um dos Estados-membros, esse órgão pode, se considerarque uma decisão sobre essa questão énecessária ao julgamento da causa, pedirao Tribunal de Justiça que sobre ela sepronuncie.

Sempre que uma questão desta natu-reza seja suscitada em processo pendenteperante um órgão jurisdicional nacionalcujas decisões não sejam susceptíveis de

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recurso judicial previsto no direito inter-no, esse órgão é obrigado a submeter aquestão ao Tribunal de Justiça”.

Certamente a parte final do dispositivo, queconstrange à via prejudicial em casos de julga-mentos nacionais de última instância (“...tallegiurisdizione è tenuta a... “, no texto originaldo Tratado de Roma), é a que mais estupefaz eintriga a nossa visão latino-americana e, logo,iberogênica de exercício da jurisdição.

3. A jurisprudência como metamorfoseessencial do direito europeu

Às características originárias, subsumidasda interpretação literal do Tratado de Roma e deseus complementos institucionais2, têm-sesomado aquelas que, forjadas na jurisprudên-cia luxemburguesa, apresentam-se como sinequibus non à efetividade da integração contidano projeto europeu, a saber : a primazia dodireito comunitário sobre os ordenamentos jurí-dicos internos e o seu efeito direto sem osmecanismos de incorporação aos direitos esta-tais. Pelo seu caráter inusitado, essas inovadorase surpreendentes clivagens têm sido designadascomo direito comunitário de primeira geração,distinguindo-se do segundo grande passojurisprudencial dado pela Corte do Luxemburgo,ao afirmar o princípio da responsabilidade doEstado pela violação do direito comunitário,ainda que em relação aos seus próprios jurisdi-cionados, deduzido a partir do Acórdão Fran-covich, de 19 de novembro de 199l, e que vemsendo considerado direito comunitário desegunda geração3.

4. Primazia:o acórdão Costa /Enel

No silêncio dos tratados institutivos dasentão Comunidades Européias quanto à hierar-quia das normas comunitárias em relação aosordenamentos jurídicos internos (o que segura-mente foi deixado pelo legislador comunitáriopara ser construído pela tessitura inquestionáveldos fatos, em uma insuspeita inspiração decommon law)4, já na primeira metade dos anos60, a Corte do Luxemburgo constrói e prolata oprincípio da primazia do direito comunitário. Comisso, consolida-se o entendimento de quenormas internas posteriores não poderiamrevogar o direito comunitário, fosse ele originárioou derivado.

Tratou-se do histórico Acórdão Costa/Enel,em reenvio procedente da Itália, proferido em 15de julho de 1964, que definiu o particularismodo direito comunitário em relação ao direitointernacional clássico:

“... le transfert opéré par les États, deleur ordre juridique interne au profit del’ordre juridique communautaire, desdroits et obligations correspondant auxdispositions du traité, entaîne donc unelimitation définitive de leurs droits sou-verains contre laquelle ne saurait pré-valoir un acte unilatéral ultérieurincompatible avec la notion de commu-nauté.”5

Dando contornos mais definitivos à carac-terística da primazia, o Aresto Simmenthal, de 9de março de 1978, sobre questão “pré-judicial”proveniente do Tribunal de Susa, na Itália6, emcausa da Amministrazione delle Finanze contra2 Além do pré-existente Tratado de Paris de 18

de abril de l951, que criou a Comunidade do Carvão edo Aço, CECA, cumpre elencar os Acordos de Loméde 28 de fevereiro de 1975, o Ato Único Europeu de28 de fevereiro de l986, o Tratado Schëngen de 19 dejunho de 1990, o Tratado de Maastricht de 7 de feve-reiro de 1992 e o Tratado de Amsterdam de 2 deoutubro de 1997.

3 Ainda que não devidamente elaborado doutri-nariamente, em muito devido a sua total novicidade, aobrigação do juiz nacional aplicar “de oficio” o direitocomunitário, independendo da invocação das partes,passa a constituir-se no mais recente desdobramentojurisprudencial do direito comunitário europeu, apartir dos Acórdãos Jeroën Von Schijndel”, (ProcessosC-430/93 e C-431/93) e Peterbroeck (Processo C-312/93). Prolatados em 14 de dezembro de 1995, osdois rumorosos acórdãos projetam-se como a maisrecente e instigante questão jurídico-comunitária,

fadada a transportar-nos a um hipotético direitocomunitário de novíssima ou terceira geração.

4 “Sans doute, les fondateurs des communautésont voulu faire prouve de prudence politique et lesTraités de Paris et de Rome ne contiennent aucunedispositions expresse du type allemand : ‘bundesrechtbritchts landesrecht’, le droit federal brise le droitlocal – consacrant la primauté. Mais l’absence d’unerègle explicite sur ce point sur les traités ne préjugeévidemment pas de souhait implicite des pèresfondacteurs de l’Europe de voir consacré la supérioritédu droit communautaire”, BERRANGER, Thibautde. Constitucions nationales et construccion commu-nautaire. Paris : Librairie Générale de Droit et Juris-prudence.

5 CJCE. Processo nº 6/64. Recueil, p. 1141.6 CJCE. Processo nº 106/77. Recueil, p. 629.

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S.p.a. Simmenthal, determinou que o juiz nacio-nal encarregado de aplicar, no âmbito da suacompetência, a disposição de direito comunitá-rio tem a obrigação de garantir a plena eficáciade tais normas, deixando de aplicar, por iniciativaprópria, qualquer disposição contrastante dalegislação nacional, ainda que posterior, semsolicitar ou esperar a prévia modificação legis-lativa ou mediante qualquer outro procedimentoconstitucional7.

Considerada a característica mais sacrílegado direito comunitário, sob o ponto de vista daconcepção clássica do Direito, a primazia doordenamento jurídico comunitário acabou porincorporar-se pacificamente à cultura jurídicaeuropéia, tendo a jurisprudência comunitáriarecebido o respaldo de interpretações benignasde alguns textos constitucionais de Estadoscomunitários, como ocorreu na França, onde aarraigada concepção cartesiana de soberania foisuplantada pela intelecção pró-integração do art.55 da Constituição da V República8.

Também merece destaque o caso da Itália,onde reiterados arestos da Corte de Cassaçãoconsagraram o primado do direito comunitário,apoiados na interpretação extensiva do art. 11da Constituição de 1946, historicamente desti-nado a permitir a adesão da República Italianaàs Nações Unidas, no delicado contexto dosegundo pós-guerra9.

Vale considerar, quanto à questão da prima-zia, que o direito comunitário suscita insightstotalmente novos para um dos mais tradicionais

temas debatidos no direito público clássico eque diz respeito às relações de potencial conflitoentre o direito interno e o direito internacional,ou, dialeticamente, apenas não-interno nacontingência do direito comunitário europeu.Diante dos novos quadros que se verificam naUnião Européia, tendentes a aplicarem-se emvirtuais direitos comunitários de blocos econô-micos que à imagem e semelhança da Europa sepretendam mercados comuns, as tradicionaisdoutrinas do monismo e do dualismo, bem comoas antológicas teses de Tripel e Anzziloti, pare-cem irremediavelmente superadas por demandasinconcebíveis há apenas poucas décadas.

5. Efeito direto: o acórdãoVan Geend en Loos

O histórico processo Van Geend en Loos,julgado em 5 de fevereiro de 1963 e que definejurisprudencialmente os termos do efeito diretodo direito comunitário europeu, tem sido curiosa-mente considerado em doutrina, pese embora ocapricho cronológico de seu anterior julgamentoem relação ao caso Costa/Enel (15 de julho de1964), como corolário e decorrência inelutávelda primazia.

Não expressamente previsto como princípiogeral no Tratado de Roma, a dispensa da passa-gem do direito comunitário derivado (não conti-do nos tratados institutivos e seus eventuaisprotocolos adicionais) pelos tradicionais me-canismos de incorporação e recepção do direitointerno, o efeito direto logo se consagrou nacultura jurídica comunitária, implementado pelajurisprudência do pretório luxemburguês.

Em verdade, o art. 189, c, do Tratado deRoma, ao estipular que os regulamentos comu-nitários eram diretamente aplicáveis no ordena-mento jurídico interno, deixou um imenso hiatoem relação a todas as demais normativas comu-nitárias, em especial as diretivas, o que conduziua Corte do Luxemburgo a realizar uma efetivaconstrução pretoriana do efeito direto. O pontode partida, o caso Van Geend en Loos, estabele-ceu a faculdade que os particulares têm deinvocar o direito comunitário de qualquer natu-reza, já perante suas jurisdições nacionais, inde-pendendo da eventual incorporação que se lhetenha conferido mediante os trâmites constitu-cionais ordinários.

Como clara decorrência doutrinária da pri-mazia, o efeito direto recebeu definição maisacabada também pelo viés jurisprudencial, nos

7 “Il giudice nazionale incaricato de applicarenell’ambito della propria competenza le disposizionidi diritto comunitario há l’obbligo di garantire la pienaefficacia de tali normi, disaplicando all’occorenza, dipropria iniziativa, qualsiase disposizione contrastantedella legislazione nazionale, anche posteriore, senzadoverne chiedere o attendere la previa remozione invia legislativa o mediante qualsiasi altro procedimentocostituzionale”. POCCAR, Fausto. Lezioni di dirittodelle comunità europee. 2. ed. Milano : Giuffrè, 1979.

8 “Art. 55 – Les traités ou accords régulièrmentratifiés ou approuvés ont dès leurs publication uneautorité superieure à celle des lois sous reserve, pourchaque accord ou traité, de son application parl’autre.”

9 “Art. 11 – L’Italia repudia la guerra come stru-mento di offesa alla libertà degli altri popoli e comemezzo di resoluzione delle controversie internazio-nali; consente, in condizioni di parità con le altre Stati,alle limitazioni de sovranità necessarie ad un ordina-mento che assicure la pace e la giustizia fra le Nazioni;promuove e favorisce le organizzazioni internazio-nali rivolte a tale scopo”.

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termos do Acórdão Simmenthal, prolatado em9 de março de 1978 :

“... a aplicabilidade direta significa que asregras de direito comunitário devem ope-rar a plenitude de seus efeitos de umamaneira uniforme em todos os Estados-membros, a partir de suas entradas emvigor e durante todas as suas vigências;da mesma forma, tais disposições são umafonte imediata dos direitos e obrigaçõespara todos, quer se tratem de Estados-membros ou particulares que sejam partesem relações jurídicas relevantes de DireitoComunitário. Tal efeito concerne ainda atodo magistrado, que, no âmbito da com-petência da qual é investido, possui, en-quanto órgão do Estado-membro, amissão de proteger os direitos conferidosaos particulares pelo Direito Comuni-tário”10.

A assimilação do princípio geral do efeitodireto das normas comunitárias deu-se de formalenta, porém incisiva. O direito inglês, especial-mente, viu-se obrigado a prodígios de criativi-dade e incomum desprendimento, no sentidode viabilizar juridicamente a presença do ReinoUnido como Estado comunitário. Para tal pro-pósito, o Europeans Communities Act, de l7 deoutubro de 1972, concebeu uma inventivafórmula de compromisso para conciliar o ances-tral dualismo britânico com as ingentes neces-sidades da integração. Nos termos de seu art. 2§ 1, por meio de um ato do Parlamento, incorpo-rava-se não só o Direito Comunitário então exis-tente, como ainda conformava-se uma espéciede incorporação antecipada de todas as norma-tivas comunitárias futuras, sem precedentes emqualquer ordenamento jurídico e mesmo nalógica jurídica, concedendo uma efetiva “cartabranca” à Comissão Européia. De certa forma,foi somente no recente episódio das “vacas lou-cas” que a opinião pública britânica pôde efeti-vamente compreender o significado e abrangên-cia do European Comunities Act11.

6. O direito comunitário de segundageração: o acórdão Francovich

Ao julgar o processo C-6/90, firmando o acór-dão de 19 de novembro de l991 (“Andrea Fran-covich e outros” versus “República Italiana”), aCorte de Justiça das Comunidades Européiasdecidiu que

“o direito comunitário impõe o princípiosegundo o qual os Estados-membros sãoobrigados a reparar os prejuízos causa-dos aos particulares pela violação dedireito comunitário que lhes sejam impu-táveis...”12.

A responsabilidade do Estado pelos prejuí-zos causados aos particulares, compreendidasas pessoas físicas ou jurídicas, não está previstaem nenhuma disposição dos Tratados de Romaou Maastricht, ou mesmo no Ato Único Euro-peu, ou em qualquer outro documento conven-cional da União Européia. Pelo mecanismo tra-dicional, a ação de incumprimento, solução quese depreende da intelecção dos artigos 169, 170e 171 do Tratado de Roma, constituía-se emremédio ineficaz, já que se resolvia, com poucaconvicção, a questão das sanções a serem apli-cadas a um Estado comunitário faltoso. Dianteda ação ou omissão estatal em relação ao direitocomunitário, tal Estado deveria tão somentetomar as medidas necessárias à execução doacórdão decorrente, em uma típica atitude desoft law, ou seja, a redação retórica e pouco efi-caz que se pode utilizar em tratados, dentro doespírito de coordenação ínsito ao direito inter-nacional público. Se, no entanto, o Estado nadafizesse, poderia apenas sofrer, como conse-qüência, ou uma nova ação por incumprimento,dessa vez baseada no acórdão não cumprido,ou uma ação de natureza política, levada a cabopelos Estado-membros insatisfeitos, o quepoderia ocorrer ou não, em função das peculia-ridades do caso objetivamente considerado. Apropósito, a Professora Marta Chantal da CunhaMachado Ribeiro afirmou em sua tese de douto-ramento, na Universidade de Coimbra, em 24 denovembro de 1995, que

“... tomando em consideração este pano-rama, a única conclusão possível era a deque o cumprimento do direito comunitá-rio e o próprio sucesso da construçãocomunitária dependia só e exclusivamenteda vontade ilimitada dos Estados-mem-bros. Fenômeno de direito internacional

10 CJCE. Processo nº 106/77. Recueil, 1978,p. 629.

11 Europeans Communities Act – “Art. 2. (1) Allsuch rights, powers, liabilities, oblligations andrestriccions from time to time created or arising by orunder the Treaties, and all such remedies and proce-dures from time to time provided by or under Treaties,or as in accordance with Treaties, are without furtherenactement to be given legal effect or used in theU.K. shall be recognised and available in law, and beenforced, allowed and followed accordingly ...”. CJCE.Processo nº 60/90. Recueil, p. I-573. 12 CJCE. Processo n. C-6/90. Recueil, p. 1-573.

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ainda que dotado de características pró-prias, o direito comunitário padecia aquide uma mesma fraqueza, mais concreta-mente, ausência de uma sanção eficazpara a violação do princípio pacta suntservanda”13.

Por outro lado, Joël Rideau lembra que asações ou inações dos Estados sempre tiveram apossibilidade de constituir violação do direitocomunitário, suscetíveis de engajar suas respon-sabilidades14, tendo inclusive a Corte de JustiçaComunitária se manifestado expressamente,conforme ocorreu no Acórdão Humblet, de 16de dezembro de 196015.

Também a revisão do Tratado de Maastricht,ao introduzir modificações no art. 171 do Tratadode Roma, criando sanções financeiras aos Esta-dos inadimplentes do direito comunitário, comintuito meramente dissuasório, não chegou, noentanto, a viabilizar efetivas indenizações emrelação a prejuízos sofridos por jurisdicionáveiscomunitários.

A Corte do Luxemburgo permaneceu, a pro-pósito, por longo tempo silenciosa sobre a efe-tivação da responsabilidade estatal, aparente-mente deixando à discrição dos Estados e deseus ordenamentos jurídicos uma eventual res-ponsabilização do poder público. Tratava-se, atoda evidência, de matéria altamente polêmica eque trazia à lume o delicado contexto da rema-nescente autoridade do Estado, vis-à-vis o cres-cente espaço de poder grangeado pela “EuropaComum”.

Conforme observou Denys Simon, desdesua cátedra na Universidade Robert Schuman,em Estrasburgo-França, o pano de fundo para aconstrução do princípio da responsabilidade doEstado pela violação do direito comunitário emrelação a particulares, por meio do eficaz iter daelaboração jurisprudencial, já havia sido adre-demente lançado, com a adoção dos princípiosda primazia e do efeito direto.

Ao julgar o Caso Francovich, em verdade emais amplamente, também o caso “Bonifaci eoutras” versus “República Italiana”, contemplan-do uma diretiva sobre tutela de empregados emcaso de falência do empregador, e inatendida

pela Itália, a Corte do Luxemburgo deu o terceiroe decisivo passo na construção jurisprudencialdo direito comunitário europeu.

7. A naturezado caso Francovich

Em janeiro de 1990, deram entrada na Secre-taria da Corte de Justiça das Comunidades Euro-péias, por despachos a quo de 9 de julho e 30 dedezembro de 1989, os processos C-6/90, Tribunalde Vicenza, Itália, e C-9/90, Tribunal de Basanodel Grapa, Itália, para efeitos de reenvio “pré-judicial”, nos termos do art. 177 do Tratado deRoma, trazendo à mesa judicial comunitária aquestão da correta interpretação do artigo 189,parágrafo 3º, do mesmo Tratado de Roma, bemcomo a Diretiva 80/987 CEE do Conselho, de 20de outubro de 198016. Tal norma comunitáriaderivada referia-se à harmonização legislativados Estados-membros no que concerne à pro-teção dos trabalhadores assalariados, em casode insolvência dos empregados, no sentido deconstituírem-se fundos imediatamente disponí-veis para a pronta e efetiva tutela econômicados cidadãos abruptamente desempregados.

O primeiro dos processos, C-6/90, referia-seà demanda de Andrea Francovich contra aRepública da Itália, fundado na seguinte causapetendi : o autor tinha trabalhado para a empresaCDN Elettronica S.n.C., em Vicenza, de 11 dejaneiro de 1983 a 7 de abril de 1984, tendo apenasrecebido pagamentos esporádicos por conta deseu salário, pelo que demandou o empregadorno Tribunal de Vicenza, que condenou a empre-sa, por decisão de 31 de janeiro de 1985, a pagarao reclamante a quantia de 6 milhões de lirasitalianas.

Na fase de execução da sentença, o oficialde justiça certificou a negativa de penhora, es-tando o estabelecimento fechado, dilapidado eabandonado, pelo que invocou então AndreaFrancovich o direito de obter as garantias con-templadas pela Diretiva comunitária que nãohavia sido cumprida pelo Estado italiano.

O processo C-9/90, que foi poucos mesesposterior ao caso Francovich, era totalmenteanálogo e dizia respeito à ação proposta porDanila Bonifaci e outras contra a empresa GaiaConfezioni S.r.L., declarada em situação falimen-tar em 5 de abril de 1985, sem possibilidades de

13 RIBEIRO, M. C. C. M., Da responsabilidadedo Estado pela violação do Direito comunitário.Coimbra : Almedina, l996.

14 RIDEAU, Joël. Droit Institutionnel de l’ Unionet des Communautés Européennes. 2. ed. Paris : Li-brairie Générale de Droit et de Jurisprudence, l996.

15 CJCE. Processo nº C - 6/60. Recueil, p. 1128.16 Jornal Oficial das Comunidades Européias, n.

L 253, p. 23, 20 out. 1980.

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indenizar as reclamantes. Da mesma forma, plei-teou-se então junto à Justiça italiana, no Tribu-nal de Basano del Grapa, diante da insolvênciada ré, a responsabilização da República Italianapor não ter obedecido à Diretiva 80/987, violan-do dessa forma o direito comunitário. Tal statusquaestio levou o juiz italiano a suspender ainstância, até que a Corte do Luxemburgo deci-disse, a título “pré-judicial”, a efetiva naturezada responsabilidade do Estado, diante da pre-tensão dos particulares destinatários do dano.

Com o reenvio pré-judicial à Corte de Luxem-burgo, procedido pela Justiça italiana, suspen-deu-se o julgamento até 19 de novembro de1991, quando da publicação do Acórdão Fran-covich, fadado historicamente a marcar a maisimportante evolução instrumental do direito dascomunidades européias.

Nos anos que se seguiram, inúmeras causasanálogas às demandas italianas foram trazidas àCorte Européia, com a responsabilidade doEstado sendo detalhadamente construída apartir da violação do direito comunitário, emespecial nos Acórdãos “Brasserie du Pêcheur”(processo nº C-46/93)17. Referindo não mais aindivíduos como vítimas de prejuízos materiaise sim a empresas, tivemos, no primeiro caso,uma cervejaria francesa demandando a Repú-blica Federal da Alemanha por danos sofridosdiante de barreiras não-tarifárias, que impedirama livre circulação de seu produto, em flagranteviolação do artigo 30 do Tratado de Roma, tendoo reenvio pré-judicial procedido da SupremaCorte Federal alemã. No segundo caso, originá-rio da High Court, Reino Unido, havia umademanda proposta por armadores espanhóis daempresa Factortame, que, tentando operar noReino Unido, foram impedidos, haja vista umasérie de exigências nacionais de domicílio e

residência de proprietários de navios, totalmenteextravagantes ao bom direito comunitário.

De toda a sorte, o princípio da responsabili-dade estatal, deduzida a partir do caso Franco-vich, o mais importante aperfeiçoamento instru-mental do Direito Europeu, consagra-se comoindiscutível conseqüência inerente ao sistemade tratados de construção e consolidação daEuropa de instituições comuns.

No momento em que o Mercosul parecedecididamente superar sua fase de decisõesseminais, para, como marca internacionalmentevencedora, afirmar-se na qualidade de efetivaterceira união aduaneira de toda a História (oZollverein, do processo de unificação alemã, eo Tratado de Roma das comunidades européiassão os dois outros casos relevantes), e diantedo inexorável aprofundamento das relaçõesentre os países signatários do concerto deAssunção de 26 de março de 1991, a conside-ração dos aspectos aqui abordados da constru-ção do direito comunitário europeu projeta-secom grande significado.

É certo que, nos processos de integração,não há modelos, e cada projeto é um conjuntopróprio de circunstâncias políticas, históricas emesmo geográficas. Não será a imagem e seme-lhança do modelo europeu de integração queirão garantir o sucesso da construção de blocoseconômicos, como as imensas dificuldades quevêm sendo enfrentadas pela ComunidadeAndina parecem demonstrar com clareza solar.Como, no entanto, na feliz expressão de EstevãoChaves de Rezende Martins, “... ninguém nasceem um mundo vazio de História”18, é imperiosoque, lançando os olhos para a experiência euro-péia, dela saibamos haurir a boa lição.

17 “L’importance de l’arrêt rendu par la Cour deJustice de 5 mars 1996 dans ces affaires mérite sensaucune doute une appréciation à souligner le souced’elaborer un systéme complet de protection du par-ticulier dans l’ordre juridique communautaire. En effetil compléte de manière decisive la construction par lejuge communautaire d’une veritable théorie de l’actionen responsabilité fondée sur la violation du droit com-munautaire par les autorités nationales, malgré le con-texte lui aussi particuliére, dans lequel s’inscrivaientles deux litiges au principal.

Dans les deux cas en effet, la violation du droitcommunautaire, à l’origine du préjudice allegué parles requerentes, trouvait sa source dans une omissionou une action du législatuer national”. RIGAUX,Anne. L’Arrêt Brasserie du Pêcheur : factortame III :le roi peut mal faire en droit communautaire. Stras-bourg : Juris Classeur, 1996.

18 Correio Braziliense, Estudos, fls. 38, edição de14 de novembro de 1995.

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Enquanto a Iugoslávia foi chefiada pelolegendário Marechal Tito, a disputa entre asetnias locais viveu um clima de enganosa tran-qüilidade. Isso se deveu ao enorme prestígiodaquela liderança carismática. E foi com o pro-pósito evidente de preservar a paz naquelaregião que o Parlamento iugoslavo fez consignar,na Constituição de 1963, este curioso exemplode casuísmo:

“Art. 220: O Presidente da Repúblicaé eleito consecutivamente por novalegislatura. No que concerne à eleiçãopara a Presidência da República, nãohá limitação para Josip Broz Tito”.

Era evidente que o desaparecimento de Titofaria ressurgir as velhas diferenças entre sérvios,bósnios e croatas. A morte de Tito foi o prelú-dio de uma carnificina gigantesca, que come-çou na Bósnia e se alastrou, com extrema vio-lência, pela província separatista do Kosovo.Esse fato, e outros que o antecederam, eviden-cia que o Conselho de Segurança da Organiza-ção das Nações Unidas, responsável pelosistema das defesas coletivas, já não vempodendo restringir esses confrontos, ou, pelomínimo, policiá-los adequadamente.

Recorde-se o generalizado genocídio quetem vitimado diversos países do continente afri-cano à força de guerras tribais internáveis. Re-corde-se o triste regime do apartheid, que resis-tiu demoradamente na África do Sul, e as atroci-dades praticadas entre judeus e árabes, e as vio-lências do governo mexicano contra os insurre-tos do sul do país, e os assassinatos na guerrado sem-fim, na Irlanda do Norte, e o terrorismoentre os povos bascos do norte da Espanha...Recorde-se toda essa barbárie colossal e ter-se-á,na visão da humanidade angustiada, o panora-ma apocalíptico de um mundo descomposto.

A soberania absoluta e o DireitoInternacional Público

OTTO EDUARDO VIZEU GIL

Otto Eduardo Vizeu Gil é advogado.

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Ao Conselho de Segurança das NaçõesUnidas foram reservados o policiamento e a re-gulação da convivência entre os povos. Em linhade princípio, sempre que alguma desavençapuser em risco a paz mundial, instaura-se a com-petência do Conselho de Segurança, que devee pode atuar as medidas que a Carta das NaçõesUnidas lhe confere para restabelecer a tranqüili-dade que lhe cabe preservar. O Capítulo VII daCarta, nos seus artigos 39 a 51, aponta as provi-dências ao atendimento dessa missão grandiosa,e que ora se restringem a simples recomenda-ções, de pequena densidade coativa, ora alcan-çam posturas mais energéticas, que podemchegar à intervenção armada. Mas sucede queessas medidas, costuradas pelos juristas quecompuseram a Carta das Nações Unidas, nãotêm logrado impedir o ingurgitamento das ten-sões, e a comunidade internacional parece já terreconhecido uma certa fadiga, ou, na melhor dashipóteses, um esgarçamento de todo o sistemade defesas coletivas, que carece, assim, urgen-temente corrigido.

Essa questão se vincula a duas componentesque se entrelaçam, e se completam. A primeiradiz com a abrangência das atribuições do Con-selho de Segurança da ONU, o que suscita aindagação sobre se a atuação desse organismoestá restrita à “internacionalidade” dos confli-tos, nos casos de agressões externas, de que éexemplo a invasão do Afeganistão pelas tropasrussas, ou, ao revés, se a competência do Con-selho de Segurança da ONU também podealcançar as dissensões domésticas que repre-sentem ou (1) um risco, ainda que eventual, aobem-estar das nações, ou (2) um gravame aosdireitos da pessoa humana, como o que resul-tou das hostilidades do governo iraquiano àsminorias curdas.

Mas tanto os conflitos de grandeza interna-cional como os que se confinam ao território deum Estado podem provocar, por força do efeitomultiplicador nascido de um mundo quase semfronteiras, conseqüências danosas que termi-nam por alcançar, mais ou menos diretamente,uma boa parte da humanidade.

O problema é que o Conselho de Segurançada ONU não vem guardando, no que pertine àsdimensões do conceito de soberania, um enten-dimento uniforme. A posição do órgão, ao con-trário, tem oscilado segundo os interesses polí-ticos prevalecentes, e a verdade é que turba-ções de gravidade igual – como a detonaçãodos artefatos atômicos em Biquini e Mururoa,de um lado, e na Índia e Paquistão, do outro

lado – não foram submetidas ao mesmo recei-tuário. Essa postura instável, que ora exarceba,aos extremos, a rigidez do conceito e ora o exer-cita de forma complacente, faz da soberania umconceito fugaz e nebuloso, e debilita, e deteriora,a autoridade do organismo a que se reservou ainstrumentação jurídica adequada à segurançados povos. Esse sistema de “dois pesos e duasmedidas” é censurável. E perigoso.

O Direito, entre os povos civilizados, temevoluído de forma constante, acelerada, mesmo,e nem as guerras têm paralisado esse processo.Isso tem acontecido tanto no Direito Privadoquanto no Direito Público, e contam-se às deze-nas os exemplos dessas novas conquistas, queparecem abranger todo o espectro da ciênciajurídica. No Direito de Família, os filhos naturaise os adulterinos já foram, há bastante tempo,equiparados à prole legítima, e a união estávelalcançou patamar constitucional e foi reconhe-cida como entidade familiar, gerando eficáciajurídica, e o divórcio já conquistou inúmeraslegislações, inclusive a nossa. No Direito dasObrigações, o clássico princípio de que o con-trato faz lei entre as partes (pacta sunt servan-da) vai cedendo a vez à doutrina que procuraenrijecer a excludente da excessiva onerosidadeda prestação sempre que essa onerosidade viera provocar um desequilíbrio na equação finan-ceira do contrato. No Direito Societário, já nãose contesta o comprometimento social da em-presa e a co-participação do empresário no con-texto global do processo de produção. A legiti-mação da propriedade, há algum tempo, estácondicionada à sua utilização em benefício dacomunidade. O princípio do due process of law,que o direito americano consagrou, vem sendogeneralizadamente observado e é preocupaçãoconstante dos tribunais. Essas conquistas, emuitas outras, estão já sedimentadas, e não maiscomportam atenuação ou recuo.

Mas isso não vem acontecendo na área doDireito Internacional Público, que avança e retro-cede com freqüência espantosa. A soberania éo atestado mais gritante dessa instabilidade, e oConselho de Segurança da ONU, em razão disso,está perdendo a sua credibilidade. Já não seconcebe que o poder político que se irradia dasoberania seja recebido como um poder abso-luto e impermeável. Não deve ser assim. A sobe-rania deve suportar a inflexão de uma atenuanteque a fragiliza, e que é a condicionante certa dapaz mundial. É o princípio do abuso do direito,que penetrou no Direito Privado e penetrou noDireito Público, e passou a ganhar corpo com

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as obras pioneiras de Josserand (De l’Abus desDroits. Paris, 1905), Campion (La Théorie del’Abus des Droits. Paris, 1925) e Saleilles (ThéorieGénérale des Obligations. 3. ed.), mas que vemencontrando aplicação tortuosa no campo doDireito Internacional Público: a soberania so-mente pode ser aceita como um direito sujeito aum certo policiamento, e são as medidas inseri-das nesse policiamento que vão poder conteros riscos das agressões e das atrocidades, eevitar as grandes catástrofes.

A ONU construiu um mecanismo jurídicoteoricamente adequado à segurança dos povos,mas o problema é que não os juristas os homensque se apresentam para exercitá-lo, mas, sim, ossenhores de todas as guerras, apenas compro-metidos com o enfoque político das questões. Ecomo o Conselho de Segurança está sob o con-trole de umas poucas potências, são os interes-ses dessas potências que vão matizar o direitode soberania, ora enrijecendo-o, para seguir areboque do princípio da autodeterminação, oraamenizando-o, para capacitá-lo a receber os in-fluxos do princípio salutar do abuso de direito.

A missão da ONU não se exaure no deslindedas questões internacionais. Além das atribui-ções de manter a paz e a segurança internacio-nais, acionando medidas tendentes a reprimiratos de agressão etc., a ONU tem outro objetivoimportantíssimo, expresso no inciso 3 do artigo1º da Carta, que é o de promover e estimular orespeito aos direitos humanos e às liberdadesfundamentais para todos, sem distinção de raça,sexo, língua ou religião. Assim, se estava inclusana competência daquele Conselho a prerrogativade arregimentar as forças necessárias à conten-ção da invasão do Kuwait pelas tropas iraquia-nas, também há de poder o organismo interferirna economia interna de qualquer Estado em cujoterritório venham ocorrendo turbulências queatentem contra direitos fundamentais da pessoahumana.

A atribuição que se extrai desse inciso 3 doartigo 1º da Carta das Nações Unidas tolera,ainda que em desfavor da rigidez do princípio

da soberania, interpretação ampla. Assim, porexemplo, o preceito também se dirige à correi-ção de conduta perigosa, sempre que os efeitosdanosos desse desvio extrapolam o territóriodo ofensor e vão colocar em risco a segurança eo bem-estar dos nacionais de um Estado circun-vizinho. É preciso que se leve em consideraçãoque a tendência de se rejeitar, como velha esuperada, a doutrina da soberania absoluta vaicolher, de futuro, os Estados que vêm descon-siderando o fenômeno da desintegração dasfronteiras, que começou na Europa e vai-sepropagar ao resto do mundo.

Mas, para que essa tendência, que é sadia,possa concretizar-se como linha de ação con-sistente e inalterável, é essencial que se acres-cente à competência da Corte Internacional deJustiça – de agir como órgão meramente con-sultivo das Organizações das Nações Unidas, aque está integrado – atribuição para, de ofício,acionar o Conselho de Segurança sempre quealguma convulsão, ainda que restrita ao territó-rio de um só Estado, puser em risco a segu-rança, a saúde ou bem-estar de outros povos. Éa segunda componente dessa intricadíssimaequação.

O Direito Internacional moderno está volta-do para esse norte e parece certo que o capítulopertinente à soberania terá de ser repensado. OBrasil, que ainda pratica um modelo antiquado,e insustentável, deve preparar-se para receberconvenientemente esse novo influxo cultural,começando por reduzir a ineficiência com quevem exercitando a sua soberania sobre a regiãoamazônica e, para esse fim, procurando apare-lhar uma estrutura, financeira e técnica, para agestão, pelo mínimo razoável, de área tão exten-sa. A integração da nossa Amazônia com a denossos vizinhos, facilitando a interação decertos crimes, como o tráfico de drogas, o con-trabando e o desmatamento, é fator que vemaviventando a preocupação, que vai pouco apouco se generalizando, de que o Brasil dificil-mente vai poder exercer, nesse vasto e inóspitotrato de terras, um tipo de soberania que sejaaceitável para os padrões do mundo civilizado.

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Ana Clarice de Sá L. S. Ávila Paz é Bacharela emDireito e Assessora de Juiz Federal no RN.

1. IntroduçãoA Constituição Federal de 1988, em seu

Capítulo IV, trouxe matéria atinente aos Direi-tos Políticos, importante reflexo da democra-cia, estabelecendo alguns princípios básicospara o exercício da soberania popular.

Os direitos políticos, portanto, discipli-nam a participação do cidadão – por meio dovoto – no governo de um dado território, in-tervindo de forma mais ampla ou mais restri-ta, de acordo com a intensidade desses direi-tos. Teori Albino Zavascki 1 assim conceituadireitos políticos:

“conjunto dos direitos atribuídos ao cida-dão que lhe permite, através do voto, doexercício de cargos públicos ou da utili-zação de outros instrumentos constituci-onais e legais, ter efetiva participação einfluência nas atividades de governo”.

Embora a CRFB fale em “sufrágio univer-sal” e “voto direto e secreto”, devemos fazeras devidas separações, vez que se tratam deelementos distintos. Enquanto o sufrágio édireito público subjetivo democrático, cujapalavra significa aprovação, apoio, o voto éo instrumento mediante o qual o cidadão exer-cita aquele direito. E o voto direto nada maisé senão a escolha imediata de seus represen-tantes, prescindindo de intermediários.

A competência para expedir e cassarsalvo-conduto em direito eleitoral

ANA CLARICE DE SÁ L. S. ÁVILA PAZ

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Garantias eleitorais. 3. Garantiaà liberdade de votar ou de ter votado. 4. Conclusões.

1 Artigo “Diretos políticos – perda, suspensão econtrole jurisdicional”, publicado na Revista Trimes-tral de Direito Público, vol. 10.

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Dalmo de Abreu Dallari2 escreveu:“A natureza jurídica do voto deve ser

bem explicada. Ele é essencialmente umdireito público subjetivo, é uma funçãoda soberania popular na democracia re-presentativa e na democracia mista comoum instrumento deste, e tal função socialjustifica e legitima a sua imposição comoum dever, posto que o cidadão tem o de-ver de manifestar a sua vontade nademocracia”.

Ocorre que, algumas vezes, institutos preci-sam ser criados para que o cidadão exerça seudireito de votar sem qualquer constrangimento:trata-se das garantias eleitorais, previstas naParte Quinta do Código Eleitoral, arts. 234 a 239,além de outras localizadas em legislação extra-vagante.

2. Garantias eleitoraisSe o voto é o exercício do sufrágio garanti-

do e exigido constitucionalmente, temos entãoque o voto é um direito, mas antes de tudo umdever do cidadão. E como para cada direito as-segurado corresponde uma garantia, utilizadanuma possível violação desse, também encon-tramos em nosso ordenamento jurídico as ga-rantias eleitorais.

Ditas garantias têm como objetivo a prote-ção ao exercício regular do sufrágio e visam umacorreta e pura – pelo menos em tese! – aplica-ção da democracia.

Entretanto, cuidou o Código Eleitoral de pre-ver garantias específicas, cujo objetivo é salva-guardar direitos também individualizados, es-peciais, tais como a liberdade de voto, a funçãopública dos membros das mesas receptoras oua liberdade do eleitor.

Trataremos aqui, de forma breve e sem a pre-ocupação de esgotar a matéria, acerca da garan-tia eleitoral elencada no art. 235 do prefaladocodex.

3. Garantia à liberdadede votar ou de ter votado

Analisemos detalhadamente o que diz o art.235:

“O juiz eleitoral, ou o presidente damesa receptora, pode expedir salvo-con-

duto com a cominação de prisão, por de-sobediência, até 5 (cinco) dias, em favordo eleitor que sofrer violência, moral oufísica, na sua liberdade de votar, ou pelofato de haver votado.

Parágrafo único. A medida será váli-da para o período compreendido entre 72(setenta e duas) horas antes até 48 (qua-renta e oito) horas depois do pleito”.

Especificamente nesse dispositivo, visa-seproteger o eleitor, em sua liberdade de votar oude haver votado, de ser constrangido por qual-quer pessoa (leia-se cidadão, membro ou dele-gado de partido político etc.). Esse constrangi-mento pode ser iminente, não precisando estarconsumado, embora a redação do dispositivoseja “em favor do eleitor que sofrer violência,moral ou física”.

Poderíamos então falar em duas condutasdistintas para a proteção do eleitor: a repressivae a preventiva, dependendo do caso concreto(violência consumada ou em vias de consumar-se). Faz-se apenas imperioso destacar que acoação iminente deve ser real, e não simplesconjectura do eleitor, devendo este demonstrarfundado receio de que o ato coator é bastanteplausível e verossímil de ocorrer.

Essa violência consumada ou na iminênciade consumar-se é quebrada pela expedição desalvo-conduto em favor do eleitor, documentocuja função precípua é de proteger essa garan-tia eleitoral. E qualquer semelhança com o sal-vo-conduto previsto na legislação processualpenal não é mera coincidência! Justamente parabuscar o espírito protetivo do instituto, resol-veu o legislador trazê-lo para o Direito Eleitoral.Concedido com a finalidade de obstar a concre-tização da violência ou até fazê-la cessar, o sal-vo-conduto é instrumento de proteção à liber-dade física ou pessoal do indivíduo e, ainda, nopresente caso, à liberdade moral, entendidacomo qualquer forma de coação psicológica.

Pois bem. Vista a figura do salvo-conduto ea causa de sua expedição, passemos a verificarquem detém legitimidade para expedi-lo. O arti-go já referido não deixa qualquer dúvida: o juizeleitoral ou o presidente da mesa receptora.

O juiz eleitoral é a autoridade suprema du-rante os trabalhos eleitorais, seja antes, duranteou depois da eleição, quando se dá a apuraçãoe a contagem dos votos. A ele cabe zelar peloregular desempenho dos trabalhos e cuidar paraque não se verifique qualquer vício de vontade,violência ou coação no momento da votação oumesmo depois.

2 in Comentários à Constituição Brasileira, dePinto Ferreira, 1989.

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Já o presidente da mesa receptora é nomea-do juntamente com os outros membros (v. art.120, Código Eleitoral) sessenta dias antes daeleição, pelo menos, escolhidos preferencial-mente entre eleitores daquela mesma seção, sen-do a autoridade maior desse conjunto e escolhi-do pelo juiz eleitoral entre aqueles com maiorgrau de escolaridade, maior experiência, aptidãopara as funções, profissão etc. Em geral são fun-cionários públicos, profissionais liberais, ban-cários etc.

Verifica-se então que o presidente da mesareceptora de votos é o mais apto a resolver ques-tões surgidas quando do início dos trabalhos,não estando presente o juiz eleitoral. Como estápatente que este último não possa fiscalizar eacompanhar os trabalhos de todas as seçõesconcomitantemente, cabe ao presidente fazeruso do que a lei lhe oferece: uma gama de atri-buições objetivando auxiliar o juiz.

Elencados no art. 127, CE, entendo que maismerecem destaque: decidir dúvidas, ocorrênci-as e dificuldades, além de manter a ordem, dis-pondo para tanto de força pública. Poder-se-iachamar de verdadeiro poder de polícia! Aindaoutro importante ato deferido ao presidente demesa é a expedição do salvo-conduto.

Seria dispendioso se pensar que apenas ojuiz teria competência para lavrar tal documen-to. Imagine-se uma comarca com várias seçõeseleitorais onde surgissem inúmeros casos deviolência à liberdade de voto do eleitor. Seriaimpossível e tumultuado se todos os prejudica-dos se dirigissem ao fórum à procura de umasolução a ser dada pelo único capaz: o juiz.

É muito mais lógico, e atende muito mais àfinalidade desejada, se cada presidente de mesadispuser de uma parcela de competência pararesolver questões em sua seção, bem como pararealizar ato específico de magistrado – como é ocaso do salvo-conduto – desde que legalmenteautorizado.

No entanto, como toda competência se exer-ce em dada limitação territorial, assim tambémacontece com a atribuição para se expedir o re-médio – tanto do juiz eleitoral quanto do presi-dente de mesa. É que o juiz está investido najurisdição, detendo apenas uma parcela, quenada mais é do que a sua competência.

O mesmo ocorre com o presidente de mesa,que é competente para expedir salvo-condutoapenas em favor de eleitor da seção eleitoral daqual ambos façam parte (eleitor e presidente).

Do contrário, estará ingressando numa esferade competência estranha à sua, ocasionandoum plus ilegal em sua legitimação.

Além da restrição no tocante à competên-cia, o parágrafo único do artigo em questão de-limita o espaço temporal em que a medida pode-rá ser tomada. O juiz eleitoral e o presidente demesa poderão expedi-la a partir das setenta eduas horas antes da eleição ou nas quarenta eoito horas subseqüentes. Por essa razão que ocaput declara “liberdade de votar, ou pelo fatode haver votado”.

Outro aspecto que merece referência é quantoaos legitimados à impetração da ordem. Diz Fá-vila Ribeiro que pode ser qualquer cidadão oupartido político, além de ser possível a conces-são da ordem, de ofício, pelo próprio juiz eleito-ral ou pelo presidente da mesa, lembrando ape-nas que este tem competência para conceder oremédio somente a eleitor inscrito em sua seçãoeleitoral.

Ocorre que a expedição do salvo-conduto éassunto que não causa maiores controvérsias.O ponto crucial da questão é saber quem é com-petente para cassar salvo-conduto e em que hi-póteses.

Tanto o juiz quanto o presidente podem cas-sar o salvo-conduto expedido. Entretanto, en-tendo que o presidente da mesa receptora devotos não poderia invadir uma atribuição dafunção jurisdicional para cassar uma ordem ex-pedida pelo juiz eleitoral legalmente investidoem seu cargo. Seria adentrar numa competênciapara a qual não dispõe de autorização legal ex-pressa. Poderá cassar a ordem por ele próprioexpedida se verificar que não há mais razõespara a sua manutenção, por ter cessado o atoviolador do direito ao voto ou sua iminência.

Quanto ao juiz eleitoral, entendo ser possí-vel que casse salvo-conduto expedido por pre-sidente de mesa. Basta lembrar que o juiz é quemmais possui poderes, tanto antes e durante arealização das eleições, quanto na contagem devotos. É por essa razão que o juiz tem compe-tência para cassar ordem concedida pelo presi-dente de mesa. E não apenas no caso de o pre-sidente tê-la concedido em favor de eleitor es-tranho à sua seção, como também em relaçãoàquela expedida em favor de eleitor da mesmaseção eleitoral.

Desnecessário afirmar que evidentemente ojuiz somente poderá cassar a ordem expedidapelo presidente, ou até mesmo por ele próprio,se ausentes as condições ensejadoras do remé-

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dio: cessar a violência contra o eleitor ou cessarsua iminência, não mais se caracterizando o ob-jetivo da expedição do salvo-conduto, postoque sua finalidade já fora alcançada.

Explica ainda Fávila Ribeiro que não há umaforma específica para o pedido de salvo-condu-to, nem para sua concessão, devendo apenasesta última conter as informações essenciais,como o nome da pessoa a quem a ordem é dirigi-da, o nome do beneficiário eleitor, a determina-ção de cessação do constrangimento e a penacominada para o caso de seu descumprimento,prevista no art. 235, caput.

Sendo o salvo-conduto uma ordem, umadeterminação, expedida por quem o Código en-tende apto, deve ser cumprida prontamente sobpena de o agente responder pelo crime de deso-bediência – exceto no caso de ter sido a ordemconcedida com flagrante abuso de poder.

Assim, o dispositivo traz o prazo de cincodias para a duração da prisão pelo crime de de-sobediência, que pode ou não coincidir com olapso temporal concedido pela legislação emfavor da proteção do eleitor (72h antes e 48hdepois), sendo da alçada do juiz ou do presi-dente da mesa cominá-la no final da concessãoda medida.

De forma prática, requerida por partido polí-tico ou pelo próprio eleitor ameaçado, a medida,contendo os requisitos acima identificados, éexpedida pelo juiz eleitoral ou presidente de mesae exibida ao coator para que apresente a vítima(no caso de ter sido requerida por partido políti-co) e faça cessar o constrangimento, sob penade prisão por crime de desobediência.

A execução da medida poderá ser efetivadapor oficial de justiça ou outro eleitor, nomeadoad hoc pelo juiz eleitoral ou até mesmo pelo pre-sidente, ou ainda por autoridade policial, a qualpoderá ser requisitada para o fiel cumprimentodo remédio. Segundo Fávila Ribeiro, é possívela designação de eleitor, na ausência de oficialde justiça, para o cumprimento da medida. To-davia, entendo que não só ao juiz é permitidaessa nomeação, mas também ao presidente damesa receptora de votos, de forma a garantir aefetiva satisfação da ordem concedida.

4. Conclusões

O instituto do salvo-conduto é medida pro-tetiva que visa assegurar a liberdade de voto acada eleitor. Por ser uma garantia eleitoral espe-cífica, deve ser concedido pelo juiz ou pelo presi-

dente da mesa receptora de votos, o que alargao plano de competência para que se atinja a fi-nalidade buscada.

Embora ambos tenham atribuição para expe-di-lo, o presidente da mesa não é competentepara cassar ordem expedida por juiz eleitoral,vez que tal proceder adentra na esfera jurisdicio-nal deste último, o que é inadmissível.

Consiste efetivamente na confecção de do-cumento a ser entregue ao autor do constrangi-mento para que faça cessar a violência contra oeleitor, sob pena de prisão por crime de desobe-diência.

Sua execução dar-se-á por meio de oficial dejustiça, eleitor ad hoc ou autoridade policial, queainda poderá ser requisitada para apenas darcumprimento imediato à medida caso o coatornegue obediência ao comando expedido.

O salvo-conduto tem como forma de eficá-cia a cominação de prisão, por crime de desobe-diência, se descumprida a ordem, em até cincodias, período em que poderá vigorar a garantia,o que depende daquele que a conceda e da for-ma para a qual foi deferida.

Instrumento de grande importância no Di-reito Eleitoral, a ordem de salvo-conduto contri-bui para uma melhor obtenção da democraciarepresentativa em pleitos eleitorais.

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CÂNDIDO, Joel José. Direito Eleitoral Brasileiro.6. ed. São Paulo : Edições Profissionais, 1996. p.155-160.

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RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral. 2. ed. São Paulo :Forense, 1986, p. 267-271.

ZAVASCKI, Teori Albino. Direitos políticos : perda,suspensão e controle jurisdicional. Revista Tri-mestral de Direito Público, São Paulo, V. 10, p.178-186, 1995.

* Notas bibliográficas conforme original.

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Dilvanir José da Costa é Professor de DireitoCivil nos cursos de graduação e pós-graduação daFaculdade de Direito da UFMG. Doutor em DireitoCivil. Advogado.

1. A compra e vendae sua execução

O sistema da promessa ou compromisso decompra e venda e sua execução pressupõem oconhecimento do contrato de compra e venda esua execução.

A compra e venda gera obrigação de dar ouentregar a coisa vendida, passível de execuçãocoativa e específica (por meio da própria coisa),em regra. Isso significa que o juiz pode ordenara apreensão do objeto móvel em poder dovendedor e entregá-lo ao comprador, sem que ofato importe em ofensa à liberdade e à dignidadedaquele (art. 625 do CPC e seu suporte dou-trinário). Quanto aos imóveis, firmado o contratoou a escritura, o próprio comprador se incumbede seu registro na matrícula respectiva, comomodo de aquisição do domínio. A imissão naposse será decorrência do jus in re, em que setransformou o contrato translatício. Se é assimem nosso direito, que adota o sistema romano-germânico de constituição do direito real peladuplicidade formal (contrato translatício mais

O sistema da promessa de compra evenda de imóveis

DILVANIR JOSÉ DA COSTA

SUMÁRIO

1. A compra e venda e sua execução. 2. Naturezada promessa de compra e venda. 3. A execução dasobrigações de fazer e sua evolução. 4. A obrigaçãode emitir declaração de vontade e sua despersonali-zação. 5. A consagração em lei da execução coativaespecífica. 6. A exigência de inscrição da promessano registro imobiliário como requisito da adjudi-cação. 7. O direito de arrependimento na promessade compra e venda. 8. A interpelação para constitui-ção em mora do promitente comprador. Ação deconsignação. 9. Da resolução do compromisso e seusefeitos. 10. Promessa de compra e venda e usuca-pião. Promessa não registrada e embargos àpenhora. 11. A forma do contrato de promessa.

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tradição ou transcrição), com maior razão ocorreno sistema franco-italiano-português da unidadeformal, em que basta o acordo de vontades paraa constituição do direito real: o compradordispõe de ação real ou seqüela para exigir dovendedor a entrega da coisa.

2. Natureza da promessade compra e venda

Muitas vantagens e conveniências levaramas partes interessadas a optarem por um con-trato preliminar de compra e venda: a reservanatural do domínio pelo vendedor até o rece-bimento total do preço (função de garantia); aimpossibilidade ou dificuldade da lavraturaimediata do contrato definitivo; a intenção docomprador de repassar o negócio a terceiro.

Assim surgiu o contrato preliminar, que tempor objeto o contrato definitivo de compra evenda, enquanto este é que tem por objeto atransferência do domínio da coisa. Daí, comoconseqüência, o contrato de compra e vendaconstituir uma obrigação de dar ou entregar aprópria coisa, enquanto o contrato preliminarconstitui obrigação de fazer (outorgar a contratodefinitivo).

3. A execução das obrigaçõesde fazer e sua evolução

As obrigações de fazer sofreram a influênciaindividualista do princípio nemo cogi potest adfactum praecise, segundo o qual não se podeobrigar alguém à prática de um ato manu militari.Seria atentar contra a sua liberdade física edignidade. Resolver-se-ia a obrigação em perdase danos ou execução indireta. Fez-se a primeiraabertura com a distinção entre obrigaçõesfungíveis e infungíveis ou intuitu personae.Aquelas podem ser executadas por terceiro aexpensas do devedor (art. 634 do CPC).

Outra grande fase ou etapa da evolução ouatenuação do princípio foi a admissão, naobrigação de prestação infungível, da coaçãomoral sobre a vontade do devedor, a fim devencer-lhe a resistência à prática do ato devido,sob cominação de multa ou pena pelo descum-primento do preceito. É o sistema das astreintesdo direito francês, consagrado pelos artigos 287,644 e 645 de nosso Código de Processo Civil.

Mas interessa à espécie a obrigação de emitirdeclaração de vontade e sua despersonalização,por meio de longo debate doutrinário e jurispru-

dencial que conduziu à sua consagração nosistema legal.

4. A obrigação de emitir declaração devontade e sua despersonalização

Entre as obrigações de fazer, destacou-se ade emitir declaração de vontade ou de praticarum ato jurídico, sobretudo a conclusão de umcontrato, de que é exemplo típico e maior o com-promisso ou promessa de compra e venda deimóvel. Tão arraigado era o preconceito quantoao respeito à liberdade física e psicológica daspessoas que não se admitia obrigar alguém a“querer”, a manifestar sua vontade e muitomenos conduzi-lo a cartório debaixo de vara paraassinar uma escritura que prometera. Por issomesmo, o nosso Código Civil, que é de 1916, noauge do preconceito, veio dispor:

“Art. 1088. Quando o instrumentopúblico for exigido como prova do con-trato, qualquer das partes pode arrepen-der-se, antes de o assinar, ressarcindo àoutra as perdas e danos resultantes doarrependimento, sem prejuízo do estatuí-do nos arts. 1095 a 1097.”

O debate desse tema foi amplo na França, naAlemanha e na Itália, com repercussão no Brasil,preparando o caminho para a reforma da legis-lação preconceituosa do respeito à liberdadepsicológica do cidadão.

J. Frederico Marques, em comentário aoartigo 1006 do CPC/39, um dos primeiros textosmundiais a admitir o suprimento, por sentença,de uma declaração de vontade não emitida pelodevedor, assim resume, com suporte emLiebman, os fundamentos da tese que veio a servitoriosa:

“Se a declaração de vontade se apre-senta como infungível, o seu efeito naesfera das relações intersubjetivas que odireito regula pode, no entanto, ser iso-lado, pelo que tal infungibilidade éapenas de ordem jurídica, e não a deordem natural como sucede, v. gratia, comas obras e serviços que se exigem rationepersonae, tais como o quadro de umpintor, o concerto de um músico, a esta-tueta de um escultor, etc.

Quando se trata de declaração devontade – diz Liebman – ‘não é impos-sível isolar o efeito jurídico que adeclaração de vontade deveria produzire, concorrendo determinadas condições,

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permitir aos órgãos da Justiça realizar esseefeito diretamente, não tanto suprindo avontade do obrigado inadimplente quantoprescindindo dela. O respeito à vontadeindividual não pode ser tão absoluto aponto de impedir a produção do efeitojurídico que a declaração de vontadeproduziria, quando existe obrigaçãoanterior de emitir essa declaração e o obri-gado se recusa a cumpri-la.’

Neste caso, a sentença ‘fará as vezesdo ato que deveria ser praticado’, vistoque produzirá os efeitos da declaraçãode vontade não prestada.” (Instituiçõesde Dir. Proc. Civil. Rio de Janeiro : Fo-rense. v. 5, § 214, p. 318-319, com suporteem Luiz Eulálio de Bueno Vidigal, Pontesde Miranda, Amílcar de Castro, LeiteVelho e Afonso Fraga)

Segundo o Professor Darcy Bessone,renomado monografista da promessa de comprae venda,

“O movimento de idéias alcançourepercussão no Brasil, principalmenteatravés de Filadelfo de Azevedo, cujacontribuição se notabilizou, não só notocante à exposição dos debates euro-peus, como na demonstração de que onosso direito positivo não era infenso àexecução in natura da obrigação de fazer,salvo quando somente pudesse efetivar-se mediante violência à pessoa humana.(Conf. ainda SANTOS, Carvalho. CCinterpret., v. 15, p. 132 e PEIXOTO, CarlosFulgêncio da Cunha. R. For. v. 74, p. 437).

Não lograram êxito, porém, as tenta-tivas realizadas. Predominou a soluçãoconsistente no resssarcimento por perdase danos, prestigiada por altas expressõesdo pensamento jurídico, do tomo deLeonardo Coviello, Nicola Coviello, DePalo, Gabba, Carnelutti, Ascoli, Tartufari,Tendi, Degni, Moschella, Gregorio,Caporali, Ruggiero e outros.”

(...)“Alguns juristas, advertidos ou não

na clara lição de Pothier, preferiram, nemsempre percorrendo o mesmo caminho, oprimeiro rumo, enquanto outros, em maiornúmero, seguiram por estrada diversa.

Entre os últimos, tornou-se freqüentedizer, contudo, que a lei poderia autorizara execução em forma específica, soluçãoque aplaudiriam.

Em atenção a esse voto, alguns países,como a Alemanha, a Áustria, o Brasil (art.16 do DL 58/37 e art. 346 do CPC/39) e,mais recentemente, a Itália, passaram aformular leis, consagrando aquela so-lução.”

(...)“No plano doutrinário, temos como

certo, portanto, que:a) o objeto da promessa é o con-

trahere, o ato de contratar;b) tal objeto se traduz em um facere, o

que quer dizer que o promitente assume aobrigação de fazer;

c) uma corrente doutrinária, enca-beçada por Pothier e prestigiada porChiovenda, admite que a obrigação defazer comporta execução coativa e innatura quando se realize sem violênciafísica à pessoa do devedor;

d) mesmo entre aqueles que não sedeixam seduzir por essa doutrina, muitosadmitem que a lei pode autorizar tal formade execução;

e) leis de vários países a admitiram.”(...)“Mesmo antes do decreto-lei 58/37,

começava a formar-se, à margem do art.1088 do Código Civil, opinião favorável àexecução compulsória, em forma espe-cífica, da promessa de compra e venda.”(Filadelfo de Azevedo, Carvalho Santos,Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto). (Dacompra e venda, promessa & reserva dedomínio , Belo Horizonte : BernardoÁlvares, 1960. p. 146-149).

5. A consagração em leida execução coativa específica

O primeiro texto legal a admitir a execuçãoespecífica, por meio de sentença, da obrigaçãode emitir declaração de vontade, foi o artigo 779do antigo Ordenamento Processual alemão,reproduzido no § 894 do ZPO, verbis:

“Se o devedor tiver sido condenadoà emissão de uma declaração de vontade,esta considerar-se-á emitida ao passar emjulgado a sentença.”

Em termos semelhantes foi o § 367 doRegulamento Executivo austríaco.

Em seguida, em nosso país, o DL 58/37(dispõe sobre o loteamento e a venda de terrenos

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para pagamento em prestações), em seu artigo16, admitiu a adjudicação compulsória, porsentença, ao promitente comprador, do imóvelloteado prometido à venda, em caso de recusada escritura pelo vendedor.

Na seqüência, o artigo 346 do CPC de l939regulou o procedimento para a respectiva ação,enquanto o artigo 1006 do mesmo código, deforma ampla e abrangente, assim dispôs:

“Condenado o devedor a emitir decla-ração de vontade, será esta havida porenunciada logo que a sentença decondenação passe em julgado.”

O Código Civil italiano de 1942 regulou amatéria em termos semelhantes, verbis:

“Esecuzione specifica dell’obbligo diconcludere un contratto. Se colui che èobbligato a concludere un contrato, nonadempie l’obbligazione, l’altra parte,qual’ora sia possibile e non sia esclusodal titolo, può ottenere una sentenza cheproduca gli effetti del contrato nonconcluso.”

A nossa Lei 649/49 modificou a redação doartigo 22 do DL 58/37, a fim de estender aoscompromissos de compra e venda, sem cláusulade arrependimento, de imóveis não loteados, odireito de adjudicação compulsória.

O DL 745/69 instituiu a necessidade deinterpelação, com o prazo de 15 dias, paraconstituição em mora dos compromissárioscompradores de imóveis não loteados.

O vigente Código de Processo Civil (Lei5.869/73) veio admitir:

a) o suprimento, por sentença, da obrigaçãode emitir declaração de vontade, reiterando adisposição abrangente do artigo 1006 do Códigoanterior e reproduzindo o § 894 do ZPO alemão(art. 641);

b) o suprimento, por sentença, do compro-misso de concluir um contrato, reproduzindo adisposição supra do Código Civil italiano (art.639);

c) disposição idêntica para a hipóteseespecífica de contrato que tenha por objeto atransferência da propriedade de coisa ou direito(art. 640).

A Lei 6.014/73 adaptou ao novo CPC aredação do artigo 22 do DL 58/37 (remissão aosarts. 640 e 641 do CPC).

O artigo 27 e seus parágrafos da Lei 6.766/79estenderam a proteção do DL 58/37 aos pré-contratos, propostas de compra, reservas de

lotes e instrumentos similares, mediante apli-cação dos artigos 639 e 640 do CPC.

O artigo 84 e seus parágrafos do Código deDefesa do Consumidor (Lei 8.078/90) vieramtornar clara e efetiva a tutela específica daobrigação de fazer em geral, assegurando aocredor a obtenção do resultado práticoequivalente ao adimplemento. Idênticas garan-tias de execução coativa, de forma específica,da obrigação de fazer em geral, foram incor-poradas ao artigo 461 do CPC pela Lei 8.952/94.

Somente após tantas providências repetidase ociosas se pôs fim definitivo às principaisdúvidas e polêmicas suscitadas pelas primeirasleis de nosso país, acima apontadas, conformepassaremos a analisar.

6. A exigência de inscriçãoda promessa no registro imobiliário

como requisito da adjudicaçãoEssa a polêmica maior que perdurou por

muitas décadas na jurisprudência, a despeitoda doutrina emanada do conjunto da legislação.

Darcy Bessone chegou a comentar em suaobra já referida, na página 169:

“O preconceito de que a obrigaçãode fazer não comporta execução com-pulsória, em forma específica, resiste atéà lei, que expressamente a admite (art. 16do DL 58 e arts. 346 e 1006 do CPC/39).”

Aliás, é comum o preconceito em certas áreasmais sensíveis do direito: o Estatuto da MulherCasada (Lei 4.121/62) levou vinte anos para serinterpretado e aplicado convenientemente.

A própria introdução ao DL 58/37, em seus“consideranda”, refere-se ao artigo 1088 doCódigo Civil como um obstáculo à obtenção daescritura de compra e venda, ao permitir aqualquer das partes arrepender-se do compro-misso. Foi sua intenção derrogá-lo, amparandoos compradores de lotes. Por isso consagrou,claramente, no artigo l6, o direito à ação deadjudicação compulsória do lote ao compro-missário, valendo a sentença como título para atranscrição.

Ampliando a disciplina da execução daobrigação de emitir declaração de vontade, oartigo 1006 do CPC/39 considerou enunciada avontade logo que a sentença passasse em jul-gado. E ainda por cima regulou o procedimento(art. 346).

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O artigo 1006 referido é a reprodução do textocorrespondente do ZPO alemão (§ 894) ecorresponde ao texto similar do artigo 2.932 doCódigo Civil italiano (1942), que EduardoEspínola considera como tendo regulado amatéria “em termos corretos e satisfatórios” (op.cit., p. 70, nota 25).

Tudo passou a ocorrer tão bem com os imó-veis loteados que o novo regime foi estendidoaos não loteados doze anos depois, pela Lei649/49, que alterou a redação do artigo 22 do DL58/37, nestes termos:

“Os contratos, sem cláusula dearrependimento, de compromisso decompra e venda de imóveis não loteados,cujo preço tenha sido pago no ato de suaconstituição ou deva sê-lo em uma oumais prestações, desde que inscritos emqualquer tempo, atribuem aos compro-missários direito real oponível a terceirose lhes confere o direito de adjudicaçãocompulsória nos termos dos arts. 16 destalei e 346 do Código de Processo Civil.”

A trapalhada do texto supra foi condicionara execução coativa específica, por meio daadjudicação compulsória, a esta cláusula: “desdeque inscritos em qualquer tempo”.

Dessa forma, a Lei especial 649/49 excepcio-nou e restringiu, indevidamente, não só a letra eo espírito do DL 58 como o artigo 1006 do CPC/39, idêntico ao texto do ZPO alemão, amplos eabrangentes sobre a obrigação de emitir decla-ração de vontade.

O Professor Darcy Bessone assim concluiusua tese sobre a natureza do direito de adju-dicação e da sua independência de inscrição dapromessa:

“Concluímos que o chamado direitoà adjudicação compulsória , simplesforma coativa e específica de execuçãode uma obrigação de fazer, inclui-se nacategoria dos direitos pessoais.

Sendo essa a sua natureza, ele resultado pagamento integral do preço avençadoe independe da averbação ou inscriçãoda promessa de venda no Registro deImóveis.

A essa conclusão chegamos, comose viu, através de análise ampla, quecolocou, acima da letra insegura de algunstextos isolados, o sistema e a teleologiado nosso direito positivo.” (Op. cit., n.60, p. 170)

De fato, a inscrição ou registro da promessaé uma das garantias atribuídas ao promitentecomprador pela Lei protetora. A função técnicae jurídica do registro imobiliário, na espécie, éinstituir um direito real de aquisição. Sendodireito real já diz tudo: eficácia erga omnes contraalienação ou oneração e também direito àadjudicação. Mas a falta de registro não impedea execução compulsória contra o promitente,sendo este o titular do domínio. Achando-seregistrada a promessa, já constitui direito realde aquisição e, na prática, quase prescinde deexecução da obrigação, visando à escrituradefinitiva, que só se transforma em direito realmediante o registro. Logo, a promessa quenecessita mesmo de sentença adjudicatória é anão registrada (mero crédito ou obrigação), paraque a decisão seja registrada e crie o direito real.

Mas as dúvidas suscitadas pela má redação,sem técnica, da Lei 649/49, reiterada pela Lei6.014/73, foram tantas que o STF chegou a firmara seguinte jurisprudência:

“Súmula 167. Não se aplica o regimedo DL 58, de 10.12.37, ao compromissode compra e venda não inscrito no registroimobiliário, salvo se o promitente vende-dor se obrigou a efetuar o registro.”

E evoluiu para:“Súmula 168. Para os efeitos do DL

58, de 10.12.37, admite-se a inscriçãoimobiliária do compromisso de compra evenda no curso da ação.”

“Súmula 413. O compromisso decompra e venda de imóveis, ainda quenão loteados, dá direito à execuçãocompulsória, quando reunidos os requi-sitos legais.”

Nessa altura e diante das novas disposiçõesclaras e incisivas dos artigos 639/641 do CPC,art. 27 da Lei 6.766/79, art. 84 da Lei 8.078/90 e danova redação do artigo 461 do CPC, os tribunaispuseram fim ao preconceito e passaram a dis-tinguir: ação de adjudicação para os compro-missos registrados e ação do artigo 639 do CPCpara os não registrados (mas registráveis), eisque o compromisso não pode superar obstá-culos jurídicos, inclusive atropelar direitos reaisde terceiros.

Afinal, o STJ firmou o entendimento de quea adjudicação compulsória ou execução coativa,em forma específica, da promessa de compra evenda de imóvel não loteado independe deinscrição prévia no registro imobiliário (RSTJ,n. 25, p. 465, n. 29, p. 356, n. 32, p. 309, n. 42,p. 407).

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7. O direito de arrependimento napromessa de compra e venda

O artigo 1088 do Código Civil, contrariandoa melhor doutrina sobre a possibilidade deexecução compulsória, em forma específica, dapromessa de compra e venda de imóvel, por meiode sentença com o mesmo efeito, sem ofensa àliberdade física do devedor, permitia a qualquerdas partes arrepender-se do compromisso.

Foram muitas as frustrações de promissárioscompradores de lotes na periferia das grandescidades, diante do exercício desse direito pelosvendedores.

O DL 58/37 veio remediar a situação,atribuindo aos promissários o direito de exigir aescritura definitiva, inclusive por meio da açãode adjudicação (arts. 15 e 16). Pelo mesmodiploma ficou vedada, inclusive, a estipulaçãode cláusula de arrependimento nos compro-missos, com o caráter de disposição de ordempública protetora de uma classe social. Assiminterpretou o STF, ao formular a Súmula 166,referindo-se, obviamente, aos imóveis loteados:

“É inadmissível o arrependimento docompromisso de compra e venda sujeitoao regime do DL 58, de 10.12.37.”

Sobreveio a Lei 649/49, que deu novaredação ao artigo 22 do DL 58/37 e estendeu oseu regime protetivo, sobretudo o direito àadjudicação, aos compromissários de imóveisnão loteados. Mas ressalvou que só teriam essaproteção os contratos “sem cláusula de arrepen-dimento”. Parece contraditório: afastar o regimedo artigo 1088 do Código Civil, que admite oarrependimento, e permitir a cláusula conven-cional de arrependimento. É que os imóveis nãoloteados estão ligados a uma classe socialsuperior e mais consciente, que pode livrementeestipular ou não tal cláusula.

A cláusula de arrependimento enfraquece ovínculo, gerando um contrato condicional.Quando aliada às arras, altera os efeitos destas,que se tornam arras penitenciais. A regra emnosso código são as arras confirmatórias, quefortalecem o vínculo. Assim, o sinal simples emum contrato, sem estipular o direito de arre-pendimento, caracteriza as arras confirmatórias.Nessa hipótese, quem infringir o contrato nãoindeniza a outra parte somente o valor das arras(perda do sinal ou devolução em dobro), masestará sujeito a indenização maior, se provado oprejuízo. Já a entrega de sinal, aliada à esti-

pulação do direito de arrependimento, constituiarras penitenciais, com perda apenas do sinal,salvo estipulação diferente. Clovis Bevilaquaresumiu, de forma magistral, a diferença nestestermos: “o Código admite o direito de arrepen-dimento em conjunção com as arras, mas nãocomo conseqüência delas” (CC Comentado, art.1095, nº 1).

Assim, o contrato com arras ou sinal, massem cláusula de arrependimento, redigida poruma de suas variadas formas, considera-seirretratável e se beneficia com a execução coativae específica, desde que observadas as demaisexigências legais. A simples ausência de cláusulade arrependimento torna o contrato irretratável,que é o seu efeito normal.

Também não se deve confundir a cláusulapenal ou de multa contratual com o direito dearrependimento. A cláusula penal reforça ovínculo, visando incentivar o contratante acumpri-lo espontaneamente, sob cominação damulta. Cláusula penal e cláusula de arrepen-dimento são fenômenos opostos, que não seconciliam, em regra. As arras ou sinal é quepodem se conjugar com o direito de arre-pendimento, impossibilitando a execuçãocompulsória do contrato.

A propósito, o STF formulou ainda a Súmula412, segundo a qual a conjugação de arras comarrependimento tem como efeito a perda do sinal,sem indenização maior, tal como dispõe o artigo1095 do Código Civil.

Os tribunais vêm decidindo que o promitentevendedor já não pode exercer o direito dearrependimento depois de pago todo o preço eaté parte do mesmo. Não se arrependeu quemconcordou com a execução do contrato. (RTJ,n. 119, p. 705; JTA, n. 93, p. 168; JTARS, n. 75,p. 213)

8. A interpelação para constituiçãoem mora do promitente comprador.

Ação de consignaçãoO maior direito do promitente comprador é,

sem dúvida, a execução coativa do compro-misso, em forma específica.

Outro importante direito é o de purgar a moraou pagar as prestações em atraso, no prazo de30 dias a contar da intimação que lhe fizer ooficial do registro do loteamento, a requerimentodo compromitente vendedor (art. 14 e §§ do DL

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58/37 e art. 32 e §§ da Lei 6.766/79, quanto aosimóveis loteados).

Esse direito veio a ser estendido aos promis-sários compradores de imóveis não loteadospelo artigo 1º do DL 745/69, nestes termos:

“Nos contratos a que se refere o art.22 do DL 58/37, ainda que deles constecláusula resolutiva expressa, a consti-tuição em mora do promissário compradordepende de prévia interpelação judicial,ou por intermédio do cartório de Registrode Títulos e Documentos, com quinze diasde antecedência.”

O STF chegou a decidir, reiteradamente, queo texto supra só se aplicava aos contratosinscritos no registro imobiliário (RTJ, n. 90, p.138, n. 90, p. 1.047, n. 92, p. 1.134, n. 98, p. 445, n.108, p. 775, n. 112, p. 945). Mas o STJ passou adecidir em sentido contrário e até formulou aSúmula nº 76, verbis:

“A falta de registro do compromissode compra e venda de imóvel não dis-pensa a prévia interpelação para consti-tuir em mora o devedor.”

O mesmo tribunal decidiu que a citação paraa ação de resolução não supre a falta de inter-pelação (3ª Turma. REsp. 43.377-RJ. DJU, 20 maio1996) e que a ausência de interpelação importaem impossibilidade jurídica do pedido por faltade condição da ação resolutória (4ª Turma. REsp.21.130-RJ. DJU, 7 jun. 1993; RSTJ, n. 18, p. 490).O TJSP decidiu que:

“...pacificado se encontra que, enquantonão constituído em mora, pode o adqui-rente, a qualquer tempo, consignar util-mente a dívida.” (Ap. 279.813-1/5. unân.,BDI, n. 97, p. 20-11).

E o STJ:“Consignação admissível enquanto o

credor não haja extraído da mora debitorisos efeitos cabíveis. A consignação tantose destina à prevenção como à emendada mora” (REsp. 1.426-MS. Relator:Ministro Athos Carneiro, cit. na decisãoanterior).

“Vencido em ação de consignação,não pode o compromissário purgar a morana ação de rescisão do contrato.” ( RSTJ,n. 32, p. 301).

“É desnecessária a interpelação se ocompromitente comprador já havia mo-vido ação de consignação.” (RSTJ, n. 67,p. 352)

9. Da resolução do compromissoe seus efeitos

A execução compulsória específica do com-promisso e o direito de purgar a mora, medianteprévia interpelação comprovada, são garantiasem favor do compromissário comprador. Opromitente vendedor tem em seu prol o direitode resolução do contrato por inadimplementodo comprador, a qual obedece a dois proce-dimentos distintos:

a) nos imóveis loteados, mediante proce-dimento administrativo: cancelamento daaverbação do compromisso junto ao oficial doregistro imobiliário respectivo, comprovada ainterpelação e o não pagamento (art. 14 e §§ doDL 58/37 e art. 32 e §§ da Lei 6.766/79). Issolibera o imóvel para nova alienação. É possível,contudo, o controle judicial desse procedimento(RT 513/155), inclusive para reintegração deposse, indenização por benfeitorias etc.;

b) nos imóveis não loteados, mediante açãojudicial de resolução do compromisso, medianteprévia interpelação (DL 745/69). A lei não quisainda confiar essa resolução a um procedimentoadministrativo.

Os efeitos da resolução obedecem às regrasgerais do Código Civil e das leis especiais,inclusive do Código de Defesa do Consumidor,variando as soluções conforme as causas e aparte que provocou.

Em regra, os compromissos podem sercumpridos coativa e especificamente. Quandonão o sejam, sem culpa das partes, retornamestas ao estado anterior ao contrato. Se por culpado promitente comprador, incidem as regrascomuns do Código Civil (art. 1056 e ss.) e asespecíficas de amparo à categoria.

A primeira conseqüência é a devolução doimóvel ao vendedor, que pode ocorrer, inclusive,com a cumulação da ação resolutória com a dereintegração de posse. Admite-se a açãopossessória independente da resolutória se nocontrato houver cláusula de resolução expressaou independente de ação (RTJ, n. 72, p. 87, n.74, p. 449, n. 83, p. 401, RJTJESP, n. 111, p. 53,JTA, n. 103, p. 191). Se é possível a cláusula dearrependimento, também o será a de resoluçãoindependente de ação. Mas não independentede interpelação (DL 745/69 e Súmula 76 do STJ).Não cabe ação reivindicatória do promitentevendedor contra o promissário comprador napendência do compromisso, por falta dorequisito posse injusta (RSTJ, n. 32, p. 287).

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Resolvido o compromisso, administrativa oujudicialmente, a posse poderá ser recuperadaainda segundo o artigo 621 do CPC (entrega decoisa certa). O promitente comprador não poderáopor eficazmente o compromisso sem registroao terceiro reivindicante com título registrado.(RSTJ, n. 43, p. 458)

Quando tenha que restituir o imóvel, emconseqüência de resolução do compromisso,surgem as seguintes questões básicas: a)indenização por acessões e benfeitorias reali-zadas; b) indenização pelo uso do imóvel; c)perda das prestações pagas; d) valor da cláusulapenal.

Acessões e benfeitorias. Indenização pelouso do imóvel

O promitente comprador tem posse tituladae, portanto, de boa-fé. Por isso, tem direito deindenização por acessões e benfeitorias, emregra, ex vi dos artigos 516 e 547 do CódigoCivil. A Lei 6.766/79, que veio aperfeiçoar o DL58/37, prevê expressamente a indenização,“sendo de nenhum efeito qualquer disposiçãoem contrário” (art. 34), salvo, obviamente, abusoou ilegalidade (Parágrafo único). Seria enrique-cimento do vendedor. Pela mesma razão, a juris-prudência admite o direito de indenização pelouso do imóvel pelo promissário inadimplente, aser compensado do valor das acessões e dasprestações pagas.

Perda das prestações pagas e redução dacláusula penal

O artigo 53 do Código de Defesa do Consu-midor (Lei 8.078/90) prevê expressamente a nu-lidade de pleno direito das cláusulas que esta-beleçam a perda total das prestações pagas pelocompromissário inadimplente.

Fixa, também, o mesmo Código, as multas demora em 2% do valor da prestação (art. 52, § 1º).A propósito do tema ainda polêmico, decidiu oSTJ:

“O Código de Defesa do Consumidornão se aplica aos contratos celebradosem data anterior a sua vigência.

Validade de cláusula contratual queestipula, no caso de inadimplemento doscompromissários compradores, a perda dequantias pagas.

Contudo, tendo tal cláusula naturezacompensatória, pode o Juiz reduzir a penaconvencional, autorizado pelo art. 924 doCódigo Civil. Precedentes. Recursoconhecido e provido, em parte.” (REsp.42.226-SP. DJU, p. 11.122, 7 abr. 1997)

Ainda sobre a inaplicabilidade do CDC aoscontratos anteriores à sua vigência, em respeitoao ato jurídico perfeito, citam-se as decisões nosREsps. 45.666-SP, 67.739-PR e 119.291-RJ. DJU,p. 9433, 25 mar. 1997.

10. Promessa de compra e venda eusucapião. Promessa não registrada e

embargos à penhoraQuestão polêmica é a do contrato de

promessa em que o promissário cumpre todasas obrigações e não obtém a escritura nemespontânea nem compulsoriamente, por faltados requisitos desta (ausência de outorgauxória na promessa, falta de documentaçãodo vendedor etc). Mesmo com posse vin-tenária, o STF vinha negando a prescriçãoaquisitiva, sob o fundamento da falta dorequisito “possuir como seu”. Segundo oMinistro Moreira Alves, na promessa, o pro-missário reconhece o domínio do promitente.Data venia, a promessa de compra e venda deveser excluída das posses contratuais, para efeitode usucapião. Seria um contra-senso reconhecê-lo em favor de quem tem posse sem efetuarqualquer pagamento, e não admiti-lo em favorde quem já pagou o preço, visando ao domínio.O rigor técnico deve ceder à lógica e ao bomsenso.

Mas a situação está mudando. Ao contráriodo STF, que não reconhecia animus domini nopromitente comprador, o STJ vem reconhecendoaté justo título, para efeito de usucapiãoordinário:

“Segundo a jurisprudência do STJ,não são necessários o registro e oinstrumento público, seja para o fim daSúmula 84, seja para que se requeira aadjudicação. Podendo dispor de taleficácia, a promessa de compra e venda,gerando direito à adjudicação, gera direitoà aquisição por usucapião ordinário.Inocorrência de ofensa ao art. 551 do Cód.Civil. Recurso conhecido pela alínea “c”,mas não provido.” (REsp. 32.972-SP.Relator: Ministro Cláudio Santos. DJU,p. 20.320, 10 jun. 1996.)

Tão cabível o usucapião na promessa queaté se recomenda nas hipóteses de documen-tação incompleta ou complicada, sucessões nãoregularizadas, como decidido pelo TJSP. Ap.269.631-2/0. BDI, SP, n. 15, p. 26, 1997.

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A propósito da promessa e os embargos àpenhora do objeto da mesma, o STF formulouesta Súmula:

“621. Não enseja embargos de terceiroà penhora a promessa de compra e vendanão inscrita no registro de imóveis.”

Mas o STJ mudou a orientação, tornandosem efeito a interpretação supra das leis federais,nestes termos:

“Súmula 84. É admissível a oposiçãode embargos de terceiro fundados emalegação de posse advinda do com-promisso de compra e venda de imóvel,ainda que desprovido do registro.”

O STF valorizava o Registro Imobiliário. OSTJ encarou a realidade social e valorizou aposse de boa-fé, fundada na promessa decompra e venda, ressalvada a prova de fraude.

11. A forma docontrato de promessa

A discussão sobre a forma do contrato depromessa acompanhou a evolução da própriaexecução desse contrato.

O artigo 134, II, do Código Civil exige, comoregra, a escritura pública nos contratosconstitutivos ou translativos de direitos reaissobre imóveis.

O DL 58/37 abriu a primeira exceção, aoadmitir o instrumento particular para a promessade compra e venda de imóveis loteados, inclu-sive para efeito de averbação no registro imo-biliário (art. 11). Mas o artigo 22 do mesmodiploma, ao tratar dos imóveis não loteados,usou a expressão escrituras de compromisso.Logo em seguida, o CPC/39, ao disciplinar aexecução das promessas de contratar, exigiu queo contrato preliminar preenchesse “as condiçõesde validade do contrato definitivo”.

Somente a partir da Lei 649/49, que deu novaredação ao artigo 22 do DL 58 e mudou o termo“escritura” para contrato, é que se fez umaabertura para a admissão do instrumentoparticular nas promessas de imóveis não lo-teados. Mas persistiu a dúvida e a jurisprudênciacontinuou resistindo.

A Lei 4.380/64 admitiu o instrumentoparticular nas operações imobiliárias do SistemaFinanceiro da Habitação (art. 61, § 5º). Novaabertura.

O vigente CPC/73, ao tratar da execução daobrigação de “concluir um contrato”, no artigo

639, correspondente ao 1006 do códigoanterior, não mais exigiu que o contratopreliminar preenchesse “as condições devalidade do contrato definitivo”. A partir daí,a execução coativa específica da promessade qualquer imóvel foi desatrelada não só doinstrumento público, como da necessidadede registro imobiliário prévio. O registroinstitui, em favor do promissário, um direitoreal de aquisição do imóvel, ou seja, torna apromessa eficaz erga omnes e por isso impedenova alienação ou oneração do imóvel, alémde tornar pacífica a adjudicação compulsóriaem qualquer tempo. Tanto que muitoscompromissos registrados permanecemtranquilamente por longo tempo como direitoreal de aquisição e sem transformação emdomínio. Somente para raros efeitos, existedistinção entre os dois fenômenos. Há umatendência a equipará-los, provada a quitaçãodo compromisso, independente de proce-dimento judicial.

Mas a execução específica, por meio desentença com os mesmos efeitos do contratodefinitivo, já não mais depende do instru-mento público da promessa e do respectivoregistro imobiliário (desde que registrável),conforme assentado nas seguintes decisõesdo STJ:

“A promessa de venda gera efeitosobrigacionais, não dependendo, para suaeficácia e validade, de ser formalizada eminstrumento público. O direito à adju-dicação compulsória é de caráter pessoal,restrito aos contratantes, não se condi-cionando a obligatio faciendi à inscriçãono registro de imóveis.” (REsp. 30-DF.Relator: Ministro Eduardo Ribeiro. RSTJ,n. 3, p.1043)

“Tratando-se de opção de comprairrevogável, válida e regular, uma vez nãocumprida pelo devedor a obrigação, épermitido ao credor obter a condenaçãodaquele a emitir a manifestação devontade a que se comprometeu, sob penade, não o fazendo, produzir a sentença omesmo efeito do contrato a ser firmado.Aplicação do art. 639 do CPC. Recursoespecial conhecido e provido.” (REsp.5.406-SP. Relator: Ministro Barros Mon-teiro. DJU, 29 abr. 1991)

“A adjudicação compulsória inde-pende de inscrição do compromisso decompra e venda no registro imobiliário.”

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(REsp. 10.383-MG. Relator: MinistroFontes de Alencar. RSTJ, n. 32, p. 309)

“A promessa de venda gera efeitosobrigacionais, não dependendo, para suaeficácia e validade, de ser formalizada eminstrumento público. O direito à adju-dicação compulsória é de caráter pessoal,restrito aos contratantes, não se condi-cionando a obligatio faciendi à inscriçãono registro de imóveis. Recurso conhe-cido e provido.” (REsp. 19.410-MG.Relator: Ministro Waldemar Zveiter. RSTJ,n. 42, p. 407)

Nem sequer se faz necessário o rigorosocumprimento das exigências dos regulamentosdo registro público, com relação aos dados doimóvel no contrato:

“Para efeito de transcrição do títuloproduzido pela sentença, em caráter desubstituição da declaração de vontadesonegada, o oficial do Registro deImóveis integrará a sentença com osdados relativos ao imóvel constantes doscompromissos, sem necessidade de secumprirem formalidades não exigidaspelos arts. 639 e 641 do CPC.” (TJSP.RJTJSP, n. 110, p. 66)

Tanto mais correta a decisão supra após oadvento do artigo 84 e §§ da Lei 8.078/90 (CDC)e da nova redação do artigo 461 do CPC.

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BESSONE, Darcy. Da compra e venda, promessa &reserva de domínio. Belo Horizonte : BernardoÁlvares, 1960.

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ESPÍNOLA, Eduardo. Dos contratos nominados noDireito Civil brasileiro. 2. ed. Rio de janeiro :Conquista, 1956.

LIMA SOBRINHO, Barbosa. As transformações dacompra e venda. Rio de Janeiro : Borsoi, s/d.

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Anildo Fabio de Araujo é advogado e técnico pro-cessual do Ministério Público da União/MinistérioPúblico do Distrito Federal e dos Territórios.

1. NoçõesO direito a alimentos visa assegurar a

sobrevivência e o desenvolvimento do indi-víduo e, também, o mais importante dos direitoshumanos: o Direito à vida. Para a realizaçãodesse direito, o Estado deve usar de todos osseus meios e instrumentos, sob pena de falharem seus objetivos fundamentais, quais sejam: aconstrução de uma sociedade justa e solidária;a redução das desigualdades sociais; e apromoção do bem de todos.

1.1. Introdução

Este estudo tem por objetivo facilitar aatividade do profissional do direito no processode execução de prestação alimentícia, decorrentedo direito material e do ato jurídico, lato sensu.Para sua complementação, faz-se necessário abusca de outros estudos, mais abrangentes, taiscomo os relacionados na bibliografia.

ANILDO FABIO DE ARAUJO

Alimentos(noções e execução)

SUMÁRIO

1. Noções. 1.1 Introdução. 1.2. Generalidades.1.3. Pressupostos da obrigação alimentar. 1.4. Fixa-ção dos alimentos. 1.5. Modos da prestação. 1.6.Duração dos alimentos. 1.7. Alimentos provisionaise provisórios. 1.8. Revisão de alimentos. 1.9. Pres-crição. 1.10. Imposto de renda. 2. Execução da pres-tação alimentícia. 2.1. Da execução. 2.2. Alimentosdevidos pela Fazenda Pública. 2.3. Alimentos devi-dos no estrangeiro. 2.4. Prisão do devedor. 2.5. Forocompetente. 2.6. Citação. 2.7. Petição inicial. 2.8.Ritos. 2.9. Ministério Público. 2.10. Recursos. 2.11.Observações finais.

Notas ao final do texto.

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1.2. Generalidades

A idéia de alimentos, no direito pátrio,prende-se à relação que obriga uma pessoa aprestar à outra o necessário para sua criação eeducação, ou seja, os recursos necessários àpessoa para atender às suas necessidadesfísicas, sociais e jurídicas.

Decorre o direito a alimentos, para uns, e aobrigação alimentar, para outros, de lei, detestamento, de sentença judicial, de contrato,etc.

Alimentos, em sentido estrito, são os prove-nientes do ius sanguinis (parentesco em linhareta consangüínea, ao infinito, e na colateral atéo 4º grau, também consangüínea). Vejamos aordem de preferência:

1º) art. 396, Código Civil 1 (parentesco);2º) art. 397, Código Civil 2 (recíproco entre

pais e filhos);3º) ascendentes, na ordem de proximidade,

na falta dos pais;4º) descendentes;5º) colaterais, até o 4º grau.Alimentos, em sentido lato, são aqueles que

derivam:

a) do parentesco (ius sanguinis): arts. 396 a398 do Código Civil3; art. 22 do Estatuto daCriança e do Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069/904; art. 227 e § 6º e art. 229 da Constituição daRepública5. Também denominados como legí-timos;

b) do casamento e sua dissolução: arts. 233,inciso IV, 221 e 234 do Código Civil6; arts. 19 a 22e 28 a 30 da Lei do Divórcio7; art. 1.121, incisosIII e IV, do Código de Processo Civil 8; e § 6º doart. 226 da Carta Federal9. São denominados comoconjugais;

c) da tutela: arts. 424, inciso I, e 425 doCódigo Civil10;

d) da doação: art. 1.183, inciso IV, do CódigoCivil11;

e) da responsabilidade civil por homicídio:art. 1.537, inciso II, do Código Civil12; e Súmula490 do Supremo Tribunal Federal13;

f) do legado específico: arts. 1.687, 1.690,1.691, 1.694 e 1.696, parágrafo único, do CódigoCivil14;

g) da adoção: § 6º do art. 227 da CartaSuprema14 e art. 41 do Estatuto da Criança e doAdolescente16;

h) da união estável ou concubinato: § 3º doart. 226 da Lei Básica Federal7; art. 1º da Lei nº8.971/9418 e arts. 2º, II, e 7º da Lei nº 9.278/9619;

i) da reparação por ato ilícito: arts. 1.539 e1.540 do Código Civil20 e art. 602 do Código deProcesso Civil21;

j) da lide processual: art. 224 do Código Civil22

(separação judicial); arts. 733 e 852 e seguintes doCódigo de Processo Civil23 (alimentos provi-sionais); art. 4º da Lei nº 5.478/6824 (alimentosprovisórios); e art. 7 º da Lei nº 8.560/9225; e

l) do contrato (contratuais).O direito a alimentos é personalíssimo,

irrenunciável, inalienável, irrepetível26, impenho-rável e recíproco, ou seja, não pode ser cedido,transmitido, transacionado, compensado ou res-tituído. Pode-se deixar de pedir alimentos (direitosubjetivo), mas não se pode renunciá-los:

SÚMULA nº 64, TFR: “A mulher quedispensou, no acordo de desquite, aprestação de alimentos, conserva, nãoobstante, o direito à pensão decorrentedo óbito do marido, desde que compro-vada a necessidade do benefício”.

SÚMULA nº 379, STF: “No acordode desquite não se admite renúncia aosalimentos, que poderão ser pleiteadosulteriormente, verificados os pressupos-tos legais”.

O art. 23 da Lei nº 6.515/77 (Lei do Divórcio)estabelece que “a obrigação de prestar alimentostransmite-se aos herdeiros do devedor”, naforma do art. 1.796 do Código Civil, em todos oscasos de prestação alimentícia, estando ab-rogado o art. 402 do Código Civil. Deve-seinterpretar que se transmite o débito existenteaté a data do falecimento do devedor (de cujus),até o limite da herança, conforme previsãoinfraconstitucional (art. 1.796, CC).

1.3. Pressupostosda obrigação alimentar

Baseando-se no art. 400 do Código Civil eno art. 854 do Código de Processo Civil, pode-seafirmar que a obrigação alimentar decorre dosseguintes pressupostos:

a) necessidade do reclamante (ausência debens e de condições para o próprio sustento); e

b) recursos (possibilidade, capacidade) dapessoa obrigada (reclamada).

Devem ser observados os princípios darazoabilidade e da proporcionalidade da

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prestação, sendo desnecessária a relação dedireito material (substancial) entre as partes.

1.4. Fixação dos alimentos

O art. 400 do Código Civil estabelece que“os alimentos devem ser fixados na proporçãodas necessidades do reclamante e dos recursosda pessoa obrigada”. O critério usual é a fixaçãodos alimentos em um terço ou 30% do querecebe (rendimentos) o alimentante, mas essafração ou percentagem pode elevar-se oureduzir-se, tendo em vista as peculiaridades docaso concreto. Vejamos alguns julgados:

DIREITO CIVIL – ALIMENTOS – IMPOS-SIBILIDADE – ALIMENTANTE – AUSÊNCIA DEELEMENTOS QUANTO AOS RENDIMENTOS DAAPELANTE – PRESUNÇÃO DE QUE A ALIMEN-TANTE RECEBA UM SALÁRIO MÍNIMO –INTELIGÊNCIA DO ART. 399 DO CÓDIGO CIVILE ART. 7º, VII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.Não havendo prova nos autos quanto aosrendimentos da alimentante, mas somentede que a mesma é diarista, presume-seque esta perceba um salário mínimo. Nãoé razoável a fixação de um salário mínimoa título de pensão alimentícia se aalimentante percebe, presumidamente,apenas esse salário. Isso tornaria inviávela execução da decisão judicial. Devem serdescontados do salário da alimentante,para fins de fixação da pensão, os gastosque a alimentante realiza com o seusustento e o de sua filha menor. Recursode apelação parcialmente provido parareduzir o percentual da pensão alimentíciapara 30% do salário mínimo. (TJDFT –Apelação Cível nº 40.542/96, 2ª TurmaCível, unân., Rel. Des. HermenegildoGonçalves, Ac. nº 91.980).

ALIMENTOS – MODIFICAÇÃO DE CLÁU-SULA. Somente em casos especiais, nosquais reste comprovada a impossibilidadereal de o alimentante arcar com a despesamensal de um salário mínimo, deve apensão ser fixada em menos de que este,dado ser o mínimo capaz de atender àsnecessidade vitais básicas – CF, art. 7º,IV (TJES – Ac. unânime da 2ª Câm. Cível,de 15.09.92 – Ap. 19.910 – Rel. Des. FeuRosa).

A decisão que fixa alimentos (provisória oudefinitiva) não faz coisa julgada material,sujeitando-se, se necessário, a posterior revisão.Nesse sentido, o art. 15 da Lei de Alimentos

esclarece que “a decisão judicial sobre alimentosnão transita em julgado e pode a qualquer temposer revista em face da modificação da situaçãofinanceira dos interessados”.

O advogado (defensor) deve proceder daseguinte maneira:

a) se mandatário do alimentante: requerer afixação dos alimentos em porcentagem fixa dosalário mínimo;

b) se mandatário do alimentando: requerer afixação dos alimentos em porcentagem fixa dosrendimentos do alimentante.

Cabe destacar, também, o enunciado daSúmula nº 490 do Supremo Tribunal Federal:

“A pensão correspondente à inde-nização oriunda de responsabilidade civildeve ser calculada com base no salário-mínimo vigente ao tempo da sentença eajustar-se-á às variações ulteriores”.

1.5. Modos da prestação

Os alimentos podem consistir em: a)pensionamento periódico do alimentando(prestação em dinheiro); b) constituição de certarenda em favor do alimentando; c) cessão dedireito (recebimento de aluguéis de prédio depropriedade do alimentante); d) sustento e hos-pedagem do alimentando; e) usufruto de deter-minado(s) bem(ns) do alimentante; etc.

É admissível a concomitância de duas oumais formas de prestação de alimentos, parasatisfazer a obrigação alimentar, decorrente dasnecessidades do alimentando.

1.6. Duração dos alimentos

Os alimentos são devidos durante o tempoem que subsistirem as necessidades do alimen-tando e as possibilidades do alimentante. Otermo inicial é a data da citação (conforme § 2ºdo art. 13 da Lei de Alimentos e entendimentodo Superior Tribunal de Justiça27). A jurispru-dência predominante assegura aos filhosuniversitários o direito a alimentos até a idadede 24 (vinte e quatro) anos28. Quanto aos filhosinválidos29, é pacífico o entendimento de queos alimentos perduram até o fim da invalidez oucom a morte.

A Súmula nº 226 do Supremo TribunalFederal enuncia que:

“Na ação de desquite, os alimentossão devidos desde a inicial e não da datada decisão que os concede”.

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Revista de Informação Legislativa192

1.7. Alimentos provisionaise provisórios

a) DiferençasDesignam-se alimentos provisionais30 os

destinados ao provimento do necessitado. Trata-se de medida cautelar solicitada pelo alimen-tando e deferida por juiz ou tribunal. Podem serrequeridos antes da ação principal ou no cursodesta, em qualquer fase do feito, mesmo napendência de recurso. Destinam-se ao sustentodo autor enquanto durar a demanda, inclusivepara pagamento das despesas processuais.Também podem ser concedidos na AçãoRevisional de Alimentos31. Estão previstos noart. 852 e seguintes do Código de Processo Civil.A Lei nº 883, de 21-10-49 (art. 5º), dispõe sobrealimentos provisionais em Ação de Investigaçãode Paternidade32.

Os alimentos provisórios têm, também,natureza cautelar. São requeridos ao juiz na Açãode Alimentos (art. 4º, Lei nº 5.478/68), podendoo magistrado deferir a medida liminar, fixandoprovisoriamente os alimentos. São requeridosinitio litis na ação principal.

b) SemelhançasTanto os alimentos provisórios quanto os

provisionais são temporários e destinam-se aosustento do requerente durante a lide (até otrânsito em julgado da causa). Os alimentosprovisórios serão devidos até a decisão final,inclusive o julgamento do recurso extraordinário(art. 13, § 3º, da Lei nº 5.478/68). Ambos podemser revistos a qualquer tempo, sendo, também,passíveis de execução forçada.

O art. 733 do Estatuto Processual Civil prevêa execução dos alimentos provisionais. Oreferido dispositivo é aplicável também aosalimentos provisórios e aos definitivos.

1.8. Revisão de alimentos

Pode haver exoneração ou extinção daobrigação alimentar, decorrente de casamento,morte, cessação da incapacidade para o tra-balho, idade ou emancipação do alimentando.O casamento ou nova união do alimentante nãoo exonera da obrigação alimentar, mesmo com oadvento de filho(s).

Os alimentos decorrentes do direito defamília, do ato ilícito e da vontade das partes(contratual) sujeitam-se à revisão, desde queocorra modificação das condições econômicasdo credor ou do devedor. Assim, os alimentossão regidos pela cláusula rebus sic stantibus.

As ligações íntimas do cônjuge separadoou divorciado com terceiros não exonera odevedor de prestação alimentícia da obrigação,pois, apesar da extinção dos deveres decoabitação e fidelidade, subsiste o dever demútua assistência. As ligações íntimas não sãomotivos para exoneração. É necessária a con-vivência contínua, em comum.

Ressalte-se, também, que a falta de paga-mento de pensão alimentícia (inadimplementoda obrigação), fixada na sentença (condenatóriaou homologatória) de separação, constitui óbicelegal à procedência do pedido de conversão daseparação em divórcio33.

A revisão se aplica aos alimentos provi-sórios, provisionais e definitivos. Os alimentosprovisórios fixados na inicial poderão ser re-vistos a qualquer tempo, se houver modificaçãona situação financeira das partes, mas o pedidoserá sempre processado em apartado (art. 13, §1º, Lei de Alimentos).

1.9. Prescrição

O direito (material) a alimentos é impres-critível, podendo ser requerido a qualquer tempopelo necessitado. O art. 23 da Lei de Alimentosesclarece que “a prescrição qüinqüenal referidano art. 178, § 10, I, do Código Civil, só alcançaas prestações mensais e não o direito aalimentos, que, embora irrenunciável, pode serprovisoriamente dispensado”. O art. 178, § 10,inciso I, do Diploma Material Civil estabeleceque as prestações de pensões alimentíciasprescrevem em cinco anos. Na sua defesa, podeo devedor (executado) alegar a prescrição,parcial ou total, se for o caso, visando diminuirou eximir-se do débito a ser solvido.

1.10. Imposto de rendaA prestação alimentícia pode ser abatida no

cálculo do imposto de renda a título de encargode família. As quantias recebidas em dinheiro,como alimentos ou pensões, constituemrendimentos tributáveis, salvo se inferior ao valorfixado como limite de isenção. O contribuinteque, em virtude de acordo ou sentença judicial,esteja obrigado a pagar pensão alimentícia à(s)ex-esposa(s) ou ao(s) descendente(s) decasamento(s) anterior(es) pode deduzir o valorefetivamente pago e ainda considerar a esposae os filhos do casamento atual como depen-dentes.

Em 5-10-95, o Coordenador-Geral do Sistemade Tributação expediu o Ato Declaratório nº 35,

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declarando, em caráter normativo, às Supe-rintendências Regionais da Receita Federal e aosdemais interessados que:

1 – Estão abrangidos pela isenção de que tratao art. 6º, inciso XXI, da Lei nº 7.713, de 22-12-88,acrescentado pelo art. 47 da Lei nº 8.541/92, osvalores recebidos a título de pensão em cumpri-mento de acordo ou decisão judicial, inclusive aprestação de alimentos provisionais, quando obeneficiário desses rendimentos for portador deuma das doenças relacionadas no inciso XIV doreferido art. 6º da Lei nº 7.713/88, com a novaredação dada pelo art. 47 da Lei nº 8.541/92.

2 – A doença deverá ser reconhecida pormeio de parecer ou laudo emitido por doismédicos especialistas na área respectiva ou porentidade médica oficial da União.

3 – A isenção se aplica aos rendimentos depensão recebidos a partir de 1º-1-93.

4 – Para as moléstias contraídas após 1 º-1-93,a isenção se aplica aos rendimentos recebidos apartir: a) do mês da emissão do laudo ou parecerque reconhecer a moléstia; b) da data em que adoença for contraída, quando identificada nolaudo ou parecer.

O art. 8º, inciso II, letra f, da Lei nº 9.250, de26-12-95, prevê deduções, na base de cálculodo imposto de renda, relativas às importânciaspagas a título de pensão alimentícia em face dasnormas do Direito de Família, quando emcumprimento de decisão judicial ou acordohomologado judicialmente, inclusive a prestaçãode alimentos provisionais. A Instrução Norma-tiva nº 90, de 24-12-97, do Secretário da ReceitaFederal, que dispõe sobre a apresentação, pelaspessoas físicas, da Declaração de Ajuste Anual,prevê a dedução do valor total pago a título depensão alimentícia em face das normas do Direitode Família, por força de decisão judicial ou acordohomologado judicialmente, inclusive o valor dosalimentos provisionais.

O art. 20 da Lei nº 5.478/68 estabelece que“as repartições públicas, civis ou mili-tares, inclusive do Imposto da Renda,darão todas as informações necessáriasà instrução dos processos previstosnesta Lei e à execução do que for decididoou acordado em juízo”.

2. Execuçãoda prestação alimentícia

A base legal está nos artigos 732 a 735 doCódigo de Processo Civil e art. 16 e seguintes

da Lei nº 5.478/68. O art. 13, caput, da Lei deAlimentos estabelece que o disposto nesta Leiaplica-se igualmente, no que couber, às açõesordinárias de desquite (separação judicial), nuli-dade e anulação de casamento, à revisão desentenças proferidas em pedidos de alimentose respectivas execuções.

2.1. Da execução

O alimentante deve pagar, nas datas esta-belecidas, os valores a que ficou obrigado, sobpena de ser executado civilmente e de serresponsabilizado penalmente (art. 244, CódigoPenal). Deve fundar-se em título executivojudicial ou extrajudicial. O próprio devedor podepropor a ação de execução, citando o credor(alimentando), para receber a quantia devida34.Entretanto, a ação de execução de prestaçãoalimentícia, geralmente, é proposta pelo credor,principal interessado em seu adimplemento.

Dado o caráter especialíssimo da prestaçãode alimentos, o legislador acrescentou aoprocedimento geral (idêntico ao da execução porquantia certa contra devedor solvente) algumaspeculiaridades, como frisado e que consistemno seguinte:

a) a execução se funda em sentença(condenatória ou homologatória), acórdão ouacordo extrajudicial, que deve conter a quantiacerta a que foi o réu condenado ou a que secomprometeu;

b) não comporta liquidação por artigos, comoreconhece a jurisprudência. Quando muito sesubmeterá a algum cálculo, de atualização, a serrealizado pela parte (Lei nº 8.898/94), caso nãose encontrarem nos autos elementos deconvicção que autorizem arbitramento seguro eeqüitativo;

c) deve ser obedecida a seguinte ordem, emobservância ao princípio de que a execução far-se-á pelo modo menos gravoso para o devedor(art. 620, CPC):

I) desconto em folha35: quando o devedorfor funcionário público civil (arts. 45 e 48, Lei nº8.112/90), militar, diretor ou gerente de empresa,bem como empregado sujeito à legislação dotrabalho (art. 734, CPC, e art. 16, Lei de Alimentos)e, também, se for beneficiário do InstitutoNacional de Seguro Social – INSS (art. 115, IV,da Lei nº 8.213/91). Neste caso, deve ser oficiadoo empregador ou órgão responsável. No ofício,deve constar a qualificação do devedor, inclusiveo número do CPF, carteira de identidade (RG) e a

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Revista de Informação Legislativa194

prestação estabelecida, visando individualizaro devedor e facilitar a realização da prestaçãoalimentar;

II) rendimento das rendas do alimentante: oart. 17 da Lei nº 5.478/68 permite que as pres-tações alimentícias sejam cobradas de aluguéisde prédios e quaisquer outros rendimentos dodevedor (dividendos de ações, por exemplo),que serão recebidos diretamente pelo alimen-tando ou por depositário nomeado pelo juiz.Trata-se de cessão de crédito compulsória;

III) depósito em conta bancária: quando forconveniente para o credor, sendo este possuidorde conta-corrente em instituição financeirapública ou privada;

IV) pagamento direto ao próprio credor ou apessoa habilitada: quando a relação entre ali-mentante e alimentando for harmoniosa;

V) constituição de usufruto: se o cônjuge(credor) preferir, o juiz poderá determinar que apensão consista no usufruto de determinadosbens do cônjuge devedor. Pela lei processualcomum, caberá a outros alimentandos o direitode usufruto;

VI) execução específica: não sendo possívela satisfação do julgado ou do acordo, pelosmeios já expostos, terá aplicação o art. 733, CPC;

VII) garantia real ou fidejussória: trata-se demedida cautelar prevista nos arts. 826 a 838 doCPC. Beneficia o cônjuge, podendo ser esten-dida aos filhos. O art. 602, § 2º, CPC, permitesubstituir a constituição do capital por cauçãofidejussória se a obrigação resultar de ato ilícito;

VIII) execução por quantia certa contradevedor solvente; não alcançando êxitonenhuma das hipóteses anteriores, o exeqüentepoderá, ainda, fazer uso desta modalidade deexecução.

2.2. Alimentos devidospela Fazenda Pública

O crédito de natureza alimentícia define-sepor seu objeto, destinando-se a garantir asubsistência do credor e de sua família,incluindo-se nessa classe, entre outros, asprestações salariais, os benefícios previden-ciários, os vencimentos de servidores públicos,a remuneração de celetistas, as vantagensfuncionais acessórias, os honorários cobradospor profissionais liberais, as indenizações poracidente de trabalho, morte ou invalidezfundadas na responsabilidade civil36.

O Texto Magno de 198837 e os TextosRegionais de 198938 estabelecem que os créditosde natureza alimentícia não estão sujeitos aoprecatório. Diante dos dispositivos consti-tucionais, conclui-se que aqueles devem serpagos imediatamente.

O CPC consagrou a execução contra aFazenda Pública nos arts. 730 e 731. De acordocom esses dispositivos, na execução porquantia certa contra a Fazenda Pública (Federal,Estadual, Distrital ou Municipal, e respectivasautarquias e fundações públicas), citar-se-á adevedora para opor embargos em dez dias; seesta não os opuser, no prazo legal, observar-se-ão as seguintes regras: a) o juiz requisitará opagamento por intermédio do presidente dotribunal competente; b) far-se-á o pagamentona ordem de apresentação do precatório e àconta do respectivo crédito. Se o credor forpreterido no seu direito de preferência, o pre-sidente do Tribunal, que expediu a ordem,poderá, depois de ouvido o Procurador-Geral(da República ou de Justiça), ordenar o seqües-tro da quantia necessária para satisfazer o dé-bito.

As pensões alimentícias devem ser pagasfora do regime dos precatórios, mas pela forçados recursos orçamentários, com o que a decisãojudicial poderia ser estendida ao Legislativo,para que autorizasse verbas suplementares efontes de receitas, a fim de que, no próprioexercício financeiro, tenha-se verba necessáriaao seu cumprimento39.

Esse, entretanto, não tem sido o entendi-mento dos Tribunais pátrios. O STF tementendido, com base no art. 4º da Lei nº 8.197/91, que também os créditos de naturezaalimentícia sujeitam-se à ordem cronológica dosprecatórios, isentando-os da observância daordem cronológica em relação às dívidas de outranatureza, porventura mais antigas40. Assim,deve ser elaborada uma lista dúplice: uma paraos créditos de natureza alimentar e outra paraos de natureza diversa (demais créditos). O STJtem seguido o mesmo posicionamento (Súmula144). Tais créditos devem ser pagos em únicavez, atualizados. A Portaria nº 50/95 do Conselhode Justiça Federal determina que o valor sejaatualizado41. Vejamos as súmulas dos Tribunais:

Súmula nº 144, STJ: “Os créditos denatureza alimentícia gozam de preferência,desvinculados os precatórios da ordemcronológica dos créditos de naturezaadversa”.

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Súmula nº 4, TRF-1ª Região: “Apreferência prevista no art. 100, caput, daConstituição Federal não obriga a Fazen-da Pública a dispensar a expedição deprecatório no pagamento dos créditos denatureza alimentícia”.

Súmula nº 1, TRF-5ª Região: “Naexecução de dívida alimentícia da FazendaPública, observa-se o rito do art. 730, CPC,expedindo-se precatório cujo pagamentotem preferência em classe especial”.

Com relação ao INSS, Antonio Carlos Polinie Francisco Antonio Zem Peralta42 esclarecemque “o instituto segurador social, mesmo sendoautarquia federal, jamais poderá integrar oconceito de Fazenda Pública quando chamadoa cumprir a obrigação precípua de pagamentode benefícios e suas revisões, e o próprio fundoprevidenciário/acidentário nunca poderá serconfundido como integrante do patrimôniopúblico ou de verba pública, fatos que tornaminaplicáveis os dispositivos da Lei 8.197/91 edo Decreto 430/91 aos débitos previdenciários”.

Os mesmos juristas ilustram o nobre enten-dimento do Juiz Renato Sartorelli43, expresso numacórdão do Egrégio Segundo Tribunal de AlçadaCivil de São Paulo:

“Conclui-se, pois, que a r. decisãocombatida, confortada pelo art. 100 daCarta Constitucional, deve subsistir, sejaporque os créditos acidentários têmcaráter alimentar, seja porque a normaconstitucional invocada e a Lei 8.197/91são conflitantes, donde, por decorrêncialógica e jurídica, aquela sobrepuja estana regência da questão em debate, semcontar que a Lei 8.213/91 (art. 128) afastoudefinitivamente qualquer interpretação nosentido da manutenção do sistema deprecatórios para as verbas de naturezaalimentar (Ac. Unânime da 1ª Turma do2º TACSP – Ag. 355.442/0-00 – Rel. JuizRenato Sartorelli, j. 15.6.92).

O Presidente do Instituto Nacional do SeguroSocial (INSS) reconheceu o caráter alimentar doscréditos decorrentes de condenação judicialenvolvendo benefícios e autorizou a quitaçãode todos os precatórios judiciais dentro dopróprio mês de sua apresentação, colocandocomo única condição a existência de recursosno orçamento (Resolução nº 102, de 25-6-92,publicada no DOU de 29-6-92, Seção I, p. 82.169).Cabe ressaltar, ainda, que o art. 128 da Lei nº8.213/91 (Planos de Benefícios da PrevidênciaSocial), com redação dada pela Lei nº 8.620, de

5-1-93, regula que as demandas judiciais quetiverem por objeto as questões previdenciárias(benefícios e indenização acidentária), de valornão superior a Cr$1.000.000,00 (um milhão decruzeiros) por autor, serão liquidadas ime-diatamente, não se lhes aplicando o dispostonos artigos 730 e 731 do Código de ProcessoCivil. Nesses casos e obedecido o teto fixado, aexecução processa-se imediatamente, sendoinaplicável o procedimento dos precatóriosjudiciais, previstos constitucional e legalmente.

Entretanto, o Supremo Tribunal Federal(ADIn nº 1.252-5, Tribunal Pleno, em 28-5-97)declarou a inconstitucionalidade do art. 128, infine, da Lei nº 8.213/91, com redação dada pelaLei nº 8.620, de 5-1-93. Essa decisão considerouinconstitucional a expressão “e liquidadasimediatamente, não se lhes aplicando o dispostonos artigos 730 e 731 do Código de ProcessoCivil”. Assim, até os créditos previdenciáriosestão sujeitos ao regime dos precatórios (art.100, CF/88, e arts. 730 e 731, CPC).

2.3. Alimentos devidosno estrangeiro

A sentença estrangeira deve ser homologadano Brasil. O Supremo Tribunal Federal é o órgãojudiciário competente para a homologação44. AProcuradoria-Geral da República é a instituiçãointermediária responsável pelo cumprimento dassentenças alienígenas (art. 26 da Lei de Ali-mentos) quando o devedor residir no territórionacional. A execução deve ser processadaperante a Justiça Comum Federal (art. 109, incisoX, da Constituição da República). O DecretoLegislativo nº 10, de 13-11-58, e o Decreto nº56.826, de 2-9-65 (Convenção sobre prestaçãode alimentos no estrangeiro) também tratamdesse assunto.

2.4. Prisão do devedor

Refere-se a coerção do alimentante por pri-são civil, se não cumprido o dever de pagar aprestação alimentícia. Em palestra proferida naUniversidade Federal de Uberlândia (Curso deEspecialização em Direito Processual Civil), em27 de novembro de 1992, o Professor DonaldoArnelim afirmou que “o Direito ProcessualBrasileiro não funciona efetivamente e há umanecessidade de se buscar o Direito Penal parafazer cumprir as decisões processuais civis”.

Pelo rito da constrição pessoal, o credordeverá citar o devedor para em três dias: efetuaro pagamento; provar que já o fez ou justificar

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(por escrito) a impossibilidade do cumprimentoda prestação.

O juiz concederá prazo razoável para oalimentante cumprir a prestação, se provada aimpossibilidade momentânea. A impossibilidadedo cumprimento da prestação pode ser justi-ficada mesmo depois de decretada a prisão.

A prisão civil não tem caráter de cumprimentode pena, mas de sanção que subsiste apenasenquanto a obrigação não é prestada45. Odevedor não pode pretender o cumprimento daordem em prisão albergue domiciliar; mas poderáem quartel ou prisão especial46 se, por suascondições pessoais, a tal benefício tiver direito.Na falta de estabelecimento adequado, ocumprimento da prisão civil se efetivará emseção especial da Cadeia Pública (art. 201 da Leinº 7.210/84 – Lei de Execuções Penais).

Só cabe habeas corpus no restrito âmbitoda apreciação dos aspectos formais da decre-tação da pena ou quando é decretada a prisãoantes de esgotados outros meios para aexecução civil. Cabe, também, contra decisãonão-fundamentada. Não cabe habeas corpus(preventivo) contra: a) a decisão relacionada afixação de alimentos; b) a decisão que rejeita aalegação de falta de recursos pecuniários doalimentante; e c) a ameaça de prisão, caso o de-vedor não pague a prestação.

A prisão do alimentante deve ser decretadasomente se for pedida pelo alimentando. Assim,não pode ser decretada de ofício pelo juiz. Estenão pode admitir a prestação de fiança, nem obenefício da liberdade provisória.

O Código Penal (art. 244) cuida do crime deabandono material, punindo a falta de paga-mento de pensão alimentícia judicialmentefixada47. A ação penal por esses crimes inde-pende da ação de execução de prestação alimen-tícia48.

Constitui crime contra a administração daJustiça deixar o empregador ou funcionáriopúblico de prestar ao juízo competente asinformações necessárias à instrução de pro-cesso ou execução de sentença ou acordo quefixe pensão alimentícia (art. 22 e parágrafo únicoda Lei de Alimentos).

A prisão civil do devedor de alimentosinadimplente pode ser decretada e impostatantas e quantas vezes forem necessárias parao cumprimento da obrigação. O cumprimentointegral da pena de prisão não exime o devedordo pagamento das prestações alimentícias,

vincendas ou vencidas e não-pagas (art. 19, §1º, da Lei de Alimentos).

O prazo de duração da prisão é diferenciado:a) na execução de alimentos provisionais,

pode ser estabelecida de um a três meses (art.733, § 1 º, CPC);

b) na execução de alimentos definitivos, oprazo máximo é de até sessenta dias (art. 19 daLei nº 5.478/68).

Cabe salientar que o art. 5º, inciso LXVII, daCarta Federal de 1988 estabelece que

“não haverá prisão civil por dívida, salvoa do responsável pelo inadimplementovoluntário e inescusável de obrigaçãoalimentícia e a do depositário infiel”.

O art. 7º, Parágrafo 7º, da ConvençãoAmericana sobre Direitos Humanos (Pacto deSan José de Costa Rica), de 1969, ratificada peloBrasil em 26-5-92, por meio do Decreto Legis-lativo nº 27, prescreve:

“Ninguém deve ser detido por dívidas.Esse princípio não limita os mandados deautoridade judiciária competente expe-didos em virtude de inadimplemento deobrigação alimentar”.

2.5. Foro competente

De acordo com o art. 100, inciso II, doDiploma Processual Civil, é competente paraprocessar e julgar o processo de execução ojuízo do foro do domicílio ou residência doalimentando, prevalecendo este dispositivosobre o art. 575, inciso II, da mesma norma. Essetambém é o entendimento do STJ, salvo se açãode alimentos ainda estiver tramitando 49.Entretanto, se o alimentando mudar de residên-cia, pode executar a sentença no foro diferentedaquele da ação de conhecimento. Há entendi-mento diverso, prejudicial aos hipossuficientes(alimentandos), compreendendo que a compe-tência do juízo da fixação dos alimentos éabsoluta, devendo neste ser processada tambéma ação de execução. Convém salientar que aprimazia do foro, em favor do alimentando,decorre das dificuldades que este enfrentaria setivesse que dirigir até o foro do domicílio doalimentante, o que em muitos casos, certamente,ensejaria a obstacularização do seu direito ouaté a sua inércia. A título de argumentação, oSTJ tem se posicionado, em casos semelhantes,a favor do hipossuficiente, como fez o legislador:

SÚMULA nº 1, STJ: “O foro dodomicílio ou da residência do alimen-

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tando é o competente para a ação deinvestigação de paternidade quandocumulada com a de alimentos”.

De acordo com a Resolução nº 274, publi-cada em 17-2-95, expedida pelo Presidente daCorte Superior do Tribunal de Justiça do Estadode Minas Gerais (TJMG), o processamento e ojulgamento das ações de alimentos e partilha,fundadas, as primeiras, no art. 1º e parágrafo, e,as segundas, nos arts. 2º e 3º, todos da LeiFederal nº 8.971, de 29-12-94, competirão às VarasEspecializadas de Família e Sucessões, respecti-vamente, onde houver. As ações originárias eos recursos respectivos serão apreciados peloTribunal de Justiça (art. 106, I, “c”, “d” e “g”, eII, “c”, da Constituição do Estado de MinasGerais). O Tribunal de Justiça do Estado de SantaCatarina (TJSC) compartilha desse mesmoentendimento.

Cabe ressaltar, ainda, que a Lei nº 9.278, de10 de maio de 1996, que regula o § 3º do art. 226da Constituição Federal, estatui: “Toda matériarelativa à união estável é de competência dojuízo da Vara de Família, assegurado o segredode justiça” (art. 9º). A Corregedoria-Geral deJustiça do Estado do Rio de Janeiro publicouseus entendimentos referentes à Lei nº 9.278/96. O Enunciado nº 8 tem a seguinte redação:

“As ações fundadas em união estável,relativas a alimentos, são da competênciadas Varas de Família (unânime)”.

2.6. Citação

Nos termos dos arts. 222, letra “d”, e 224 doEstatuto Processual Civil, com redação dada pelaLei 8.710/93, a citação será feita por oficial dejustiça (mandado) nos processos de execução.Se o executado for domiciliado em comarca oupaís diverso, proceder-se-á a citação por cartaprecatória ou rogatória, respectivamente.Frustrada a citação por oficial de justiça, far-se-á por edital. É vedada a citação postal (pelocorreio).

Nas ações de conhecimento, a citação dodevedor poderá ser feita pelo correio, medianteremessa realizada pelo escrivão (art. 5º da Lei deAlimentos).

2.7. Petição inicial

Devem ser observados os requisitos dosarts. 282 e 733 do CPC. Geralmente, deve serdistribuída por dependência e apensada aosautos do processo de conhecimento anterior50

(alimentos, divórcio, separação, investigação depaternidade, indenização por ato ilícito, etc.). Seo executado for domiciliado no mesmo domicíliodo credor, a citação será por oficial de justiça(mandado). Todavia, se o executado tiverdomicílio fora da comarca, deve ser requerida acitação por carta precatória ou rogatória. Deveser requerida a intimação do Ministério Públicopara intervir no feito. O valor da causa é ocorrespondente ao total das prestações devidas,devendo ser requerido o pagamento dasprestações vencidas e vincendas. A atualizaçãodos valores deve ser realizada pelo exeqüente,conforme determinação da Lei nº 8.898/94, quedeu nova redação ao art. 604, CPC.

2.8. Ritos

Há dois ritos. Se o credor optar pelo rito doart. 733, CPC51, o devedor não deve depositarquantia para oposição de embargos, pois estesnão podem ser manuseados nesse rito. Verifi-cada a impossibilidade de cumprimento daobrigação, deve ser feita a justificação, sob penade prisão. Optando o credor pelo rito estipuladono art. 732 do Diploma Processual Civil, não podepedir a prisão do devedor, prevista no art. 733,CPC; nem pode o devedor alegar impossibilidadede cumprir a obrigação. Este, nomeando bens apenhora, deverá defender-se mediante embar-gos de devedor.

O Professor Humberto Theodoro Junior52

ensina que“pode perfeitamente iniciar-se o processoexecutivo por qualquer dos dois cami-nhos legais”.“Mas a escolha da primeira opção nãolhe veda o direito de, após a prisão ou ajustificativa do devedor, pleitear o pros-seguimento da execução por quantiacerta, sob o rito comum das obrigaçõesdessa natureza (art. 733, § 2º), caso aindapersista o inadimplemento.”

2.9. Ministério público

O parquet geralmente atua como custo legis(fiscal da lei), podendo atuar como substitutoprocessual, visto ser legítimo representante dosinteresses dos civilmente incapazes e hipos-suficientes (por exemplo, na actio ex delito53).

Quando atua como custo legis, não temlegitimidade para requerer a prisão do alimen-tante. Se num dos pólos da relação jurídicahouver incapaz, a atuação do Ministério Público

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fica vinculada aos interesses do assistido(incapaz). Trata-se de hipótese de legitimaçãointerventiva assistencial.

Nos termos do art. 201, inciso III, do Estatutoda Criança e do Adolescente, o Ministério Públi-co tem legitimidade ativa para “promover e acom-panhar as ações de alimentos”. O § 1º do refe-rido artigo ressalta que “a legitimação doMinistério Público para as ações cíveis previs-tas neste artigo não impede a de terceiros, nasmesmas hipóteses, segundo dispuserem aConstituição e esta lei”. Esta legitimação doparquet se restringe aos casos em que o menorse encontra em situação irregular. Nesse caso, aVara da Infância e da Juventude, se existente nacomarca ou circunscrição, será competente paraprocessar e julgar a ação.

Para Yussef Said Cahali, “o que se temadmitido é que, manifestada a pretensão ali-mentícia pelo interessado (ou por seu represen-tante legal, se incapaz), seja por petição, sejapor termo em audiência perante o magistrado,sem indicação de advogado ou nomeação deofício do profissional, intervenha o MinistérioPúblico para referendá-lo, quer como fiscal dalei, quer para velar pelos interesses do menor,com o prosseguimento regular da ação, com oentendimento, inclusive, de que, a partir daí, aprópria desistência manifestada pelo represen-tante do menor pode ser obstada pelo MinistérioPúblico, no pressuposto de que se trata dedireito indisponível (Dos Alimentos. São Paulo,p. 508).”54

2.10. Recursos

Da sentença que fixa o valor da prestaçãoalimentícia cabe recurso de apelação com efeito,apenas, devolutivo, possibilitando a execuçãoprovisória (art. 14 da Lei de Alimentos). Poderá,entretanto, ser concedido, pelo relator daapelação, o efeito suspensivo (art. 558, pará-grafo único, c/c 520, II, CPC).

Do indeferimento ou deferimento (art. 19, §2º, da Lei de Alimentos) do pedido de prisãocabe agravo de instrumento, que poderá terefeito suspensivo, conforme estabelece o art.527, II, c/c art. 558, do CPC, diploma processualque tem aplicação supletiva nos processos dealimentos (art. 27, Lei nº 5.478/68). O efeitosuspensivo deverá ser requerido nas razõesrecursais do agravante, ao relator, se da prisãocivil puder resultar lesão grave e de difícilreparação, sendo relevante a fundamentação.Se o relator atribuir efeito suspensivo ao agravo,

a medida coercitiva ficará suspensa até opronunciamento definitivo da turma ou câmararecursal, devendo a decisão do relator sercomunicada ao juiz recorrido.

Cabe agravo de instrumento contra a decisãodo juiz que mandar citar o devedor, causandogravame à parte.

O Supremo Tribunal Federal tem reco-nhecido que: “A beneficiária de alimentos, nostermos do art. 920, CPC, tem legítimo interesseem recorrer da decisão concessiva de habeascorpus em favor do devedor inadimplente”55.

2.11. Observações finais

O Projeto de Código Civil, aprovado peloSenado, dispõe sobre os alimentos (arts. 1.722 a1.739). Apenas nas hipóteses dos alimentosdecorrentes do casamento é que existem res-trições relevantes. Vejamos:

“Art. 1.722. Podem os parentes ou oscônjuges pedir uns aos outros os alimen-tos de que necessitam para viver do modocompatível com a sua condição social,inclusive para atender às necessidadesde sua educação, quando o beneficiáriofor menor.

§ 1º Os alimentos devem ser fixadosna proporção das necessidades do recla-mante e dos recursos da pessoa obrigada.

§ 2º Os alimentos serão apenas osindispensáveis à subsistência, quando asituação de necessidade resultar de culpade quem os pleiteia.

Art. 1.723. São devidos os alimentosquando quem os pretende não tem benssuficientes, nem pode prover, pelo seutrabalho, à própria mantença, e aquele,de quem se reclamam, pode fornecê-los,sem desfalque do necessário ao seusustento.

Art. 1.724. O direito à prestação dealimentos é recíproco entre pais e filhos,e extensivo a todos os ascendentes,recaindo a obrigação nos mais próximosem grau, uns em falta de outros.

Art. 1.725. Na falta dos ascendentescabe a obrigação aos descendentes, guar-dada a ordem de sucessão e, faltandoestes, aos irmãos, assim germanos comounilaterais.

Art. 1.726. Se o parente, que deve ali-mentos em primeiro lugar, não estiver emcondições de suportar totalmente o

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encargo, serão chamados a concorrer osde grau imediato. Sendo várias as pesso-as obrigadas a prestar alimentos, todasdevem concorrer na proporção dos res-pectivos recursos. Intentada ação contrauma delas, poderão as demais ser chama-das a integrar a lide.

Art. 1.727. Se, fixados os alimentos,sobrevier mudança na situação patrimo-nial de quem os supre, ou na de quem osrecebe, poderá o interessado reclamar aojuiz, conforme as circunstâncias, exone-ração, redução ou agravação do encargo.

Art. 1.728. A obrigação de prestaralimentos não se transmite aos herdeirosdo devedor.

Art. 1.729. A pessoa obrigada a supriralimentos poderá pensionar o alimen-tando, ou dar-lhe hospedagem e sustento,sem prejuízo do dever de prestar o neces-sário à sua educação, quando menor.

Parágrafo único. Compete, porém, aojuiz, se as circunstâncias o exigirem, fixara forma do cumprimento da prestação.

Art. 1.730. Na separação judicial liti-giosa, sendo um dos cônjuges inocentee desprovido de recursos, prestar-lhe-á ooutro a pensão alimentícia que o juiz fixar,obedecidos os critérios estabelecidos noart. 1.722.

Art. 1.731. Para a manutenção dosfilhos, os cônjuges separados judicial-mente contribuirão na proporção de seusrecursos.

Art. 1.732. Se um dos Cônjuges sepa-rados judicialmente vier a necessitar dealimentos, será o outro obrigado a pres-tá-los mediante pensão a ser fixada pelojuiz, caso não tenha sido consideradoculpado na separação judicial.

Parágrafo único. Se o cônjuge consi-derado culpado vier a necessitar de ali-mentos, e não tiver parentes em condi-ções de prestá-los, e nem aptidões para otrabalho, o outro cônjuge será obrigadoa fazê-lo, fixando o juiz apenas o indis-pensável à subsistência.

Art. 1.733. Para obter alimentos,também os filhos adulterinos, que nãosatisfaçam aos requisitos do art. 1.624 eseu parágrafo único, bem como os inces-tuosos, podem acionar os genitores, emsegredo de justiça.

Art. 1.734. Os alimentos provisionaisserão fixados pelo juiz, nos termos da leiprocessual.

Art. 1.735. Pode-se deixar de exercer,mas não se pode renunciar o direito a ali-mentos, nem pode o respectivo créditoser objeto de cessão, transação, compen-sação ou penhora.

Art. 1.736. Ao cônjuge separado judi-cialmente não cabem alimentos, enquantoviver em concubinato, ou tiver procedi-mento indigno.

Art. 1.737. O casamento ou o concubi-nato do credor da pensão alimentíciadeterminará a sua extinção.

Art. 1.738. Se o cônjuge devedor daobrigação vier a casar-se, o novo casa-mento não altera a sua obrigação.

Art. 1.739. As prestações alimentícias,de qualquer natureza, serão corrigidasmonetariamente obedecendo à variaçãonominal da Obrigação Reajustável doTesouro Nacional - ORTN.”

O art. 3º, § 3º, da Constituição do Estado doAmazonas assegura que “o julgamento da açãode inconstitucionalidade, do habeas corpus, domandado de segurança individual ou coletivo,do habeas data, do mandado de injunção, daação popular, da ação indenizatória por errojudiciário, das ações de alimentos e da ação rela-tiva aos atos de lesa-natureza terá preferênciaabsoluta sobre quaisquer outros”. Esse enten-dimento deveria ser consagrado ou recepcio-nado pelos Poderes Legislativo e Judiciário daUnião e dos demais Estados da Federação.

BibliografiaBITTENCOURT, Edgard de Moura. Alimentos. 4.

ed. São Paulo : LEUD, 1979.

CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. São Paulo :Revista dos Tribunais. [1984?].

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NEGRÃO, Theotônio. Código de processo civil elegislação processual em vigor. 25. ed. São Paulo :Malheiros, 1994.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento depaternidade e seus efeitos. 5. ed. Rio de Janeiro :Forense, 1996.

PORTO, Sérgio Gilberto. Doutrina e prática dosalimentos. Rio de Janeiro: Aide,1985.

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THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de DireitoProcessual Civil. 16. ed. Rio de Janeiro : Forense,1996. v. 2.

Notas1 Art. 396, Código Civil: “De acordo com o

prescrito neste Capítulo podem os parentes exigiruns dos outros os alimentos de que necessitem parasubsistir.”

2 Art. 397, Código Civil: “O direito à prestaçãode alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivoa todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos maispróximos em grau, uns em falta de outros.”

3 Art. 398, Código Civil: “Na falta dos ascen-dentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada aordem da sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assimgermanos, como unilaterais.” Os artigos 396 e 397,CC, foram citados em notas anteriores.

4 Art. 22, ECA: “Aos pais incumbe o dever desustento, guarda e educação dos filhos menores,cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigaçãode cumprir e fazer cumprir as determinaçõesjudiciais.”

5 CF/88, art. 227, § 6º: “Os filhos, havidos ou nãoda relação do casamento, ou por adoção, terão osmesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquerdesignações discriminatórias relativas à filiação.” Art.229: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educaros filhos menores, e os filhos maiores têm o dever deajudar e amparar os pais na velhice, carência ouenfermidade.”

6 Código Civil, art. 233, inciso IV: “O marido é ochefe da sociedade conjugal, função que exerce com acolaboração da mulher, no interesse comum do casale dos filhos (arts. 240, 247 e 251). Compete-lhe: (...)IV - prover a manutenção da família, guardadas asdisposições dos arts. 275 e 277.” Art. 221: “Emboraanulável, ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé porambos os cônjuges, o casamento, em relação a estescomo aos filhos, produz todos os efeitos até o dia dasentença anulatória. Parágrafo único. Se um doscônjuges estava de boa-fé, ao celebrar o casamento,os seus efeitos civis só a esses e aos filhos apro-veitarão.” Os alimentos são devidos no casamentoputativo, de acordo com o entendimento do STF,consubstanciado no REx. 81.105, em 5-9-78: anuladoo casamento, porém declarado putativo, o “cônjuge”inocente tem direito a alimentos, sem limitação notempo, Relator: Ministro Cordeiro Guerra. RJTJESPn. 56, p. 38. Art. 234: “A obrigação de sustentar amulher cessa, para o marido, quando ela abandonasem justo motivo a habitação conjugal, e a esta recusavoltar. Neste caso, o juiz pode segundo as circuns-tâncias, ordenar, em proveito do marido e dos filhos,o seqüestro de parte dos rendimentos particulares damulher.”

7 Lei nº 6.515/77, art. 19: “O cônjuge responsávelpela separação judicial prestará ao outro, se delanecessitar, a pensão que o juiz fixar.” Art. 20: “Para amanutenção dos filhos, os cônjuges, separadosjudicialmente, contribuirão na proporção de seusrecursos.” Art. 21: “Para assegurar o pagamento dapensão alimentícia, o juiz poderá determinar aconstituição de garantia real ou fidejussória. § 1º Se ocônjuge credor preferir, o juiz poderá determinar quea pensão consista no usufruto de determinados bensdo cônjuge devedor. § 2º Aplica-se, também, odisposto no parágrafo anterior, se o cônjuge credorjustificar a possibilidade do não-recebimento regularda pensão.” Art. 22: “Salvo decisão judicial, asprestações alimentícias, de qualquer natureza, serãocorrigidas monetariamente na forma dos índices deatualização das Obrigações do Tesouro Nacional –OTN. Parágrafo único. No caso do não-pagamento, odevedor responderá, ainda, por custas e honoráriosde advogado apurados simultaneamente.” Art. 28:“Os alimentos devidos pelos pais e fixados nasentença de separação poderão ser alterados aqualquer tempo.” Art. 29: “O novo casamento docônjuge credor da pensão extinguirá a obrigação docônjuge devedor.” Art. 30: “Se o cônjuge devedor dapensão vier a casar-se, o novo casamento não alterarásua obrigação.”

8 O art. 1.121 do CPC trata da Separação JudicialConsensual, estabelecendo que “a petição, instruídacom a certidão de casamento e o contrato antenupcialse houver, conterá: (...) III - o valor da contribuiçãopara criar e educar os filhos; IV - a pensão alimentíciado marido à mulher, se esta não possuir benssuficientes para se manter.”

9 Art. 226, § 6º, CF/88: “O casamento civil podeser dissolvido pelo divórcio, após prévia separaçãojudicial por mais de um ano nos casos expressos emlei, ou comprovada separação de fato por mais dedois anos.”

10 Código Civil, art. 424, I: “Cabe ao tutor, quantoà pessoa do menor: I - dirigir-lhe a educação, defendê-lo e prestar-lhe alimentos, conforme os seus haverese condição”. Art. 425: “Se o menor possuir bens, serásustentado e educado a expensas suas, arbitrando ojuiz, para tal fim, as quantias, que lhe pareçamnecessárias, atento o rendimento da fortuna do pupilo,quando o pai, ou a mãe, não as houver taxado.”

11 Art. 1.183, IV, Código Civil: “Só se podemrevogar por ingratidão as doações: (...) IV - se,podendo ministrar-lhos, recusou ao doador osalimentos, de que este necessitava.”

12 Art. 1.537, II, Código Civil: “A indenização,no caso de homicídio, consiste: (...) II - na prestaçãode alimentos às pessoas a quem o defunto os devia.”

13 Súmula nº 490, STF: “A pensão correspondenteà indenização oriunda de responsabilidade civil deveser calculada com base no salário-mínimo vigente aotempo da sentença e ajustar-se-á às variaçõesulteriores”.

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14 Código Civil, art. 1.687: “O legado de alimentosabrange o sustento, a cura, o vestuário e a casa,enquanto o legatário viver, além da educação, se elefor menor.” Art. 1.690: “O legado puro e simplesconfere, desde a morte do testador, ao legatário odireito, transmissível aos seus sucessores, de pediraos herdeiros instituídos a coisa legada. Parágrafoúnico. Não pode, porém, o legatário entrar, porautoridade própria, na posse da coisa legada.” Art.1.691: “O direito de pedir o legado não se exercerá,enquanto litigue sobre a validade do testamento, e,nos legados condicionais, ou a prazo, enquanto pendaa condição, ou o prazo se não vença.” Art. 1.694: “Seo legado consistir em renda vitalícia, ou pensãoperiódica, esta, ou aquela, correrá da morte dotestador.” Art. 1.695: “Se o legado for de quantidadecerta, em prestações periódicas, datará da morte dotestador o primeiro período, e o legatário terá direitoa cada prestação, uma vez encetado cada um dosperíodos sucessivos, ainda que antes do termo delevenha a falecer.” Art. 1.696: “Sendo periódicas asprestações, só no termo de cada período se poderãoexigir. Parágrafo único. Se, porém, forem deixadas atítulo de alimentos, pagar-se-ão no começo de cadaperíodo, sempre que o contrário não disponha otestador.”

15 Art. 227, § 6º, CF/88: “Os filhos, havidos ounão da relação do casamento, ou por adoção, terão osmesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquerdesignações discriminatórias relativas à filiação.”

16 Art. 41, ECA: “A adoção atribui a condição defilho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres,inclusive sucessórios, desligando-o de qualquervínculo com pais e parentes, salvo os impedimentosmatrimoniais.”

17 Art. 226, § 3º, CF/88: “Para efeito da proteçãodo Estado, é reconhecida a união estável entre o homeme a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitarsua conversão em casamento.”

18 Lei nº 8.971, art. 1º: “A companheira com-provada de um homem solteiro, separado judicial-mente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há maisde 5 (cinco) anos, ou dele tenha prole, poderá valer-sedo disposto na Lei nº 5.478, de 25 de julho de 1968,enquanto não constituir nova união e desde que provea necessidade. Parágrafo único. Igual direito e nasmesmas condições é reconhecido ao companheiro demulher solteira, separada judicialmente, divorciadaou viúva.” Esta foi uma das últimas leis sancionadaspelo ex-Presidente Itamar Franco; regula o direito doscompanheiros a alimentos e à sucessão. Anteriormenteà edição desta lei, o Poder Judiciário, geralmente negavaos pedidos de alimentos e de direitos sucessórios apessoas com esse tipo de vínculo. De acordo com anova lei, aqueles que vivem juntos há mais de cincoanos ou que tenham filhos em comum podem pediralimentos desde que provem a necessidade e enquantonão constituírem nova união. Aos concubinos foiconsagrado o direito de usar o rito especial, previstona Lei de Alimentos (Lei nº 5.478/68), e que só poderia

ser usado por cônjuges e filhos. Entretanto, se oconcubinato for inferior a cinco anos ou com ausênciade prole, o(a) concubino(a) pode pleitear alimentos,não pela Lei de Alimentos, mas mediante açãoordinária, que não tem rito especial e não consagra afixação provisória dos alimentos.

19 Lei nº 9.278, art. 2º: “São direitos e deveresiguais dos conviventes: (...) II - assistência moral ematerial recíproca”. Art. 7º “Dissolvida a união estávelpor rescisão, a assistência material prevista nesta Leiserá prestada por um dos conviventes ao que delanecessitar, a título de alimentos.”

20 Código Civil, art. 1.539: “Se da ofensa resultardefeito pelo qual ofendido não possa exercer o seuofício ou profissão, ou se lhe diminua o valor dotrabalho, a indenização, além das despesas dotratamento e lucros cessantes até o fim da conva-lescênça, incluirá uma pensão correspondente àimportância do trabalho, para que se inabilitou, ou dadepreciação que ele sofreu.” Art. 1.540: “As dispo-sições precedentes aplicam-se ainda ao caso em que amorte, ou lesão resulte de ato considerado crimejustificável, se não foi perpetrado pelo ofensor emrepulsa de agressão do ofendido.”

21 Art. 602, Código de Processo Civil: “Toda vezque a indenização por ato ilícito incluir prestação dealimentos, o juiz, quanto a esta parte, condenará odevedor a constituir um capital, cuja renda assegure oseu cabal cumprimento. § 1º Este capital, representadopor imóveis ou por títulos da dívida pública, seráinalienável e impenhorável: I - durante a vida da vítima;II - falecendo a vítima em conseqüência do ato ilícito,enquanto durar a obrigação do devedor. § 2º O juizpoderá substituir a constituição do capital por cauçãofidejussória, que será prestada na forma dos arts. 829e seguintes.”

22Art. 224, Código Civil: “Concedida a separação,a mulher poderá pedir os alimentos provisionais, quelhe serão arbitrados, na forma do art. 400.”

23 Código de Processo Civil, art. 852: “É lícitopedir alimentos provisionais: I - nas ações de desquitee de anulação de casamento, desde que estejamseparados os cônjuges; II - nas ações de alimentos,desde o despacho da petição inicial; III - nos demaiscasos expressos em lei. Parágrafo único. No casoprevisto no n. I deste artigo, a prestação alimentíciadevida ao requerente abrange, além do que necessitarpara sustento, habitação e vestuário, as despesas paracustear a demanda.” Art. 853: “Ainda que a causaprincipal penda de julgamento no tribunal, processar-se-á no primeiro grau de jurisdição o pedido dealimentos provisionais.” Art. 854: “Na petição inicial,exporá o requerente as suas necessidades e aspossibilidades do alimentante. Parágrafo único. Orequerente poderá pedir que o juiz, ao despachar apetição inicial e sem audiência do requerido, lhe arbitredesde logo uma mensalidade para mantença.”

24 Art. 4º da Lei nº 5.478/68: “Ao despachar opedido, o juiz fixará desde logo alimentos provisóriosa serem pagos pelo devedor, salvo se o credor

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expressamente declarar que deles não necessita.Parágrafo único. Se se tratar de alimentos provisóriospedidos pelo cônjuge, casado pelo regime dacomunhão universal de bens, o juiz determinaráigualmente que seja entregue ao credor, mensalmente,parte da renda líquida dos bens comuns, administradospelo devedor.”

25 Lei nº 8.560/92, art. 7º: “Sempre que nasentença de primeiro grau se reconhecer a paternidade,nela se fixarão os alimentos provisionais ou definitivosdo reconhecido que deles necessite.”

26 A regra da irrepetibilidade sofre exceção noscasos de erros grosseiros sobre a pessoa do devedor,cabendo ao terceiro prejudicado atuar regressivamentecontra o causador do dano (desconto indevido, porexemplo).

27 3ª Turma. REsp. nº 9.661/91. Relator: MinistroNilson Naves. Somente nos casos de alimentosdecorrentes de ação de investigação de paternidade éque o STJ posicionou-se no sentido de que os ali-mentos são devidos a partir da sentença de 1º grau (3ªTurma. REsp. nº 36.066/93. Relator: MinistroClaudio Santos).

28 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.5ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento nº 10.018/85. Relator: Des. Narcizo Pinto; e Apelação nº 2.544/88. Relator: Des. Barbosa Moreira.

2 9 TJRS. 6ª Câmara Cível. Apelação nº585.058.142. Relator: Des. Adroaldo Fabrício.

30 Ver: THEODORO JUNIOR, Humberto. Cursode Direito Processual Civil. 16. ed. Rio de Janeiro :Forense, 1996. v. 2, p. 498-506.

31 Theodoro Junior (op. cit., p. 499) esclareceque “não há, portanto, alimentos provisionaispreparatórios diante da ação principal de alimentos,mas apenas incidentais.”

32 Geralmente são devidos a partir da sentença de1º grau. Existindo provas evidenciadoras (indícios)da paternidade investigada, o juiz pode deferir pedidoinicial ou incidental de alimentos provisionais na açãode conhecimento. Nesse sentido é o escólio dosProfessores Caio Mário da Silva Pereira (Reconhe-cimento de paternidade e seus efeitos. 5. ed. Rio deJaneiro : Forense, 1996. p. 249-250) e TheodoroJunior (op. cit., p. 503). Ver, também, RecursoExtraordinário nº 37.914-SP. Relator: Ministro VillasBoas.

33 Há julgados que flexibilizam essa orientação:“Conversão de separação em divórcio. Inexatidão daprestação de alimentos. Óbice insuficiente paraimpedir a conversão. Não constitui empecilho paraconversão da separação em divórcio o cumprimentoinsatisfatório da obrigação alimentar.” (TJDF. 2ªTurma Cível. Apelação Cível nº 29.064. Relator: Des.Natanael Caetano).

34 O art. 570 do CPC também prevê a faculdade,no processo de execução: “O devedor pode requerer

ao juiz que mande citar o credor a receber em juízo oque lhe cabe conforme o título executivo judicial; nestecaso, o devedor assume, no processo, posição idênticaà do exeqüente”. Para os fins do art. 570, poderá odevedor proceder ao cálculo aritmético, instruindo opedido com a memória discriminada e atualizada docálculo, depositando, de imediato, o valor apurado(art. 605, CPC). O art. 24 da Lei nº 5.478/68 dispõesobre essa faculdade, no processo de conhecimento:“A parte responsável pelo sustento da família, e quedeixar a residência comum por motivo que nãonecessitará declarar, poderá tomar a iniciativa decomunicar ao juízo os rendimentos de que dispõe ede pedir a citação do credor, para comparecer àaudiência de conciliação e julgamento destinada àfixação dos alimentos a que está obrigado”.

35 Theodoro Junior (op. cit., p. 266), com base noescólio de Moacyr Amaral Santos, esclarece que, “umavez averbada a prestação em folha, considera-se seguroo juízo, como se penhora houvesse, podendo o credoroferecer embargos à execução, se for o caso.”

36 Entendimento consusbstanciado no art. 57, §3º, da Constitução do Estado de São Paulo. Aconstitucionalidade desse dispositivo foi reconhecidapelo Supremo Tribunal Federal na ADIn nº 446, Pleno,24 de junho de 1994, e no RE nº 189.942-SP.

37 Art. 100: “À exceção dos créditos de naturezaalimentícia, os pagamentos devidos pela FazendaFederal, Estadual ou Municipal, em virtude desentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na or-dem cronológica de apresentação dos precatórios e àconta dos créditos respectivos, proibida a designaçãode casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias enos créditos adicionais abertos para este fim.

§ 1º É obrigatória a inclusão, no orçamento dasentidades de direito público de verba necessária aopagamento de seus débitos constantes de precatóriosjudiciários, apresentados até 1º de julho, data em queterão atualizados seus valores, fazendo-se opagamento até o final do exercício seguinte.

§ 2º As dotações orçamentárias e os créditosabertos serão consignados ao Poder Judiciário,recolhendo-se as importâncias respectivas àrepartição competente, cabendo ao Presidente dotribunal que proferir a decisão exeqüenda determinaro pagamento, segundo as possibilidades do depósito,e autorizar, a requerimento do credor e exclusiva-mente para o caso de preterimento de seu direito deprecedência, o seqüestro da quantia necessária àsatisfação do débito.

38As Constituições dos Estados federadosconsagram disposições iguais ou semelhantes às daCarta Federal: Acre (art. 100, §§ 1º e 2º), Amazonas(art. 68, §§ 1º e 2º), Bahia (art. 111, §§ 3º a 5º), Ceará(art. 99, §§ 3º a 5º), Espírito Santo (art. 106, §§ 1º e2º), Goiás (art. 44, §§ 1º e 2º), Maranhão (art. 79, §§1º e 2º), Minas Gerais (art. 163, §§ 1º e 2º), MatoGrosso (art. 100, §§ 1º e 2º), Mato Grosso do Sul(art. 111, §§ 1º a 3º), Pará (art. 159, §§ 1º e 2º), Paraíba(arts.118 a 120), Paraná (art. 98, §§ 2º a 5º),

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Pernambuco (art. 49, III a V), Piauí (art. 114, §§ 1º e2º), Rio Grande do Norte (art. 81, §§ 1º e 2º), Rio deJaneiro (art. 150, §§ 1º e 2º), Rondônia (art. 76, §§ 1ºe 2º), Santa Catarina (art. 81, §§ 1º e 2º), São Paulo(art. 57, §§ 1º a 4º), Sergipe (art. 96, §§ 1º e 2º) eTocantins (art. 84, §§ 1º e 2º). A Constituição do RioGrande do Sul e a Lei Orgânica do Distrito Federal,porém, não consagraram a matéria, aplicando-se,indistintamente, o dispositivo constitucional federal.Cabe salientar que a Constituição do Mato Grossodo Sul (art. 111, § 3º) esclarece que “as verbasnecessárias ao pagamento dos precatórios não seincluem nas dotações orçamentárias destinadas aoPoder Judiciário.”

39 O art. 98, § 5º, da Constituição do Paraná estatuique “os créditos de natureza alimentícia deverão serpagos pela Fazenda Estadual ou Municipal e pelasautarquias, no prazo de trinta dias contados da datada apresentação dos precatórios, na ordem cronológicade sua apresentação”.

40 Ver Ação Direta de Inconstitucionalidade nº571-5 (proposta pelo Conselho Federal da Ordemdos Advogados do Brasil, Relator: Ministro MarcoAurélio. Nesta ação, o Tribunal indeferiu, por maioria,o pedido de medida cautelar contra o dispositivo legalcitado) e ADIn nº 673 (proposta pelo Partido dosTrabalhadores contra o Decreto Federal nº 430/92.Relator: Ministro Paulo Brossard. O Tribunal nãoconheceu da ação, quanto ao sistema do precatóriodiferenciado).

41 Algumas Constituições estaduais asseguram,expressamente, a atualização dos créditos devidospela Fazenda Estadual e Municipal. A Constituiçãoda Bahia (art. 111, § 5º) garante a atualizaçãomonetária por indexador oficial, pré-estabelecido, aser apurado na época do pagamento. A Constituiçãode São Paulo (art. 57, §§ 3º e 4º) estabelece que “oscréditos de natureza alimentícia, nesta incluídos, entreoutros vencimentos, pensões e suas complemen-tações, indenizações por acidente de trabalho, pormorte ou invalidez fundadas na responsabilidade civil,serão pagos de uma só vez, devidademente atualizadosaté a data do efetivo pagamento”, “os créditos denatureza não- alimentícia serão pagos nos termos doparágrafo anterior, desde que não superiores a trintae seis mil Unidades Fiscais do Estado de São Pauloou o equivalente vigentes na data do efetivopagamento”. A Constituição de Sergipe (art. 96, § 1º)permite nova atualização, quando da data da efetivaliquidação da obrigação. O Supremo Tribunal Federaljulgou constitucional o art. 57, § 3º, da ConstituçãoPaulista (Pleno. ADI nº 446. 24 de junho de 1994; eRE nº 189.942-SP. DJU, de 24 nov. 1995). Ver arespeito RE n. 214.761-PR. Relator: Ministro Nérida Silveira. DJU, 17 nov. 1997. Seção 1. Cabe ressal-tar, ainda, que o STF já firmou entendimento no sentidode que a requisição a título de complementação dosdepósitos insuficientes, a ser feita no prazo de noventadias, somente deve referir-se a diferenças resultantesde erros materiais ou aritméticos ou de inexatidões

dos cálculos dos precatórios e na hipótese de subs-tituição, por força de lei, do índice aplicado (ADIn nº1.098-1-SP; e RE-AgRg n. 209.053. Relator: MinistroMaurício Corrêa).

42 POLINI, Antonio Carlos, PERALTA, Fran-cisco Antonio Zem. “Previdência não integra oconceito de Fazenda Pública quando paga benefício-orçamento próprio e finalidade única-custeio satisfeitopreviamente - analogia pagamento administrativo semexigência do precatório”. Jornal do 6º CongressoBrasileiro de Previdência Social, São Paulo, n. 29, 29jul. 1993. p. 22-23).

43 SARTORELLI, apud POLINI, Antonio Carlos,PERALTA, Francisco Antonio Zem. Naturezaalimentar dos benefícios e suas revisões – proteçãoconstitucional da verba alimentar – liquidação imediatado precatórios. Jornal do 6º Congresso Brasileiro dePrevidência Social, São Paulo, n. 29, 29 jul. 1993, p.24-25.

44 O art. 102, inciso I, letra “h”, da ConstituiçãoFederal dispõe que compete ao STF processar e julgar,originariamente, a homologação das sentençasestrangeiras e a concessão do exequatur às cartasrogatórias, que podem ser conferidas pelo regimentointerno ao Presidente. No mesmo sentido, quanto àcompetência do Tribunal Ápice: art. 483, CPC. Osarts. 215 e ss. do Regimento Interno do STF tratamda homologação de sentença estrangeira. De acordocom o art. 215, RISTF, a sentença estrangeira nãoterá eficácia no Brasil sem a prévia homologação peloSupremo Tribunal Federal ou por seu presidente. Jáo art. 224 estatui que a execução far-se-á por carta desentença, no juízo competente, observadas as regrasestabelecidas para a execução de julgado nacional damesma natureza (nesse sentido: art. 484, CPC).

45 Theodoro Junior (op. cit., p. 266), em face dejulgados do TJSP e TJRJ, expõe que “a dívida queautorize a imposição da pena de prisão é aqueladiretamente ligada ao pensionamento em atraso. Nãose pode, pois, incluir na cominação de prisão verbascomo custas processuais e honorários de advogado.”

46 O Autor publicou, no jornal Correio da Região,em Capinópolis-MG, dia 28 ago. 1995, p. 07, o artigo“Prisão Especial”, esclarecendo o instituto legal e seusbeneficiários.

47 Código Penal, art. 244: “Deixar, sem justacausa, de prover à subsistência do cônjuge, ou dofilho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para otrabalho, ou de ascendente inválido ou valetudinário,não lhes proporcionando os recursos necessários oufaltando ao pagamento de pensão alimentíciajudicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar,sem justa causa, de socorrer descendente ouascendente, gravemente enfermo:

Pena - detenção, de 1(um) a 4(quatro) anos, e multa,de uma a dez vezes o maior salário vigente no País.

Parágrafo único. Nas mesmas penas incide quem,sendo solvente, frusta ou ilide, de qualquer modo,

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inclusive por abandono injustificado de emprego oufunção, o pagamento de pensão alimentícia judi-cialmente acordada, fixada ou majorada”.

48 Ver: RT, n. 436, p. 371 e Julgados do TACrimSP,n. 69, p. 474 e n. 79, p. 225.

49 Conflito de Competência nº 2.933/92, 2ª Seção.Relator: Ministro Waldemar Zveiter. Ademais, oprocesso executivo não constitui fase da ação deconhecimento.

50 De acordo com a jurisprudência do STJ, “em setratando de execução homologatória de transação dealimentos ajuizada em autos apartados do processooriginal, que nem mesmo se encontra em apenso, énecessária a apresentação do título executivojuntamente com a petição inicial, sob pena de violaçãodo devido processo legal” (4ª Turma. REsp. nº78.557. Relator: Ministro Sálvio de FigueiredoTeixeira. DJU, p. 68, 30 mar. 1998. Seção 1.).

51 O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dosTerritórios tem se posicionado no sentido de que:

a) A execução, na forma do art. 733 do CPC, develimitar-se às prestações recentemente vencidas,necessárias à manutenção e sobrevivência dasalimentantes. Não existindo urgência, a execução deveprocessar-se segundo a regra do art. 732 do CPC (2ªTurma Criminal. Habeas Corpus nº 7.366/96.Relatora: Desª Tânia Roriz. Ac. nº 91.052);

b) Tem-se como razoável a decisão judicial queinadmite a adoção do rito da constrição pessoalprevista no art. 733 do CPC, para a execução deprestações alimentícias anteriores às seis últimasparcelas, posto que tais créditos perdem o caráteralimentar, adquirindo feição meramente indenizatória(5ª Turma Cível. Agravo de Instrumento nº 7.107/96. Relator: Des. José Dilermando Meireles. Ac. nº90.537);

c) A possibilidade de prisão civil do devedor dealimentos é um meio executivo de coação, mas que

deve ser aplicado somente para as últimas trêsprestações. Se os exeqüentes pretendem executar todoo débito, devem cindir a execução para excluir dela asparcelas anteriores às últimas três, prosseguindo-seo feito quanto a estas (art. 733). As demais podemser executadas na forma do art. 732, CPC (3ª TurmaCível. Agravo de Instrumento nº 6.512/96. Relator:Des. Campos Amaral. Ac. nº 88.873).

O Superior Tribunal de Justiça tem jurisprudênciasemelhante: Processa-se a execução na forma dodisposto no art. 733, quanto às prestações recen-temente vencidas (tem-se falado nas três últimasparcelas; no caso, adotou-se essa forma em relação‘aos alimentos vencidos desde seis meses antes dapropositura da execução’). Processa-se a execução naforma do disposto no art. 732, quanto às prestaçõesvencidas anteriormente (3ª Turma. REsp. nº 57.579/94. Relator: Ministro Nilson Naves).

Cabe ressaltar, ainda, que no STJ é pacíficoseguinte entendimento: “ALIMENTOS. PRISÃOCIVIL. Descabimento. Reiterada orientação doTribunal sobre que, embora legal a prisão civil porinadimplemento da obrigação de alimentos, tal nãoacontece no caso de débito pretérito.” (5ª Turma.Unân. REsp. nº 107.809-SP. Relator: Ministro JoséDantas).

52 THEODORO JUNIOR, op. cit., p. 268.53 O Superior Tribunal de Justiça tem divergido

quanto à legitimidade do Ministério Público pararequerer indenização resultante de delito (actio exdelito), mesmo frente às disposições do art. 68 doCódigo de Processo Penal. A esse respeito, ver:SARAIVA, Wellington Cabral. Ação civil ex delicto :legitimidade ativa do Ministério Público. Revista daFundação Escola Superior do Ministério Público doDistrito Federal, v. 3, n. 6, p. 114-135, jul./dez. 1995.

54 Apud COUTO, Sérgio. O MP e os alimentos.ADV Advocacia Dinâmica : Informativo Semanal, v.18, n. 8, p.125, mar. 1998.

55 RTJ, n. 69, p. 252.

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1. IntroduçãoAs sociedades contemporâneas e o sistema

mundial em geral estão a passar por processosde transformação social rápidos e profundosque põem definitivamente em causa as teorias eos conceitos, os modelos e as soluções anterior-mente considerados eficazes para diagnosticare resolver as crises sociais, no ensinamento deBoaventura de Sousa Santos1, uma vez que aimposição de uma sociedade civil mundial,conseqüência irreversível da globalização, emvirtude da complexidade de sua estrutura, de-nuncia a incapacidade da utilização do instru-mental teórico tradicional, centrado no conceitode Estado Soberano.

Nesse contexto, a teoria tradicional dosdireitos fundamentais, em virtude das trans-formações do direito na sociedade contem-porânea – percebendo-se uma internacionaliza-ção do direito constitucional acompanhada deuma redução de seu espaço –, deve sofrer umarevisão profunda, objetivando adequá-la aosnovos paradigmas da sociedade, que se carac-teriza pela complexidade de suas relações, emque o sujeito de direito é visto enquanto inseridono contexto social, ou seja, analisado em umasituação concreta, em que a geração dos direitostransindividuais passa a ser objeto do estudo

A insuficiência dos paradigmas da teoriatradicional dos direitos constitucionaisfundamentais

JAIRO GILBERTO SCHÄFER

Jairo Gilberto Schäfer é Juiz Federal Substitutoda Primeira Vara Federal de Florianópolis, Professorda Faculdade de Direito da Univali, Mestrando emDireito pela CPGD/UFSC, Ex-Promotor de Justiçano Rio Grande do Sul.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Algumas considerações sobrea teoria constitucional dos direitos fundamentais. 3.A insuficiência dos paradigmas da teoria tradicionaldos direitos constitucionais fundamentais. 4. Consi-derações finais.

1 Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo : Cortêz, 1995.

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do jurista, pois o “direito só existe no plano dasrelações humanas, devendo então ser pensadonão como um instrumento que opõe um homemcontra o outro, mas como um instrumento queharmoniza a convivência de ambos”2.

O enfrentamento da questão relativa ao ele-mento político da teoria dos direitos fundamen-tais, qual seja, a democracia, propõe-se a res-ponder às indagações: é possível fundamentaros direitos dos homens? Os conceitos tradicio-nais, a partir de uma função promocional dodireito, mostram-se suficientes para a teoriajurídica contemporânea? Em virtude da globali-zação, é possível aplicar-se ao “cidadão domundo” a teoria tradicional dos direitos funda-mentais?

2. Algumas considerações sobre a teoriaconstitucional dos direitos fundamentaisMostra-se abundante a doutrina jurídica

sobre os direitos e garantias fundamentais, prin-cipalmente no direito alienígena, em que sepercebe uma sistematização dogmática doassunto, objetivando a efetivação dos valoresconstitucionais, tendo por paradigma o cidadão-indivíduo, munindo-o de instrumentos eficazesna defesa de suas posições jurídicas.

Para Robert Alexy3, uma teoria jurídica dosdireitos fundamentais é uma teoria dogmática,uma vez ter por objeto de estudo o direito posi-tivo de determinada ordem jurídica, qualificadaenquanto categoria teórica estrutural: investigaestruturas tais como a dos conceitos dos direitosfundamentais, da influência dos direitos funda-mentais no sistema jurídico e da fundamenta-ção dos direitos fundamentais, a partir de umateoria integrativa4. Para o autor, sempre quealguém possui um direito fundamental, existeuma norma válida de direito fundamental quelhe outorga esse direito. Por normas de direitofundamental entende o doutrinador “todasaquellas con respecto a las cuales es posibleuna fundamentación insfundamental correcta”5.

Os direitos fundamentais, então, são consi-derados como direitos subjetivos, ou seja, umaposição jurídica ocupada pelo indivíduo defazer valer sua pretensão frente ao Estado (re-forçando o direito a que o Estado não elimine

determinadas posições jurídicas do titular dodireito):

“Lós derechos presentados se dife-rencian exclusivamente por ló que respec-ta a su objeto. Un de estos derechos (4 -‘a’ tiene frente al Estado El derecho a queeste no ló mate) tiene como objeto unaacción negativa (omisión); El otro (5 - ‘a’tiene frente al Estado El derecho a queeste proteja su vida frente a intervencio-nes arbitrarais de terceros), una acíónpositiva (un hacer) del destinatário. Ladiferencia entre acciones negativas ypositivas es El critério principal para ladivisión de lós derechos a algo según susobjetos. Em El âmbito de lós derechos aacciones negativas corresponden a aque-llo que suele llamarse ‘derechos dedefensa’”6.

Segundo ensinamento de Carl Schmitt7, osdireitos fundamentais em sentido próprio são,essencialmente, “derechos del hombre indivi-dual libre, y, por cierto, derecho que El tienefrente al Estado”, decorrendo o caráter absolutoda pretensão, cujo exercício não depende deprevisão em legislação infra constitucional, cer-cando-se o direito de diversas garantias comforça constitucional objetivando-se sua imuta-bilidade jurídica e política. Ou seja: a garantia detodo direito fundamental autêntico dirige-se aosorganismos competentes para a revisão da Cons-tituição, aos órgãos competentes para a ediçãode leis ordinárias, bem como a todas as autori-dades do Estado, ressaltando-se o acesso aoPoder Judiciário (“derecho al juez legal”) en-quanto elemento concretizador das própriasgarantias.

Para entender-se corretamente a posição deCarl Schmitt relativamente aos direitos funda-mentais, mostra-se imprescindível trazer à cola-ção o seu conceito de Constituição. Para o autor,toda teoria constitucional principia com aqueladistinção entre Constituição e a lei da Consti-tuição. A Constituição na acepção positiva ema-na de um ato do poder constituinte. A vontadepolítica unitária existente é que se decide poruma Constituição, a qual é o princípio do Esta-do, a unidade política de um povo capaz deintroduzir novas formas fundamentais de orga-nização. Assim, a Constituição, decisão cons-ciente, vale por força de uma vontade políticaque existe. As leis da Constituição valem por se

2 JÚNIOR, José Alcebíades de Oliveira. Cidadaniacoletiva, p. 24.

3 Teoria de los derechos fundamentales, p. 29.4 Ibidem, p. 39.5 Ibidem, p. 73.

6 Ibidem, p. 188.7 Teoria de la Constitución, p. 190.

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fundamentarem na Constituição e têm por pres-suposto essa Constituição. A Constituição, aocontrário, consiste exclusivamente na decisãoglobal e fundamental acerca da espécie e daforma de unidade política8.

Na concepção teórica de Jorge Miranda9, osdireitos fundamentais são as posições jurídicassubjetivas das pessoas enquanto tais, indivi-dualmente ou institucionalmente consideradas,assentes na Constituição, tendo-se por pressu-posto o princípio da universalidade, pois têmcomo destinatários todos quantos fazem parteda comunidade jurídico-política. A proteçãojurídica e o acesso ao direito pressupõem oconhecimento dos direitos:

“Só quem tem consciência dos seusdireitos tem consciência das vantagens edos bens que pode usufruir com o seuexercício ou com a sua efectivação, assimcomo das desvantagens e dos prejuízosque sofre por não os poder exercer ouefectivar ou por eles serem violados”10,

concebendo o princípio da proporcionalidadeenquanto limitador do poder político, instrumen-to de funcionalização de todas as atuaçõessuscetíveis de contenderem com o exercício dedireitos ou com a adstrição a deveres11.

Uma teoria jurídica dos direitos fundamen-tais, para Canotilho, insinua uma aproximaçãocom uma categoria dogmática, a partir de seustrês sentidos: a) analítico; b) empírico; e c)normativo12, sendo que por direitos fundamen-tais entendem-se os direitos dos homens, jurí-dico-institucionalmente garantidos e limitadosespacio-temporalmente, objetivamente vigentesnuma ordem jurídica concreta13.

Nesse diapasão, a estrutura dos direitosfundamentais encobre uma estrutura complexade normas, garantidoras de direitos subjetivose impositivas de deveres objetivos14, cumprindouma função de direitos de defesa dos cidadãossob uma dupla perspectiva: a) constituemnormas de competência negativa para os pode-res públicos, proibindo fundamentalmente as

ingerências destes na esfera jurídica individual;b) implicam, num plano jurídico-subjetivo, opoder de exercer positivamente direitos funda-mentais (liberdade positiva) e de exigir omissõesdos poderes públicos, de forma a evitar agres-sões lesivas por parte dos mesmos (liberdadenegativa)15.

Assim posta a questão, percebe-se clara-mente que a doutrina clássica dos direitos egarantias fundamentais, a partir de uma sólida esistematizada dogmática, embasa toda a suaestrutura em defesa do cidadão individualmenteconsiderado, conferindo-lhe instrumentos paradefender-se diante da atuação (ou omissão) doEstado que esteja ferindo posições jurídicasabsolutas derivadas da própria ConstituiçãoFederal.

3. A insuficiência dos paradigmasda teoria tradicional dos direitos

constitucionais fundamentaisConforme anota Octavio Ianni16, o mundo

está sendo revolucionado, pois algumas trans-formações sociais, econômicas, políticas eculturais que estavam germinando desde ocomeço do século aceleraram-se depois daSegunda Guerra Mundial e intensificaram-seainda mais a partir das reformas iniciadas porGorbatchev desde 1985. A queda do Muro deBerlim em 1989 simboliza não só a crise dos regi-mes socialistas do Leste Europeu, mas tambéma abertura de novas fronteiras para a expansãodo capitalismo naqueles países. Ao mesmotempo em que o capitalismo se depara comnovos horizontes, já que se abrem os mercadosdo Leste Europeu, particularmente o da UniãoSoviética, também emergem divergências etensões no âmbito das nações capitalistas.Reabrem-se contradições sociais que se haviammantido controladas durante a vigência daGuerra Fria.

Nesse contexto, os paradigmas da moderni-dade não nos fornecem instrumental suficientea interpretar o “cidadão do mundo”: a moderni-dade, segundo Boaventura de Souza Santos17,confinou-nos numa ética individualista, umamicroética que nos impede de pedir, ou sequerpensar, responsabilidades por acontecimentosglobais, como a catástrofe nuclear ou ecológica,

8 Ibidem, p. 23-24.9 Manual de Direito Constitucional. t. 4, p. 7.10 Ibidem, p. 229.11 Ibidem, p. 21612 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitu-

cional, p. 496.13 Ibidem, p. 517.14 Ibidem, p. 532

15 Ibidem, p. 541.16 A sociedade global, p. 12.17 Op. cit., p. 91.

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em que todos, mas ninguém individualizadamente,parece poder ser responsabilizado18.

A inadequação da teoria tradicional dosdireitos fundamentais reside justamente nestaquestão: os direitos são considerados a partirde uma ética individualista, que está em choquecom uma sociedade que exige uma macroética,onde as responsabilidades e as relações mos-tram-se essencialmente coletivas.

Ou seja, os direitos e garantias individuaisnão mais podem ser apreciados a partir de umaesfera absoluta de titularidade individual, poisas ações da humanidade, bem como suas con-seqüências, estão centradas na esfera do difuso,onde se mostra impossível a determinação espe-cífica das titularidades das pretensões: crimesda macrocriminalidade; invasão da privacidadepor meio da Internet; crimes contra o meio ambi-ente; criminalidade organizada internacional;catástrofes nucleares etc. O cerne deixa de ser odireito individual-egoístico e passa a ser predo-minantemente coletivo – e difuso –, onde a

socialização e a coletivização têm papel funda-mental, nas palavras de Bolzan de Morais19.

O fato justifica-se porque, no preciso ensina-mento de José Alcebíades de Oliveira Júnior20,

“dos direitos individuais passou-se aconsiderar também os direitos sociais, istoé, do indivíduo enquanto membro de umgrupo (direitos do trabalhador, etc.). Poroutro lado, a titularidade de alguns direi-tos foi estendida dos sujeitos individuaisaos grupos, como minorias étnicas, reli-giosas, a humanidade (no caso do meioambiente), além de ter sido atribuída asujeitos diferentes do homem, como osanimais, a natureza, etc. Por fim, na medidaem que o homem não é considerado comosujeito genérico ou homem abstrato, massim visto na especificidade ou concretudee suas diversas maneiras de ser em socie-dade, como criança, velho ou doente,ocorreu uma ampliação dos status a seremguarnecidos pelo direito. Todos essesnovos direitos mostram um grandeaumento da complexidade social, bemcomo assinalam, mais do que nunca, apresença de certos paradoxos do ‘bomgoverno’ e da ‘justiça’, quando se tratade privilegiar mais a liberdade em detri-mento da igualdade e vice-versa no aten-dimento desses direitos”.

A busca de um fundamento absoluto paraos direitos humanos, consoante Chaim Perel-man21, deve dar espaço a uma dialética, na qualos princípios que se elaboram para sistematizare hierarquizar os direitos humanos, tal como sãoconcebidos, são constantemente cotejados coma experiência moral, com as reações de nossaconsciência.

18 Nesse passo, o direito penal igualmente encon-tra-se diante de uma encruzilhada histórica, uma vezque o combate à criminalidade, por meio da utilizaçãodos procedimentos tradicionais, está-se mostrandoextremamente ineficaz quando se depara com osdenominados crimes da macrocriminalidade, os quaisostentam características que os afastam dos conhe-cidos delitos individuais, amplamente conhecidos edominados pelo Código Penal. A questão restoucorretamente apreendida por Wilfred Hassemer: “Acriminalidade econômica como tal sempre existiu, nosentido de que uma pessoa causa danos aos interesseseconômicos de uma outra pessoa, fraude, falta defidelidade econômica etc. Mas a criminalidade econô-mica moderna é bem diferente. Não se trata de casosindividuais, não se trata de apenas uma pessoa comovítima, mas se trata de estratégias. A criminalidadeeconômica moderna é difusa – eu volto a especificarisso – mas repito que a criminalidade econômicamoderna é diferente da criminalidade clássica; as víti-mas, de regra, são pessoas jurídicas.” (HASSEMER,Wilfred. Perspectivas de uma moderna política cri-minal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 8p. 41). A doutrina costuma elencar as característicasdessa espécie delituosa: 1) ausência de vítimas indi-vidualizadas; 2) pouca visibilidade dos danos causa-dos: bens jurídicos supra-individuais, universais,vagos; 3) novo modus operandi: não há violência física(sangue) e muita organização. “Destarte, a institucio-nalização da associação criminosa, ou seja, a suaorganização em torno de um centro de poder de formahierarquizada e disciplinada vem a constituir uma dasnotas características do ‘crime organizado’” ( MiguelReale Júnior - REALE JÚNIOR, Miguel. Crime orga-nizado e crime econômico. Revista Brasileira de

Ciências Criminais, n. 13 p. 182). Para maiores estu-dos, consultar: ARAUJO JUNIOR, João Marcello.Dos crimes contra a ordem econômica. São Paulo :Revista dos Tribunais, 1995; PIMENTEL, PedroManoel. Direito Penal Econômico. São Paulo : Revistados Tribunais, 1973; LIRA, Antiógenes Marques.Macrocriminalidade. Revista do Ministério Públicodo Rio Grande do Sul, n. 35 p. 80; TIEDEMANN,Klaus. Responsabilidad penal de personas jurídicasy empresas em Derecho Comparado. Revista do Mi-nistério Público do Rio Grande do Sul, n. 36 p. 25.

19 Do direito social aos interesses transindividuais,p. 125.

20 O novo em direito e política, p. 193.21 Ética e Direito, p. 398.

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Patrice Gélard ensina que a internacionali-zação do Direito Constitucional tem váriasexplicações e a mais considerável é a internacio-nalização dos Direitos do Homem, pois temos

“aqui um fenômeno que podemos datarde 1948, quando da adoção da DeclaraçãoUniversal dos Direitos do Homem e, maistarde, da adoção do Pacto de Teerã sobreos Direitos Civis e Políticos e os DireitosEconômicos e Sociais. Essa redação inter-nacional dos Direitos do Homem deve serigualmente examinada paralelamente àconcepção européia dos Direitos doHomem e à inserção de jurisdições queasseguram sua proteção”22.

A Constituição, e em geral o direito, maisnão são do que um conjunto de significados,motivo pelo qual se mostra necessária a redefi-nição dos conceitos, alterando-se a ética indivi-dualista, justamente para permitir que contenhaa Carta Política sistema de garantias eficazes.Como diz Bobbio, “uma coisa é falar dos direitosemergentes, direitos sempre novos e cada vezmais extensos, e justificá-los com argumentosconvincentes; outra coisa é garantir-lhes umaproteção efetiva”23. Ou, segundo Luigi Ferrajoli:

“Regem, funcionam, até o seu sentidoser socialmente compartilhado. Se não forassim, desaparecem, conjuntamente comos valores que garantem, sem necessidadede golpes de estado ou de alterações ins-titucionais. Se é verdade que hoje a crisedos vínculos constitucionais provémsobretudo do seu obscurecimento nosentido comum, qualquer projeto dealternativa democrática passa por umarefundação do sentido do pacto consti-tucional como garantia da igualdade e dosdireitos vitais da pessoa, na consciênciade que os direitos fundamentais são sem-pre leis do mais fraco contra a lei do maisforte, que toma vantagem quando se perdeo sentido daqueles, e de que a defesa dopacto constitucional só tem possibili-dades de sucesso na medida em que cadaum o entenda como defesa dos seus pró-prios direitos e da sua própria identidadede cidadão”24.

Em verdade, a concepção liberal de direitosfundamentais, anteriormente analisada, nãoencontra mais valia em uma sociedade industrialcontemporânea, pois a concretização da demo-cracia é exigência para a própria sobrevivênciada humanidade. A tarefa principal da denomi-nada “aldeia global” consiste em submeter oEstado capitalista nacional e as empresas trans-nacionais e a própria sociedade civil organizadaa um profundo processo de democratização quelogre devolver a soberania política para as maio-rias, pois não existem muitas alternativas para aevolução25: 1) holocausto nuclear, cujas possi-bilidades aumento em virtude das crescentescontradições do capitalismo e da proliferaçãodas armas nucleares (agravando-se com o des-mantelamento da União Soviética, pois entida-des governamentais fracionadas e sem estruturasuficiente estão, hoje, controlando diversosdispositivos nucleares, com sérios problemasde manutenção e prevenção); 2) o continuísmodos regimes de classe capitalistas, dentro dalógica esboçada por Orwel (1984) e Huxley (Bra-ve New World); 3) constituição de uma socieda-de mundial com relações sociais livres do des-potismo decorrente do sistema liberal e com umademocracia participativa plena.

Conforme anotado por Canotilho, a comple-xidade política e jurídica criada pela comunida-de jurídica dos povos dos estados integradosna União Européia (exemplo vivo da internacio-nalização do direito constitucional) lança novosdesafios à teoria da constituição, uma vez queesta terá de teorizar a ‘arte da forma suprana-cional’ e de fornecer suportes dogmáticos paraa compreensão de uma nova ordem jurídica,onde se mostra presente a existência de órgãose poderes de decisão supranacionais26.

Em suma, a teoria dos direitos fundamentaisdeve superar a relação Estado-indivíduo, ampli-ando sua atuação para outros âmbitos, como aproteção dos direitos frente aos particulares,pois, muitas vezes, estes podem ser mais pode-rosos que o próprio Estado (as multinacionais,por exemplo), bem como ampliar o âmbito deaplicabilidade (a toda a sociedade), fortalecendoas proporções internacionais27, uma vez que as

22 As transformações do Direito Constitucionalna sociedade contemporânea. Texto extraído daInternet em 12 de julho de 1997.

23 A era dos direitos, p. 63.24 O estado constitucional de direito hoje : o

modelo e sua discrepância com a realidade. Textoextraído da Internet em 12 de julho de 1997.

25 CHOMSKI, Noam, DIETERICH, Heinz. Lasociedad global, p. 184

26 Direito Constitucional e teoria da Constitui-ção, p. 1214.

27 MARTINEZ, Gregório Peces-Barba. Derechosy derechos fundamentales, p. 351.

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fronteiras soberanas não significam mais quedesenhos em mapas ultrapassados pela dinâmi-ca dos novos tempos, em que se deve privilegiara função promocional do direito, consoante ano-tado por Bobbio28, no sentido que passa a serrelevante para o direito não o comportamentodesviante, que atenta contra a norma jurídica(inobservância), mas a sua observância é queterá conseqüências jurídicas: o direito deve serconcebido enquanto elemento agregador social,tendo por função promover o que se entende,em determinado momento histórico, por bemsocial.

O respeito aos direitos e garantias funda-mentais do cidadão, lastreados pelos direitoshumanos, inserido em um meio social que lheconfere legitimidade e que lhe estabelece osparâmetros, a partir desta concepção teórica,deve ser uma prática absoluta cuja promoção éo objeto precípuo do direito.

Todavia, a defesa dos direitos do cidadãoem uma sociedade difusa somente é possívelcom o entendimento do que seja uma cidadaniacoletiva: as agressões contra posições jurídicassó podem ser entendidas e solucionadas deforma coletiva, uma vez que as conseqüênciasde muitas condutas somente assumem relevân-cia histórica e social se devidamente contextua-lizadas: agressões ao meio ambiente, por exem-plo, onde se mostra impossível delimitar, de formaindividualizada, os danos e os sujeitos passivosdo fato, em virtude de sua natureza difusa,devendo imperar, portanto, na análise destesnovos direitos, a ética da responsabilidadecoletiva.

Nesse caminhar, mostra-se imprescindível avalorização dos instrumentos coletivos dedefesa judicial dos direitos, como a ação civilpública, a ação popular e o mandado de segu-rança coletivo, em que se percebe claramente asobreposição de uma ética coletiva, pois os ins-trumentos comumente utilizados mostram-seinadaptados à conflituosidade própria a essesconteúdos inovados ou inéditos29, o que estásendo bem apreendido pelos Tribunais Supe-riores: STJ, REsp 0097684, Quarta Turma, DJ02-03-1997, PG: 00732, Rel. Min. Ruy Rosado deAguiar30; STJ, REsp 0105215, Quarta Turma, DJ

DATA, 08-18-1997 PG: 37873, Rel. Min. Salviode Figueiredo Teixeira31; STJ, REsp 0091269,Primeira Turma, DJ 09-08-1997 PG: 42431, Rel.Min. Milton Luiz Pereira32.

4. Considerações finaisOs limites objetivos do trabalho ora apre-

sentado não comportam uma abordagem sufi-cientemente profunda a resolver todos os pro-blemas decorrentes da adequação dos direitose garantias fundamentais à realidade social con-temporânea. Tal constatação objetiva exterio-rizar que não se teve a pretensão, com estapesquisa, de esgotar o assunto, mas veicular

28 BOBBIO, Norberto. Contribucion a la teoriadel Derecho, p. 276.

29 MORAIS. op. cit., p. 191.30 Ementa: “Ação Civil Pública. Meio Ambiente.

Interesse difuso. Ministério Público. Legitimidade ad

causam. O Ministério Público tem legitimidade parapromover Ação Civil Pública contra empresa polui-dora do ambiente, emissora de ruídos acima dos níveispermitidos. Recurso conhecido e provido.”

31 Ementa: Processual Civil. Ação coletiva. Cumu-lação de demandas. Nulidade de cláusula de instru-mento de compra-e-venda de imóveis. Juros. Indeni-zação dos consumidores que já aderiram aos referidoscontratos. Obrigação de não-fazer da construtura.Proibição de fazer constar nos contratos futuros. Di-reitos coletivos, individuais homogêneos e difusos.Ministério Público. Legitimidade. Doutrina. Jurispru-dência. Recurso Provido. I – O Ministério Público éparte legítima para ajuizar ação coletiva de proteçãoao consumidor, em cumulação de demandas, visando:a) a nulidade de cláusula contratual inquinada de nula(juros mensais); b) a indenização pelos consumidoresque já firmaram os contratos em que constava talcláusula; c) a obrigação de não mais inserir nos con-tratos futuros a referida cláusula. II – Como já assina-lado anteriormente, (Resp 34.155 – MG), na socie-dade contemporânea, marcadamente de massa, e sobos influxos de uma nova atmosfera cultural, o proces-so civil, vinculado estritamente aos princípios consti-tucionais e dando-lhes efetividade, encontra noMinistério Público uma instituição de extraordináriovalor na defesa da cidadania. III – Direitos (ou inte-resses) difusos e coletivos se caracterizam comodireitos transindividuais, de natureza indivisível. Osprimeiros dizem respeito a pessoas indeterminadas,que se encontram ligadas por circunstância de fato; ossegundos, a um grupo de pessoas ligadas entre si oucom a parte contrária por meio de uma única relaçãojurídica. IV – Direitos individuais homogêneos sãoaqueles que têm a mesma origem no tocante aos fatosgeradores de tais direitos, origem idêntica essa querecomenda a defesa de todos a um só tempo.”

32 Ementa: Ampliado o âmbito de atividade doMinistério Público para agir na defesa de direitos,sob a iluminura de relevante interesse público e social,alicerçada fica a sua legitimação para promover a açãocivil pública na esteira da proteção invocada, espéciede direito difuso. A sua legitimidade é ponto luminosono cenáculo constitucional das suas atividades (C.F.arts. 127 e 129, III – arts. 1., IV e 5., Lei n. 7.347/85).”

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uma investigação questionadora dos paradigmasdogmáticos, sem apresentar soluções definitivas,mas, ao contrário, estabelecer dúvidas e incer-tezas, esperando-se que a dialética acadêmicapossa fazer a leitura adequada da teoria estuda-da, para, então sim, criar novos pressupostosteóricos.

A teoria dos direitos e garantias individuais,estudada a partir da doutrina clássica, valorizade forma excessiva a titularidade individual dasposições jurídicas constitucionais, ou seja, asgarantias constitucionais têm por destinatárioum indivíduo concretamente considerado, cujautilização independe do meio social em que seencontra inserido, por ser conceituado enquan-to garantia individual do cidadão contra oEstado.

Procurou-se demonstrar, no decorrer doestudo, a absoluta insuficiência da teoria tradi-cional na interpretação dos novos direitos:estamos vivendo hoje uma realidade sócio-eco-nômica que está a exigir uma ética coletiva, nosentido de que não se pode conceber a existên-cia de direitos do cidadão que não relacionadoscom toda a coletividade.

A complexidade de uma sociedade pós-moderna, com todas as suas contradições, exigeque nos sintamos responsáveis por toda a hu-manidade, pois estamos de braços dados comproblemas que são indivisíveis, sendo a funçãodo direito a harmonização definitiva da convi-vência dos homens.

As críticas elencadas no presente trabalhoobjetivam, tão-somente, colaborar com o deba-te, para que o direito, e, particularmente, o direitoconstitucional, possa interpretar de formasatisfatória e eficaz a questão dos novos direi-tos, uma realidade que não pode mais passardespercebida pelo jurista.

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1. Considerações geraisA prática e aplicação do direito por todos

aqueles que com ele operam são um constantedesafio de nosso tempo, sempre envolto com adificultosa composição de equilíbrio entre con-teúdo e forma, consoante bem adverte Eros Ro-berto Grau, ao prefaciar a magnífica obra do Pro-fessor Juarez Freitas1.

Por vezes, como sabido, encontramos anti-nomias2 entre normas do nosso ordenamentojurídico, tendentes a – aparentemente – afetartoda a estrutura do Sistema3. Nesse momento,especial atenção deve ter o operador do direito,por ocasião da adequada interpretação e aplica-ção da lei na prática de seu mister.

Para tanto, deverá conhecer como ninguémtodo o Sistema, ou, ao menos, os princípios re-tores que o animam. E isso porque, como bemsustenta Juarez Freitas, todas as frações do or-denamento jurídico estão em conexão com a in-teireza de seu espírito, razão pela qual concluir-mos que toda e qualquer interpretação de umanorma jurídica há de, necessariamente, ser efeti-vada à luz dos princípios gerais, normas e valo-res constituintes que fundamentam todo o Sis-tema4.

Deverá ele escolher qual das duas normasconflitantes prevalecerá, adotando adequadoscritérios de hermenêutica e interpretação, bemcomo, muitas vezes, o bom senso, a fim de que

Sobre o exercício da advocacia porJuízes leigos dos Juizados EspeciaisPara uma superação do conflito aparente de normasentre a Lei nº 8.906/94 e a Lei nº 9.099/95

DANILO ALEJANDRO MOGNONI COSTALUNGA

Danilo Alejandro Mognoni Costalunga é Bacha-rel em Direito, Especialista em Direito ProcessualCivil.

SUMÁRIO

1. Considerações gerais. 2. Breve e casuísticaclassificação das normas jurídicas. 3. Critério paraa solução e superação da aparente antinomia. 4.Conclusão.

NOTAS AO FINAL DO TEXTO.

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possa assegurar, declarar ou realizar o direitocom o menor gravame possível.

No estreito campo de análise do presenteestudo, deter-nos-emos a examinar tão-somen-te o conflito aparente entre as normas dispos-tas no parágrafo único do art. 7º da Lei nº 9.099/95 (Juizados Especiais Cíveis e Criminais) e nosincisos II e IV do art. 28 da Lei nº 8.906/94 (Esta-tuto da Advocacia e da Ordem dos Advogadosdo Brasil), que, à primeira vista, poderia inviabi-lizar o exercício da advocacia por aqueles advo-gados que atuassem como juízes leigos dos Jui-zados Especiais, por incompatibilidade total5.

Confiram-se os textos dos dispositivos le-gais citados:

Parágrafo único do art. 7º da Lei nº9.099/95: “Os Juízes leigos ficarão impe-didos de exercer a advocacia perante osJuizados Especiais, enquanto no desem-penho de suas funções”.

Art. 28 da Lei nº 8.906/94: “A advoca-cia é incompatível, mesmo em causa pró-pria, com as seguintes atividades: [...] II–membros de órgãos do Poder Judiciário,do Ministério Público, dos Tribunais econselhos de contas, dos Juizados Espe-ciais, da justiça de paz, Juízes classistas,bem como de todos que exerçam funçãode julgamento em órgão de deliberaçãocoletiva da administração pública diretaou indireta; [...] IV – ocupantes de car-gos ou funções vinculados direta ou in-diretamente a qualquer órgão do PoderJudiciário e os que exercem serviços no-tariais e de registro”.

O Conselho Pleno do Conselho Federal daOrdem dos Advogados do Brasil, em sessãoordinária realizada aos 12-2-96, por maioria devotos, ao apreciar a Proposição CP nº 4.062/95,juntamente com o Processo CP nº 4.093/95, emque foi Relator o Conselheiro Arx da Costa Touri-nho e Presidente o Dr. Ernando Uchoa Lima, acor-dou “considerar que os juízes leigos estão in-compatibilizados para o exercício da advocacia”6.

Sob o fundamento de que lei posterior geral(Lei nº 9.099/95) não derroga lei anterior especi-al (Lei nº 8.906/94), entendeu o Conselho que oexercício da advocacia por aqueles que exerçama função de juiz leigo dos Juizados Especiaisestaria incompatibilizado, de forma primária etotal,

“[...] incidindo a norma prevista no art.28, inc. IV, da Lei 8.906, de 04/07/95(EOAB). Afastada, assim, a aplicabilida-de do parágrafo único do art. 7º da Lei

9.099, de 26/09/95, por aceitação do prin-cípio de interpretação legal de que lexposterior generalis non derogat legi pri-ori speciali [...]”7.

Em obediência irrestrita ao acórdão proferi-do pelo Conselho Pleno do Conselho Federalda Ordem dos Advogados do Brasil8, o ColégioPresidencial das Subseções da Ordem dos Ad-vogados do Brasil – Seccional do Estado doRio Grande do Sul –, em reunião aos 11-9-98, nacidade de Pelotas, pelos seus respectivos pre-sidentes, editou a Carta de Pelotas, tendo apro-vado, por unanimidade, entre outras, a seguinteindicação:

“[...] 7. manifestar, de forma inequívoca,que o exercício da advocacia é incompa-tível com a atividade de juízes leigos econciliadores nos Juizados Especiais”.

Para resolvermos essa questão, e, assim,podermos elaborar satisfatoriamente o que nospropusemos a fazer, mister se faz, inicialmente,bem classificarmos as normas ou regras jurídi-cas acima mencionadas, seja no que diz respei-to a sua função e amplitude de conteúdo, sejano âmbito pessoal de validez, ou extensão, ouquantificação, para, após, quiçá solucionarmoso problema da aparente antinomia.

2. Breve e casuística classificação dasnormas jurídicas

Entre as inúmeras classificações que pode-ríamos atribuir às normas jurídicas para o corre-to desate da controvérsia ventilada, cumpre pre-cisarmos se referidas leis (Lei nº 9.099/95 e Leinº 8.906/94), no âmbito pessoal de suas respec-tivas validades, são de natureza geral ou espe-cial, para só então iniciarmos o processo de so-lução da antinomia entre elas ocorrente.

Carnelutti, em sua Teoría General del Dere-cho, classifica os preceitos que constituem umordenamento jurídico em concretos ou abstra-tos. Concretos seriam toda vez que a norma ju-rídica se dispõe, em tese, a um caso existente.Abstratos quando a regra se dispõe, ao contrá-rio, a um caso possível, ou seja, para todos oscasos existentes em que se manifeste a possibi-lidade considerada. As normas jurídicas con-cretas, por sua vez, também poderiam ser deno-minadas específicas ou especiais, ao passo queas abstratas denominar-se-iam genéricas ou ge-rais9.

Nesse sentido, ressalvada a enorme diver-gência sobre esse tema10, que não diz respeitocom o nosso propósito, poderíamos afirmar que

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o direito objetivo divide-se em geral e especi-al11. Por direito geral entenderíamos

“o conjunto de normas ordinariamenteaplicáveis a todas as relações jurídicasda mesma natureza ou o direito que regu-la todo um vasto grupo de relações.”

Já o direito especial poderia ser caracteriza-do como

“o conjunto de regras estabelecidas paracertas e determinadas relações, entidadese instituições, por serem mais apropria-das à natureza das mesmas relações ouàs circunstâncias exclusivas destas ins-tituições”12.

O direito especial, ainda na análise de Cu-nha Gonçalves, não é uma exceção, mas simuma especificação, um desenvolvimento oucomplemento do direito geral, determinado,inclusive, pela qualidade das pessoas ou clas-ses sociais, com corpo autônomo de princí-pios, com orientação e espírito próprios, sen-do, portanto, um direito novo ou com carac-terísticas diversas e específicas13. Bobbio afir-ma que

“lei especial é aquela que anula uma leimais geral, ou que subtrai de uma normauma parte da sua matéria para submetê-laa uma regulamentação diferente (contrá-ria ou contraditória)”14.

Karl Engisch, na sua monumental obra Ein-führung in das Juristische Denken15, traduzidapara o português com o título de Introdução aoPensamento Jurídico, já afirmava que a casuís-tica constituía a configuração da hipótese legalque circunscreve particulares grupos de casosna sua especialidade própria, ou seja, como com-plementado em outra obra, a concreção especí-fica, por meio da regulação de uma matéria me-diante a delimitação e determinação jurídica emseu caráter especial de um número amplo decasos bem descritos, evitando generalizaçõesamplas como as que significam as cláusulasgerais16.

Ambas as leis (Leis nºs 9.099/95 e 8.906/94)têm caráter imperativo, haja vista serem regrasde condutas sociais que ordenam sempre, im-pondo obediência a determinado preceito. Nocaso específico do parágrafo único do art. 7º daLei nº 9.099/95, podemos considerá-lo comonorma negativa, ao impor certo limite jurídico aoexercício da atividade advocatícia, embora me-diatamente possa ser considerada permissiva,uma vez que, em tese, autoriza o exercício daadvocacia pelos Juízes leigos, desde que não oseja perante os Juizados Especiais. De qualquer

forma, como bem salientado por Cunha Gonçal-ves,

“mesmo as verdadeiras normas permissi-vas só se entendem em relação a um im-perativo precedente, que limitam ou su-primem, e, por isso, ficam sendo normasnegativas [...] Em suma, o juridicamentepermitido não é conteúdo das leis, mas éum espaço vazio por entre as normas, eno qual os indivíduos podem livrementemover-se. É o lícito jurídico”17.

Ambas as disposições, aparentemente con-flitantes, são, igualmente, normas coativas, aousarem a fórmula “ficarão impedidos”18 e “é in-compatível”19.

É norma modificativa o parágrafo único doart. 7º da Lei nº 9.099/95, ao estabelecer especi-alidade para o caso regulado nos incisos II e IVdo art. 28 da Lei nº 8.906/94, impedindo aos Ju-ízes leigos de exercerem a advocacia perante osJuizados Especiais, enquanto no desempenhode suas funções e, ao mesmo tempo, permitin-do a atividade da advocacia desde que os Juí-zes leigos não a exerçam diante dos JuizadosEspeciais.

Importante salientar que do caráter impera-tivo da regra social resulta logicamente a suageneralidade e abstratividade, ambas como ca-racterísticas essenciais: Lex est commune prae-ceptum, na definição de Papiniano20. Essa ge-neralidade, por outro lado, é precipuamente ob-jetiva, isto é, malgrado a lei seja aplicável a to-dos os casos idênticos aos nela previstos, so-mente o é àquelas pessoas que estejam abran-gidas nos mesmos casos ou se encontrem nasmesmas condições21.

Dupeyroux, autor da famosa monografia queintroduziu a teoria da impessoalidade da normajurídica, intitulada Da Generalidade da Lei, re-lativizou a concepção dessa generalidade, afir-mando que esta, por sua vez, transmuda-se emimpessoalidade da lei:

“a lei é geral, afirma-se, quando determi-na sem consideração de pessoa, aindaque tenha em mira, expressamente, certacategoria de pessoas ou de fatos”22.

Feita essa breve e despretensiosa classifi-cação, possível nos é afirmar que a Lei nº 9.099/95 é norma geral, mas, em seu dispositivo legaldo parágrafo único do art. 7º possui norma decaráter especial, uma vez que essa regra é esta-belecida para determinadas situações específi-cas. Já o EOAB, Lei nº 8.906/94, é norma de ca-ráter especial, detendo, em seus incisos II e IVdo art. 28, norma de conteúdo genérico, eis que

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aplicável a uma vasta gama de relações da mes-ma natureza.

Cabe a nós, então, analisarmos e ensaiar-mos uma sistematização da eventual e aparenteantinomia criada entre essas duas normas, su-fragando, dentro de nossos estreitos limites, asolução para o desate da questão posta.

3. Critérios para a solução e superação daaparente antinomia

Já são de todos conhecidos os três critériostradicionais para a solução de antinomias cria-das em determinado ordenamento jurídico: cro-nológico, hierárquico e da especialidade23.

Lênio Luiz Streck, um dos poucos a tratar damatéria ora versada, após cuidadosa exposiçãoacerca do problema e das regras para (re)soluçãodas antinomias, afirma que o Estatuto da OAB éuma norma especial – anterior –, ao passo que aLei dos Juizados Especiais é uma norma geral –posterior24.

Segundo essa colocação, teríamos a seguin-te hipótese, graficamente:

Qual delas deve prevalecer, no que com aoutra for incompatível, segundo as tradicionaistécnicas para a solução das antinomias?

Conforme acentua Juarez Freitas, nessecaso, teríamos a ocorrência de uma antinomiade segundo grau, que se dá especificamenteentre os próprios critérios que teríamos parasolvê-las, devendo ser utilizado, mais do quenunca, o critério da hierarquização para a maisadequada solução do conflito. Assim, segundoo sistema tem hierarquizado, o critério da espe-cialidade é superior, porque se entende, comoFrancesco Ferrara, que o direito especial

“é un sistema autonomo di principi ela-boratosi per un particolare attegiamentodi certi rapporti”25.

Segundo a lição de Bobbio, essa antinomia,criada pelo relacionamento entre uma lei geral euma lei especial, segundo a maior ou menor ex-tensão do contraste entre as duas normas, se-ria do tipo total-parcial, significando que, quan-do aplicarmos o critério da lex specialis, nãoacontecerá a eliminação total de uma das duasnormas incompatíveis, mas somente daquelaparte da lei geral que é incompatível com a leiespecial: “Por efeito da lei especial, a lei geralcai parcialmente”26.

NORMA ANTERIOR ESPECIAL X NORMA POSTERIOR GERAL

NAE NPG

Logo, a partir da premissa elaborada acima,fácil concluirmos, sem contudo afirmarmos avalidade dessa conclusão para o caso concre-to, que a regra para bem resolver a questão é ada norma especial, que tem, precipuamente, ocondão de prevalecer sobre a de caráter geral:lex specialis derogat generali. Uma vez exis-tindo aparente antinomia entre a regra geral e apeculiar, específica, esta tem a supremacia. Pre-ferem-se as disposições que se relacionam maisdireta e especialmente com o assunto de que setrata: In toto jure generi per speciem deroga-tur, et illud potissimum habetur quod ad speci-em directum est – “em toda disposição de Direi-to, o gênero é derrogado pela espécie, e consi-dera-se de importância preponderante o que res-peita diretamente à espécie”, conforme Papinia-nus, apud Digesto, liv. 50, tít. 17, frag. 80, citadopor Carlos Maximiliano27.

Entende-se, desse modo, que a Lei nº 8.906/94, de direito especial, se sobrepõe-se à Lei nº9.099/95, de direito geral, afastando, por conse-qüência, toda e qualquer incompatibilidade en-tre elas eventualmente existente, logo, impe-dindo aos advogados que exerçam a função deJuiz leigo perante os Juizados Especiais o exer-cício regular da atividade advocatícia.

Outra, no entanto, foi a análise elaboradapela pesquisa solicitada pelo Dr. Artur Ludwige realizada por Carla Maria Petersen Herrlein28,embora partindo de uma premissa falsa, haja vis-ta ter entendido que a decisão do Conselho Ple-no do Conselho Federal da Ordem dos Advo-gados do Brasil sobre a proposição CP 4.062/95, apreciada juntamente com o processo CP 4.093/95, afirmou que a Lei nº 9.099/95 é lei especial, enão geral, como deveria ser, para bem adequar-seao princípio invocado na ementa acima referida29.Conforme conclusão da pesquisa,

“a lei nº 9.099/95, que é posterior, e quepossui dispositivo incompatível com oEOAB, que é lei mais velha, revoga estasdisposições em contrário de maneira tá-cita, vigindo, então, o que dispõe a Lei nº9.099/95 – lei mais nova – sobre o assun-to”30.

Essa conclusão foi tomada, ao que se infereda pesquisa, com fundamento único e exclusi-vo no critério cronológico31, que é utilizado paraquando duas normas incompatíveis são suces-sivas, preponderando a lei posterior sobre a leianterior, no que com ela for incompatível – lexposterior derogat priori –, ou seja, havendoincompatibilidade entre as novas disposições eas precedentes, revogam-se as mais antigas32.

(Lei nº 8.906/94) (Lei nº 9.099/95)

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Nesse sentido, a disposição normativa daLei dos Juizados Especiais (parágrafo único, doart. 7º) revogou33, tacitamente, o dispositivoprevisto no EOAB (incisos II e IV do art. 28)34,uma vez existente a flagrante incompatibilidadeentre os dois textos, devendo prevalecer o dosJuizados Especiais, possibilitando o exercícioda advocacia para aqueles advogados que atuemperante os Juizados Especiais como Juízes leigos,excetuada a atuação nos próprios Juizados.

No entanto, pode acontecer que, em deter-minada antinomia, possam ser aplicados maisde um desses critérios concomitantemente e, emoutros, nenhum desses autorizem a mais ade-quada solução35, como ocorre no caso vertente.

A conclusão do Dr. Lênio Luiz Streck é essa,entendendo que resta inviável o uso das “téc-nicas clássicas-convencionais” para solvermosreferida antinomia36.

Adotando os princípios constitucionais doacesso à Justiça e do devido processo, susten-ta que a disposição do art. 28 do EOAB é regrarestritiva de direitos, não guardando a devidarazoabilidade no sistema, uma vez que, ao con-siderar incompatível o exercício da atividade ad-vocatícia com a função de Juiz leigo dos Juiza-dos Especiais, “restringiu indevidamente direi-tos de um determinado número de advogados”,tornando inviável os Juizados Especiais37.

Assim, valendo-se do princípio da propor-cionalidade e do paradigma da principiologiaconstitucional, afirma que

“[...] do sopesamento entre as duas nor-mas tidas como antinômicas, prevaleceaquela que vai ao encontro da constru-ção de condições de possibilidades deum melhor acesso à Justiça aos cida-dãos”38.

Ou seja, prevalece a Lei dos Juizados Especiais,que autoriza aos Juízes leigos, enquanto no exer-cício de suas funções perante os Juizados Espe-ciais, a atividade advocatícia, ressalvada a hipó-tese de atuação nos próprios Juizados.

Como se vê, o critério utilizado para a solu-ção desse conflito – da proporcionalidade39 –,ou, como preferimos, de sobredireito40 ou de hi-erarquização axiológica41, – foi, sem dúvida, omais adequado, guardando sintonia com asmelhores regras de interpretação e solução deantinomias no ordenamento jurídico.

No entanto, dadas as dificuldades para bemclassificarmos as referidas normas jurídicas, eao sabor do debate, suponhamos que a Lei nº9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais,não fosse caracterizada como lei geral, e sim lei

especial. Portanto, a hipótese que seria enseja-da é a de uma colisão entre duas normas especi-ais, não contemporâneas:

NORMA ANTERIOR ESPECIAL X NORMA POSTERIOR E SPECIALNAE NPE

(Lei nº 8.906/94) (Lei nº 9.099/95)

Assim verificado, devemos iniciar a difíciltarefa de solução do conflito ocorrente. Paratanto, existindo conflito entre norma anteriorespecial X norma posterior especial, urgerealizarmos o estudo dos seguintes critérios para,ao final, de forma segura e adequada, solucio-narmos a hipotética incompatibilidade.

O primeiro deles, insuficiente para solver-mos a antinomia, é o cronológico (lex posteri-or)42. Nesse critério, que serve para quando duasnormas incompatíveis são sucessivas, a regrageral é a de que a lei posterior prepondera sobrea anterior no que com ela for incompatível – lexposterior derogat priori –, ou seja, havendoincompatibilidade entre as novas disposições eas precedentes, revogam-se as mais antigas43.Em princípio, tudo muito fácil. Decorre que adisposição legal do parágrafo 2º do art. 2º daLei de Introdução ao Código Civil, é expressaao afirmar que a lei nova, que estabeleça dispo-sições gerais ou especiais a par das já existen-tes, não revoga nem modifica a lei anterior. As-sim, tomado-o como remédio para a solução daantinomia, poderíamos afirmar que a Lei nº 9.099/95 não tem especial prevalência sobre a Lei nº8.906/94, porque

“[...] a disposição especial (de uma lei)não revoga a geral (de outra), nem a geralrevoga especial, senão quando a ela, ouao seu assunto, se referir, alterando-a”44.

O segundo critério, da lex superior, qualseja, o que determina preponderar a norma hie-rarquicamente superior – lex superior derogatinferior –, não tem aplicação no caso concreto,uma vez que ambas as normas estão no mesmopatamar – formal – de hierarquia e de comando.

O terceiro critério, da lex specialis, segundoo qual existe choque entre uma norma geral euma norma especial – lex specialis derogat ge-nerali –, do mesmo modo, não tem aplicação nahipótese em exame, eis que ambas as leis sãoespeciais.

Viu-se, nesse sentido, que os três critériostradicionais apresentados por Bobbio não aju-dam na solução da antinomia, uns por seremnão-aplicáveis, outros por serem insuficientes.

Os critérios para as soluções das chamadasantinomias de segundo grau, as quais se dão

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entre os próprios critérios utilizados para solvê-las45, também não têm incidência na análise oraperpetrada, uma vez que não há colisão entrecritérios.

O caso é que temos, em tese46, duas normasde mesmo nível, sucessivas no tempo, havendoa necessidade do operador do direito resolver aantinomia, eliminando a parte incompatível deuma das duas, o que enseja reconhecermos anecessidade de observância do dever de coe-rência por parte deste, como sustenta Bobbio47.Como então ser coerente?

Aqui, também, a solução para a antinomiacriada está com a aplicação daqueles metacrité-rios utilizados pelo Professor Juarez Freitas eaplicados pragmaticamente no exame do Dr. Lê-nio Luiz Streck, acima analisados48, e que nos per-mitimos não reproduzir para evitar tautologia.

Ademais, como já assinalamos, e esse é odado mais importante, ainda que a Lei nº 9.099/95 fosse norma especial, a característica especi-ficadora do parágrafo único do art. 7º teria ocondão de relativizar os efeitos49 dos incisos IIe IV do art. 28 da Lei nº 8.906/94, norma de con-teúdo genérico, embora seja o EOAB norma denatureza e caráter especial.

Transposta essa tertúlia acadêmica, cabe anós verificarmos, antes de esboçar a nossa tesepara a solução – superação – da antinomia pos-ta pelo cotejo dos comandos legais referidos, oque a doutrina tem entendido a esse respeito.

Parte da doutrina que nos foi possível pes-quisar restringiu-se tão-somente a repetir os di-zeres da norma específica, prevista no parágra-fo único do art. 7º da Lei nº 9.099/95, sem anali-sar as conseqüências que essa norma eventual-mente lançou sobre a anterior disciplina legalprevista no EOAB50.

Em contraposição, a questão ora enfocadapor outra parte da comunidade jurídica mereceuanálise diversa, malgrado a solução dada sejadiversa da por nós elaborada, como se verá. Umadas mais completas obras que se preocupou comos comentários à Lei dos Juizados Especiais,salvo melhor juízo, foi a do Magistrado de San-ta Catarina, Professor Joel Dias Figueira Júnior.A análise com que laborou o ilustre doutrinadorteve conteúdo mais teleológico e social do no-vel instituto, eis que entendeu ser preocupantea deliberação do Conselho Federal da OAB, namedida em que dificulta sobremaneira o bomfuncionamento desses novos juizados51.

Já sob outro enfoque, ainda com Joel DiasFigueira Júnior, não vislumbrou incompatibili-dade alguma entre os dispositivos legais, eis

que essa incompatibilidade está primariamenterelacionada com a ocupação de “cargos ou fun-ções vinculadas direta ou indiretamente a qual-quer órgão do Poder Judiciário e os que exer-cem serviços notariais e de registro”, o que lheautorizou concluir que

“auxiliares não são funcionários públicos,mas sim um privado (no caso, os Concili-adores e Juízes leigos) temporariamenteencarregado de uma função pública”52.

Ressaltou, igualmente, que o fato de ter dei-xado de fora da aludida Resolução a figura doConciliador, gerou incoerência e equívoco; noentanto, assim finaliza a sua análise:

“enquanto não superado o tormentosoimpasse criado pelo Conselho Federal daOAB, cuja orientação está sendo passa-da para todos os Conselhos Seccionais,aos advogados cabe a observância daregra”53.

Luiz Gonzaga dos Santos, ao comentar oparágrafo único do art. 7º da Lei nº 9.099/95,refere que a vedação criada por esse dispositi-vo legal, no sentido de que estão impedidos deexercer a advocacia os Juízes leigos perante oJuizado Especial ao qual estiverem afetos, “in-dicia a intenção do legislador de não criar cargopúblico remunerado para essas atividades”.Dessa premissa, finaliza e conclui que “se assimfosse, o impedimento para o exercício da advo-cacia seria total, nos moldes como hoje é esta-belecido no Estatuto do Advogado54”.

Em outro trabalho, Luiz Cláudio Silva, reafir-mando o preceito coibitivo legal do parágrafoúnico do art. 7º da Lei nº 9.099/95, e por enten-der acertadamente que a lei específica referidaveio regulamentar as funções do Juiz leigo, en-cerra esposando que o Estatuto da Ordem dosAdvogados não tem aplicação nesse caso55.

Domingos David Júnior, após retrospectodas principais inovações do EOAB, aponta al-guns pontos negativos do Estatuto. Entre es-ses, que no seu entender não só merece ser res-saltado, mas certamente modificado, anuncia oque incompatibiliza o exercício da advocacia comos que

“[...] exerçam função de julgamento emórgãos de deliberação coletiva da admi-nistração pública direta e indireta”,

em síntese, a todos aqueles que tenham fun-ção de julgamento56. Parafraseando RubensApprobato Machado, atual Presidente da Or-dem dos Advogados de São Paulo, afirma o ar-ticulista que a incompatibilidade gerada seriade tal forma absurda que seria um flagrante

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“desperdício à classe dos advogados em preju-ízo dos interessados”57.

Comentando o Estatuto da OAB, Paulo LuizNetto Lôbo, em nota de rodapé, filia-se à cor-rente que entende poder uma lei ordinária der-rogar outra (o Estatuto), criando outro tipo es-pecial de impedimento, embora concordandoque não seja a melhor escolha58.

Conforme mencionamos desde o início dopresente trabalho, nossa empreitada destina-seà solução, ou antes, superação, da aparenteantinomia ocorrente entre alguns dos dispositi-vos legais das leis citadas. Ocorre que essa an-tinomia, que não é só aparente por ser solúvel,mas, antes de tudo, aparente porque tem sim-ples aparência de antinomia, deve ser de tal modoincompatível e inconciliável, de sorte que sejainviável aplicarmos ambas as leis às mesmasrelações jurídicas e fatos jurídicos concretos,sem ofensa da lógica e com resultados práticosdivergentes.

Importante deixarmos assentado que o pre-tendido pelo legislador da Lei nº 9.099/95, quemanifestou sucessivamente duas vontades apa-rentemente antagônicas, nada mais foi do quedeclarar nessa lei que ela é uma especificidade59

à regra geral60, ou seja, a advocacia não seráincompatível com o exercício da importante fun-ção de Juiz leigo dos Juizados Especiais, será,tão-somente, para a atividade advocatícia pe-rante os próprios Juizados Especiais, enquantoo Juiz leigo estiver no desempenho de suas fun-ções61.

Com essa colocação, desde logo assentare-mos uma premissa, que, ao final, servirá de con-clusão ao nosso estudo: o novo texto legislati-vo veio a modelar especificamente a cláusulageral, como que adequando-a e aprimorando-aao novo sistema próprio de declaração, realiza-ção e assecuração da justiça, em atitude extre-mamente corajosa e indiscutivelmente promis-sora da tão almejada ordem jurídica justa, abar-cando, precipuamente, aquela que se convenci-onou denominar de litigiosidade contida.

Se é certo, como afirmamos, que a Lei nº9.099/95 é norma geral, que contém, em seu dis-positivo legal do parágrafo único do art. 7º, nor-ma de caráter especial, uma vez que essa regra éestabelecida para determinadas situações espe-cíficas, e que o EOAB, Lei nº 8.906/94, é normade caráter especial, detendo, em seus incisos IIe IV do art. 28, norma de conteúdo genérico, eisque aplicável a uma vasta gama de relações damesma natureza, cumpre agora verificarmos, nadicção de Francesco Ferrara, se seguindo à lei

especial (Lei nº 8.906/94), que detém cláusulageral, uma lei geral (Lei nº 9.099/95), que veio aespecificar aquela cláusula geral, seria posto emdúvida se a primeira regra não tolera os desviose exceções da segunda ou aceita mantê-las, co-ordenando-as com o novo princípio62.

A solução, ainda com Ferrara, evidentemen-te que dependerá da seguinte indagação acercado caso concreto: qual o nexo que existe entreas duas normas citadas e o fundamento da novadisposição legal?

Inicialmente, cabe a nós examinarmos, a fimde bem precisar se há ou não revogação da nor-ma especial63 pela norma geral64 que lhe suce-deu, o necessário grau de incompatibilidade queeventualmente poderá existir entre ambas asnormas e, ainda, o grau de repetição de precei-tos, que tornaria a norma anterior – Lei nº 8.906/94 – inútil e obsoleta.

É corrente para os jurisconsultos que, sem-pre que vem a lume uma lei, traz ela em seu bojotodos os preceitos de leis especiais anteriores.Nada mais relativo, como facilmente podemosconstatar do nosso Código de Processo Civil,que manteve em vigência várias disposições doantigo Código de Processo de 1939, reguladasem leis esparsas65. Assim, estariam revogadosos incisos II e IV do art. 28 da Lei nº 8.906/94 emvirtude do parágrafo único, do art. 7º, da Lei nº9.099/95? Se revogados, é caso de abrogaçãoou derrogação?

Da análise crítica e valoração axiológica dospreceitos tidos como incompatíveis, podemosverificar que o legislador, ao elaborar a Lei nº9.099/95, de forma expressa, procurou especifi-car que as situações ali tratadas de maneira al-guma teriam o condão de revogar as disposi-ções do EOAB.

Em primeiro lugar, porque a extinção de umanorma jurídica, pela revogação, dá-se pelo pre-estabelecimento do termo final de sua vigên-cia66, ou pela declaração expressa do legislador,por meio a) da afirmação de que está revogadadeterminada lei67, b) da incompatibilidade da leinova com a lei antiga68, ou c) da regulamenta-ção por inteiro da matéria tratada na lei anteri-or69. Na hipótese em tela, nenhum desses mo-dos de revogação ocorreu.

Em segundo lugar, porque a problemáticasuscitada, ao que nos parece, resta contornadacom a simples lembrança da lição de Cunha Gon-çalves, de que o gênero revogação, que é carac-terizado como a supressão da força obrigatóriade uma norma, no todo (ab-rogação), ou em par-te (derrogação), exige, para o seu reconhecimen-

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to, a incompatibilidade entre duas normas comoconseqüência normal, já porque não podem sub-sistir conjuntamente leis antagônicas sobre osmesmos fatos, sem que uma delas seja nocivaou inútil, já porque o legislador não se daria aotrabalho de fazer uma lei se as anteriores fossemtotalmente profícuas e satisfatórias70.

Ora, o imperativo legal específico do pará-grafo único do art. 7º da Lei nº 9.099/95 temconteúdo cogente negativo, ao impor certo li-mite jurídico ao exercício da atividade advocatí-cia. Por outro lado, ainda que imponha certolimite ao exercício da atividade advocatícia, tam-bém é certo que estabelece, de forma implícita elógica, a autorização para que os Juízes leigosexerçam a atividade advocatícia, desde que nãoo façam perante os Juizados Especiais, quandono desempenho de suas funções. Melhor seria,como afirmou acuradamente Domingos DavidJúnior, que a Lei nº 8.906/94 tivesse ratificado odispositivo do anterior Estatuto da OAB, que,reconhecendo como relativa a incompatibilida-de, impedia o profissional de atuar apenas naárea de atividade do órgão ao qual estava su-bordinado e quanto às matérias desses órgãos71.Como isso não ocorreu, cabe aos operadoresdo direito o desate da “controvérsia” criada.

Assim, não é caso de revogação da lei –ab-rogação ou derrogação –, uma vez que o dis-positivo legal do art. 28, II e IV, da Lei nº 8.906/94 não foi suprimido de sua força obrigatória,seja pela eliminação ou anulação pura e sim-ples, seja pela substituição das suas disposi-ções no todo ou em parte72.

Isso não importa, de forma alguma, na rejei-ção dos argumentos expendidos por aqueles jámencionados autores que sobre o presente temaescreveram e concluíram pela não-aplicabilida-de do EOAB. Muito pelo contrário, estamos cor-roborando-os, de maneira a bem resolver a ques-tão. Única ressalva que fazemos é no que dizrespeito a nossa técnica de investigação e es-clarecimento do debate travado, que, como vis-to, partiu de premissa diversa dos demais.

Avulte-se, mais uma vez, que o parágrafoúnico do art. 7º da Lei nº 9.099/95 não revogouparte da disposição legal dos incisos II e IV doart. 28 da Lei nº 8.906/94, mas apenas e tão-so-mente subtraiu à aplicação de certo limite jurídi-co ao exercício da atividade advocatícia, conti-nuando esta legislação – Lei nº 8.906/94 – a vi-gorar normalmente para as situações não excep-cionadas. A adequada interpretação e aplica-ção da lei deve estar restrita à especialidade tra-zida pela lei posterior – Lei nº 9.099/95 –, pois as

disposições da lei anterior – Lei 8.906/94 -, porserem gerais e comuns ao determinarem quaisatividades são incompatíveis com a advocacia,devem ser mantidas, sendo tão-somente limita-das pela exceção73.

4. ConclusãoVisto que a antinomia se mostra inexistente,

ao menos de modo que torne inviável a preser-vação da unidade interna e coerência do siste-ma, como a caracteriza Juarez Freitas, convémnotar que, no caso ora analisado, o parágrafoúnico do art. 7 º da Lei nº 9.099/95, em momentoalgum revogou os incisos II e IV, do art. 28, daLei nº 8.906/94, devendo continuar a vigorar essalegislação para todos aqueles casos de incom-patibilidade nela previstos, excetuados pelo quedispõe claramente o dispositivo legal do pará-grafo único do art. 7º da Lei nº 9.099/95, quepermite aos Juízes leigos dos Juizados Especi-ais o exercício da essencial atividade advocatí-cia, desde que não o façam, “enquanto no de-sempenho de suas funções”, perante os mes-mos Juizados Especiais.

Assim, possível a coexistência e compene-tração das Leis nºs 9.099/95 e 8.906/94, sem quecom isso possamos causar a ruptura no siste-ma. O que os incisos II e IV do art. 28 da Lei nº8.906/94 fixam é a norma geral sobre as ativida-des que tornam incompatível o exercício da ad-vocacia. Essa norma deverá ter aplicação sem-pre que não houver norma especial determinan-do regime diferente, como decorre da disposi-ção do parágrafo único, do art. 7º da Lei nº9.099/95, que, seguramente, não determina in-compatibilidade entre ambas as normas, e, alémdisso, autoriza-nos reconhecer um nexo coerentee estável entre essas duas normas, ratificadopelo relevante fundamento social da nova dis-posição.

Por meio dos incisos II e IV do art. 28 da Leinº 8.906/94, deveremos extrair todas as referên-cias e implicações que eventualmente possamsurgir do exercício da nobre atividade advocatí-cia, como cláusula geral e retora. A ressalva quedeveremos fazer é quando do exercício dessaatividade por Juízes leigos dos Juizados Espe-ciais, que, nesse caso, tem na norma do pará-grafo único do art. 7º da Lei nº 9.099/95 o con-dão de relativizar o modelo geral anterior. Admi-tirmos interpretação contrária ao que ora sus-tentamos, além de avalizar nenhuma soluçãorazoável, acarretará o absurdo da má técnica dehermenêutica, que nega reconhecer o caráter

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diretivo e de norma-objetivo 74 do modelo es-pecífico superveniente.

Após termos concluído o presente estu-do, chegou a nossas mãos artigo de autoriade Demócrito Ramos Reinaldo Filho, intitula-do Da capacidade para o exercício da ad-vocacia dos conciliadores e juízes leigos dosJuizados Especiais Cíveis, cuja análise e so-lução do tema ora versado corroborou a tesepor nós sustentada.

Diz o atento Juiz de Direito de Pernambu-co que não existe um conflito temporal denormas, não revogando a Lei nº 9.099/95 (pa-rágrafo único do art. 7º) quaisquer dos dis-positivos da Lei nº 8.906/94 (notadamenteseu art. 28, IV), devendo esta não ser maisutilizada quando se tratar de regular a capa-cidade de juízes leigos e conciliadores para oexercício da advocacia. Isso porque, conti-nua ele, a Lei nº 9.099/95, que estabeleceudisposição especial e normatiza um único casoespecífico, não revoga a regra geral do inci-so IV do art. 28 da Lei nº 8.906/94. E conclui:

“por essa razão, o novel texto de Lei(Lei nº 9.099/95) expressa, no que tan-ge à existência de mero impedimento enão incompatibilidade com a advoca-cia (parágrafo único do art. 7º), umaharmonia com a nova realidade da or-ganização judiciária, no âmbito da Jus-tiça dos estados (Justiça ordinária),nascida a partir da criação dos Juiza-dos Especiais.”75.

De tudo o quanto foi visto, podemos con-siderar como viável e legítimo o exercício daadvocacia por Juízes leigos nos Juizados Es-peciais quando essa atividade for exercidafora da comarca que desenvolvam a funçãode Juiz leigo; e, até mesmo, a atuação peranteos Juizados Especiais Criminais, ainda quena própria comarca, quando estiverem nodesempenho de suas funções nos JuizadosEspeciais Cíveis, e vice-versa, desde que asestruturas dos Juizados Especiais Cíveis edos Juizados Especiais Criminais sejam autô-nomas e independentes entre si, e a forma-ção de seus quadros seja mantida por Juízesleigos diversos, que, em hipótese alguma,poderão cumular ambas as atividades76.

Cumpre ao final destacarmos que à figurado Conciliador77, quando este for advogado,deveremos aplicar as mesmas consideraçõesaqui expostas78.

Notas

1Apud JUAREZ FREITAS, “A interpretação sis-temática do direito”, Malheiros, 1995, p. 11.

2Após criticar, em alguns pontos, o conceito deantinomia formulado por Norberto Bobbio, JuarezFreitas a reconceitua nos seguintes termos: “definem-se as antinomias jurídicas como sendo incompatibili-dades possíveis ou instauradas, entre normas, valo-res ou princípios jurídicos, pertencentes, validamen-te, ao mesmo sistema jurídico, tendo de ser vencidaspara a preservação da unidade interna e coerência dosistema e para que se alcance a efetividade de suateleologia constitucional”, cf. “A interpretação siste-mática do direito” cit., p. 62.

3Sobre o sentido de Sistema, a propósito, ver oexcelente trabalho de NORBERTO BOBBIO, In Te-oria do Ordenamento Jurídico, 7ª ed., UnB, 1996,para quem, “[...], ‘sistema’, equivale à validade doprincípio que exclui a incompatibilidade das normas.”.

4Cf. JUAREZ FREITAS, “A interpretação sis-temática do direito” cit., pp. 47-50.

5Para a elaboração do presente trabalho, à evi-dência limitado, examinamos a questão suscitada coma pesquisa de inúmeras obras que, de uma maneira ououtra, comentaram a Lei 9.099/95, especificamenteno que diz respeito aos Juizados Especiais Cíveis.Poucas foram as que elaboraram algumas linhas sobreesse tema, como, no decorrer do presente estudo,poderemos verificar.

6Este o teor do voto proferido pelo Relator, ver-bis: “[...] Essa disposição viola, vigorosamente, anorma ínsita no art. 28, nº IV, do EOAB, que impõe aincompatibilidade dos servidores para o exercício daadvocacia. Há que se verificar que norma geral nãoderroga norma especial. Os impedimentos e as in-compatibilidades são regrados na Lei 8.906/94, que éo Estatuto próprio da Advocacia e dos Advogados.Não enxergo, no particular, inconstitucionalidade,porém, violação de princípio de interpretação jurídi-ca que não pode, nem deve ser tolerada. A lei substudio, ao fixar impedimento para o juiz leigo e oconciliador, traz uma norma geral, que contraria nor-ma especial. É preceito clássico que ‘a disposiçãogeral não revoga a especial’. Lex posterior generalisnon derogat legi priori speciali, di-lo Carlos Maximi-liano, ‘é máxima que prevalece apenas no sentido denão poder o aparecimento da norma ampla causar, sópor si, sem mais nada, a queda da autoridade da pres-crição especial vigente’ (Hermenêutica e aplicaçãodo direito, 1957, RJ, Livraria Freitas Bastos S/A, 6.ªed., pág. 442). Não é, pois, razoável a aceitação deque a lei que disciplina os juizados especiais se ocupede matéria que impõe norma que destoa de sistemati-zação jurídica, referente aos impedimentos e às in-compatibilidades inseridas no Estatuto da OAB. Essediploma foi editado, com a finalidade de regular oexercício da advocacia, disciplinando e selecionandoa atividade advocatícia. A OAB não pode aceitaressa disposição que contraria a sistemática jurídica,

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na seleção da advocacia. O juiz leigo é um servidor doPoder Judiciário e está incompatibilizado para a ad-vocacia. A solução não está na propositura de açãode inconstitucionalidade, mas, parece-nos, na ediçãode Provimento, com fulcro no art. 154, do RegimentoGeral, interpretando a disposição legal, para orienta-ção dos Conselhos Seccionais da OAB, dizendo quea norma do EOAB não foi derrogada pela lei posteri-or. Concluindo, [...], b) o art. 7º, da lei dos Juizados,não derrogou o art. 28, inc. IV, do EOAB, por sernorma geral, opondo-se a norma especial” (grifos nooriginal) (cf. voto de fls. 28/29, dos autos da Propo-sição CP nº 4062/95 referida, gentilmente cedido peloSr. Luiz Carlos Maroclo, Gerente de Documentaçãoe Informação do Conselho Federal da OAB). Confi-ra-se a ementa do acórdão do processo mencionado,que por 15 votos a 10, com a abstenção da delegaçãodo Estado de Pernambuco, decidiu que: “O parágra-fo único do art. 7º da Lei 9.099, de 26.09.1995, quefixa impedimentos para os Juízes leigos, quando noexercício da advocacia, não pode derrogar o inc. IV doart. 28 da Lei 8.906, de 04.07.1994 (EOAB), poraplicação do princípio lex posterior generalis no der-rogat legi priori speciali. A norma posterior aludidaquebra a sistematização jurídica na seleção da advo-cacia, com graves reflexos para a comunidade, deven-do, pois, o Conselho Federal da OAB manifestar ori-entação aos Conselhos Seccionais para que apliquemo EOAB em detrimento do parágrafo único do art. 7ºda Lei 9.099/95 [...]”, cf. publicação feita no Diárioda Justiça (DJU) de 19-4-1996, Seção 1, p. 12487, efl. 33 dos autos acima referidos.

7Cf. acórdão publicado no Diário da Justiça cit.,idem, ibidem.

8Cf. ementa transcrita na nota 6 acima.9Cf. FRANCESCO CARNELUTTI, Teoría Ge-

neral del Derecho, Editorial Revista de Derecho Pri-vado, Madrid, 1955, p. 62.

10É sabido que a classificação das normas jurídi-cas constitui um dos temas em que são raríssimas asunanimidades, tanto no que diz respeito aos critériospara essa classificação como também a própria no-menclatura.

11Em verdade, segundo clássica estruturação ha-vida do velho Direito Romano, o Direito sempre teveduas categorias principais de atuação: a geral (jus com-mune) e a especial (jus singularis).

12Cf. LUIZ DA CUNHA GONÇALVES, Trata-do de Direito Civil, vol. I, tomo I, 1955, p. 94.

13Cf. LUIZ CUNHA GONÇALVES, op. cit., pp.94/95.

14Cf. NORBERTO BOBBIO, op. cit., p. 96.15Sttuttgart, 1964.16Cf. KARL ENGISH, La idea de Concreción en

el Derecho y en la Ciencia Juridica Actuales, Ed.Universidad de Navarra, Pamplona, 1968, p. 180,apud JUDITH MARTINS COSTA, O Direito pri-vado como um ‘sistema em construção’ (As cláusu-las gerais no projeto do Código Civil brasileiro), inRevista dos Tribunais, ano 87, julho de 1998, vol.753, p. 28.

17Cf. LUIZ DA CUNHA GONÇALVES, op. cit.,pp. 71/72.

18Cf. parágrafo único, do art. 7º, da Lei nº 9.099/95.

19Cf. caput, do art. 28, da Lei nº 8.906/94.20Apud LUIZ CUNHA GONÇALVES, op. cit.,

p. 60.21Cf. LUIZ CUNHA GONÇALVES, op. cit., p.

61.22Apud BENJAMIM DE OLIVEIRA FILHO,

“Introdução à Ciência do Direito”, capítulo XIV,título IV, nº 50.

23Além desses três critérios tradicionais, e dosanalisados no presente estudo, a doutrina aponta comoexistentes princípios gerais, como o do critério dopecado; o princípio de que o direito comum é subsi-diário em relação ao direito próprio; lex tendens adbonum publicum praefertur tendenti commodo pri-vatorium; leges in corpote pareferuntur extravagan-tes (cf. ANTÓNIO MANUEL HESPANHA, in Pa-norama histórico da cultura jurídica européia, pu-blicações Europa-América, Portugal, 1997, p. 97).

24Cf. “Conflito de normas e o princípio da pro-porcionalidade: um exame de caso (Lei nº 9.099/95V. Lei nº 8.906/94)”, in Revista dos Juizados Especi-ais: Doutrina - Jurisprudência, nº 19, abril-1997, PortoAlegre, Revista de Jurisprudência e Outros Impres-sos do TJRS, pp. 28-35.

25Cf. FRANCESCO FERRARA, “Trattato diDiritto Civile Italiano”, Roma, Athenaeum, 1921, p.83, apud JUAREZ FREITAS, “A interpretação sis-temática do direito” cit., p. 74.

26In op. cit., pp. 96/97.27Cf. CARLOS MAXIMILIANO, Hermenêuti-

ca e Aplicação do Direito, 14ª ed., Rio de Janeiro,Forense, 1994, p. 135.

28Cf. Pesquisa da decisão sobre a proposição CP4.062/95, apreciada juntamente com o processo CP4.093/95, do Conselho Federal da Ordem dos Advo-gados do Brasil, publicada na “Revista dos JuizadosEspeciais: Doutrina – Jurisprudência”, nº 17, agos-to de 1996, pp. 113/116, da Revista de Jurisprudên-cia e Outros Impressos do TJRS.

29Cf. nota 6.30Cf. op. cit., p. 116.31É o que se verifica ao afirmar que “[...] b) O

EOAB é de 04-07-94, enquanto a Lei dos JuizadosEspeciais é de 26-09-95. c) Desta forma, a lei nº9.099/95, que é posterior, e que possui dispositivoincompatível com o EOAB, que é lei mais velha,revoga estas disposições em contrário de maneira tá-cita, vigindo, então, o que dispõe a Lei nº 9.099/95 –lei mais nova – sobre o assunto.” (grifo nosso) (cf.op. cit. pp. 115/116).

32 Niklas Luhmann chama de regra de colisão, pelaqual o Direito novo derroga, em caso de contradição,o Direito mais antigo quando com este incompatível,cf. A posição dos tribunais no sistema jurídico, AJU-RIS nº 49, p. 151.

33Embora as normas jurídicas tenham como cará-ter a estabilidade, “não são imortais, mas sujeitas a

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modificarem-se e a extinguirem-se” (como diz Fran-cesco Ferrara), vivendo até que outra lei as modifiqueou revogue, conforme art. 2º da Lei de Introdução doCódigo Civil. A revogação, como concebido pela dou-trina, é termo genérico, que caracteriza a cessação oua supressão da força obrigatória da norma, seja pormeio de ato que a elimine ou anule, seja pela substi-tuição das suas disposições no todo ou em parte. Arevogação total, ou seja, a cessação da existência dalei em sua totalidade, é chamada de ab-rogação, e arevogação parcial, isto é, a cessação da existência dalei apenas em uma determinada parte, de derroga-ção, termos esses que, segundo ensinamento de Cu-nha Gonçalves, vêm dos Romanos, “que à propostade lei, votada nos comícios, chamavam rogatio; eUlpiano definia: ‘Lex abrogatur, id est, prior lextollitur; lex derogatur, id est, pars prioris legis tolli-tur.’ ” (cf. LUIZ CUNHA GONÇALVES, op. cit. p.173).

34Cf. op. cit., p. 116.35Sendo o ordenamento jurídico um “conglome-

rado de normas de proveniência diversa” (como dizANTÓNIO MANUEL HESPANHA, op. cit. p. 97),eventualmente contraditórias ou contrárias entre si,e, por outro lado, não existindo um conjunto de nor-mas no mesmo ordenamento para que se possibilite asolução desses conflitos, malgrado existam princípi-os gerais que possam, por vezes, estabelecer algumasdiretivas, nem sempre seguras, cabe ao operador dodireito extrair do sistema as regras de hierarquizaçãoaxiológica, ou, como preferimos, as regras de sobredi-reito, assegurando sua natureza fundamental, plena,efetiva e política de servir à ordem jurídica humana,social e concreta. Sobre o conceito de regra de sobre-direito, vide abaixo nota nº 39.

36Cf. LÊNIO LUIZ STRECK, op. cit., p. 31.37Cf. LÊNIO LUIZ STRECK, op. cit., p. 34.38Cf. LÊNIO LUIZ STRECK, op. cit., p. 35.39Cf. LÊNIO LUIZ STRECK, op. cit., pp. 31/

35.40O termo sobredireito foi concebido pelo pro-

cessualista Galeno Lacerda, inicialmente como cate-goria relativizadora das nulidades processuais (O có-digo e o formalismo processual, in Revista da AJU-RIS, vol. 28), para, em momento posterior a sua in-tuição, caracterizá-lo como a aplicação de regras eprincípios maiores que podem revogar ou suprimir aincidência de regras menores, porque “se sobrepõemàs demais, por interesse público eminente, condicio-nando-lhes, sempre que possível, a imperatividade” .

41Devemos ao Professor Juarez Freitas o avançona temática das antinomias e a concretização do prin-cípio da hierarquização axiológica, que “é uma meta-regra, um operador deôntico que ocupa o topo dosistema jurídico. Como metaprincípio, aspira à uni-versalização sem se contradizer, e se formula, ex-pressa ou implicitamente, de modo mais formal pos-sível, distinguindo aspectos e escalonando os demaisprincípios, assim como as normas e valores. Trata-se de lei ou dever-ser que é somente predicado e queveda as contradições, embora tolere o atrito dos opos-

tos ou contrários concretos.” (op. cit., p. 80).42Sobre a relativização do critério cronológico, no

sentido de que jamais poderá preponderar por suaspróprias forças, veja-se o estudo efetivado por JUA-REZ REITAS, A interpretação sistemática do direitocit., pp. 71/73.

43Cf. a regra do art. 2º da Lei de Introdução doCódigo Civil.

44Cf. VICENTE RÁO, “O Direito e a Vida dosDireitos’’, Ed. RT, vol. 01, 3ª edição, p. 303.

45São estas, segundo BOBBIO e JUAREZ FREI-TAS, as antinomias de segundo grau: Critério Crono-lógico X Critério Hierárquico; Critério de Especiali-dade X Critério Hierárquico e Critério Cronológico XCritério da Especialidade (Cf. op. cit., pp. 105/110 e80/84, respectivamente).

46Não esqueçamos que hipoteticamente conside-ramos a Lei nº 9.099/95 como norma jurídica de cará-ter especial.

47Cf. NORBERTO BOBBIO, op. cit., pp. 110/114.

48Cf. LÊNIO LUIZ STRECK, op. cit., pp. 33/35.

49Sobre a questão dos efeitos (jurídicos) da nor-ma, que são valores atribuídos ao fato, de acordo como devido enquadramento da regra, Carlos AlbertoÁlvaro de Oliveira, com apoio na obra Efficacia giu-ridica de Angelo Falsea, observa que constitui fenô-meno comum ao direito o efeito de representar umasolução adequada do problema e um harmônico ba-lanceamento dos interesses em jogo, correspondenteà relação entre o fato e o efeito, concluindo que deveprevalecer o efeito melhor, isto é, o mais adequado àsolução prática do problema (Perfil dogmático datutela de urgência, in Revista da AJURIS, nº 70, pp.225/226).

50Esclarecemos que as obras consultadas foramúnica e exclusivamente aquelas que realizaram algumtipo de comentário a respeito do presente tema, e,obviamente, posteriores à Lei nº 9.099/95. Nessesentido as seguintes obras: MELO, José Maria eNETO, Mário Parente Teófilo. Lei dos Juizados Es-peciais – Comentada, Curitiba, Juruá Editora, 1997,pp. 29/30, verbis: “Em virtude de suas funções, serávedado ao Juiz Leigo exercer a advocacia perante oJuizado Especial, enquanto estiver no desempenhodeste mister”; LENZA, Suzani de Melo. JuizadosEspeciais Cíveis, AB Editora, 1997, p. 39, verbis:“Os juízes leigos ficarão impedidos de exercer a ad-vocacia perante os Juizados Especiais, enquanto es-tiverem desempenhando as suas funções”; TOSTES,Natacha Nascimento Gomes e CARVALHO, MárciaCunha Silva Araújo. Juizado Especial Cível – Estudodoutrinário e interpretativo da Lei 9.099/95 e seusreflexos processuais práticos, Rio de Janeiro, Reno-var, 1998, p. 83, verbis: “[...] segundo o critério doart. 7º da LJE, que, em seu parágrafo único, estabele-ce a proibição de o juiz leigo exercer a advocacia pe-rante os Juizados Especiais, enquanto exercer a fun-ção que lhe foi outorgada, em face da incompatibili-dade da função decisória com a postulatória.”.

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51Cf. JOEL DIAS FIGUEIRA JÚNIOR e MAU-RÍCIO ANTÔNIO RIBEIRO LOPES, Comentáriosà Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, 2ªed. Revisada, São Paulo, Editora Revista dos Tribu-nais, 1997, pp. 162/163.

52Cf. JOEL DIAS FIGUEIRA JÚNIOR, op. cit.,pp. 163/164.

53Cf. JOEL DIAS FIGUEIRA JÚNIOR, op. cit.,p. 165.

5 4

55 Cf. LUIZ CLÁUDIO SILVA, Os JuizadosEspeciais Cíveis na Doutrina e na Prática Forense,2.ª ed., revista e ampliada, Rio de Janeiro, Forense,1998, p. 50.

56Cf. DOMINGOS DAVID JÚNIOR, Estatutoda Advocacia: dos dispositivos inovadores (Lei nº8.906/94) e sua inaplicabilidade após três anos devigência, in Revista Jurídica, ano XLVI, nº 249,julho de 1998, Porto Alegre, Ed. Síntese, pp. 42/43.

57 Cf. DOMINGOS DAVID JÚNIOR, op. cit.,p. 43.

58 Cf. PAULO LUIZ NETTO LÔBO, Comentá-rios ao Estatuto da Advocacia, 2ª ed., Brasília, DF,Editora Brasília Jurídica, 1996, nota 115, p. 133.

59 Note-se que afirmamos ser o dispositivo legaldo parágrafo único do art. 7º da Lei 9.099/95 umaregra específica e especial, não privilegiadora: privi-legia nec irroganto.

60 Cf. inciso IV do art. 28 da Lei nº 8.906/94.61Cf. parágrafo único do art. 7º da Lei nº 9.099/

95.62Cf. FRANCESCO FERRARA, Interpretação

e aplicação da leis, 4ª ed., Arménio Amado Editor,Coimbra, 1987, pp. 193/194.

63Incisos II e IV do art. 28 da Lei 8.906/94.64Parágrafo único do art. 7º da Lei 9.099/95.65Verbi gratia, as disposições dos arts. 1217 e

1218 do atual CPC.66São as normas que se destinam à vigência tem-

porária, prevista expressamente no art. 2º da Lei deIntrodução ao Código Civil.

67Cf. art. 2º, parágrafo 1º, primeira parte, da Leide Introdução ao Código Civil.

68Cf. art. 2º, parágrafo 1º, segunda parte, da Leide Introdução ao Código Civil.

69Cf. art. 2º, parágrafo 1º, parte final, da Lei deIntrodução ao Código Civil.

70Cf. LUIZ CUNHA GONÇALVES, op. cit. pp.176/177.

71Cf. DOMINGOS DAVID JÚNIOR, op. cit.,p. 43.

72 Franceso Ferrara já afirmava que, se a uma leigeral se sucede uma especial, normalmente aquela ficade pé, visto que pode coexistir com a outra: ‘lex pos-terior generalis non derogat speciali’ (cf. Interpreta-ção e aplicação da leis, op. cit., p. 193).

73 “[...] a disposição especial (de uma lei) nãorevoga a geral (de outra), nem a geral revoga especial,senão quando a ela, ou ao seu assunto, se referir,alterando-a”, Cf. VICENTE RÁO, “O Direito e aVida dos Direitos’’, Ed. RT, vol. 01, 3ª edição, p. 303.

74A idéia de diretiva ou de normas-objetivo re-presenta adequação da linguagem legislativa aos re-sultados desejáveis para o bem comum e a utilidadesocial, como referido por Judith Martins Costa, op.cit., p. 27.

75Cf. DEMÓCRITO RAMOS REINALDO FI-LHO, Da capacidade para o exercício da advocaciados conciliadores e juízes leigos dos Juizados Espe-ciais Cíveis, in Revista da Escola da Magistratura dePernambuco, vol. 3, nº 7, jan/junho 98, pp. 139/150.

76Claro que melhor teria sido que a Lei 8.906/94tivesse ratificado o dispositivo do anterior Estatutoda OAB (Lei nº 4.215/63), que, reconhecendo comorelativa a incompatibilidade, ao contrário do novoestatuto, que a define como absoluta, impedia o ad-vogado de atuar apenas na área de atividade do órgãoao qual estava subordinado e quanto às matérias des-ses órgãos, como bem pinçado por Domingos DavidJúnior, op. cit., p. 43. No entanto, como a Lei nº8.906/94 não ratificou a disposição relativizadora doanterior Estatuto, e diante da promulgação posteriorda Lei nº 9.099/95, temos ser mais correto proceder-mos a devida adaptação do atual Estatuto da OAB,viabilizando, assim, a sua ressistematização no orde-namento jurídico, do que negarmos a vigência da nor-ma específica formulada, que corresponde a específi-co e determinando modelo contemporâneo.

77A regra geral, prevista na primeira parte do art.7º da Lei nº 9.099/95, é que os conciliadores serãorecrutados, preferentemente, entre bacharéis de Di-reito.

78Sobre a incompatibilidade do Conciliador paraa atividade advocatícia, quando advogado e no de-sempenho da função a ele atribuída para o exercícioperante os Juizados Especiais, além do que já susten-tamos relativamente aos Juízes leigos, oportuno men-cionarmos outros argumentos colacionados por di-versos autores, e que vão aqui reproduzidos, de for-ma sucinta, por não serem objeto específico do nossoestudo. Segundo leciona Luiz Cláudio Silva, a Lei8.906/94 não teria o condão de determinar a incom-patibilidade para a atividade advocatícia de advogadoque exerça ou venha a exercer as funções de Concilia-dor, que é um auxiliar da Justiça para os fins especí-ficos do juízo de conciliação, sem conteúdo decisó-rio. Isso porque, continua Luiz Cláudio Silva, o art.28, II, da Lei nº 8.906/94, repetiu a redação que eradada ao art. 84, III, da Lei nº 4.215/63, revogada, nãotendo a Ordem dos Advogados do Brasil se manifes-tado contrariamente ao exercício dessas funções poradvogado nela regularmente inscrito (op. cit., p. 50).

Natacha Nascimento Gomes Tostes e MárciaCunha Araújo de Carvalho, do mesmo modo, com-partilham com a tese de que a restrição ao exercício daadvocacia não se estende aos Conciliadores, por au-sência de expressa previsão legal. Importante repro-duzirmos decisão colacionada pelas autoras, proferi-da pela Ordem dos Advogados do Brasil, Secção doRio de Janeiro, que reconheceu a incompatibilidadeda função de conciliador com a atividade advocatícia,sob o fundamento central de que este ocupa cargo

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vinculado direta ou indiretamente ao Poder Judiciá-rio, entretanto, não se aplicando essa orientação, àque-les Conciliadores que, por determinação legal local,tenham sido indicados pela OAB (Processo 197.729/96 - Tribunal de Ética da OAB). Subtraídas as ques-tões eventualmente políticas e corporativistas que

no aresto podemos encontrar, as autoras são incisi-vas ao afirmarem que a premissa na qual se baseou adecisão está equivocada, uma vez que o Conciliadornão ocupa cargo do Poder Judiciário, mas exerce fun-ção graciosa de colaboração com a Justiça (op. cit.pp. 84/87).

* Notas bibliográficas conforme original.

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A concepção relativista das imunidadesde jurisdição e execução do Estadoestrangeiro

1. A competência do Estado soberanoO Estado soberano exerce sobre o seu terri-

tório competência (expressão da doutrina fran-cesa, preferível a jurisdição, usada pela doutri-na anglo-saxônica), que se caracteriza pela ge-neralidade (competência de ordem legislativa,administrativa e jurisdicional) e pela exclusivi-dade (pois não enfrenta a concorrência de algu-ma outra soberania).

2. A imunidade de jurisdiçãoA idéia da imunidade de jurisdição é atribu-

ída a Bártolo de Saxoferrato, em 1354, na obra desua autoria Tractatus Repreasiliarum e expres-sa na regra par in parem non habet judicium oupar in parem non habet imperium, que proíbe oexercício da jurisdição sobre Estado estrangei-ro, com fundamento nos princípios de sobera-nia, independência recíproca, igualdade jurídi-ca e dignidade dos Estados. Em suma, o Estadoestrangeiro é imune à jurisdição do Estado localporque iguais não podem julgar iguais. A imu-nidade de jurisdição do Estado estrangeiro nãoestá prevista em tratados multilaterais, como asConvenções de Viena, que a asseguram somen-te às pessoas dos embaixadores e cônsules. No

PINHO PEDREIRA

Pinho Pedreira é Livre docente de Direito doTrabalho da Faculdade de Direito da UniversidadeFederal da Bahia. Juiz togado aposentado do TRT da5ª Região. Membro da Academia Brasileira de LetrasJurídicas, da Academia Nacional de Direito do Tra-balho e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

SUMÁRIO

1. A competência do Estado soberano. 2. A imu-nidade de jurisdição. 3. O caráter absoluto ou restri-tivo da imunidade de jurisdição dos Estados. 4. Aimunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros –a jurisprudência brasileira. 5. A imunidade de execu-ção. 6. O caráter absoluto ou restritivo da imunida-de de execução do Estado estrangeiro. 7. As exceçõesà imunidade de execução. 8. Bens protegidos pelaimunidade de execução. 9. Conclusão.

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Brasil, ao contrário do que acontece em algunsoutros países, também não é objeto de lei inter-na, encontrando seu único fundamento na anti-qüíssima regra costumeira acima referida.

3. O caráter absoluto ou restritivo daimunidade de jurisdiçâo dos Estados

Até 1945, a imunidade de jurisdição reinoude modo absoluto com supedâneo na regra parin parem. Depois daquele ano, e sobretudo apartir dos anos 70, passou-se a adotar uma con-cepção restritiva da imunidade1. Considerou-seentão que, se a imunidade de jurisdição dosEstados estrangeiros repousava no princípio dasoberania, nenhuma razão haveria para subtraí-los à jurisdição do Estado do foro quando o atoa ser julgado não fosse praticado no exercíciodela, isto é, do jus imperii, e sim no desempe-nho de uma atividade privada, ou, em outraspalavras, do jus gestiones. Para outros, a com-petência territorial do Estado do foro é plena,constituindo a imunidade de jurisdição uma der-rogação a essa competência, que só pode serconcedida em casos delimitados. De qualquerparte, são cobertos pela imunidade de jurisdi-ção dos Estados estrangeiros os atos denomi-nados tradicionalmente de poder público, taiscomo os acordos de direito internacional públi-co entre Estados soberanos, os atos adminis-trativos e legislativos internos, os atos de apli-cação da política externa ou de defesa nacionalde um Estado estrangeiro, as sentenças arbi-trais interestatais2. Ao revés, tal imunidade nãose estende às relações jurídicas de que partici-pa o Estado alienígena como sujeito privado.Margarita Isabel Ramos Quintana exemplifica-as: “questões atinentes à propriedade, explora-ção de navios, contratos mercantis, contratosde trabalho etc”3.

Celso D. Albuquerque Mello enumera ape-nas os atos jure imperii que, segundo ele, po-dem ser considerados os seguintes: “(a) atoslegislativos; (b) atos concernentes à atividadediplomática; (c) os relativos às forças armadas;

(d) atos da administração interna dos Estados;(e) empréstimos públicos contraídos no estran-geiro”4.

A Convenção Européia de 1972 afastou aimunidade de jurisdição no caso de reclamaçãotrabalhista proposta por súdito ou residente lo-cal contra representação diplomática estrangei-ra, assim como na hipótese de ação indenizató-ria resultante do descumprimento de contratocomum.

Em 21 de outubro de 1976, foi promulgada alei norte-americana Foreign Sovereign Immu-nities Act, que exclui da imunidade de jurisdi-ção do Estado estrangeiro as causas relativas àresponsabilidade civil.

Na Inglaterra, em 1978, foi editado o StateImmunities Act, que retira a cobertura de imuni-dade de jurisdição das ações trabalhistas e dasindenizatórias resultantes da responsabilidadecivil.

A concepção limitativa da imunidade de ju-risdição dos Estados, consagrada nesses tex-tos, ainda seria adotada nas leis de Singapurade 1979, do Paquistão de 1981, da África do Sulde 1981, do Canadá de 1982 e da Austrália de1985.

Para a Exposição de Motivos do Real Decre-to espanhol n. 1654, de 1980, sobre serviço con-tencioso do Estado no exterior, “a doutrina daimunidade absoluta de jurisdição pode ser con-siderada já em sua etapa final”, admitindo que,atualmente, “a maior parte, se não a totalidadedos Estados, aceita a teoria restrita da imunida-de de jurisdição, o que produziu um aumento delitígios nos quais o Estado ou seus órgãos sãoparte, ante uma jurisdição estrangeira”5. Somen-te raríssimos Estados, como a extinta URSS, osdemais Estados socialistas do leste europeusovietizados e, ainda hoje, a China, mantiveram-se fiéis à doutrina da imunidade de jurisdiçãoabsoluta dos Estados estrangeiros.

Até 1945, a jurisprudência alemã se pronun-ciava no sentido de reconhecimento ao Estadoestrangeiro da imunidade absoluta de jurisdi-ção. Depois daquele ano, os tribunais inferioresoptaram cada vez mais freqüentemente pela te-oria da imunidade relativa, o mesmo fazendo,em julgado de 1963, a Corte Constitucional Fe-deral, considerando que não mais existe regra

1 Charles Leben, “Les Fondéments de la Con-ception Restrictive de 1’Immunité d’Execution desÉtats, ín “L’Immunité’ d’Execution de 1’Etat Étran-ger”, Cahiers du Cedin, Paris, Montchrestien, 1990.

2 Charles Leben, “L’Immunité’...”, cit., p. 15.3 “La Imposibile Ejección de una Sentencia de

Condena por Despido ante la Imunidad de un EstadoExtranjero”, Revista Española de Derecho dei Traba-jo, Madri, in. 59, mai/jun 1993, p. 449.

4 “Direito Constitucional Internacional”, Rio deJaneiro, Renovar, 1994, p. 333.

5ApudMargarita Isabel Ramos Quintana, Revis-ta..., cit., p. 450.

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geral do direito internacional público subtrain-do totalmente os Estados estrangeiros à juris-dição dos outros Estados. Depois de examinar aprática jurídica de numerosos Estados europeuse outros, o conteúdo dos tratados internacio-nais sobre a matéria, as tendências surgidas nocurso das tentativas de codificação e na doutri-na do direito internacional público, não se podemais afirmar “que a grande maioria dos Esta-dos” faz completamente escaparem os Estadosestrangeiros à sua jurisdição. Para a Corte, oEstado estrangeiro só escapa à jurisdição deum outro Estado quando age no quadro da suasoberania. O caso não é o mesmo se o Estadoexerce atividades similares às das pessoas pri-vadas: só os atos de soberania (acta jure impe-rii) beneficiam-se da imunidade, não os atos degestão (acta jure gestionis). A conclusão deum contrato de prestação de serviços é de natu-reza puramente privada.

A qualificação da atividade estatal (ato desoberania ou não) deve ser operada segundo aLex fori (isto é, segundo a lei do Estado do foro,do Estado do tribunal perante o qual foi pro-posta a ação6.

O internacionalista argentino Alfredo H. Ri-zzo Romano adverte:

“É difícil sustentar que hoje em dia aimunidade absoluta de jurisdição dosEstados possa ser considerada como umprincípio geralmente aceito pelas naçõescivilizadas, um costume ou um princípiogeral do Direito Internacional Público.Ainda mais, opina-se que a tese restriti-va, que distingue entre a atividade jureimperii e a atividade jure gestionis, é aque rege atualmente, para submeter vo-lens noles o Estado estrangeiro envolvi-do nesta última à jurisdição dos tribunaisnacionais”.

E dá a conhecer a lei 24.488, de 22 de junhode 1995, do seu país, sobre imunidade de juris-dição dos Estados estrangeiros perante os tri-bunais argentinos, que consagrou a tese da imu-nidade relativa, dispondo, em seu art. 2º, que osEstados estrangeiros não poderão invocar aimunidade de jurisdição nos seguintes casos:...“(c) quando a demanda versar sobre uma ativi-dade comercial levada a cabo pelo Estado es-trangeiro e a jurisdição dos tribunais argenti-

nos surgir do contrato invocado ou do direitointernacional; (d) quando forem demandadospor questões de trabalho por nacionais argenti-nos ou residentes no país, derivadas de contra-tos celebrados na República Argentina ou noexterior e que causarem efeitos no território na-cional”7.

Celso de Albuquerque Mello enumera asseguintes razões que conduziram ao abandonoda imunidade absoluta:

“(a) o fato de os Estados se dedica-rem cada vez mais às atividades comerci-ais; (b) o estado comerciante não deveter maiores vantagens perante os tribu-nais do que os comerciantes particula-res; tem sido afirmado que haveria má-fédo estado ao fazer um contrato de comér-cio e viesse se recusar a aplicá-lo sob aalegação de que é estado soberano”8.

4. A imunidade de Jurisdição dos Estadosestrangeiros – a jurisprudência brasileira

O nosso país foi um desses raros em que sepermaneceu aferrado à tese do caráter absolutoda imunidade de jurisdição do Estado estran-geiro. Os tribunais superiores (ex-Tribunal Fe-deral de Recursos, Tribunal Superior do Traba-lho) e o Supremo Tribunal Federal dela não de-sertavam um milímetro. Essa situação foi muitobem descrita por J. F. Rezek ao escrever:

“No Brasil, o Poder Judiciário, pelavoz de sua cúpula, guardou inquebrantá-vel fidelidade ao princípio par in paremnon habet judicium, não obstante oconstrangimento social acarretado pelacircunstância de que quase todos os pos-tulantes da prestação jurisdicional, frus-trados ante o reconhecimento da imuni-dade, eram ex-empregados de missõesdiplomáticas e consulares estrangeiras,desejosos de obter a afirmação de seusdireitos trabalhistas à luz pertinente daCLT. Não faltou ao Supremo Tribunal Fe-deral o conhecimento de que, desde adécada de setenta, na Europa Ocidental enos Estados Unidos da América, legisla-dores e juízes propenderam a prestigiarum entendimento restritivo da imunida-

6Rainer Frank, “L’Immunité d’Éxecution del’État et des Autres Collectivités Publiques en DroitAllemand”, ín Centre Universitaire de Droit Public,Bruxelas, 1990, pp. 3 e seguintes.

7 “El Estado y los Organismos InternacionalesAnte los Tribunales Extranjeros” Editorial Plus Ul-tra, Buenos Aires, 1996, pp. 35 e 245-247.

8 “Direito Constitucional”, cit., pp. 332-3.

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de, à base da distinção entre atos esta-tais jure imperii e jure gestionis. Essatendência floresceu em grandes centrosde negócios mobiliários, e figurou umareação natural à presença cada vez maisintensa de agentes de soberanias estran-geiras atuando não em funções diplomá-ticas ou consulares, mas no mercado, nosinvestimentos, não raro na especulação.Era natural, em face disso, que ingleses enorte-americanos, dentre outros, hesitas-sem em conceder imunidade ao Estadoestrangeiro envolvido, nos seus territóri-os, em atividades de todo estranhas à di-plomacia estrita ou ao serviço consular.Por isso, pareceu-nos, de um lado, nãohaver desprezo pelo direito internacionalcostumeiro na atitude dos países que res-tringiam a imunidade em face de um tipode presença do Estado estrangeiro quenão se previra quando da construção daregra par in parem... De outro lado re-pontava claro que esta república não ti-nha razão para abdicar, desde logo, doprincípio da imunidade absoluta. No queconcerne a atividades exóticas dos Esta-dos estrangeiros, o que se passa em Lon-dres e Nova York não tem paralelo emBrasília, como não o tem no Cairo, emLagos, em Praga ou em Moscou”.

Aditou, porém, que o direito concernente aesse tema vivia uma fase de contradições e deintenso dinamismo9. Não tardou, porém, que oreputado internacionalista considerasse chega-da a hora de adotar o nosso país a concepçãorestritiva da imunidade de jurisdição do Estadoestrangeiro. Foi em voto proferido na qualidadede ministro do Supremo Tribunal Federal. Tra-tava-se de reclamação trabalhista de viúva deempregado da Representação Comercial da hojeextinta República Democrática Alemã, que, de-pois do estabelecimento de relações comerciaisdesta com o Brasil, passara a ser parte integran-te da embaixada daquele país em Brasília. O emi-nente Ministro Sidney Sanches, relator, enten-deu que o art. 114 da Constituição Federal de1988, ao declarar competente a Justiça do traba-lho para os dissídios individuais e coletivosentre trabalhadores e empregadores, abrangi-dos os entes de direito público externo, acaboupor eliminar a imunidade de jurisdição do Esta-do estrangeiro nas causas trabalhistas. O Mi-

nistro Rezek discordou desse fundamento, emvirtude de considerar que o art. 114 constitucio-nal é uma norma relacionada somente com acompetência, nada tendo que ver com a imuni-dade de jurisdição. Mas concordou com o Rela-tor por uma outra razão, ou seja, a de que não sepode mais dizer que há uma sólida regra de di-reito internacional costumeiro, a partir do mo-mento em que desertam dessa regra os EstadosUnidos da América, a Grã-Bretanha e tantosoutros países do hemisfério norte. Portanto, oúnico fundamento que tínhamos – já que asConvenções de Viena não nos socorrem a talpropósito – para proclamar a imunidade do Es-tado estrangeiro em nossa tradicional jurispru-dência desapareceu: podia dar-se por raquíticono final da década de 70, e hoje não há maiscomo invocá-lo.

“O quadro interno não mudou. O quemudou foi o quadro internacional. O queruiu foi o nosso único suporte para a fir-mação da imunidade numa causa traba-lhista contra Estado estrangeiro, em ra-zão da insubsistência da regra costumei-ra que se dizia sólida – quando ela o era –e que assegurava a imunidade em termosabsolutos”.

Os demais Ministros concordaram com essafundamentação, inclusive o Relator, que a fez semdesprezar a sua, e o Supremo, dando uma comple-ta guinada em sua jurisprudência, decidiu que

“não há imunidade de jurisdição para o Es-tado estrangeiro em causa trabalhista”10.

A orientação adotada pelo Ministro Rezek eacolhida pelos demais Ministros do Supremologo foi abraçada pelo E. Superior Tribunal deJustiça, inclusive em acórdão da 4ª Turma, rela-tado pelo Ministro Barros Monteiro, encimadopela seguinte ementa:

“Sofrendo o princípio da absoluta imu-nidade de jurisdição certos temperamen-tos em face da evolução do direito consu-etudinário internacional, não é ele aplicá-vel a determinados litígios decorrentes derelações rotineiras entre Estado estrangei-ro e os súditos do país em que o mesmoatua, de que é exemplo a reclamação traba-lhista. Precedentes do STF e do STJ. Ape-lo a que se nega provimento”11.

9 “Direito Internacional Público”, cit., São Paulo,Saraiva, 2 ed, 1991, p. 177-8.

10 Revista LTR, ano 55, n. l, janeiro de 1991, pp.45-50.

11 Revista LTR, ano 55, no. l, janeiro de 1991,pp. 597-603.

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Faz o aresto referência a outros de Turmasdo mesmo Tribunal, de que foram relatores osMinistros Eduardo Ribeiro e Cláudio Santos.

O próprio Supremo Tribunal voltou a sufra-gar a tese da imunidade relativa em novo acór-dão, de autoria do Ministro Celso de Mello, emque se afirmou:

“A imunidade de jurisdição do Esta-do estrangeiro, quando se tratar de litígi-os trabalhistas, revestir-se-á de carátermeramente relativo e, em conseqüência,que os juízes e tribunais brasileiros co-nheçam de tais controvérsias e sobre elasexerçam o poder jurisdicional que lhes éinerente”12.

O Tribunal Superior do Trabalho seguiu amesma trilha em acórdãos da sua 1º Turma, dalavra do Ministro Indalécio Gomes Neto13.

5. A imunidade de execuçãoSe a imunidade de jurisdição fosse absolu-

ta, não haveria a possibilidade da existência dedecisão contra aquele Estado a ser objeto deexecução forçada e seria incabível a discussãosobre se a imunidade de execução daquele Es-tado deve ser absoluta ou restrita. E o que mui-to bem sublinha Jaime Vegas Torres:

“Falar de imunidade de execução su-põe que se aceita que um Estado podeser condenado pelos Tribunais de outro;se não se pudesse produzir uma senten-ça que condenasse um Estado estrangei-ro, seria ocioso perguntar sobre as pos-sibilidades de obter a execução forçadada mesma. Nas palavras de R.Venneman,‘falar de imunidade de execução do Esta-do estrangeiro tem sentido apenas quan-do a imunidade do Estado estrangeiro seacha limitada”’14.

Embora mantenham entre si estreitas rela-ções, são distintas as imunidades de jurisdiçãoe de execução. Isso mesmo também salientouAhmed Maihou, esclarecendo mais que

“a imunidade de jurisdição visa subtrair

um Estado à competência de um tribunalde outro Estado, enquanto a imunidadede execução visa subtraí-lo a medidas depenhora e outras medidas de constri-ção”15.

Guido Soares escreveu:“No Brasil, desconhecemos senten-

ça condenatória a Estado estrangeiro de-cretada por tribunal brasileiro e que te-nha suscitado a questão da imunidadede execução contra seus bens. Os casosbrasileiros de sentenças condenatóriasque poderiam ter ensejado uma execuçãoforçada foram resolvidos por via diplo-mática ou amigavelmente”16.

A explicação pode ser encontrada no cará-ter absoluto que até o acórdão citado do Supre-mo se emprestava, em nosso país, à imunidadede jurisdição, devendo resultarem as exceçõesde casos atípicos.

A independência entre as imunidades dejurisdição e execução ressalta do fato de que oDireito Internacional sempre considerou neces-sária a renúncia à segunda, mesmo na hipótesede haver renúncia à primeira, assim como da cir-cunstância de que Estados nos quais foi torna-da restritiva a imunidade de jurisdição continu-aram a considerar absoluta a imunidade de exe-cução. A própria convenção européia sobre aimunidade do Estado, concluída em Basiléia noano de 1972, instrumento de feitio transacional,combina imunidade de jurisdição relativa comimunidade de execução absoluta. Um dos pila-res em que assenta esta última é a inviolabilida-de dos bens do Estado, assegurada pelo art.22.3 da Convenção de Viena de 1961 sobre rela-ções diplomáticas nestes termos:

“Os locais da missão, seu mobiliário edemais bens neles situados, assim comoos meios de transporte da Missão, nãopoderão ser objeto de busca, requisição,embargo ou medida de execução”.

Embora a Convenção invista de imunidadesos diplomatas, quando se trata da inviolabilida-de dos bens da Missão é o Estado que as conce-de. Explica-o muito bem Hildebrando Accioly:

“A inviolabilidade da missão diplo-mática constitui hoje uma regra aceita portodos os países. Na sua origem, decorriade inviolabilidade do agente diplomáti-co, mas, atualmente, conforme comentá-

12 Apud Valentin Carrion, “Nova Jurisprudênciaem Direito do Trabalho”, 1979, 1 Semestre, EditoraSaraiva, São Paulo, 1997, pp. 398-399.

13Apud Valentin Carrion, “Nova Jurisprudênciaem Direito do Trabalho”, 1979, 1º Semestre, EditoraSaraiva, São Paulo, 1997, pp. 398-399.

14 “La Imunidad de Ejecución. Especial Referen-cia al Derecho Eapañol”, Revista Española de Dere-cho del trabajo, Madri, n. 35, jul/set 1988, p. 379.

15 “L’Immunité”, cit., p. 161.16 Apud Celso de Albuquerque Mello, “Direito

Constitucional”, cit., p. 335.

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Revista de Informação Legislativa232

rio da Comissão de Direito Internacional,a inviolabilidade dos locais da missão nãoé uma conseqüência da inviolabilidade doChefe da missão, mas um atributo do Es-tado acreditante em virtude de os locaisserem usados como sede da missão”17.

André Huet observa que, em apoio da imu-nidade de execução, muitos fundamentos sãoinvocados. Desde logo, a soberania e a inde-pendência dos Estados; com efeito, uma execu-ção forçada comportaria o recurso à força públi-ca de que o emprego seria suscetível de consti-tuir, em face de um Estado estrangeiro, um atocontrário à soberania e independência desseEstado. É invocado, em segundo lugar, o princí-pio da igualdade dos Estados; uma vez que odireito francês concede imunidade de execuçãoao Estado francês, o princípio de igualdade im-põe que a imunidade de execução seja concedi-da também aos Estados estrangeiros. Em tercei-ro lugar, a imunidade de execução está fundadasobre preocupações jurídicas de oportunidade:invoca-se, por exemplo, a “cortesia internacio-nal” porque seria indecente, chocante e contrárioà dignidade de um Estado estrangeiro que a Fran-ça participasse de execução forçada contra esseEstado; na mesma ordem de idéias, fazem-se valerrazões de “prudência diplomática”, porque a pe-nhora dos bens de um Estado estrangeiro é denatureza a perturbar as relações internacionais daFrança com esse Estado estrangeiro: em suma, aimunidade de execução interfere com um compo-nente político feito de uma mistura difusa de inte-resses estatais e jogos diplomáticos18.

6. O caráter absoluto ou restritivo daimunidade de execução do Estado estrangeiro

Charles Leben observa que um número cres-cente de Estados abandonou a doutrina, clássi-ca no século 19 e em grande parte do século 20,da imunidade absoluta de execução, para ado-tar uma concepção mais restritiva. Ainda notaque a posição de quantos consideravam a imu-nidade de jurisdição relativa e a imunidade deexecução absoluta sofreu uma profunda mudan-ça nos anos 80 quanto ao caráter absoluto daimunidade de execução.

O fenômeno social que determinou essatransformação jurídica foi a participação inten-sa do Estado na vida econômica, o que o levoua tornar-se sujeito de relações jurídicas de natu-reza privada, principalmente industriais e comer-ciais, representando a imunidade de execuçãopara as empresas e pessoas que contratavamcom países estrangeiros um fator de inseguran-ça jurídica. Sentiu-se então necessidade de dis-tinguir entre as atividades comerciais e indus-triais do Estado realizadas no desempenho dassuas atribuições jure gestiones e aquelas ou-tras, de caráter político jurídico, típicas do exercí-cio do seu poder soberano (jus imperii). Em rela-ção a estas últimas, a imunidade de execução doEstado estrangeiro permaneceu absoluta, enquan-to foi relativizada quanto às primeiras.

Pioneiras da compreensão restritiva daimunidade de execução do Estado estrangeiro fo-ram as jurisprudências belga, holandesa e suíça.

Já em 1951, na célebre questão “Socobel”,os tribunais belgas determinaram a penhora defundos do Estado grego, resultantes do planoMarshall, em poder de bancos e empresas bel-gas, sob o fundamento de que a essa forma deconstrição se acham sujeitos os Estados estran-geiros quando atuam como pessoas privadas.Rejeitaram, assim, a tese da imunidade absolutade execução.

O Tribunal Federal Suíço, em 1956, num me-morável acórdão, acolheu a concepção da imu-nidade restritiva de execução, decidindo:

“Desde o instante em que se admiteque, em certos casos, um Estado estran-geiro pode ser parte perante os tribunaissuíços num processo (...) é preciso admi-tir também que ele pode constituir objetona Suíça de medidas apropriadas paraassegurar a execução forçada do julga-mento contra ele proferido. Senão essejulgamento seria desprovido do que é aessência mesma da sentença de um Tri-bunal, a saber que ela pode ser executadamesmo contra a vontade da parte con-denada. Seria reduzida a um simples pa-recer”.

A Corte de Apelação de Haia, em 28 de no-vembro de 1968, num caso de execução forçadade sentença arbitral, confirmou a decisão deTribunal de distrito que rejeitara a regra da imu-nidade absoluta, concordando com ele em que

“em nossa época uma tal imunidade ab-soluta dos estados não mais pode serconsiderada como uma regra de direito

17 “Manual de Direito Internacional Público, Sa-raiva, São Paulo, 11 edição, 1991, p.109.

18 “L’Irnniunité d’Execution de 1’Etat et desAutres Collectivités Publiques en Droit Internatio-nal Privé”, in obra citada na nota 4.

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internacional. A regra que prevalece atu-almente é mais restritiva...”.

A Corte Suprema dos Países Baixos confir-mou, ao solucionar outra hipótese, essa juris-prudência, declarando

“que não havia regra de direito internaci-onal proibindo qualquer forma de execu-ção contra bens pertencentes a um Esta-do estrangeiro que se achassem no terri-tório de outro Estado”.

Também a jurisprudência francesa, desde1969, vem mantendo um entendimento limitati-vo da imunidade de execução, baseando-se emque esta se funda na utilidade pública dos benscontra os quais se dirige a execução, a qual, porsua vez, depende não de pertencerem os bensao patrimônio do Estado, mas de sua afetação auma atividade de poder público, tal como o exer-cício de um serviço público. Em sentença de 14de março de 1984, a Corte de Cassação France-sa afirmou que a imunidade de execução, embo-ra constituindo a regra, há de ceder em algumascircunstâncias excepcionais, como quando osbens objeto de constrição seriam usados paraatividade econômica ou comercial de naturezajurídico-privada em que a demanda se baseia.

André Huet, não obstante as razões que, noseu entendimento, levariam, em princípio, à imu-nidade absoluta de execução, reconhece que

“...a jurisprudência francesa não deixoude fazer evoluir o direito positivo francêstendo em vista adaptá-lo às novas reali-dades econômicas: com efeito, a épocanão é mais aquela em que os Estados seencantonavam nas atividades de poderpúblico; cada vez mais os Estados se imis-cuem, por si mesmos ou pelos organis-mos que emanam mais ou menos direta-mente deles (as ‘emanações do Estado’),nas engrenagens econômicas e realizamoperações comerciais. Nestas condições,conceder ao Estado estrangeiro o benefí-cio da imunidade de execução em todasas circunstâncias é permitir-lhe escaparao cumprimento de seus compromissoscomerciais e colocar-se acima das leis e,por via de conseqüência, a imunidade deexecução afeta as relações econômicasinternacionais de uma pesada inseguran-ça e traz atentado à moral contratual”.

Acrescenta o professor de Estrasburgo quea jurisprudência francesa tentou ordenar o regi-me da imunidade de execução – mais particular-mente do duplo ponto de vista de sua extensão

e de sua renúncia – para permitir aos credorespenhorarem, em certos casos, bens do Estadoestrangeiro e de suas emanações 19.

A partir de 1976, as leis norte-americana, in-glesa, de Singapura, paquistanesa,sul-africana,canadense e australiana, que adotaram a con-cepção restritiva da imunidade de jurisdição, fi-zeram, em geral, o mesmo no tocante à imunida-de de execução.

A Corte de Karlsruhe, depois de uma inves-tigação sistemática da regra internacional e deseu conteúdo por meio da prática internacional,concluíra que, no domínio da imunidade de exe-cução, não se acha uma prática que seja, “nahora atual”, suficientemente geral e acompanha-da pela convicção jurídica necessária para cons-tituir o fundamento costumeiro, em nome do qualtoda medida de uma execução por um tribunaldo foro contra um Estado estrangeiro seria ab-solutamente proibida. O Tribunal Constitucio-nal germano-federal, em sentença de 12 de abrilde 1983, repeliu a imunidade de execução quan-do se trate de bens não-destinados ao exercíciode soberania, de modo igual ao que fizeram de-cisões judiciais austríacas. A Corte de Karls-ruhe abre duas exceções: quando se trate deexecuções que recaíram sobre bens utilizadospara fins soberanos do Estado estrangeiro ouque possam afetar de modo desfavorável as fun-ções diplomáticas20.

A Corte Constitucional germânica, segun-do informa Rainer Frank, depois de ter procedi-do a um amplo estudo comparativo, chegou àconclusão de que nenhuma regra geral de direi-to internacional público exclui totalmente a apli-cação pelo Estado do foro da execução forçadacontra um Estado estrangeiro. Numerosos Es-tados, adita o mestre da Universidade de Fri-bourg-en-Brisgam, admitem a execução forçadacontra um Estado estrangeiro, mas com gran-des restrições: é o caso, por exemplo, da Itália,da Suíça, da Bélgica, da Holanda, da Áustria, daFrança, da Grécia: o conjunto dos Estados deci-de, assim, há muito tempo, que os bens patrimo-niais afetados realmente às atividades de sobe-rania do Estado estrangeiro não podem, confor-me as regras de direito internacional público,constituir objeto de uma execução forçada. No

19 Obra citada, p. 89.20As citações de jurisprudência contidas no item

6 foram extraídas dos artigos Les Fondements..., inL’immunité, cit., de Charles Leben, e La imunidad deejecución..., in Revista Española de Derecho dei Tra-bajo, cit., de Jaime Vegas Torres.

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que concerne ao caso particular das represen-tações diplomáticas, a solução ne impediaturlegatis21.

7. As exceções à imunidade de execuçãoA primeira exceção à regra da imunidade de

execução é para a hipótese de renúncia do Esta-do estrangeiro a essa mesma imunidade, quedeve ser expressa ou pelo menos inequívoca.

A segunda exceção é para o caso de recair aconstrição judicial sobre o bem que constituaobjeto da ação. Exemplo típico é o de uma açãotrabalhista sobre verbas de natureza salarial,incidindo a penhora em conta corrente mantidapelo Estado estrangeiro em banco do Estado doforo e destinada ao pagamento de pessoal.

Refere-se a terceira exceção aos bens doEstado estrangeiro usados para atividades in-dustriais e comerciais no Estado do foro, como,p. ex., os navios mercantes.

Uma outra exceção é para os bens das deno-minadas “agências estatais”, sobre os quaispodem incidir medidas constritivas.

Celso de Albuquerque Mello resume:“Não têm imunidade: atividades co-

merciais, atividades trabalhistas, benscom fins comerciais etc.”.

Entende que“a posição mais acertada é a que susten-ta não existir imunidade de execução seesta recai sobre o próprio objeto do lití-gio”22.

A lei dos Estados Unidos ainda exclui daimunidade de execução a propriedade tomadaem violação ao Direito Internacional.

8. Bens protegidos pela imunidade de execuçãoNão se incluem entre as exceções que a acei-

tação da tese restritiva abre ao princípio da imu-nidade absoluta de execução as propriedadesde organizações internacionais, de natureza mi-litar, sob controle militar, de um banco centralou autoridade monetária estrangeiras ou desti-nadas a finalidade diplomática ou consular. To-dos esses bens são considerados afetados afins públicos e não à atividade jure gestionis doEstado estrangeiro, por isso mesmo não estan-do sujeitos a providências decorrentes de exe-

cução forçada. As legislações paradigmáticas arespeito são a norte-americana e a canadense23.

“Há certamente”, pondera André Huet,“casos em que a prova da afetação é fá-cil. Assim, existem bens cuja natureza re-vela incontestavelmente a afetação aoexercício da soberania e que são cober-tos pela imunidade de execução: por exem-plo, os navios de guerra, as aeronavesmilitares, os navios e aeronaves afetadosa um serviço não comercial do Estado (aoserviço dos correios, da luta antipolui-ção...), os móveis ou imóveis necessári-os ao exercício da atividade diplomática.Ao contrário, existem bens cuja afetaçãoa uma atividade privada pode ser prova-da facilmente e que por conseguinte sãopenhoráveis: por exemplo mercadoriasconstituindo o objeto de mercados co-merciais, ou aeronaves afetadas a trans-portes aéreos por linhas regulares: assim,num aresto de 31 de janeiro de 1984 a Cortede Apelação de Paris autorizou a penho-ra de um avião da Companhia Air Zairepor motivo de que esta, nos termos doseu estatuto, constitui uma ‘empresa pú-blica de caráter comercial’ e que seus apa-relhos, ‘são explorados nas condições dedireito comum excludentes de qualquerexercício do poder público’ e são afeta-dos à realização de uma operação pura-mente comercial”24.

Também não são protegidos pela imunidadede execução os navios mercantes, tanto quemuitos deles, pertencentes à empresa estatalLloyd Brasileiro, foram objeto de medidas deconstrição em portos estrangeiros.

Questão que tem suscitado perplexidade esido apreciada por tribunais de vários países é ade saber se o Estado do foro pode penhorarcontas correntes pertencentes à representaçãodiplomática de um outro país. Na Espanha, oTribunal Constitucional, a que chegou recursocontra penhora de parte da importância de umaconta corrente de que era titular a República daÁfrica do Sul, decidiu anular o auto da penhorasob o fundamento de que gozam de imunidadeas contas bancárias das embaixadas mesmo seas quantias nelas depositadas possam servir

21 Obra citada, p. 19.22 “Direito Constitucional”, cit., p. 334.

23 CeIso de Albuquerque Meilo, “Direito Consti-tucional”, p. 335; Jaime Vegas Torres, “La Imunidadde Ejecución...”, in Revista Española del derecho delTrabajo, cit., p. 387.

24citada,pp. 106-107.

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também para a realização de atos jure gestionis.Margarita Isabel Ramos Quintana critica essejulgado, que acusa de contraditório porque as-sim conclui depois de adotar, em várias consi-derações, a tese de que a imunidade de execu-ção dos Estados se restringe aos atos jure im-perii25.

A Corte Constitucional federal alemã julgouigualmente que, mesmo em caso de atividadenão-soberana (isto é, em caso de atos de ges-tão) de um Estado estrangeiro, a execução for-çada que recaísse sobre bens afetados à ativi-dade de soberania seria proibida. Assim, o Es-tado do foro não pode proceder à execução for-çada sobre créditos que seriam nascidos de umaconta corrente de que a embaixada de um Esta-do estrangeiro é titular, conta corrente abertano Estado do foro e destinada a cobrir as des-pesas da embaixada. Segundo a Corte, a contabancária visa diretamente a manutenção dasfunções diplomáticas do Estado delegante, pou-co importando que sua abertura e funcionamentonão constituam talvez senão um ato de gestão.Não nega a Corte que podem igualmente serefetuadas, sobre a conta corrente de uma em-baixada, transações sem vínculo direto com amissão da representação diplomática. Entretan-to, ainda segundo a Corte, não se poderia exigirdo Estado delegante que ele revele concreta-mente a existência de bens e sua destinação.Uma tal exigência constituiria uma ingerênciacontrária às regras de direito internacional pú-blico no domínio reservado do Estado delegan-te. O direito internacional público geral – pros-segue a Corte – não proíbe, todavia, que se exijado Estado delegante estabeleça ele a verossimi-lhança do fato de que a conta bancária é afetadaà continuidade do funcionamento de uma re-presentação diplomática. Não obstante, de con-formidade com os princípios do direito das gen-tes, bastará, para essa prova, uma declaraçãoemanada de um órgão competente do Estadodelegante26.

Informa André Huet que a jurisprudênciafrancesa está hoje bem firmada no sentido docaráter relativo ou restrito da imunidade de exe-cução quanto aos bens, como é o caso nos Es-tados Unidos, na Inglaterra, na Suíça e na Ale-manha: a imunidade de execução faz obstáculoa uma penhora que tenha por objeto bens oufundos públicos; mas é restrita aos bens ou fun-dos públicos e não pode ser oposta ao credor

que faz recair a penhora sobre bens ou fundosprivados pertencentes ao Estado estrangeiro oua uma emanação desse Estado. Um aresto daCorte de Cassação, de 14 de março de 1988, fir-mou a regra de que:

“a imunidade de execução do Estado es-trangeiro é o princípio; todavia pode serexcepcionalmente afastado”.

Dessa fórmula resulta incumbir ao credorprovar que se acha no quadro de uma exceçãoao princípio, que o bem que ele quer penhorar éafetado a uma atividade do direito privado27.

9. ConclusãoComo vimos desde o início, o fundamento

das imunidades absolutas de jurisdição ou deexecução era um só, ou seja, a regra costumeiranon parem habet judicium. Porque essa regranão mais é seguida em grande número de paísesocidentais, a nossa Corte Suprema, abraçandoos fundamentos do voto do Ministro Rezek,deixou de considerar existente a norma costu-meira de direito internacional em que se basea-va a imunidade absoluta de jurisdição do Esta-do estrangeiro e, conseqüentemente passou anão reconhecê-la para as ações trabalhistas. Ora,a imunidade absoluta de execução tinha comosuporte aquela mesma regra costumeira, e tam-bém, no que diz respeito a esta outra espécie deimunidade, já não há consenso universal para aaplicação do aforismo non parem. A CharlesLeben parece adquirido, para um grande núme-ro de Estados, que a regra da imunidade absolu-ta de execução não mais faz parte do costumeinternacional28. Desde que, por essa mesma ra-zão, o Supremo Tribunal Federal passou a ado-tar a tese da imunidade de jurisdição restrita,deve-se acolhê-la também no que se refere àimunidade de execução do Estado estrangeiropara considerá-la igualmente limitada, pois aidentidade de motivo exige identidade de trata-mento para as duas imunidades.

É certo que a constrição de bens do Estadoestrangeiro pode afetar as boas relações inter-nacionais, sugerindo-se, por isso, que se recor-ra a vias diplomáticas para conseguir o cumpri-mento da decisão judicial e falando-se até empagamento da condenação pelo Estado do foropara evitar conflito com o Estado alienígena, que

25 Obra citada, pp. 453 e seguintes.26 RainerFrank; obra citada, pp. 18-19.

27 Obra citada, pp. 102-104.28"Les Fondements...”, in “L’Immunité”,

cit.,pp.22-23.

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pode considerar a execução forçada contra eleajuizada como um ato de hostilidade.

Alguns países, como Estados Unidos, Gré-cia, Itália e Espanha, admitem ou exigem umaconsulta ao Judiciário ou ao Executivo, compe-tente para a direção da política internacional,sobre as conseqüências que a execução força-da pode acarretar para as relações entre os Esta-

dos nela envolvidos. Pelo menos na maioria des-ses Estados, porém, a opinião do Executivo nãovincula o Judiciário. Nada disso, contudo, invali-da a conclusão de que, atualmente, e mais especi-ficamente no Brasil, a imunidade de execução doEstado estrangeiro é restrita, não alcançando ascausas resultantes de atos estatais jure gestionise não jure imperii, como as trabalhistas.

* Notas bibliográficas conforme original.

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Ontologia da ação penal

1. IntroduçãoO nosso trabalho visa estudar a natureza

e o conceito da ação penal, trata, pois, daontologia da ação. A importância do estudoé grande, pois os sistemas jurídicos diver-gem quanto, por exemplo, à normatizaçãodesse instituto, inserindo normas ora no di-ploma penal, ora no diploma processual pe-nal.

No capítulo primeiro, trataremos da con-ceituação e das espécies da ação penal. Énesse capítulo que faremos uma análise so-bre a localização das normas da multirreferi-da ação.

O capítulo segundo dedicamos à históriada ação penal, em que daremos uma certaênfase ao Direito Romano. No capítulo ter-ceiro, trataremos da natureza jurídica da mes-ma e no quarto, dos princípios que a norteiam.

2. Conceito e espécies de ação penalA ação é a base de todo processo penal,

porque é por meio dela que a relação jurídicaprocessual penal pode adquirir existência. Afinalidade da relação jurídica processual pe-nal é revelar se a ação penal é procedente ounão; em última análise, é revelar se o sujeitoda relação jurídica realizou ou não o injusto(ação típica e antijurídica) e se esse injustofoi ou não culpável.

CLÁUDIO BRANDÃO

Cláudio Brandão é Professor da Escola Superiorde Magistratura de Pernambuco, da Faculdade deDireito de Olinda, da Universidade Federal de Per-nambuco e da Universidade Católica de Pernambuco.Mestre e Doutorando em Direito.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Conceito e espécies de açãopenal. 3. Breve notícia histórica da ação penal. 4.Natureza jurídica da ação penal. 5. Princípios daação penal. 6. Conclusões.

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Revista de Informação Legislativa238

De fato, é possível que tenha-se concretiza-do um tipo penal por um sujeito imputável; to-davia, se não houver uma ação penal para inici-ar o processo, não há possibilidade de aplica-ção da sanção penal. Por esse motivo, pode-seafirmar que “L’azione penale è la forza motricedel mecanismo processuale”1.

Joaquim Canuto Mendes de Almeida ensi-na que a noção de ação pode ser encarada detrês formas: a noção vulgar, a noção política e anoção jurídica2.

A noção vulgar de ação é facilmente com-preendida por um simples esforço de consciên-cia, posto que todos os dias todos nós agimos,o homem só vive em função da ação, pois é pormeio dela que ele

“arranca a matéria bruta do seio da terra,sujeitando-a aos mais variados fins, trans-formando-a em instrumentos de sua vidamaterial, intelectual e moral, a casa ondemora, as vestes que o cobrem, seus meiosde transporte e civilização, seus utensíliosde trabalho e estudo, as armas de ataqueou defesa, suas máquinas e usinas”3.

No nosso ponto de vista, a noção vulgar deação é relevante no processo penal. Isso se dáporque não há crime sem ação humana, só épossível perfazer um juízo de antijuridicidade,tipicidade e culpabilidade se houver uma açãohumana. Sem crime, por sua vez, não há sentidona existência do processo penal.

A noção política de ação penal decorre danoção de sociedade. A sociedade tem um podercoativo, o qual é posto a serviço do direito.Quando o indivíduo resiste aos comandos dasociedade, há a ação política da sociedade queatua fisicamente contra a resistência dos obri-gados. A ação política decorre da autoridadepública4.

Por fim, há a ação judiciária, a qual corres-ponde à noção jurídica de ação. A jurisdição sóse move mediante um impulso, posto que por sisó ela é inerte. A ação é uma

“uma atividade de pessoas que queremou que devem garantir pela coação umdireito e que, nos termos legais, constituicondição do procedimento jurisdicional.É, em poucas palavras, a promoção dajurisdição”5.

A ação penal é uma ação judiciária, postoque a mesma tem por escopo movimentar a má-quina do Judiciário. Pode ser definida como

“el poder jurídico de promover la actuac-ción jurisdicional a fin que el juzgadorpronuncie acerca de la punibilidad dehechos que el titular de aquella reputacontitutivo de delito”6.

A ação penal nasce de um ato com aparênci-as delitivas7. Isso se dá porque a revelação docaráter criminoso do ato fica reservado ao finaldo processo de conhecimento, mediante a sen-tença. Durante muito tempo, doutrinou-se quea ação penal visava à aplicação da pena; toda-via esse posicionamento não podia sustentar-se. Como salienta Eduardo Espínola Filho, aaplicação da pena está subordinada a váriasverificações: a primeira delas é ter havido umcrime, porque, se não houve crime, não se podecogitar a aplicação de uma pena; a segunda énão estar o fato acobertado por nenhuma causade justificação ou de exclusão de pena; a tercei-ra verificação é sindicar se os participantes daação punida e punível são os mesmos aponta-dos na ação penal8.

No Direito brasileiro, a ação penal está regu-lada tanto no Código Penal quanto no Códigode Processo Penal. Hélio Tornaghi diz que oCódigo Penal disciplina o direito de ação, en-quanto o Código de Processo Penal determinao exercício deste direito9.

Não há justificativa científica, data venia,para a normatização da ação penal no CódigoPenal. Isso se dá porque a ação é um instituto

1Vannini, Ottorino. Manuale di Diritto Proces-suale Penale. Milão: Guiffré. 1952. P. 19.

2Mendes de Almeida, Joaquim Canuto. Proces-so Penal - Ação e Jurisdição.São Paulo:Revista dosTribunais. 1975. Pp.103-104.

3Mendes de Almeida, Joaquim Canuto. Proces-so Penal - Ação e Jurisdição.São Paulo:Revista dosTribunais. 1975. Pp.103

4Mendes de Almeida, Joaquim Canuto. Proces-so Penal - Ação e Jurisdição.São Paulo:Revista dosTribunais. 1975. Pp.104

5 Mendes de Almeida, Joaquim Canuto. Proces-so Penal - Ação e Jurisdição.São Paulo:Revista dosTribunais. 1975. Pp.107

6 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto. Derecho Pro-cessal Penal. Tomo II. Buenos Aires:Editorial Gui-lhermo Kraft. S/d. P.62.

7 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto. Derecho Pro-cessal Penal. Tomo II. Buenos Aires:Editorial Gui-lhermo Kraft. S/d. P.59.

8 Espínola Filho, Eduardo. Código de ProcessoPenal Brasileiro Anotado. Rio de Janeiro:Borsoi.1954. P.321.

9 Tornaghi, Hélio. Curso de Processo Penal. SãoPaulo:Saraiva. 1980.P.39

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de direito instrumental, pertine, destarte, ao pro-cesso. A própria doutrina nacional reconheceque a inserção de normas processuais no Códi-go Penal gera grandes dificuldades10.

Todavia, fazendo uma análise no direito com-parado, vemos que não é só o direito brasileiroque faz essa confusão com relação à normatiza-ção da ação penal. O vigente Código Penal ar-gentino (Lei 11.179, com posteriores modifica-ções) disciplina a ação penal nos arts. 71 a 76,enquanto o Código de Processo Penal argenti-no (Lei 23.984) também a disciplina nos artigos5o a 13. De melhor técnica é a parte geral doCódigo Penal uruguaio (sancionado pela Lei9.155 de 4 de dezembro de 1933 e em vigor pelaLei 9.414, de 29 de junho de 1934), que não traznenhuma norma genérica sobre a ação penal;tal Código tratava apenas da ação civil, no art.125, artigo que, posteriormente, foi revogadopela Lei 16.162.

Quanto à espécie, a ação penal pode serpública ou de iniciativa privada. Essa distinçãoé feita tendo em vista os sujeitos da ação; quan-do, pois, o Estado for sujeito da ação, a mesmaé pública, quando não, a ação é de iniciativaprivada. Diz Walter P. Acosta que

“não é demais advertir que a distinçãodas ações em públicas e privadas, estáem função do sujeito da ação (...) isto édo titular do direito, a quem é atribuída ainiciativa do processo. Por outro lado acondição de pública nada tem a ver como caráter público dos atos processu-ais”11.

No mesmo sentido se posiciona Soler, aoafirmar que “Llámase acción pública aquella quedebe ser ejercida de oficio por los órganos delEstado”12. A ação privada, a contrario sensu, éaquela em que o titular do direito de impetrá-la éo ofendido.

No direito positivo brasileiro, a ação penalpública, exercida por um órgão do Estado deno-minado Ministério Público, pode ser incondici-onada ou condicionada. A ação pública incon-dicionada é a regra, só haverá ação pública con-dicionada quando a lei expressamente prevê-la.A condicionada, por sua vez, pode ser condicio-

nada a representação do ofendido ou a requisi-ção do Ministro da Justiça.

Por sua vez, a ação privada também precisaser expressamente prevista em lei, a exemplo docrime do art. 213, caput, do Código Penal.

O direito positivo brasileiro prevê, ainda, aação penal privada subsidiária da pública, ino-vação do Código de Processo Penal brasileiro,que tem lugar quando a ação pública não forintentada no prazo legal.

3. Breve notícia histórica da ação penalNo Egito antigo, existiam três formas de ação

penal. A primeira era de iniciativa de um corpode funcionários designados para essa função,os quais denominavam-se Magiaí. A segundaforma era a ação penal de iniciativa de qualquerdo povo, enquanto a terceira era de iniciativado ofendido13.

Para o Direito Romano, a ação penal eraconferida a qualquer cidadão, porque nãohavia um órgão específico para impetrá-la. OCorpus Juris Civilis define a ação como ojus persequendi in judicio quod sibi debea-tur (direito de perseguir em juízo o que senos deve)14.

Os romanos distinguiam os delitos em pú-blicos (delicta publica) e privados (delicta pri-vata), em ambos os casos a ação pertencia aocidadão.

“En el processo penal romano el Es-tado podía presentarse en dos actitudes:como arbitro entre los litigantes privatoso como titular de la potestade de castigaren interés social”15.

Quando o Estado se posicionava como ár-bitro, estávamos diante dos delitos privados,que eram processados segundo a jurisdição ci-vil, posto que se considerava que eles só atin-giam os interesses privados16. Nos delicta pri-vata, que consistiam em todos os fatos antijurí-dicos, cometidos sem violência, os quais nãoestavam expressamente previstos em lei, a ação

10 ver Toledo, Francisco de Assis. PrincípiosBásicos de Direito Penal. São Paulo:Saraiva. 1994.Pp.39-40.

11Acosta, Walter P.. O Processo Penal. 3a. ed. Riode Janeiro: Edição do autor. 1959. P.140.

12 Soler, Sebastian. Derecho Penal Argentino. T.2.Buenos Aires: TEA. 1992. P.528

13 Freire, Homero. A Natureza Pública da AçãoPenal. Tese de Cátedra. Recife. 1950. P 39.

14 Institutas, Lib IV, TitV.15Manzini, Vicenzo. Derecho Processal Penal.

Buenos Aires:Europa-Amárica. 1951.P.316Freire, Homero. A Natureza Pública da Ação

Penal. Tese de Cátedra. Recife. 1950. P.43.

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era chamada de ‘actio doli’17. A ação penalprivada de dolo era concedida ou negada pelomagistrado ao cidadão, pois ficava ao arbítriodo magistrado o julgamento de o fato reclamarou não punição.

Nos delicta publica, o magistrado, ao invésde se interpor simplesmente como um árbitroentre as partes, fazia investigações necessáriasà elucidação do caso e era titular da potestadede punir do Império Romano. O processo penalpúblico tinha duas formas, a saber: a cognitio ea acusatio18.

Na cognitio, o magistrado poderia agir deofício, porém sua sentença podia ser anuladapelo povo, desde que o condenado fosse ho-mem e cidadão.

Na accusatio, que surgiu no último séculoda República, houve uma introdução de certosprincípios do processo privado no público. Nela,a exemplo dos delicta privata, o juiz só julga acerteza do delito e prolata a sentença. A perse-cução do delinqüente era realizada ou pelo ofen-dido ou por um representante voluntário dopovo.

No Direito brasileiro, a ação penal foi nor-matizada por primeiro com a promulgação doCódigo de Processo, de 1830. A ação manifes-tava-se sob duas formas: a primeira era a queixa,a qual só competia ao ofendido, seu pai, suamãe, tutor, curador e cônjuge; a segunda espé-cie da ação penal era a denúncia, que competiaou ao Ministério Público ou a qualquer do povo.Deve-se salientar que o procedimento ex-offi-cio era autorizado em todos os casos em quecabia a denúncia19.

Logo em seguida, com o advento do CódigoPenal republicano de 1890, manteve-se a açãopenal sob as espécies de denúncia e queixa,consoante o art. 407, que dispunha:

“Haverá lugar a ação penal:§1º – Por queixa da parte ofendida ou

por quem tiver qualidade para represen-tá-la.

§2º – Por denúncia do Ministério Pú-blico em todos os crimes ou contraven-ções. Excetuando-se:1º – os crimes de fur-

to e de dano, não tendo havido prisão emflagrante; 2º – os crimes de violência car-nal, rapto, adultério, parto suposto, calú-nia e injúria, em que somente caberá pro-ceder por queixa da parte, salvo os casosdo art. 274.

§3º – Mediante procedimento ex-ofi-cio nos crimes inafiançavéis, quando nãofôr apresentada a denúncia no prazo delei”.

Com a advento do Código Penal de 1940, aação penal continuou subdividida em pública eprivada; a pública continuava a ser a regra ge-ral, só sendo privadas as expressamente decla-radas por lei. Dispunha o Código, no seu art.182:

“A ação penal é pública, salvo quan-do a lei expressamente a declara privativado ofendido:

§1º – A ação pública é promovida peloMinistério Público, dependendo, quan-do a lei exige, de representação do ofen-dido ou de requisição do ministério daJustiça.

§2º – A ação privada é promovidamediante queixa do ofendido ou de quemtenha qualidade para representá-lo.

§3º – A ação privada pode intentar-se nos crimes de ação pública, se o Mi-nistério Público não oferece denúncia noprazo legal.

§4º – No caso de morte do ofendidoou de ter sido ele declarado ausente pordecisão judicial, o direito de oferecer quei-xa ou de prosseguir na ação passa aocônjuge, ascendente, descendente ou ir-mão.”

4. Natureza jurídica da ação penalA questão da natureza jurídica do direito de

ação é um dos temas mais controvertidos doprocesso. Celso Agrícola Barbi afirma que “ini-ciada a divergência há um século, até hoje nãose harmonizaram os doutrinadores sobre o queseja ação”20.

Até o século passado, o direito material eraestudado junto com o direito processual. Aliás,não havia propriamente um direito processual,

17 Manzini, Vicenzo. Derecho Processal Penal.Buenos Aires:Europa-Amárica. 1951.P.3

18Manzini, Vicenzo. Derecho Processal Penal.Buenos Aires:Europa-Amárica. 1951.P.8

19Freire, Homero. A Natureza Pública da AçãoPenal. Tese de Cátedra. Recife. 1950. P51.

20 Barbi, Celso Agrícola. Comentários ao Códigode Processo Civil. Rio de Janeiro:Forense. 1992. P.16.

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mas esse era tido como um apêndice do direitomaterial, que consistia no procedimento. Diantedessa realidade histórica, a ação não era consi-derada um direito, mas só uma faculdade. A açãoera o próprio direito material reagindo contra aameaça ou violação, era “o próprio direito mate-rial em movimento21”.

Dentro dessa doutrina, havia diferentes cor-rentes, que, a despeito de pequenas nuanças,não divergiam no principal, que era a identifica-ção do direito de ação com o direito material.

Contra essa teoria objetou-se que, no casode ser vencido o autor da ação por não ter odireito subjetivo alegado, não haveria explica-ção para o direito que lhe permitia ingressarem juízo, até a chegada da sentença que odesfavoreceu. Igualmente, restaria sem expli-cação a ação declaratória negativa, posto quea mesma se funda na inexistência de diretosubjetivo material22.

O desenvolvimento dos estudos sobre anatureza jurídica da ação adveio com a polêmicasurgida entre os alemães Windcheid e Müterpor conta da natureza da actio romana23. Wind-cheid afirmava que os romanos não distinguiamação do direito, posto que a actio só servia paraa manutenção de um direito preexistente.

“Segundo Windcheid, os romanosconcebiam a actio como nós entendemosa pretensão (Anspruch), isto é, comopoder de exigir algo de outrém, o poderde pretender alguma coisa de alguém enão como um direito exercitado em juízocontra o réu”24.

Müter pouco depois se insurgiu contra aconcepção da actio romana de Windcheid, afir-mando que os romanos concebiam a actio nãocomo um direito contra o réu, mas como um ver-dadeiro direito contra o Estado, representa-do pelo magistrado. “A actio, afirmava, era odireito de se pedir proteção judiciária, direitocontra o praetor, no sentido de que se fizessejustiça”25.

Posteriormente à polêmica Windcheid ver-sus Müter, Adolf Wach “escreveu sua clássicamonografia, que é fundamental para toda mo-derna teoria do direito processual”26. Wach de-monstra a autonomia do direito de ação frenteao direito material, por meio da ação declarató-ria negativa, posto que ela pode existir indepen-dentemente de um direito subjetivo. Afirmavaainda que o Direito de ação se dirigia contra oEstado e surgia quando houvesse um direitomaterial violado ou um interesse juridicamenteprotegido; por esse motivo, diz que a teoria deWach é a do direito concreto de agir.

Atualmente, considera-se a ação como umdireito exercido contra o Estado, mas que existeainda que não haja um direito material a ser in-vocado, portanto, o direito de ação é um direitoabstrato. Precisa é a definição de Jorge AlbertoRomeiro, que afirma:

“Ação penal é o direito subjetivo dopúblico de exigir do Estado a prestaçãojurisdicional sobre uma determinada rela-ção de direito penal”27.

É relevante salientar, todavia, que essa cor-rente acima declinada, embora majoritária, não éunânime. Contrariamente a ela, Chiovenda con-sidera a ação um direito potestativo, exercidocontra o réu, independentemente da vontadedeste. Diz o autor:

“A ação é um poder que nos assisteem face do adversário em relação a quemse produz o efeito jurídico de atuação dalei. O adversário não é obrigado a coisanenhuma diante deste poder: simplesmen-te lhe está sujeito”28.

5. Princípios da ação penalOs princípios da ação penal não são aplica-

dos de forma idêntica na ação pública e na açãoprivada. A ação penal pública, pois, é regidapor princípios que não regem a ação penal pri-vada e vice-versa. Contudo, o princípio da indi-visibilidade é comum a ambas.

O princípio da indivisibilidade faz referênciaaos distintos participantes de um mesmo fato, atodos de se estender o jus persequendi in judi-

21Tourinho Filho, Fernando da Costa. ProcessoPenal. T.I. São Paulo:Saraiva. 1992. P.259.

22 Barbi, Celso Agrícola. Comentários ao Códigode Processo Civil. Rio de Janeiro:Forense. 1992.Pp.16-17.

23Chiovenda, Guissepe. Instituições de ProcessoCivil. T.I. São Paulo: Saraiva. 1965. P.22.

24Tourinho Filho, Fernando da Costa. ProcessoPenal. T.I. São Paulo:Saraiva. 1992. P. 261

25Idem. Ibidem. P.261.

26Barbi, Celso Agrícola. Comentários ao Códigode Processo Civil. Rio de Janeiro:Forense. 1992. P.17.

27Romeiro, Jorge Alberto. Da ação penal. Rio deJaneiro:Forense. 1978. P.10.

28Instituições de Processo Civil. T.I. São Paulo:Saraiva. 1965. P.24.

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cio. Soler ensina que esse princípio veda que aação penal se exerça contra uns e se reservecontra outros; seu objetivo é alcançar todas asresponsabilidades pessoais29.

Os princípios que regem a ação penal pública,além do princípio da indivisibilidade, são os se-guintes: princípio da oficialidade, da obrigatorie-dade e indisponibilidade. No nosso entendimen-to, os princípios da legalidade, do contraditório eda verdade real regem o processo, e não a ação.

O princípio da oficialidade deriva da presen-ça do Estado em um dos pólos da ação penal30.Vannini já afirmava que a ação penal é oficialdevido à presença de um órgão do Estado namesma31. O Ministério Público, instituição doEstado, representa a sociedade, é o órgão legiti-mado para agir, para impetrar a ação penal públi-ca. Se toda a sociedade é agredida com o crime,deve um órgão do Estado ter o direito de movi-mentar a máquina judiciária para a aplicação ounão da pena.

O princípio da obrigatoriedade indica que édever do Ministério Público oferecer denúnciaquando há um ato aparentemente delitivo. To-das as vezes em que concorram os pressupos-tos substantivos para que a ação penal ocorra,não pode o órgão encarregado se abster de pro-movê-la. Como diz Nilzardo Carneiro Leão, peloprincípio da obrigatoriedade, “não pode o Esta-do dispor do jus puniendi, ao contrário, teráque exercê-lo em todas as infrações e contraqualquer acusado”32.

Este órgão obrigado a promover a ação pe-nal, como sabido, é o Ministério Público. Se-gundo Vannini: “L’azione penale é obbligatoria(in contrapposto a discrezionale): il PubblicoMinistero (o il Pretore) há l’obbigo di promuo-vere l’azione penale (e di esercitala)”33.

O princípio da indisponibilidade deriva doda obrigatoriedade. Uma vez impetrada açãopenal, o Ministério Público não pode dela dis-por, a ação é, destarte, irretratável. Isso se dá

“porque no processo penal, o Estado,

pelo Ministério Público, atua como re-presentante da sociedade, e porque o di-reito não é seu, exclusivamente por issoque exerce uma função delegatória, é quêdêle não pode dispôr. Daí a indisponibili-dade processo penal”34.

Hodiernamente esse princípio está mitigadopor força da Lei 9.099/95.

Com relação à ação penal privada, não há oprincípio da oficialidade, posto que não cabe aoEstado o direito de impetrá-la, há o princípio daoportunidade, ao invés do princípio da obriga-toriedade, e o princípio da disponibilidade emoposição ao princípio da indisponibilidade.

Pelo princípio da oportunidade, o exercícioda ação penal é facultativo, depende da conve-niência de seu titular, há a faculdade do exercí-cio da ação penal em contraposição à obrigaçãodo exercício da mesma na ação pública.

“O Estado nestes crimes concede aoparticular, isto é ao ofendido ou a quemlegalmente o represente, o jus accusatio-nis, o direito de acusar, de invocar a presta-ção jurisdicional e, se o interessadoquiser fazer uso de tal direito poderáfazê-lo”35.

Pelo princípio da disponibilidade, o titulardesse direito pode renunciá-lo expressa ou taci-tamente. Poderá perdoar o ofensor, dar lugar aperempção, poderá dispor a qualquer instantedo conteúdo material do processo36.

6. Conclusões1. A ação é a base de todo processo penal,

porque é por meio dela que a relação jurídicaprocessual penal pode adquirir existência.

2. A noção de ação pode ser encarada detrês formas: a noção vulgar, a noção política e anoção jurídica.

3. A ação penal é uma ação jurídica, postoque a mesma tem por escopo movimentar a má-quina do Judiciário.

4. O objetivo da ação penal não é a infliçãode uma pena, mas a movimentação judiciária para

29Soler, Sebastian. Derecho Penal Argentino. T.2.Buenos Aires: TEA. 1992. P.529

30Boschi, José Antônio Paganella. Ação Penal.Rio de Janeiro:Aide. 1993. P.32.

31Vannini, , Ottorino. Manuale di Diritto Proces-suale Penale. Milão: Guiffré. 1952. P.24.

32Carneiro Leão, Nilzardo. Princípios do Proces-so Penal. Recife. 1960. P.43.

33Vannini, , Ottorino. Manuale di Diritto Proces-suale Penale. Milão: Guiffré. 1952. P.25.

34Carneiro Leão, Nilzardo. Princípios do Proces-so Penal. Recife. 1960. P.30.

35Tourinho Filho, Fernando da Costa. ProcessoPenal. T.I. São Paulo:Saraiva. 1992. P. 378

36Tourinho Filho, Fernando da Costa. ProcessoPenal. T.I. São Paulo:Saraiva. 1992. P. 378

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o julgamento de ser cabível ou não uma pena.5. Não há justificativa científica para a nor-

matização da ação penal no Código Penal, pos-to que ela é um instituto puramente processual.

6. A ação penal será pública se tiver a parti-cipação do Estado como titular do direito deação; se o ofendido for o titular desse direito,ela será privada.

7. A ação é um direito subjetivo, público,abstrato e dirigido contra o Estado.

8. Os princípios que regem a ação públicasão o da indivisibilidade, da oficialidade, daobrigatoriedade e da indisponibilidade.

9. Os princípios que regem a ação privadasão o da indivisibilidade, da oportunidade e dadisponibilidade.

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VANNINI,, Ottorino. Manuale di Diritto Processu-ale Penale. Milão: Guiffré.1952.

*Notas bibliográficas conforme original.

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José Severino da Silva Pitas é Professor daUniversidade de Franca e Juiz do Trabalho da 15ªRegião.

A Carta Magna de 1988, em seu capítulo VII –Da Administração Pública, faz referência acargos, empregos e funções públicas. Adota aexpressão “servidor público”, como gênero defuncionário público (servidor da Administra-ção Direta sob regime administrativo, estatu-tário) e empregado público (servidor contra-tado sob regime privado):

“Art. 37. A administração públicadireta, indireta ou fundacional, de qual-quer dos Poderes da União, dos Estados,do Distrito Federal e dos Municípios obe-decerá aos princípios de legalidade,impessoalidade, moralidade, publicidadee eficiência e, também, ao seguinte:

I – os cargos, empregos e funções pú-blicas são acessíveis aos brasileiros quepreencham os requisitos estabelecidosem lei, assim como aos estrangeiros, naforma da lei;”

Os termos em itálico destacam a alteraçãode redação introduzida pela Emenda Constitu-cional nº 19, publicada pelo Diário Oficial daUnião de 5 de junho de 1998.

Antes da Emenda Constitucional nº 19, com-preendi que o regime jurídico dos servidores daAdministração Pública Direta, não-sujeitos aoregime estatutário, deveria subordinar-se, subsi-diariamente, às normas de Direito Privadocompatíveis com as regras da ConstituiçãoFederal, especialmente os preceitos, na redaçãooriginal, do § 2º do artigo 39 e 41 da Carta Polí-tica, por não se tratar de atividades com objetivode exploração econômica, nos termos do § 1ºdo artigo 173:

“Art. 39. A União, os Estados, o Dis-trito Federal e os Municípios instituirão,no âmbito de sua competência, regime

Estabilidade do servidor celetista daAdministração Pública Direta ante aEmenda Constitucional nº 19, de 5 dejunho de 1998

JOSÉ PITAS

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jurídico único e planos de carreira paraos servidores da administração públicadireta, das autarquias e das fundaçõespúblicas.” (Redação original).

“§ 2º Aplica-se a esses servidores odisposto no art. 7º, IV, VI, VII, VIII, IX,XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX,XXII, XXIII e XXX.” (Redação original).

Art. 173.“§ 1º A empresa pública, a sociedade

de economia mista e outras entidades queexplorem atividade econômica sujeitam-se ao regime jurídico próprio das empre-sas privadas, inclusive quanto às obriga-ções trabalhistas e tributárias.” (Redaçãooriginal).

Contudo, a Emenda Constitucional nº 19,cedendo ao império da vontade histórica domi-nante, excluiu a diretriz programática do chama-do regime único, inteligência essa que tem porefeito invalidar a construção jurídica do enten-dimento divulgado no artigo Servidor público :regime privado e regime estatutário apud Revistade Informação Legislativa, n. 135, p. 45-48. jul./set. 1997.

Sob o fundamento de que o empregado pú-blico permaneceria, provisoriamente, nessasituação até que fosse definitivamente integradono regime estatutário, próprio da AdministraçãoDireta, e considerando que o regime prescritopelo § 1º do artigo 173 destinava-se, expressa-mente, às entidades que exploram atividade eco-nômica, criou-se a lacuna legal que autorizava,sistemática, teleológica e supletivamente, a apli-cação da redação original do § 2º do artigo 39 edo artigo 41 da Lex Legum. Esses dispositivosinduziam a possibilidade de se concluir pela acei-tação da estabilidade do servidor público cele-tista após o período de estágio probatório, assimcomo, por imposição lógica da coerência, a não-aplicação das disposições não contempladas no§ 2º do artigo referido, com inapelável desafiode eficácia, também, após a Emenda nº 19, dealguns deles aos celetistas:

II: seguro-desemprego, III: FGTS, XI:participação nos lucros, XIV: turno derevezamento, XXIV: aposentadoria,XXVI: convenções e acordos coletivos,XXIX: prescrição bienal, XXXII: discri-minação de trabalho e do profissional.

Efetivamente, a situação jurídica do servidorpúblico não-estatutário, vinculado à Adminis-tração Direta, é atípica, porque, não sendo esta-tutário e não sendo ligado à entidade que explore

atividade econômica, exige a aplicação supletivadas normas da Consolidação das Leis do Tra-balho, respeitadas as disposições de ordem ede interesse público, freqüentemente presentesno Direito Positivo, inclusive Constitucional.

A despeito dessa concepção, no laboratóriodos tribunais, vigem duas tendências hermenêu-ticas:

(a) daqueles que entendem que não sedevem aplicar, em favor à Administração Pública,princípios que não estejam positivados objeti-vamente, como o Decreto-Lei nº 779/69, o art.100 da Constituição Federal etc., e

(b) daqueles que entendem que a relação deemprego do servidor público da AdministraçãoDireta está afetada por princípios de interesse eordem pública, que orientam a interpretação doDireito do Trabalho, especialmente tendo emvista a tutela do patrimônio público e dos valo-res consagrados no caput do art. 37 da Cons-tituição Federal (Cf. art. 8 º da CLT, que autorizaa aplicação da analogia e da eqüidade, “... massempre de maneira que nenhum interesse declasse ou particular prevaleça sobre o interes-se público.” Cf., também, art 5º da Lei de Intro-dução: “ Na aplicação da lei, o juiz atenderáaos fins sociais a que ela se dirige e às exigên-cias do bem comum.”).

Com a nova redação dada pela EmendaConstitucional nº 19/98, tornou-se insubsistenteo fundamento antes exposto, diante da defini-ção inequívoca dada pelo § 3º, que substitui o §2º do artigo 39, e da nova redação destinada aoartigo 41, para os quais o Legislador excluiu aconcepção genérica de servidor público elimitou claramente o regime a que se referemaqueles preceitos, inclusive com força de inter-pretação autêntica:

Art. 39, § 3º – Aplica-se aos servidoresocupantes de cargo público...

Art. 41. São estáveis após três anosde efetivo exercício os servidores nomea-dos para cargo de provimento efetivo emvirtude de concurso público.

Por conseguinte, eliminada do texto cons-titucional a opção programática do regimeúnico, limitada com objetividade a aplicação doartigo 39 e 41 para o servidor estatutário, devemprevalecer, em relação ao servidor público não-estatutário, as regras jurídicas do direito privado,ressalvados os preceitos de interesse público,entre eles, a necessidade de concurso parainvestidura em emprego, bem como, em obe-diência aos princípios da imparcialidade, da

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moralidade e da transparência da Administra-ção Pública, a indispensabilidade da motivaçãodo ato de resilição do contrato de trabalho(Caput do art. 37 da Constituição Federal).

Contudo, nos limites da legislação brasileira,a despedida arbitrária não cria o direito à reinte-gração do servidor público celetista, ante oreconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal,da prevalência hierárquica da disposição doinciso I do art. 7º da Constituição Federal sobrea Convenção 158 da OIT (ADIn Nº 1.480-3-DF.Relator: Ministro Celso de Mello. Revista Ltr,p. 60-08, v. 1016 e, p. 61-09, v. 1159), em con-seqüência de que a garantia contra a despedidaarbitrária prevista no inciso I do artigo 7ºdepende de Lei Complementar própria, aplican-do-se, até que seja promulgada tal lei, o dispostono artigo 10 do Ato das Disposições Constitu-

cionais Transitórias (ADCT), ficando assegu-rado ao trabalhador o pagamento de 40% doFGTS devido (ADCT, art. 10, I), aplicando-se,em tese, contra o Administrador Público, as pre-tensões deduzíveis do ilícito cometido.

Data venia, não prospera o argumento deque a exigência constitucional de concursopúblico para o servidor não-estatutário, assimcomo para os empregados da AdministraçãoIndireta, implica o direito de estabilidade, poisuma coisa é atendimento aos princípios funda-mentais da transparência e moralidade da Admi-nistração Pública, outra coisa é o direito à esta-bilidade, que não deve fluir de interpretaçãoduvidosa. Ademais, o critério do concursopúblico é constitucionalmente sinalizado comvariações de complexidade em função da natu-reza da atividade objeto do concurso.

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SUMÁRIO

IntroduçãoAs execuções de obrigação de fazer infun-

gível ou de dar coisa certa são denominadaspela doutrina como execuções impossíveis1, jáque a satisfação plena do crédito dependerá deato voluntário do devedor. Na hipótese de re-sistência, o ordenamento jurídico prevê a sua con-versão em execução por quantia certa2, que, inde-pendentemente da vontade do devedor, culmina-rá com a expropriação judicial do patrimônio res-ponsável e a conseqüente satisfação do crédito.

No entanto, a conversão na execução porquantia certa não afasta a possibilidade de coa-ção psicológica do devedor para cumprir, medi-ante ato próprio, a obrigação de fazer infungívelou dar coisa certa. O Código de Processo Civilprevê penas pecuniárias pelo atraso e descum-primento de sentenças condenatórias de obri-gação de fazer e entrega de coisa certa3. Além

Conflito aparente de normas nodescumprimento de ordem judicial pelaAdministração Pública

RICARDO PERLINGEIRO MENDES DA SILVA

Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva é Juiz Federalda 2ª Vara de Niterói.

1. Introdução. 2. Contempt of court. 3. Pri-são civil e prisão por dívida. 4. Crimes contraa administração da Justiça. 5. Crimes contra aAdministração Pública. 6. Crimes de respon-sabilidade. 7. Crimes na execução de senten-ças mandamentais. 8. Crimes na execução con-tra a Fazenda na Lei nº 8.213/91. 9. Crimes naexecução por quantia certa contra a Fazenda– fase judicial. 10. Crimes na execução porquantia certa contra a Fazenda – fase do pre-catório. 11. Conclusão.

1Chiovenda, op. cit.; Liebman, op. cit.; CândidoRangel Dinamarco, op. cit.; e Araken de Assis, op. cit.

2Arts. 627 e 633 do CPC.3Arts. 627, 633, 644 e 645 do CPC.

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disso, há sanções civis pela prática de atos aten-tatórios à dignidade da justiça4. Já o CódigoPenal prevê os crimes contra a administração dajustiça que, indiretamente, prestam-se à coaçãopsicológica do devedor5.

No procedimento de execução de quantiacerta contra a Fazenda Pública, a proibição daexpropriação judicial do patrimônio público com-promete seriamente a efetividade da jurisdição.Como o cumprimento dos precatórios dependede vontade política do Estado/devedor6, a situ-ação do credor se agrava, pois tem-se a execu-ção contra a Fazenda Pública como uma execu-ção impossível e, o pior, insuscetível de conver-são numa execução possível (forçada).

Nesse contexto, toma relevo a coação psi-cológica do devedor, único instrumento em po-der dos jurisdicionados capaz de levar o Esta-do/devedor, no plano processual, à vontade decumprir uma decisão judicial. Porém, ainda as-sim, nota-se que a aplicação de sanções civisdificilmente intimidaria a Administração Públi-ca, pois, não incidindo pessoalmente sobre oservidor responsável, também seriam executa-das mediante precatório judicial. Portanto, nodireito pátrio vigente, a única forma real de coa-ção do Estado/Jurisdição contra o Estado/de-vedor é a responsabilização penal dos servido-res públicos que derem causa ao inadimplemen-to judicial.

Na opinião de Marcelo Caetano,“se os Ministros e os funcionários sou-berem que (como sucede, por exemplo,em Inglaterra) serão acusados e conde-nados nos tribunais sem embargo dassuas qualidades ou situações pessoais,decerto terão em maior conta os direitosalheios e maior escrúpulo na observân-cia dos princípios jurídicos”,

sendo essa, aliás, a razão primordial que le-vou certos autores dos mais autorizados, comoVedel e Benvenuti, a preconizar a adoção ouampliação da responsabilidade penal dos agen-

tes pela inexecução das sentenças dos tribu-nais administrativos7.

2. Contempt of courtO contempt of court é um instituto do direi-

to anglo-saxão para garantia da efetividade daprestação jurisdicional. Trata-se de sanção apli-cada à parte que desrespeita a corte. O con-tempt of court civil impõe sanções civis e o con-tempt of court penal, sanções penais. Essas san-ções são aplicadas pelo próprio juiz da causa,havendo inúmeros casos em que ocorre no pro-cesso de execução.

René David registra que“aquele que, de má-fé ou por má vonta-de, não executa uma decisão da Corte tor-na-se culpado por contumácia e, comosanção, corre o risco de ser preso. O con-tempt of court aumenta o prestígio dasCortes superiores e contribui, desta ma-neira, para consolidar fortemente na In-glaterra a idéia de que existe de fato umpoder judiciário”8.

3. Prisão civil e prisão por dívidaA Constituição Federal proíbe a prisão por

dívida, salvo no caso de depositário infiel ou dedívida alimentar9. A proibição da prisão civil pordívidas é regra de direito humanitário e consa-gra a moderna doutrina processual de que odevedor não deve responder fisicamente pelassuas dívidas10, devendo a execução alcançarunicamente o seu patrimônio e, mesmo assim,aqueles bens que não forem essenciais a suasubsistência11. A proibição da prisão por dívidadeve ser voltada tanto para o legislador civilquanto para o penal. De nada adiantaria vedar o

4Arts. 599 a 601 do CPC.5 É inegável que o direito penal se preste à coação

de determinados deveres jurídicos. Os crimes contraa ordem tributária são um exemplo. O direito espa-nhol contempla diversos crimes para forçar a Admi-nistração Pública a cumprir as sentenças judiciais, talcomo o crime de desobediência (Ernesto Pedraz Pe-nalva, Privilegios de las Administraciones Públicasen el proceso civil, Civitas, 1993, p. 179).

6 Notadamente quando não houver previsão or-çamentária, ante a omissão do legislador.

7apud Diogo Freitas do Amaral, A execução dassentenças dos Tribunais Administrativos, Almedina,1997, p. 241.

8 Le Droit Anglais, Presses Universitaries de Fran-ce, 1987. (Traduação de Eduardo Brandão, O direitoinglês, Martins Fontes, 1997, p. 19).

9Art. 5º, LXVII, da Constituição.10 O processo de humanização da execução força-

da no direito romano, com a patrimonialização, deu-se a partir da Lex Poetelia (326 a.C). Vittorio Scialojaanota que essa lei aboliu a pena capital contra o deve-dor insolvente, assim como os meios mais vexatóri-os, como cadeias e correntes (op. cit.).

11Cândido Rangel Dinamarco, op. cit. p. 32.

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legislador civil de punir o devedor se ao legisla-dor penal fosse possível adotar tal postura12.

Porém, não se deve confundir o ato de serinadimplente com o ato de se furtar à eficácia dadecisão judicial. Se o devedor não tem comopagar a dívida ou cumprir a sentença, o credornão realizará o seu crédito e a execução serásuspensa (execução infrutífera)13. No entanto,se o devedor possuir recursos para pagamentoda dívida e se furtar à aplicação da sentença,mediante fraude e atos atentatórios à dignidadeda justiça, não haverá problema algum em puni-lo civil ou criminalmente. A sua postura deixade ser prejudicial apenas para credor para atin-gir a sociedade como um todo, ao colocar emdúvida a autoridade e credibilidade do PoderJudiciário.

4. Crimes contra a administração da JustiçaOs crimes contra a administração da Justiça

são crimes que podem ser praticados tanto porparticulares quanto por servidores públicos. Osque eventualmente podem ter relevância no pro-cesso de execução contra a Fazenda Pública sãoos de fraude processual (inovar artificiosamen-te, na pendência de processo civil ou adminis-trativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoacom o fim de induzir a erro o juiz ou o perito –art. 347/CP); de patrocínio infiel (trair, na quali-dade de advogado ou procurador, o dever pro-fissional, prejudicando interesse, cujo patrocí-nio, em juízo, é-lhe confiado – art. 355/CP); desonegação de autos (inutilizar, total ou parcial-mente, ou deixar de restituir autos, documentoou objeto de valor probatório, que recebeu naqualidade de advogado ou procurador – art. 356/CP); e de resistência à execução de sentençaque fixa alimentos (constitui crime contra a ad-ministração da Justiça deixar o empregador oufuncionário público de prestar ao juízo compe-tente as informações necessárias à instrução deprocesso ou execução de sentença ou acordoque fixe pensão alimentícia – art. 22 da Lei nº5.478/68).

A fraude processual é praticada pelo impro-bus litigador (muitas vezes, com a participaçãode inescrupuloso advogado). A fraude opera-se com a artificiosa inovação (alteração, modifi-

cação, substituição, deformação, subversão) re-lativamente ao “estado de lugar, de coisa ou depessoa”. Um exemplo citado por Nelson Hun-gria é a eliminação dos vestígios de um fato,para fazer crer noutro diverso14. É necessárioque a ação seja idônea para induzir em erro ojuiz ou perito, lembrando, nesse ponto, que aindução a erro ocorre relativamente a fatos enão a direito. Por isso, a sua incidência é maisno processo de conhecimento, que pode envol-ver a fase de liquidação ou de embargos do de-vedor. A fraude processual não deve ser con-fundida com a fraude à execução, esta inaplicá-vel no processo de execução contra a Fazenda,considerada a inexistência de expropriação ju-dicial.

O crime de patrocínio infiel é próprio dosadvogados, ainda que no exercício de funçãopública, tais como os procuradores ou advoga-dos credenciados. No âmbito da execução con-tra a Fazenda, os sujeitos passivos desse delitosão o Estado/Jurisdição e o Estado/devedor. Éelemento do tipo a existência de prejuízo para oEstado/cliente do advogado. O dolo é afastadose o advogado, por imperícia, imprudência ounegligência, causa prejuízo ao seu cliente, já quenão há punição para a modalidade culposa. Por-tanto, o conduzimento temerário da lide, comgraves conseqüências para o cliente, deve serexaminado à luz da culpabilidade15 do agente.

O crime de sonegação de autos se consumacom o simples “deixar de restituir” os autos queestiverem em poder do agente. Para tanto, é ne-cessária a sua prévia intimação pessoal para de-volução. Trata-se de crime omissivo próprio. Adevolução dos autos deve ser considerada, ain-da que anterior à denúncia, arrependimento pos-terior. Não só o advogado é seu sujeito ativo,mas também qualquer outra pessoa que estejana posse dos autos. O dolo é a intenção de nãodevolver os autos, devendo, no entanto, serafastado nas hipóteses de negligência, imperí-cia ou imprudência, como pode ocorrer nas hi-póteses de extravio, a ser apurado no contextoprobatório.

5. Crimes contra a Administração PúblicaOs crimes contra a Administração Pública,

praticados unicamente por servidores públicos,e que são pertinentes ao tema são os de preva-12 Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva. “Apro-

priação indébita tributária?”. Revista do Instituto dePesquisas e Estudos da Instituição Toledo de EnsinoBauru 20, p. 211-222.

13Art. 791, III, do CPC.

14Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal,v. IX, Forense, 1959, p. 501.

15Causalista.

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ricação (retardar ou deixar de praticar, indevida-mente, ato de ofício, ou praticá-lo contra dispo-sição expressa de lei, para satisfazer interesseou sentimento pessoal – art. 319/CP) e de advo-cacia administrativa (patrocinar, direta ou indi-retamente, interesse privado perante a Admi-nistração Pública, valendo-se da qualidade defuncionário – art. 321/CP).

No tocante ao descumprimento de ordensjudiciais por agentes públicos, é controvertidaa adequação do tipo penal. O crime de desobe-diência, aplicável a todos que resistem a umaordem judicial, não incidiria sobre o servidor pú-blico recalcitrante, uma vez que se trata de crimepraticado por particular contra a AdministraçãoPública. A tipificação correta para a hipóteseseria o delito de prevaricação, que é praticadopor servidor contra a própria Administração16.

Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribu-nal de Justiça, no Habeas Corpus nº 2.6128/4,de que foi Relator o Ministro Vicente Cernicchi-aro, cuja ementa encontra-se assim redigida:

“O Código Penal distingue (título XI)crimes funcionais e crimes comuns. Evi-dente, quando o funcionário público (CP,art. 327) pratica ato de ofício, não cometedelito próprio de particular. Assim, inviá-vel a infração penal – desobediência (CP,art. 330) crime praticado por particularcontra a Administração Pública, título XI,capítulo II). Em tese, admitir-se-á – pre-varicação (CP, art. 309). Urge, no entanto,a denúncia descrever elementos consti-tutivos dessa infração penal”17.

Na doutrina de Rui Stoco, prevaricação éinfidelidade ao dever de ofício, à função exerci-da. É o não-cumprimento das obrigações quelhe são inerentes, movido o agente por interes-se ou sentimentos próprios. Não é a hipótesede corrupção, mas sim a satisfação de interessepessoal, vontade própria sem observância doseu dever de ofício, por meio da omissão ouretardamento da prática do ato administrativo.

Nelson Hungria entendia por sentimentopessoal

“a afeição, a simpatia, a dedicação, a be-nevolência, a caridade, o ódio, a parciali-dade, o despeito, o desejo de vingança, apaixão política, o prazer da prepotência

ou mandoísmo, a subserviência, o receiode molestar os poderosos”18.

Se o servidor público julga ilegal a ordemjudicial e deixa de cumpri-la no interesse públi-co, poder-se-ia dizer que o dolo está afastado,pois a sua conduta seria “legal”19.

Contudo, o meu posicionamento a respeitoé que não compete à autoridade administrativavalorar a legalidade de decisão judicial, que,enquanto eficaz, deve ser cumprida20. E mais,ainda que no futuro venha a ser reformada, odesrespeito existiu e deve ser punido. O servi-dor que nega cumprimento a uma ordem judici-al, sob o fundamento da sua ilegalidade, estáagindo para satisfazer interesse pessoal e sujei-to às sanções do crime de prevaricação. Evi-dentemente que, na hipótese de impossibilida-de material de cumprimento da decisão judicial,não haverá crime algum, justamente por inocor-rência do dolo.

Ivan Lira de Carvalho assinala que,“na análise da caracterização da prevari-cação, deve o juiz apurar cada vez mais oseu equilíbrio, no intuito de aferir se real-mente o funcionário agiu objetivando asatisfação de interesse ou sentimentopessoal. Dos dois requisitos subjetivos,o primeiro oferece melhores condições deconstatação, como ocorre, por exemplo,no caso de dirigente de repartição públi-ca que retarda o cumprimento de ordemjudicial que suspende a integração devantagem financeira aos vencimentosdos funcionários sob o seu comando –quiçá dos seus próprios ganhos. Já comreferência ao sentimento pessoal, pareceacontecer, na maioria dos casos, uma sub-serviência intolerável dos funcionários

16Rui Stoco, Código Penal e sua interpretaçãojurisprudencial, v. 1, II, 6ª edição, RT, 1997, p. 3.619.

17Revista do Superior Tribunal de Justiça 63, p.70. Cf. STJ/RHC, Rel. Fláquer Scartezzini, DJU.05.06.95.

18 Nelson Hungria, op. cit. p. 376.19 Esse entendimento, de certa forma, foi encam-

pado pelo STJ no RHC 1543/GO, de que foi RelatorMinistro Vicente Cernicchiaro, relativamente a crimede desobediência: “O crime de desobediência reclamaque a ordem seja legal. Acrescente-se: legalidade subs-tancial, legalidade formal e autoridade competente.Além disso, inexistirá o delito havendo impossibili-dade material de cumprimento da determinação”. Re-vista do STJ 28, p. 178.

20 O Ministro Costa Leite, vencido no cit. HC.1543, consignou que “este é um ponto fundamentalno Estado de Direito Democrático, que tem no impé-rio da lei a sua pedra angular. As decisões judiciaisdevem ser cumpridas ou civilizadamente questiona-das, visto como, ao juiz compete dizer o direito”(RSTJ-28/181).

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para com os seus superiores, em muitotranscendendo o respeito à hierarquiarecomendado pelo pré-citado art. 116, IV,da Lei 8.112/90. Noutros casos, são cons-tatadas manifestações explícitas de pre-potência, do tipo ‘quem manda aqui soueu!’, exigindo uma reprimenda eficaz aorestabelecimento da primazia do interes-se público no trato da matéria administra-tiva”21.

A propósito do crime de advocacia adminis-trativa, o seu dolo consiste na vontade consci-entemente dirigida ao patrocínio de interesseprivado junto à Administração Pública. No casode ser o interesse ilegítimo, o agente responde-rá pelo crime mais grave se tinha conhecimentode tal ilegitimidade, bastando porém o dolo even-tual. O crime só pode ser praticado por servidorpúblico, não descartada a possibilidade de co-autoria com particular22.

6. Crimes de responsabilidade.Os crimes definidos como de responsabili-

dade também devem ser observados, tais comoos por ato do Presidente da República e Minis-tros de Estado (são crimes de responsabilidadeos atos que atentarem especialmente contra... olivre exercício do Poder Judiciário... ; opondo-se diretamente e por fatos ao livre exercício doPoder Judiciário, ou obstar, por meios violen-tos, ao efeito dos seus atos, mandados ou sen-tenças; usando de violência ou ameaça, paraconstranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixarde proferir despacho, sentença ou voto, ou afazer ou deixar de fazer ato do seu ofício. Sãocrimes contra o cumprimento das decisões judi-ciárias: impedir, por qualquer meio, o efeito dosatos, mandados ou decisões do Poder Judiciá-rio; recusar o cumprimento das decisões doPoder Judiciário no que depender do exercíciodas funções do Poder Executivo; deixar de aten-der a requisição de intervenção federal do Su-premo Tribunal Federal ou do Tribunal SuperiorEleitoral; impedir ou frustrar pagamento deter-minado por sentença judiciária – art. 4º, II; 6º, 5e 6; e 12 da Lei nº 1.079/50); dos Governadoresde Estado e Secretários (art. 74 da Lei nº 1.079/50); do Governador do Distrito Federal e Secre-tários (art. 1º da Lei nº 7.106/83); e dos Prefeitos

Municipais (deixar de cumprir ordem judicial,sem dar o motivo da recusa ou da impossibilida-de, por escrito, a autoridade competente – art.1º, XIV, do Decreto-Lei nº 201/67).

O Substitutivo à Proposta de Emenda à Cons-tituição nº 96/1992, introduzindo o § 4º no atualartigo 100 da Constituição, dispõe que

“o descumprimento das providências aque aludem os parágrafos anteriores, peloPresidente do tribunal, constituirá crimede responsabilidade em que também in-correrá o Chefe do Poder Executivo queobstar, ou tentar frustrar, por qualquermeio, a liquidação regular de precatório,sem prejuízo das sanções civis e penaiscabíveis e da intervenção nos Estados,no Distrito Federal e nos municípios”23.

O ponto de partida para a tipificação dessesdelitos de responsabilidade, no tocante ao des-cumprimento de ordem judicial, é saber se a au-toridade política é realmente responsável pelocumprimento da ordem e se, para a mesma, ha-via possibilidade material de cumprimento, pois,do contrário, não haverá dolo.

7. Crimes na execução de sentençasmandamentais

A mandamentalidade das sentenças ou limi-nares proferidas em sede de mandado de segu-rança depende da natureza da pretensão. Serãosempre mandamentais as pretensões condena-tórias de obrigação de fazer ou não fazer e dedar coisa certa. O descumprimento dessas deci-sões poderá ensejar a responsabilidade penaldo servidor público competente, forçando-o,indiretamente, a fazer, não fazer ou ainda entre-gar determinada coisa, tal como previsto no jul-gado.

Os pedidos declaratórios e constitutivos nãodependem de execução, tornando-se, portanto,irrelevante a resistência da Fazenda Pública paraa eficácia do julgado. No entanto, as preten-sões declaratórias e constitutivas, geralmente,vêm acompanhadas de pretensões condenató-rias de obrigação de fazer ou não fazer, com oque a recalcitrância da autoridade administrati-va compromete a efetividade da jurisdição.

As pretensões que resultarem no pagamen-to de valores em espécie não detêm naturezamandamental, pois estão sujeitas ao procedi-21 Ivan Lira de Carvalho. “Descumprimento de

ordem judicial por funcionário público”. Revista Tri-mestral de Direito Público 10, pp. 187-195.

22Rui Stoco, op. cit. p. 3.629.23Deputado Jairo Carneiro, Brasília, Câmara dos

Deputados, 1996.

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mento do art. 730 do CPC e do art. 100, caput, daConstituição. A alegação de que a ação de man-dado de segurança possui previsão constitucio-nal autônoma e, portanto, não se sujeita ao pre-catório judicial é interpretação a ser afastada.Não há possibilidade jurídica de satisfazer o cre-dor de quantia certa, na hipótese de descumpri-mento de ordem judicial, ainda que mandamen-tal fosse, dada a proibição generalizada de ex-propriação forçada do patrimônio público.

A exegese do crime previsto pelos arts. 1º, §2º, e 3º da Lei nº 5.021/66 deve ser a seguinte. Otipo penal impõe à autoridade coatora a imedia-ta solicitação para suprimento de recursos, nafalta de crédito. E o que se entende por “solici-tação imediata”? A meu ver, em prazo suficientepara que seja dado cumprimento (tempestivo) àdecisão judicial.

Como a Constituição proíbe o pagamentode decisões judiciais independentemente de pre-catório judicial, assim como é proibida a trans-posição de receitas de uma rubrica para outra, adecisão judicial deve impor à autoridade coato-ra a fonte da qual deverão ser extraídos os cré-ditos para pagamento, pois do contrário pode-remos estar diante de uma impossibilidade ma-terial, o que afastaria o dolo.

Porém, imaginem que haja tal previsão orça-mentária (certamente inconstitucional) ou que adecisão judicial, por sua conta, imponha o pa-gamento indicando outra rubrica. O momentoseguinte é saber se há fluxo de caixa em tal ru-brica à disposição da autoridade coatora. A hi-pótese prevista pela Lei nº 5.021/66 é apenas nafalta de crédito da autoridade coatora. Caso aautoridade possua caixa e não pague, o crimenão seria o da Lei nº 5.021/66, embora possaestar sujeito a outras apenações. Caso seja oordenador de despesa o detentor do crédito,este o colocará à disposição da autoridade coa-tora tão logo lhe seja comunicado. Observe-seque, nesse caso, a omissão da autoridade coa-tora será relevante, pois o credor deixará de sa-tisfazer o crédito em razão da sua omissão.

Porém, digamos que a autoridade coatoranão possua crédito, assim como o ordenador dedespesas a que estiver vinculada. O suprimen-to de recursos dependeria de processo legisla-tivo para aprovação de crédito suplementar. Arelevância da punição da autoridade coatora re-sidiria na necessidade de se dar conhecimentodos fatos às autoridades políticas responsáveispelo orçamento. Nada mais. Creio que não hajarazão para a tipificação penal nessa hipótese.

Outro aspecto que deve ser ressaltado é quea objetividade jurídica do delito previsto no art.3º da Lei nº 5.021/66 (que não deixa de ser umcrime de prevaricação) é a Administração Públi-ca e não a administração da Justiça. O crime deprevaricação é contra a Administração Pública,o que é coerente com a idéia de que a hipóteseencerra um dever, interna corporis, da Admi-nistração Pública enquanto parte (autoridade co-atora), no cumprimento voluntário (no plano pro-cessual) da decisão judicial. O juiz não podeobrigar a Administração a cumprir uma decisãojudicial para pagamento de quantia certa semprecatório, porém a própria Administração podeimpor aos seus agentes o cumprimento de taldecisão. A lei não confere instrumentos ao Po-der Judiciário para fazer valer suas decisões,porém obriga à Administração o cumprimentodas decisões judiciais. O mesmo ocorre, vg, comos recursos civis voluntários. O juiz não podeimpor à Administração Pública a interposiçãode recurso extraordinário, mas a AdministraçãoPública, internamente, pode impor aos seus agen-tes (procuradores) que interponham todos os re-cursos cabíveis, sob pena de prevaricação.

O descumprimento de decisão mandamen-tal (obrigação de fazer, não fazer ou de entregade coisa certa) não é conduta prevista pelo art.3º da Lei nº 5.021/66, embora ocasionalmentepossa configurar outros tipos penais, tal comoo de prevaricação ou de responsabilidade. Acaracterização do crime de prevaricação depen-de de acurado exame do elemento subjetivo, ode satisfazer interesse próprio. A alegação deinteresse público no descumprimento da deci-são mandamental é possível que afaste o doloda prevaricação, afastando, da mesma maneira,o dolo do crime de responsabilidade. O crime defraude processual não se aplica à espécie, umavez que tem por fim evitar o induzimento a errodo juiz ou perito, na fase de instrução; e o pro-cesso de execução não é o momento para tanto.

8. Crimes na execução contra a Fazenda naLei nº 8.213/91

O art. 128 da nº Lei 8.213/91, enquanto nãodeclarado inconstitucional pelo Supremo Tribu-nal Federal, permitia que o INSS cumprisse asdecisões judiciais de quantia certa independen-temente de precatório, desde que até determi-nado limite. Questões de ordem prática surgi-ram à época. O INSS era intimado para paga-mento, que não era realizado no prazo judicial.

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Além disso, alguns credores eram preteridos poroutros mais recentes, o que ocasionava um mal-estar geral com suspeita do retorno da advoca-cia administrativa.

No tocante ao descumprimento das decisõesjudiciais que impunham o pagamento sem pre-catório, algumas considerações devem ser fei-tas. É verdade que a Constituição não permite opagamento de valores independentemente deprecatório, tanto que o Supremo Tribunal de-clarou a inconstitucionalidade do citado art. 128da Lei nº 8.213/91. É também verdade que a Cons-tituição não permite a transposição de verbasde uma rubrica para outra.

Porém, o fato é que havia previsão orçamen-tária e caixa para pagamento, sem precatório,dessas decisões judiciais. E, mesmo que nãohouvesse, é importante ressaltar que toda deci-são judicial deve ser respeitada enquanto efi-caz, sob as penas da lei. Por mais absurda queseja, enquanto não revogada, a decisão judicialdeve ser cumprida, incorrendo o servidor públi-co recalcitrante no crime de prevaricação ou deresponsabilidade.

Nesse contexto, milhares de decisões judi-ciais, com trânsito em julgado, determinaram aoINSS o pagamento de valores independente-mente de precatório judicial. A postura adotadapela Autarquia, em vários processos, era sim-plesmente a omissão. Com isso, surgiram ques-tionamentos sobre a natureza penal do seu com-portamento, levando alguns juízes a decretarema prisão em flagrante de servidores públicos,com o que foram taxados pela imprensa de “juí-zes justiceiros”.

A falta de pagamento das decisões judiciaisrelativas a benefícios previdenciários podia en-sejar a punição pelo crime de prevaricação oude responsabilidade. Porém, o dolo era de difícilconfiguração. Era necessário que ficasse de-monstrada a existência de previsão orçamentá-ria e de recursos financeiros capazes de supor-tar o débito e que, ainda assim, o responsávelestava se recusando a ordenar a despesa. Aconcepção de que a satisfação de interesse pes-soal é colidente com a postura adotada peloservidor, que tem por fim a proteção da Admi-nistração Pública, fez com que poucos respon-dessem criminalmente pelo descumprimento dasdecisões judiciais. Era também importante quefosse identificado o responsável pela ordem depagamento, único servidor que seria sujeito ati-vo de crime pelo descumprimento da decisãojudicial, muito embora outros funcionários pu-dessem ser considerados partícipes.

O crime de patrocínio infiel era ventilado,na medida em que a postura deliberada deprocuradores em não pagar as decisões judi-ciais, ainda que bem intencionados, acarre-tava sanções de ordem pecuniária à Autar-quia, tais como juros de mora, astreintes ,multas e correção monetária.

A preterição de credores mais antigos, nocumprimento das decisões judiciais emanadasna dicção da Lei nº 8.213/91, era de difícil solu-ção. Como cada juízo proferia uma decisão parapagamento, era a Administração Pública quemacabava controlando a preferência, tal comoocorre com a multiplicidade dos tribunais requi-sitantes de precatório. O controle só seria eficazentre as ordens para pagamento emanadas porum mesmo juízo. Contudo, mesmo assim, paraconfigurar o crime de advocacia administrativaou corrupção passiva, seria imprescindível lon-go processo investigatório para apurar o dolo,pois a simples preterição não é crime.

9. Crimes na execução de quantia certacontra a Fazenda – fase judicial

Na fase judicial da execução de quantia cer-ta contra a Fazenda Pública, notam-se dois mo-mentos em que a Fazenda costuma opor obstá-culos ao processamento regular da execução,por meio de condutas que eventualmente ense-jam responsabilidade penal dos seus agentes: aliquidação de sentença e a oposição de embar-gos à execução.

No momento da liquidação da sentença, aFazenda Pública não raramente se recusa a pres-tar informações que são indispensáveis à ela-boração dos cálculos. O credor, não podendovaler-se do instrumento processual previstopelo art. 355/CPC, em vista do disposto no art.399/CPC, é obrigado a se conformar, processu-almente, com a omissão da Fazenda/devedora.É evidente que a postura adotada pela Fazenda,em muitos casos, deve ensejar a responsabili-dade penal.

A requisição de documentos ou informaçõesé ordem judicial e deve ser obedecida, sob penade prevaricação ou de responsabilidade. A sub-tração de documentos, para dificultar o regularprocessamento da liquidação, pode ser a hipó-tese do crime de fraude processual. Caso seevidencie a prática de qualquer ato atentatórioà diginidade da justiça, além das sanções pro-cessuais, é possível que haja a infração penaldo patrocínio infiel.

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A oposição de embargos à execução deixade ser considerada um meio legítimo de defesado devedor quando se destina a restaurar ques-tões já decididas na fase cognitiva24. A tentati-va de ofensa à coisa julgada pode caracterizar alitigância de má-fé e, eventualmente, o crime depatrocínio infiel, já que causará danos civis aoerário público. No entanto, o dolo será afastadona hipótese de erro ou ignorância do causídico.

10.Crimes na execução por quantia certacontra a Fazenda – fase do precatórioA inobservância da ordem de preferência do

precatório judicial pode ocorrer em diversos ní-veis da Administração. É possível que a preteri-ção ocorra entre credores que postulam nummesmo tribunal ou em tribunais diversos. A pre-terição pode ser provocada, ainda, por credoresque satisfazem o crédito administrativamente,em detrimento daqueles que aguardam o paga-mento por precatório. Em qualquer das hipóte-ses, acredito que o administrador está sujeitoao crime de advocacia administrativa, o que,contudo, é de difícil caracterização.

A falta de pagamento dos precatórios podeocorrer basicamente em duas situações. Uma sea Adminstração Pública dispuser de verba e,por um motivo qualquer, não desejar o paga-mento. Outra se a Administração Pública nãodispuser de verba para o pagamento.

Se a Administração Pública possui dotaçãoorçamentária específica, caixa suficiente e, ain-da assim, não paga o precatório judicial, prova-velmente o servidor responsável estará sujeitoao crime de prevaricação ou de responsabilida-de. A alegação de que a verba deveria ter outradestinação (eventualmente mais relevante ou ur-gente) encontra óbices na própria Constituição,que veda a transposição de uma rubrica paraoutra25.

Porém, se a Administração Pública não pos-sui previsão orçamentária para o pagamento doprecatório judicial, não há como responsabilizarpenalmente quem quer que seja. A inclusão, noorçamento, de verba destinada ao pagamentode decisões judiciais é ato que depende de von-tade política do Poder Legislativo, contra o qualnão se pode insurgir26. Do mesmo modo haveráatipicidade penal se a Administração Pública,embora detentora de previsão orçamentária, nãopossuir fluxo de caixa, pois a suplementação doorçamento depende da elaboração de legisla-ção específica.

11. ConclusãoNo atual regime jurídico, o direito penal é o

único instrumento de coação que o credor e opróprio Estado/Jurisdição, este o maior interes-sado na concretização do julgado, possuem con-tra o Estado/devedor. Porém, mesmo assim, alegislação penal é tímida no tocante ao descum-primento das decisões judiciais pela Adminis-tração Pública. Os crimes a que se sujeitam osagentes públicos responsáveis pelo cumpri-mento das decisões judiciais são de difícil con-figuração, pois o dolo deve ser, na maior parte,específico para satisfazer interesse particular.

Além disso, a previsão de crimes para o ad-ministrador público não tem-se prestado a coa-gir psicológica e eficazmente o Estado/devedor,já que essas sanções penais não são aplicadaspelo juiz da execução27. A suspeita de crime levao juiz da execução tão-somente à extração decópias, para o Ministério Público apurar e de-nunciar perante outro juízo e em outro proces-so. Como a sanção não é imediata, a probabili-dade de punição futura acaba por esvaziar ocaráter coercitivo da medida28.

24Segundo Diogo Freitas do Amaral, “não basta àAdministração Pública dar realização efectiva ao dis-posto em tais sentenças: cumpre-lhe não contestar adecisão jurisdicional, uma vez transitada em julgado,respeitando o carácter de imutabilidade e indiscutibi-lidade que é timbre de uma decisão revestida da auto-ridade de caso julgado” (op. cit. p. 35).

25Ao contrário, no direito português, o art. 6º doDecreto-Lei nº 256-A/77 estabelece que “constituemcausa legítima de inexecução a impossibilidade e ograve prejuízo para o interesse público no cumpri-mento da sentença” (Diogo Freitas Amaral, op. cit.p. 118).

26 Vicente Greco Filho é de entendimento contrá-rio. Reconhece que o descumprimento desse coman-do representa violação da lei, em sentido amplo, etambém descumprimento de ordem judicial, porqueo precatório tem em si a carga de uma determinaçãoao Poder Executivo para a inclusão da verba. Segundoafirma, há crime de responsabilidade do administra-dor (op. cit. pp. 86/87).

27A jurisprudência é tranquila que “juiz na juris-dição civil não pode mandar prender ninguém porcrime de desobediência, a não ser, evidentemente, emcaso de flagrante, o que pode ser feito por qualquerdo povo” (RSTJ–71/78). Na Justiça Federal da 2ªRegião, o Provimento 18 da Corregedoria-Geral che-gou a regulamentar a matéria.

28Essa deficiência do direito penal como instru-mento de efetividade da execução contra a Fazenda

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Portanto, o ideal seria a possibilidade de pri-são civil do administrador recalcitrante pelo pró-prio juiz da execução, sempre que este se con-vencesse de que a postura adotada pela Admi-nistração Pública é ilegítima, tal como se sucedeno regime aglo-saxão com o contempt of court.De toda sorte, é bom registrar que, qualquer que

Pública foi constatada no direito português por Dio-go do Amaral: “A primeira deficiência que se fazmister apontar, dentro desta ordem de idéias, decorredo princípio básico de que a acção penal é pública...Depois, cabe advertir que a aplicação da pena corres-pondente ao crime de desobediência não protege su-ficientemente os interesses do particular ofendido coma inexecução da sentença. Porque, em boa verdade, aexecução da pena não equivale à execução da senten-ça” (op. cit. p. 242). *Notas bibliográficas conforme original.

seja a medida adotada contra o administradorinadimplente, o credor nunca terá a garantia desatisfação do crédito, ao menos enquanto sub-sistir o preceito constitucional que considera oprecatório judicial como único meio de execu-ção contra a Fazenda Pública.

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Antonio Carlos Wolkmer é Professor titular noscursos de graduação e pós-graduação em Direito daUniversidade Federal de Santa Catarina. Doutor emDireito e membro do Instituto dos Advogados Brasi-leiros (RJ).

1. IntroduçãoA proposta, a discussão e as relações para-

digmáticas que dão ensejo a um Direito Comu-nitário Latino-Americano não podem mais serminimizadas por tratar-se de realidade complexae crescente, ainda que tal processo se encontreem fase germinal, dependendo da consolidaçãode sua efetiva integração econômica, política ejurídica dos países do Cone Sul.

Neste final de século, diante do cenário po-lítico internacional, da globalização econômicae da formação de blocos comerciais1, uma dasalternativas de contraposição vem a ser a cons-tituição de blocos regionais resultantes dajunção de organizações supra-estatais quealmejam assegurar e defender interessescomuns. Precisar os pressupostos conceituaise contextuais dos modelos institucionais deintegração econômica e política implica estabe-lecer também mecanismos de regulamentação ede controle legal. Trata-se da exigência de insti-tuir os princípios, os dispositivos e as formasde aplicação de um ordenamento comunitáriode nações.

Avançar em tais preposições requer, antesde tudo, ter clareza acerca do comunitarismocomo forma de organização ou sistema político.

Integração interamericana,comunitarismo jurídico e cidadaniasupranacional

ANTONIO CARLOS WOLKMER

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Integração interamericana:problematização e limites. 3. Pluralidades nacionaise comunitarismo jurídico na América Latina. 4.Considerações Finais.

1 Vide: LEDUR, José Felipe. “Mercosul, osProjetos Nacionais e a Nova Ordem Mundial”. Livrode Teses. XVI Conf. Nacional dos Advogados. p.19-23.

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Sob esse aspecto, cabe lembrar que não há con-senso entre os cientistas sociais quanto aotermo “comunidade”, que se tem prestado a múl-tiplos significados, sem afastar-se, entretanto,do sentido de sociedade, grupo ou organizaçãosocial. Deixando de lado a noção de “comuni-dade” como espaço público interno (infra-esta-tal) constituído e interligado por sujeitos soci-ais que compartilham fins comuns, privilegiar-se-á, para os intentos desta reflexão, o conceitode “comunidade” (supra-estatal) como a funçãode unidades sócio-políticas independentes com“interesses concorrentes e compartilhados quedemandam ação ‘comuns’ nos campos da polí-tica, da economia e da cultura”. Assim,

“a comunidade constitui uma solução,uma estratégia razoável e equitativa paraenfrentar problemas comuns. Não se tratade fórmulas de especulação retórica,senão da modificação das facetas domundo através de processos de integra-ção regional”2.

A construção de uma cultura jurídica queseja a expressão do ideário comunitarista implicauma mudança radical na educação atual doscidadãos, nas formas de comportamento e nodesenvolvimento de valores, estimulando apluralidade, a convivência pacífica, as práticasresponsáveis de relacionamento e de solidarie-dade regional.

Das exigências e perspectivas da consoli-dação de um Mercado Comum na América doSul (MERCOSUL)3 decorre a necessidade deinvestigar e examinar alguns aspectos basilarespara redefinir o que vem a ser um Direito Comuni-tário Latino-Americano. Nesse sentido, impõe-secontemplar: a) a questão da integração econô-mica, suas dificuldades regionais e relação coma forte tradição periférica do nacionalismo e daexistência de soberanias estatais; b) o problemado monismo jurídico positivista diante da

emergência de um pluralismo jurídico extra-es-tatal. É o que se verificará a seguir.

2. Integração interamericana:problematização e limites

Para que haja uma autêntica integração, énecessário edificar sólidas bases econômicas,políticas, culturais e jurídicas, bem como estru-turar progressivamente conceitos, regras emecanismos que viabilizem operacionalizar ahomogeneização das identidades nacionais.Certamente os processos de integração podemter, num primeiro momento, um enfoque maiseconômico, tendendo a avançar sucessivamentena direção de outras esferas não menos rele-vantes. Tal dinâmica é até mesmo reconhecidapelo Comunicado Conjunto de Ouro Preto, de17 de dezembro de 1994, ao proclamar que

“o projeto de integração do MERCOSULtranscende os aspectos exclusivamentecomerciais e econômicos, abrangendocrescente número de áreas, tais como noscampos da educação, cultura, ciência etecnologia, justiça, meio ambiente, infra-estrutura física e comunicações”4.

Institucionalizado como um mercado comum,regulado pelo Tratado de Assunção (1991) epelo Protocolo de Ouro Preto (1994), em seumomento presente, o MERCOSUL vem revelan-do, no dizer de Paulo B. Casella,

“interessantes desdobramentos na ordemexterna, como protagonista e parceiro denegociações bilaterais entre blocos, semque suas contradições internas e lacunastenham sido superadas”5.

À medida que o MERCOSUL se consolidacomo modelo de integração econômica regio-nal, impõe-se apontar alguns obstáculos quedificultam a integração latino-americana.

Primeiramente, a ausência de uma visão polí-tico-econômica unitária da América Latina. Aindaque se tenha uma herança comum resultante dacolonização ibérica (Espanha e Portugal), predo-minaram, desde as lutas de Independência, sepa-rações, divergências, rivalidades e conflitos. Ana-lisando tais idiossincrasias, com propriedadeescreve Alfredo da Mota Menezes que

“as diferenças entre as repúblicas têmraízes profundas em nossa geografia e em

2 DROMI, R., EKMEKDJIAN, M. A., RIVE-RA, J.C. Derecho Comunitario. Regime del Merco-sur. 2. ed. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1996. p.15. Observar ainda sobre o Direito Comunitário:CAMPOS, João Mota de. Direito Comunitário. II v.,2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1988; CAUPERS,João. Introdução ao Direito Comunitário. Lisboa:AAFDL, 1988; CALVO, Albert Pérez. Estado Auto-nómico y Comunidad Europea. Madrid: Tecnos,1993. p. 185-311.

3 Além do MERCOSUL, outros órgãos similarespodem ser mencionados: a União Européia (definidopelo Tratado de Maastricht, de 1992), a NAFTA(acordo entre EUA, Canadá e México) e o PACTOANDINO.

4 In: CASELLA, Paulo B. Mercosul: Exigências ePerspectivas p. 30.

5 CASELLA, Paulo B. op. cit., p. 37.

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nossa raça. Países com grandes contin-gentes de negros, brancos e mestiços,como Brasil, Cuba e Venezuela, compor-tam-se diferentemente de países de baseindígena, como Bolívia, Guatemala, Mé-xico, Peru e Equador. (...) Boa parte dasrepúblicas que surgiram na América Lati-na não tiveram como base a geografia oua etnia, mas suas raízes na arbitráriadivisão territorial feita pelos espanhóispara facilitar sua administração. Existia nonovo mundo, antes da chegada dos con-quistadores, algum tipo de unidade ba-seada em áreas indígenas comuns – osMaias, os Incas e os Araucanos. Os es-panhóis, no entanto, não levaram emconta esse aspecto sócio-econômico e,com o objetivo de facilitar sua adminis-tração, forçaram a separação de raças,culturas e costumes seculares”6.

Além disso, a estratificação social semprefoi marcada por uma dualidade, constituída orapor uma elite de grandes proprietários ou lati-fundiários, essencialmente egoísta, corrupta ecomprometida com as diversas formas do poder,ora por grandes massas ou parcelas de campe-sinos, índios e negros, oprimidos, marginaliza-dos e excluídos de todo e qualquer processo departicipação da sociedade civil. Nessas condi-ções, edificaram-se modelos societários marca-dos por grandes concentrações de riqueza,exploração e domínio da terra, profundas desi-gualdades sociais, sistemas políticos instáveise arbitrários. Num cenário agravado por proble-mas de violência urbana, discriminação damulher, mortalidade infantil, carência de habita-ção, educação deficitária, saneamento e nutri-ção insatisfatórios, muito há que se fazer aindaem termos de mudanças que viabilizem a melho-ria da qualidade de vida, maior justiça social,crescimento e ampliação do mercado consumi-dor e, por fim, condições adequadas, humanase materiais, que permitam uma autêntica inte-gração regional. A efetiva integração regionalna América do Sul depende não só de decisõespolíticas e de condições econômicas, mas demudanças conjunturais, estruturais e institucio-nais no interior dos Estados associados.

Igualmente, ao tratar de integração supra-estatal, não se pode negligenciar discussõespolítico-ideológicas como nacionalismo e sobe-rania estatal. Cabe considerar a advertência dealguns autores sobre o choque entre os objeti-vos da integração e o ideário nacionalista. Onacionalismo envolve o conjunto de princípiosque se materializam para justificar um modo deação ou prática política, tendo como meta a pre-servação da identidade nacional e a defesa daindependência do país contra as ameaças ouforças limitadoras externas. Deve-se reconhecerque o nacionalismo tem múltiplas facetas, querseja extremado ou não, podendo desencadearpolíticas positivas (defesa, protecionismo e auto-determinação do Estado) ou negativas (agres-são, imperialismo e militarismo). Sem adentrarnem superar tal debate, e tendo consciência dastensões e xenofobias que podem redundar,certamente há que se encontrar fórmulas de con-ciliar um Direito da integração com um certo tipode nacionalismo econômico. A preocupação élevantada por Paulo B. Casella, ao assinalar que,enquanto o nacionalismo político não conse-gue ultrapassar certos limites, muitos governoshoje tentam operacionalizar pragmaticamente umnacionalismo econômico. Desse modo,

“o nacionalismo econômico, indo além demera política comercial do nacionalismopolítico, manifesta-se de modos muitomais variados e freqüentes de que este.Pode-se (...) detectar sua ocorrência namedida em que se favorece a indepen-dência econômica do Estado, mesmo aopreço do desenvolvimento, apresentan-do-se este como fundamento e expressãoda liberdade e da soberania nacionais”7.

Além de contemplar e tentar superar a estrei-teza do nacionalismo ortodoxo, a discussãosobre a funcionalidade de blocos regionaisintegrados insere o exame dos limites amplosou restritos, fixados pela doutrina político-jurí-dica da soberania. É natural que não se preten-da colocar a questão da soberania em termosteoricamente absolutos, de sua supressão,negação ou delimitação, mas como um conceitooperacional maleável, sujeito a restrições no seuexercício, em função da necessidade de parceriae coordenação dos intentos dos diversos Esta-dos que consentiram livremente, mediante tra-tados, formar uma integração comunitáriasupranacional. Tal rejeição do dogma do caráterilimitado da soberania permite vê-la como pas-sível de reformulação, uma vez que seu conceito

6 MENEZES, Alfredo da Mota. Do Sonho à Rea-lidade. A Integração Econômica Latino-Americana.p. 165. Igualmente sobre exemplos dos aspectospositivos e negativos da integração na América Latina,observar: ALEIXO, José Carlos B. “Integração naAmérica Latina”. Revista de Informação Legislativa.p. 19-32. 7 CASELLA, Paulo B. op. cit., p. 82.

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clássico absoluto é praticamente utópico, tor-nando, na prática, sua concretização inviável.Sua operacionalização, como escreve Paulo B.Casella, “impõe racionalizar e distinguir esferasde atuação do conceito de soberania estatal, emfunção dos fins e mecanismos de implementa-ção”8. Nessa perspectiva, adverte o mesmo autorpara a existência de inúmeras interpretaçõesacerca do confronto soberania/integração noâmbito do Direito Internacional. Com efeito, háo argumento de que a integração implica umaformulação de soberania partilhada ou conjunta,em que

“parte da soberania nacional é sacrifica-da em prol de um reordenamento dasregras do jogo na área de planejamento etomada de decisões, onde cada órgãopúblico deve levar em consideração asorientações dos órgãos paralelos nospaíses vizinhos”9.

Outra proposição alude ao fato de que asrelações de

“direito comunitário da integração nãonegam, nem limitam, nem excluem a sobe-rania, senão que a elevam a um marcoampliado, em que estende ou prolonga opoder soberano do Estado em outrasmatérias que não teria, ainda que agoracompatibilizado com o poder soberano deoutro Estado membro. Em síntese, a inte-gração aumenta qualitativamente a sobe-rania dos Estados associados”10.

Para além de toda e qualquer teorização,parece claro que o conteúdo e o exercício dasoberania, sendo delineados por normas jurídi-cas de teor supranacionais, ficam sujeitos nãosó a alterações, reformulações e adequações,mas também a delimitações nas “distintas esfe-ras de competência legislativas, jurisdicionais eadministrativas, entre a ordem interna e essenovo ordenamento comum ou supranacional”11.

Não menos importante nos processos de in-tegração econômica e política que objetivam aconsolidação de um mercado comum regional éa necessidade também da integração jurídica e

da instituição de um Direito Comunitário supra-estatal. Essa tarefa já nasce com incontestesdificuldades. É o que se examinará a seguir.

3. Pluralidades nacionais e comunitarismojurídico na América Latina

É deveras desafiador projetar um DireitoComunitário para as nações latino-americanas,não só marcadas pelo forte legalismo de cunhonacional-monista, mas, sobretudo, pela históricatradição do Estado como fonte privilegiada deprodução legislativa. O modelo de Direito iden-tificado com a lei e como elaboração exclusivado Estado vem dominando oficialmente os paísesperiféricos da América do Sul. Constata-se que,em momentos distintos de sua evolução, a cultu-ra jurídica estatal sempre foi profundamenteinfluenciada pelas diretrizes do Direito coloni-zador luso-hispânico – segregador e discrimi-natório com relação à população nativa – reve-lando, mais do que nunca, a imposição, asintenções e o comprometimento da estrutura eli-tista de poder. Desde o início da colonização,além da marginalização e do descaso pelas prá-ticas costumeiras de uma justiça nativa e local,a ordem normativa ibérica impõe as condições eas necessidades do projeto colonizador domi-nante12. A formação dos sistemas jurídicos lati-no-americanos que passaram por processos decodificação ao longo do século XIX e nos pri-mórdios do século XX resulta diretamente dolegado jurídico romano com os acréscimos pos-teriores da herança latina (Direito Castelhano eIndiano, Ordenações Portuguesas e Codifica-ção Napoleônica) e da herança germânica. É poressas razões que se pode conceber e teorizaracerca da existência de um sistema jurídicolatino-americano13. Com efeito, para uma possí-vel unidade jurídica, parte-se do pressupostode que suas fontes e seus principais institutosadvêm da família romana e de que sua formaliza-ção passa por procedimentos similares: é escritoe técnico, sendo suas normas produzidas egarantidas pelo Estado. Além disso, há que seconsiderar que o desenvolvimento do DireitoLatino-Americano está, como assinala PauloNetto Lobo, modelado

“por elementos europeus de mesma raizhistórica e cultural (os povos da Penín-

8 CASELLA, Paulo B. op. cit., p. 89.9 GRABENDORFF, Wolf. “A Integração da

América Latina na Perspectiva Européia”. In: PLÁ,Juan A. (Org.). O Mercosul e a Comunidade Euro-péia – Uma Abordagem Comparativa. p. 135

10 DROMI, R., EKMEKDJIAN, M., RIVERA,J. op. cit., p. 40.

11 CASELLA, Paulo B. op. cit., p. ?.

12 Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. PluralismoJurídico: Fundamentos de uma Nova Cultura doDireito. 2. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1997. p. 72,74 e 75.

13 Ver, a propósito: DROMI, R., EKMEKDJI-AN, M., RIBERA, J., op.cit., p. 269-270.

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sula Ibérica), a que se agregaram costu-mes indígenas e africanos, o que dá certapeculiaridade aos direitos de nossospovos. A recepção de modelos oriundosdo sistema de common law, máxime decertos tipos contratuais, tem sido unifor-me, no quadro amplo das trocas interna-cionais e do processo de globalização,mas não tem modificado a naturezacomum do sistema jurídico dos paíseslatino-americanos. Outro dado importantefoi a recíproca influência dos codificado-res, como se deu, por exemplo, com a ado-ção de partes inteiras do Esboço deTeixeira de Freitas pelo Código CivilArgentino, com repercussões na legisla-ção civil do Uruguai e do Paraguai. (...)Na perspectiva da harmonização, pode-se afirmar que há um tronco comum nodireito civil dos países do Mercosul, quepode ser aprofundado”14.

Uma problematização crítica que se podelevantar no âmbito interno dos sistemas jurídi-cos nacionais da região é a de que a legalidadeestatal, de cunho ideológico liberal-individua-lista, não consegue absorver satisfatoriamenteas novas demandas e os novos conflitos sociais.Assim, urge pensar num referencial de normati-vidade compatível com as prioridades das socie-dades periféricas que se encaminham para o finaldeste segundo milênio. Isso representa a deci-siva opção e o estabelecimento de novos con-ceitos e princípios, de um “outro” paradigma deDireito que não mais leve em consideração arigidez do normativismo formalista interno e odogmatismo do Estado nacional como únicoórgão legítimo para produzir juridicidade15. Tra-ta-se, por conseguinte, de definir uma outralegalidade que tenha seu núcleo central na cons-tituição de um Direito Comunitário, viabilizadorda coexistência e da unificação de normas ge-rais para as diferentes comunidades nacionaisintegradas. Ainda que a total unificação jurídi-ca seja quase impossível, é imprescindível quese persigam e se busquem mecanismos legaisflexíveis que venham a ser adotados e respeita-dos pelos países da Comunidade regional. Uma

vez colocado o Direito como instrumento essen-cial da institucionalização do processo de inte-gração, importa assegurar tanto sua “existênciae continuidade” quanto sua “interpretação eaplicação”. Nesse aspecto, o já consagradointernacionalista Paulo B. Casella escreve que o

“ponto de partida de tais normas supra-nacionais, compondo ordenamento novo,ao mesmo tempo, e por definição, autô-nomo e integrado aos ordenamentos jurí-dicos nacionais, dá-se pela assinatura eratificação de tratados constitutivos, emrazão dos quais os Estados-membroslimitam voluntariamente, em razão dos ob-jetivos comuns, (...) sua soberania jurídi-ca e o exercício de sua competência, tantono que diz respeito à criação e promulga-ção de normas, que se traduz pela trans-ferência de parcela da competência legis-lativa, como em matéria de sua interpreta-ção e aplicação, que se traduz pela trans-ferência de parcela da competência juris-dicional (...)”16.

Pela inovação do campo que se abre, o Di-reito Comunitário das organizações intergover-namentais inaugura, com suas normas que agre-gam elementos de ordens jurídicas plurais, umanova esfera de enquadramento jurídico quetranscende a dicotomia clássica, direito internoe direito internacional, projetando-se no quealguns publicistas chamam de Direito da Inte-gração.

Parece claro que, não obstante todas as difi-culdades estruturais, os conflitos regionais eos impasses institucionais, a consolidação eco-nômica, política e jurídica de um mercado comumnão só é necessária como imperiosa para o futurodos países da Região Sul da América Latina. Osesforços de integração interamericana, de parcom seus indiscutíveis efeitos econômicos, sãotambém plenamente justificáveis, tanto porestimular a criação de estruturas jurídicas maisflexíveis e autônomas, quanto por favorecer ofortalecimento de instituições nacionais maisavançadas democraticamente e mais transparen-tes. Como assevera ainda o erudito Paulo B.Casella,

“além e acima das vantagens específicaspara eficiência e continuidade do proces-so de integração, a ocorrência de normassupranacionais e a automaticidade davigência e obrigatoriedade destas em con-texto como o do MERCOSUL poderia ser

14 LOBO, Paulo L. Netto. “As Relações de DireitoCivil nos Processos de Integração”. p.4. Para um apro-fundamento sobre a relação entre o sistema jurídicolatino-americano e o Direito romano, observar:LANDIM, José F.P. (Coord.). Direito e Integração:experiência latino-americana e européia. p.05-03.

15 Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. op. cit.,p.105. 16 CASELLA, Paulo B. op. cit., p. 231.

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marco de evolução institucional e con-ceitual dos mais interessantes, na medidaem que poderia representar, para os Esta-dos Partes envolvidos na empreitada, aocasião histórica de reformular bases econceitos de seus ordenamentos nacio-nais, reduzindo o peso e o papel do Esta-do no e sobre o ordenamento jurídico.Precisamos, em suma, de menos Estado ede mais Direito”17.

De fato, na medida em que as relações (soci-ais, econômicas, políticas e culturais) dos povoslatino-americanos e os direitos nacionais seintensificam, o Mercosul está destinado a terum papel estratégico, essencial e inevitável parao desenvolvimento e o fortalecimento regionaldo Sul da América. Se ainda não há um DireitoComunitário18 sistematizado e acabado, o pro-cesso de integração dos povos latino-america-nos parece ser inexorável nos primórdios do pró-ximo milênio; uma integração econômica e polí-tica que caminhará, lado a lado, com a integra-ção jurídica, delineada por uma prática capaz deadequar pluralismo, harmonização e unificaçãode juridicidades emergentes.

4. Considerações finaisA apreciação de problematizações atinentes

aos processos de integração e das possibili-dades de um sistema jurídico comunitáriosupranacional permite, no desfecho da sucintareflexão, deixar consignado que o avanço rumoao Direito Comunitário implica um novo conceitode cidadania. Não se trata mais de compreendê-la tão-somente no viés do formalismo jurídicoliberal-individualista, próprio da tradição internados Estados-Nacionais, mas de uma conceitua-ção mais elástica, prática e coletiva. O êxito deuma integração latino-americana depende inter-namente de economias estáveis, de instituiçõespolíticas solidamente democráticas e do funcio-namento de um aparato normativo eficaz no con-trole, regulação e aplicação da justiça. Daí a con-dição básica de estabelecer instituições commaior controle democrático e com mecanismoslimitadores dos poderes estatais, deslocando aresponsabilidade para a sociedade civil e envol-vendo, ao máximo, a coletividade como um todo,com participação cotidiana e permanente doscidadãos. O esforço de criação da democracia

supranacional19 e da cidadania comunitária daráconsistência a formas de convivência local eregional mais transparentes, mais participativase mais solidárias. Fundada na cooperação dosagentes integrados no respeito às diversidadeslocais e na harmonização dos interesses comuns,a cidadania comunitária reduz diferenças e apro-xima complementaridades, propiciando o reco-nhecimento de novos direitos, da proteção einviolabilidade dos direitos humanos e da rein-venção de mais direitos de participação, de maisdireitos econômicos e sociais para os cidadãoslatino-americanos integrantes do Mercosul20.Reconhecer o significado de um mercado co-mum regional para os países latino-americanosé escolher, hoje, a melhor alternativa de ummodelo viável de cooperação e convivência,“entre esferas de atuação e competência,entre instituições comuns (...)”21. A exatamedida da renovação está para ser colocadaa partir da superação radical do dualismo pre-dominante das estruturas políticas e econô-micas tradicionais: o livre e selvagem merca-do desvencilhado do justo e democráticocontrole dos cidadãos ou o histórico dirigis-mo estatal, arbitrário e onipotente que tutelae paralisa as sociedades periféricas.

Enfim, ao finalizar, tomam-se uma vez maisas considerações de Paulo B. Casella, que, comrazão, aclama que a realidade do Mercosul colo-ca os latino-americanos

“diante do estimulante desafio de trans-formar mentalidades, ideologias públi-cas, as relações entre o Estado e os ci-dadãos, as modalidades de intervençãodo Estado na economia, em suma, da-dos que vêem caracterizando a históriados países que o integram há séculos,e devemos efetuar tais transformaçõesrapidamente, porque percebemos estardiante de opções irreversíveis para ofuturo. Do erro ou acerto de tais opçõesdependerá a manutenção ou o declíniode posições e competitividade em or-dem econômica e tecnológica mundialem plena movimentação”22.

17 CASELLA, Paulo B. op. cit., p. 228 e 240.18 LOBO, Paulo L. N., op. cit., p. 11.

19 Cf. VASCONCELOS, Álvaro (Coord.). Portu-gal no Centro da Europa. p. 166-172.

20 Ver: VASCONCELOS, Álvaro (Coord.). op.cit., p. 167.

21 CASELLA, Paulo B. op. cit., p. 242.22 CASELLA, Paulo B. op. cit., p. 242-243.

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* Notas bibliográficas conforme original.

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Observações sobre o controle daconstitucionalidade das leis no Brasil

1. Introdução. A politização do Judiciário:fenômeno do Estado democrático constitucional.A Jurisdição Constitucional. Tentativa de JamesMadison de colocar na Constituição americana ojudicial veto. Embaraços políticos. Compromissodos constituintes com a ratificação daConstituição. John Marshall e o Caso Marburyv. Madison. Os “midnight appointees” do GovernoAdams. Antecedentes aragoneses e ingleses.

Um dos fenômenos mais marcantes da evo-lução do Estado democrático de direito consti-tucional é a ascensão do Judiciário como umautêntico terceiro poder político1. Nos EstadosUnidos, como se verá mais para a frente, a poli-tização do Judiciário não estava prevista peloconstitucionalismo e se desencadeou por inici-ativa da Suprema Corte no início do século XIX.

Adhemar Ferreira Maciel é Ministro do STJ.

SUMÁRIO

1. Introdução. A politização do Judiciário: fenô-meno do Estado democrático constitucional. A Juris-dição Constitucional. Tentativa de James Madisonde colocar na Constituição americana o judicial veto.Embaraços políticos. Compromisso dos constituin-tes com a ratificação da Constituição. John Marshalle o Caso Marbury v. Madison. Os “midnight appo-intees” do Governo Adams. Antecedentes aragone-ses e ingleses. 2. Controle dos atos normativos noBrasil: Império, Primeira e Segunda Repúblicas. ASubcomissão do Decreto n. 21.402/1932. O papel doSenado Federal (Constituição de 1934): uma tentati-va de suprir a falta do stare decisis anglo-america-no? O controle concentrado. Evolução. Constituiçãode 1988. Coexistência dos sistemas difuso e concen-trado. Distorções. A ação direta de inconstitucionali-de por ação e por omissão. A ação de constituciona-lidade da Emenda Constitucional n. 3/93. Efeitos.

ADHEMAR FERREIRA MACIEL

NOTAS AO FINAL DO TEXTO.

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Em outros Estados – República Federal da Ale-manha, França, Itália, Índia, Paquistão – as cons-tituições do pós-Segunda Guerra Mundial se

“esforçaram deliberadamente para outor-gar ao poder judiciário uma posição ele-vada no processo do poder que não éinferior à dos detentores tradicionais dopoder, governo e parlamento, e que, emcertos casos, (lhes) é até superior”2.

Nos Estados Unidos, antes da consolida-ção do New Deal, houve abuso do Judiciário,ficando o acontecimento conhecido como “ju-diocracia” ou “governo dos juízes”3. Daí a bal-da de “third chamber” à Suprema Corte.

O “controle de constitucionalidade de leis”é decorrente da existência de uma lei básica, queestrutura os órgãos estatais, e garante os direi-tos dos cidadãos contra as investidas do poderpúblico, inclusive via legislativa4. Onde não exis-te essa distinção, essa preeminência de uma leiem relação a outras, não se pode falar em “con-trole” ou, na terminologia portuguesa, em “fis-calização”5. O controle é exatamente uma técni-ca oficial de aferição de conformidade de umanorma em relação a outra, que lhe serve de esta-lão. Pode-se dizer, na acepção kelseniana, que aConstituição é uma Grundnorm (“norma-fun-damento”), isto é, uma “norma pressuposta”, enão propriamente uma “norma estabelecida”6.Em Estados que não dispõem de uma constitui-ção formal, não se pode falar validamente emcontrole jurisdicional de leis. Tais “sistemas ju-rídicos e a tradição existente impedem que surjae se implante o controle judicial”7.

Vamos nos preocupar, por causa de sua im-portância, apenas com o “controle jurisdicio-nal”, “judicial”, “jurídico” ou, dentro da prefe-rência germânica, da “jurisdição constitucional”(Verfassungsgerichtsbarkeit)8. O “controle po-lítico” stricto sensu, isto é, aquele feito pelo Exe-cutivo ou pelo Legislativo, por sua diminuta im-portância no nosso sistema de controles, nãoserá por nós enfocado9. Num sentido mais am-plo, pode-se dizer que o “controle político” éexercido por qualquer órgão que não pertençaao Poder Judiciário10.

O controle jurisdicional dos atos legislati-vos e administrativos, como se sinalizou maisacima, não é coisa nova, pois já anda beirando acasa dos 200 anos. Foi uma audaciosa e genialjogada política de John Marshall, o quarto pre-sidente da Suprema Corte dos Estados Unidos11,no ano de 1803. Refiro-me ao conhecido casoMarbury v. Madison12. A questão judicial, um

writ of mandamus ajuizado por algumas pesso-as nomeadas justices of the peace13 no apagardas luzes do governo federalista de John Ada-ms. Os autores da ação judicial ficaram jocosa-mente conhecidos como midnight appointees,ou seja, “os nomeados da calada da noite”. Éque John Marshall, então secretary of State doGoverno John Adams, ficou até de madrugada,auxiliado por seu irmão James Marshall, preen-chendo e assinando títulos de nomeação de maisde quatro dezenas de Justices of the Peace. Nodia seguinte começava novo governo (ThomasJefferson), e Marshall teria que preparar, ainda,discurso que ia fazer como presidente (chief jus-tice) da Suprema Corte. Cerca de dezesseis títu-los de nomeação não foram preenchidos e en-tregues. Ficaram por conta do novo secretaryof State, James Madison, que, a mando de Je-fferson, recusou-se a fazer a entrega.

O ajuizamento do writ se fez diretamente naSuprema Corte, tal como então dispunha a LeiOrgânica do Judiciário de 1789 (que serviu deinspiração para nosso Decreto 848/1890). Osautores do mandamus encabeçado por WilliamMarbury pediram que o novo secretary of State(Madison) lhes entregasse seus títulos de no-meação a fim de que eles pudessem tomar pos-se. A Suprema Corte, com metade (três) de suacomposição (seis), deu-se por incompetentepara julgar o caso. Decretou a inconstituciona-lidade do dispositivo do Judiciary Act, uma “lei”elaborada pelo “Congresso Nacional”. Aindaque o Juiz Marshall tenha reconhecido que osimpetrantes tivessem direito à nomeação, a ques-tão ficou presa à incompetência da Corte14.

Marshall, relator do acórdão, disse que oart. III da Constituição dava competência aoPoder Judiciário para julgar todos os “casos”de aplicação da lei e da eqüidade, inclusive, evi-dentemente, da própria Constituição. “Isso éda própria essência da atividade judicial” (Thisis of the very essence of judicial duty)... os tri-bunais do art. III não podem ser forçados a “fe-char seus olhos diante da Constituição, e versomente a lei” (... to close their eyes on the cons-titution, and see only law)15.

É oportuno lembrar que James Madison, o“pai” da Constituição dos Estados Unidos, che-gou, é certo, a engendrar um mecanismo de ju-dicial veto na constituinte de Filadélfia. Nãologrou êxito16. A maior preocupação dos cons-tituintes era com a ratificação da Constituiçãopelos Estados-Membros. A divisão entre “fe-deralistas” e “antifederalistas”, “escravagistas”

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e “anti-escravagistas” era grande. Uma cisãoradical poderia inviabilizar a ratificação daConstituição. Daí a presença propositada dosilêncio, de evasivas, de elipses, de formasvagas17.

Também não deixa de ser oportuno recor-dar que nos Estados Unidos, até o adventodo caso Nashville, C. & St. L. Ry versusWallace18, de 1933, os tribunais, de um modogeral, não julgavam ações com pedido pura-mente declaratório. Invocava-se, para tanto,a Lei Orgânica do Judiciário (1789). O JusticeBrandeis, em 1930, num caso concreto, frisouque o que o autor da ação queria era uma“decisão declaratória” (declaratory judg-ment), “que se achava além do poder conferi-do ao judiciário federal”19. Em 1934, para es-pancar as dúvidas, o Congresso baixou aFederal Declaratory Judgement Act, dandocompetência para que as cortes federais de-cidissem sobre pedido declaratório. Em Aet-na Life Ins. Co. versus Haworth20, caso jul-gado em 1937, a Suprema Corte manifestou-se sobre a Lei do Julgamento Declaratório,dizendo que o Congresso havia agido dentroda delegação que a Constituição lhe dava:estabelecer instrumentos processuais paraque os tribunais federais decidissem casos econtrovérsias21. A ação declaratória, à evi-dência, deveria ter um substrato concreto22.

É claro que o controle jurisdicional dosatos normativos não foi uma “invenção”marshalliana ou kelseniana. Como observacom propriedade Dominique Rousseau23, ain-da que a “réflexion théorique” do controlecentralizado possa ser atribuída ao austríacoHans Kelsen, foram acontecimentos políti-cos que, através de sucessivas etapas, leva-ram à criação de cortes, conselhos ou tribu-nais constitucionais na Europa.

Tem-se notícia de que no Reino de Ara-gão (Espanha), no século 13, já existia umarremedo de jurisdição constitucional: umacorte constitucional, denominada Consisto-rio, presidida por um justicia mayor, encar-regava-se de controlar as leis do reino (fue-ros)24. Seus juízes gozavam de inamovibilida-de. A Inglaterra, nessa época, mantinha acen-tuado intercâmbio cultural e comercial com oReino de Aragão. É relevante lembrar que,antes da derrota da Grande Armada, a Espa-nha “era o maior, o mais rico e territorialmen-te mais espalhado império da terra”25. A In-glaterra – utilizando-me de palavras de An-

dré Maurois26 – era uma “potência de segun-da ordem”.

Na própria Inglaterra, no século XVII, SirEdward Coke pregava que cabia aos tribu-nais controlar os atos da Coroa. Tentou –embora não tenha conseguido, e até corridorisco de vida – submeter também os atos doParlamento ao controle do Judiciário, afirman-do que aos juízes cabia interpretar o commonlaw ou the law of the land27. Coke malogrou.Em 1689, com a imposição do Bill of Rights aGuilherme de Orange, ficou definitivamenteconsagrada a supremacia do Parlamento, como reconhecimento de suas leis (statutes)como fonte independente de direito28.

Na França, por ocasião da elaboração daConstituição de 1793 (Ano I), foi proposta,infrutiferamente, a criação de um Grand JuryNational para controlar as leis e os atos doexecutivo, quando violadores dos direitos docidadão 29. Pela Constituição de 1791 (TítuloVII, art. 8º), apelava-se ingenuamente paraque essa tarefa ficasse sob a guarda

“... du Corps législatif, du roi et desjuges, à la vigilance des pères de fa-milie, aux épouses et aux mères, àl’affection des jeunes citoyens, au cou-rage de tous les Français”30.

Desde 1990, tem-se debatido no Parlamen-to francês a necessidade de controle a pos-teriori da constitucionalidade dos atos nor-mativos, pois lá o controle se faz a priori: noperíodo que medeia entre a aprovação da leie sua publicação no diário oficial. Depoisdessa fase, não se pode mais argüir a incons-titucionalidade. O controle é feito pelo Con-seil Constitutionnel, órgão composto porjuízes nomeados pelo presidente da Repúbli-ca (3), pelo presidente do Senado (3) e pelopresidente da Assembléia Nacional (3)31. Seucontrole se aproxima mais do “controle polí-tico” do que do “controle jurisdicional”32. Osdefensores do controle preventivo da Cons-tituição de 1958 alegam que tal sistema tem avantagem de ser rápido, simples, e sobretu-do de trazer segurança às relações jurídicas.

“Para o professor Jean-Jacques Du-peyroux, ensejar na França o controlea posteriori será imediatamente sub-meter ao jogo da censura constitucio-nal seguimentos inteiros de direitosocial, fiscal, de estrangeiros, das su-cessões... e criar, por conseqüência,uma desordem insondável , segundo,expressão do professor Jean Rivero”33.

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2. Controle dos atos normativos no Brasil:Império, Primeira e Segunda Repúblicas. ASubcomissão do Decreto n. 21.402/1932. Opapel do Senado Federal (Constituição de 1934):uma tentativa de suprir a falta do stare decisisanglo-americano? O controle concentrado.Evolução. Constituição de 1988. Coexistênciados sistemas difuso e concentrado. Distorções. Aação direta de inconstitucionalide por ação e poromissão. A ação de constitucionalidade da EmendaConstitucional n. 3/93. Efeitos.

Como se sabe, no Brasil o controle judicialdas leis só se deu com o advento da Repúbli-ca34. No Império, pela Carta de 1824 (art. 13, 8 º eart. 9º), o controle era feito pelo próprio Legis-lativo. Era, de resto, a sistemática adotada naEuropa.

Quando se elaborou o Decreto n. 848/189035,inspirado no Judiciary Act americano, e a Cons-tituição brasileira de 189136, também modeladapela Constituição de Filadélfia, o controle daconstitucionalidade das leis pelo Judiciário, nosEstados Unidos, já contava mais de oito déca-das, ainda que tenha, por três vezes, pelo me-nos, sofrido sérios e perigosos reveses37. De lápara cá, tanto nos Estados Unidos quanto noBrasil, o controle dos atos públicos pelo Judici-ário se foi modificando. Nos Estados Unidos,mais arrastada e lentamente; no Brasil, como severá a seguir, de maneira rápida e, até por quenão dizer, atabalhoada. É fácil explicar a diferen-ça: nos Estados Unidos, com a promulgação daConstituição de 1787, já vigorava o common lawinglês38, direito tipicamente “judicial” (judge-made law). Sua força estava assentada no “pre-cedente judicial” (stare decisis)39. Já no Brasilda República, o direito era tipicamente “legal”.Sua única fonte, pode-se dizer, era a lei.

Nos albores da República, Pedro Lessa, parajustificar o controle dos atos normativos peloJudiciário, e não pelo Legislativo, lembrava que

“(é) muito mais racional admitir que ostribunaes foram investidos da missão deservir de corpos intermediarios entre opovo e a legislatura, para, entre outros, ofim de manter a última dentro nos limitesassignalados á sua autoridade”40.

A Constituição, como lei fundamental, foifeita pelo povo. E é ela que dá a competência decontrole aos tribunais. As sentenças judiciais,pois, “devem antes ser reguladas pelas leis fun-damentaes que pelas secundarias”41.

Da Constituição de 1934 para cá, o nossosistema de controle jurisdicional de leis e atosnormativos se foi afastando do figurino clássi-co americano, e adquiriu feição própria. Hoje,temos um sistema sui generis, tipicamente bra-sileiro42. Ao lado do denominado “controle di-fuso”, de matriz americana, adotou-se também o“controle concentrado”, de procedência austrí-aca.

Como observa, com acerto, a Professora AdaPellegrini Ginover,

“(s)e é inegável que a previsão da coexis-tência do controle difuso e concentradode constitucionalidade torna o sistemabrasileiro bastante completo, é tambémverdade que algumas distorções surgemcomo conseqüência da referida coexistên-cia”43.

A coexistência dos dois sistemas, se bemque já sem as características genéticas, tem van-tagens... e desvantagens. O sistema difuso nãodeixa de ser mais democrático, pois a inconsti-tucionalidade é levantada pela via de exceçãopor qualquer das partes, pelo Ministério Pú-blico ou até pelo próprio juiz44. A possibilida-de de pressão política por parte do Executivo énula, diante da multiplicidade de órgãos judi-cantes e da falta de compromisso do juiz singu-lar, que galgou o cargo por concurso público45.O sistema concentrado, em que um único órgãose encarrega de resolver quanto à inconstitucio-nalidade da lei ou do ato normativo, tem a van-tagem de uniformização imediata da jurispru-dência e de ensejar o controle abstrato, sem apresença de interesse individual. Seu alcancesócio-político é maior, pois escapa do subjeti-vismo de partes e entra no objetivismo da defe-sa do estado democrático de direito. Tem a des-vantagem de ser o controle sem partes, em quefalta a dialética processual. A legitimidade ativapara a ação direta de inconstitucionalidade ain-da deixa a desejar46. É certo que na Alemanha,Portugal e outros países que adotam o controleabstrato a gama de legitimação ainda é mais res-trita do que no Brasil47.

Podemos dizer, em resumo, que, até a pro-clamação da Constituição de 1934, o controleera feito apenas incidenter tantum. Em outraspalavras, os sujeitos do processo levantavam aprejudicial da inconstitucionalidade do ato nor-mativo. Se acatada a inconstitucionalidade, ojuiz a declarava48, deixando de aplicar o disposi-tivo por ele tido por ofensivo à constituição.Sua decisão, se transitada em julgado, tinha,

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para alguns, efeitos ex tunc, para outros, efei-tos puramente ex nunc49. Como se tratava dequestão prejudicial, não fazia coisa julgada ma-terial50. A declaração, em outras palavras, eraendoprocessual: só valia para o processo emcurso (coisa julgada formal). Se houvesse outrapendenga entre as mesmas partes, envolvendoo mesmo assunto, o interessado tinha que co-meçar tudo de novo... A sentença – insistindomais uma vez – só valia para aquele processo,para aquele caso. Na hipótese de a decisão che-gar ao Supremo Tribunal Federal – o que se fa-zia mediante recurso extraordinário –, cabia aoSupremo manter a inconstitucionalidade, ounão. Era um controle a posteriori51.

A Constituição de 1934, como se falou rapi-damente, além de criar um controle concentra-do (ação interventiva ajuizada pelo procura-dor-geral da República para que o STF se mani-festasse sobre lei de intervenção federal nosEstados-Membros), instituiu mecânica substi-tutiva do stares decisis do direito americano: asuspensão, pelo Senado Federal (Art. 91, IV), ...“de qualquer lei ou ato... quando hajam sidodeclarados inconstitucionais pelo Poder Judici-ário”. Foi, inegavelmente, um meio engenhosode estender para casos futuros a declaração deinconstitucionalidade do Supremo Tribunal Fe-deral, o que não havia na Primeira República(1891/1930)52.

A questão da declaração de inconstitucio-nalidade pelo Supremo Tribunal Federal (CorteSuprema) levantou memoráveis e acirradas po-lêmicas entre os membros da Subcomissão deElaboração do Anteprojeto de Constituição, no-meada pelo Governo Provisório da SegundaRepública (Decreto n. 22.402/1932)53. Na 26ªSessão (2 de fevereiro de 1932, prorrogada), soba presidência de Mello Franco, ThemístoclesCavalcanti propôs emenda dando competênciaao Supremo Tribunal Federal para “declarar emthese a inconstitucionalidade das leis por meiode acção declaratoria, em virtude de provoca-ção das camaras legislativas ou de qualquer in-teressado”. João Mangabeira, ao votar, enalte-ceu a emenda, uma vez que tal medida viria esta-bilizar uma série de ações no mesmo sentido.Sugeriu, porém, um quorum de dois terços dosmembros da Corte. A alteração de Mangabeirafoi acolhida, em parte, por Oliveira Vianna, queconcedia legitimação ativa só à Ordem dos Ad-vogados. Na 44ª Sessão (6 de abril de 1933),veio à tona a questão do órgão competente para“suspender” a execução da lei tida por incons-

titucional pela Corte Suprema. Mangabeira pro-pôs alteração na proposta apresentada por Cas-tro Nunes, que atribuía tal tarefa ao ConselhoSupremo. Recordou que somente o Legislativo(Assembléia) poderia revogar lei declarada in-constitucional pelo Supremo Tribunal Federal,desde que por meio de uma maioria de dois ter-ços54. Aí estava plantado um mecanismo capazde suprir, pelo menos em parte, o mal advindode transplante de instituições jurídicas de siste-mas totalmente diferentes (common law). NosEstados Unidos, como se falou e se repete, afonte do direito estava praticamente nas deci-sões judiciais (judge-made law). No Brasil, aocontrário, nosso direito tinha como fonte a lei.Lá, no Norte, o juiz se orientava, obrigatoria-mente, pelos precedentes das cortes superio-res. Aqui, no Sul, ainda que os precedentes su-periores tivessem força moral, não eram vincu-lantes. Dentro da tradição romano-germânica, ojuiz era livre e estava preso somente à sua cons-ciência e à lei55. A fonte do direito não estavanos “casos” (cases), estava na “lei”.

A partir da Constituição de 1934, a CorteSuprema (esse era o nomen juris – art. 73) po-deria enviar a comunicação de inconstituciona-lidade por ela declarada ao Senado Federal, que,por sua vez, se assim o entendesse (“ato políti-co”, na melhor doutrina56), “suspendia” os efei-tos da lei ou do ato normativo57. A lei tida porinconstitucional, ainda de acordo com a melhordoutrina, não desaparecia do ordenamento jurí-dico. Ficava “suspensa”. Esse o ensinamentode Lúcio Bittencourt58 e de Ada Pellegrini Gri-nover59, 60. O Ministro Leitão de Abreu, em votocélebre, publicado na RTJ 82/791, cita o CorpusJuris Secundum, no sentido de que a lei tida porinconstitucional não é “nula” (void), mas so-mente “anulável” (voidable).

Em qualquer demanda futura, a parte inte-ressada poderia, como prejudicial, argüir a in-constitucionalidade do ato, tal como decididopela Corte Suprema e suspenso por resoluçãodo Senado. A função do Senado não era só de“publicidade” da decisão do Judiciário, tinhaforça extensiva61.

A partir da Constituição de 1934, como sefalou mais de uma vez, foi-se caminhando parao controle concentrado. A princípio, por meioda ação interventiva (CF, art. 34, III, c/c arts.102, I, a, e 129, IV). Com a Emenda Constitucio-nal n. 16/65, passamos a ter, também, o controleabstrato de leis e atos normativos62, modalida-de desenvolvida por Hans Kelsen para a Consti-

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tuição austríaca de 192063. Como observa FelixErmacora, professor da Universidade de Viena,

“(a) grande novidade do controle da cons-titucionalidade de 1920 foi que este con-trole se dava sobre as leis. Tal controlenão era possível sob o regime da Monar-quia. O Reischsgericht não era compe-tente para controlar as leis, por causa dopapel do monarca no procedimento legis-lativo e de sua posição no sistema cons-titucional na qualidade de órgão inviolá-vel e não responsável: o monarca tinha opoder de sancionar as leis. A Constitui-ção federal de 1920, em seu art. 140, previaque a Corte constitucional podia anular asleis federais e as leis dos Länder por causade sua inconstitucionalidade”64.

No controle concentrado, tal como origina-riamente esboçado na Áustria, cabia a um tribu-nal constitucional, que não integrava o PoderJudiciário, dizer quanto à inconstitucionalidadede lei ou do ato normativo65. A técnica mais di-fundida, que se apartou do figurino original,consistia, no caso concreto, em o juiz da causaparalisar o andamento do feito e aguardar o pro-nunciamento do juízo constitucional. Esse, ocontrole da constitucionalidade, repita-se, numcaso concreto, feito a posteriori. O modelo,como já se falou por alto, era o controle abstra-to (abstrakte Kontrolle): o órgão ou pessoaativamente legitimados ajuizavam a ação direta-mente na corte constitucional. Se a corte jul-gasse o ato normativo inconstitucional, decla-rava-o como tal. O efeito dessa declaração, quese entendia de natureza constitutiva, valia profuturo. Tinha alcance erga omnes, podendo,pois, ser invocado por qualquer interessado. Ocontrole era a priori.

A matriz austríaca, porém, foi adquirindo co-lorido nacional nos países que optaram por essesistema. Foi o que se deu com a Itália e a Alema-nha do pós-Segunda-Guerra Mundial. Comoexplica Mauro Cappelletti, na Alemanha, maisdo que na Itália, entende-se que a declaração deinconstitucionalidade pelo Tribunal FederalConstitucional (Bundesverfassungsgericht) temeficácia geral (Allgemeinwirkung), operando extunc66. Em Portugal, no controle incidental (con-creto), o órgão judicante, se tiver a norma porcontraveniente à constituição, profere senten-ça sobre o incidente. Mediante recurso, cabeao Tribunal Constitucional apreciar tão-somen-te “o seguimento da decisão judicial relativo àquestão da inconstitucionalidade”67.

No Brasil da Constituição de 1988, temosum sistema misto ou híbrido de controle da cons-titucionalidade das leis ou de atos normativos.

Somente o Supremo Tribunal (ou os TJs, emrelação à lei municipal ou à lei estadual em rela-ção à constituição estadual)68 tem competênciapara declarar a inconstitucionalidade de lei oude ato normativo federal ou estadual (CF, art.102, I, a) in abstracto. Daí não se admitir recla-mação ao Supremo para que ele garanta, nostermos do art. 102, II, I, a “autoridade de suadecisão”69.

Por influência da Constituição da RepúblicaPortuguesa (art. 283º), temos, também, a “açãode inconstitucionalidade por omissão” (art. 103,§ 2º). Trata-se de ação proposta não para decla-rar uma norma “inconstitucional”, mas para com-bater o “silêncio legislativo”, na expressiva con-cisão de Gomes Canotilho70.

A Emenda Constitucional n. 3/1993 ensejouo ajuizamento no Supremo Tribunal Federal deuma ação declaratória de constitucionalidadede lei ou ato normativo federal. Nesse caso,como acontece com sua irmã mais velha (açãodireta de inconstitucionalidade), o controle sefaz abstratamente, isso é, independentementeda existência de caso concreto. Dessarte, tam-bém não se necessita da intermediação do Se-nado Federal para que a decisão declaratóriatenha força erga omnes. A sentença da Supre-ma Corte, uma vez definitiva, já opera per seipsa71.

Diferentemente da ação direta de inconsti-tucionalidade, a ação declaratória de consti-tucionalidade, por ter efeito vinculante (CF, art.102, § 2º), pode ser invocada por meio de recla-mação72. Com o Professor Celso Bastos, aindaque contra a jurisprudência, penso que não sepode dar efeito paralisante a liminar em açãodeclaratória de constitucionalidade: o § 2º falaem “decisões definitivas de mérito”73.

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Notas1 LOWENSTEIN, Karl. Teoría de la constituci-

ón, 2. ed.. Trad. de Alfredo Gallego Anabitarte. Bar-celona: Ariel, 1970, p. 304.

2 Id. ibidem.3 Id. ibidem.4 “A criação de um Parlamento eleito pelo povo

não se revela uma garantia suficiente para a prote-ção dos direitos do povo e de seus cidadãos”(Cf.SCHLAICH, Klaus. Procédures et techniques deprotection des droits fondamentaux - tribunal cons-titutionnel fédéral allemand in Cours constitutio-nnelles européennes et droits fondamentaux, co-letânea organizada por Louis FAVOREU. Paris:Économica, Presses Universitaires D’Aix-Marsei-lle, 1982, p. 106).

5 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitu-cional - introdução à teoria da constituição, tomo II,2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, Limitada, 1988,pp. 310 e seg.

6 KELSEN, Hans. Teoria geral das normas (All-gemeine Theorie der Normen). Trad. de José Floren-tino Duarte. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,1986, p. 328.

7 LOEWENSTEIN, Karl, ob. cit. p. 316. Cf.,ainda, SANTI ROMANO. Princípios de direito cons-titucional geral. Trad. de Maria Helena Diniz. S. Pau-lo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 390.

8 Ao falar sobre a “jurisdição constitucional”,Konrad HESSE lembra que, no ordenamento consti-tucional da Lei Fundamental, cabe aos tribunais nãosó a tarefa da defesa do direito, mas também a daampliação da proteção jurídica bem como a funçãode controle (Grundzüge des Verfassungsrechts derBundesrepublik Deutschland. 20. ed. Heidelberg: C.F.Müller , 1995, p. 239). Mauro CAPPELLETTI ob-serva que o tema da constitucionalidade de leis não seidentifica com o da jurisdição constitucional, “nãorepresentando senão um dos vários possíveis aspec-tos da assim chamada justiça constitucional, e, nãoobstante, um dos aspectos certamente mais impor-tante” (O controle judicial de constitucionalidade dasleis no direito comparado. Trad. de Aroldo PlínioGonçalves. Rev. de José Carlos Barbosa Moreira.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, pp. 23 eseg.).

9 Ainda que não se possa falar propriamente em“lei”, o presidente da República, quando da sançãodo “projeto de lei” (Constituição, art. 84, incisos IVe V), exerce seu veto power de controle de constitu-cionalidade.

10 Cf. GABINO ZIULU, Adolfo. Derecho cons-titucional., tomo I - principios y derechos constituci-onales. Buenos Aires: Depalma, 1997, p. 107.

11 O primeiro presidente (chief justice) foi JohnJay, um dos autores de O Federalista (Federalist Pa-pers). Quando tinha 43 anos de idade, foi nomeado porGeorge Washington para a Suprema Corte. Ainda comopresidente, exerceu missão diplomática em Londres.Por ter sido escolhido governador de Nova York, dei-xou o cargo em 1795. Os dois seguintes presidentesforam John Rutledge e Oliver Ellsworth, também no-meados por Washington (Cf. The Supreme Court Jus-tices - illustrated biographies - 1789-1993. Ob. editadapor Clare CUSHMAN: Washington, D.C.: Congressi-onal Quarterly, 1993). Erwin CHEMERINSKY, po-rém, diz que Marshall foi o “terceiro” (third) presi-dente da Suprema Corte dos Estados Unidos (Cf. Cons-titutional law. New York: Aspen Law & Business, 1997,p. 37). Marshall, ao afirmar que os Tribunais eramapenas um instrumento da lei, e nada mais podiamdesejar, acabou por garantir, com quatro decisões, en-tre outras, o futuro para a “Suprema Corte, a Consti-tuição e o País, sem as quais (decisões), indubitavel-mente, a Nação não teria crescido e prosperado, comoaconteceu” (“Marshall handed down, among manyothers, four of the most momentous decisions in thehistory of, and the future for, Court, Constitution, andcountry, without which it is at best doubtful that thenation would have grown and prospered as it has” inABRAHAM, Henry J., The judicial process - an in-troductory analysis of the courts of the United States,England, and France. New York: Oxford UniversityPress, 1986, p. 360).

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Brasília a. 35 n. 140 out./dez. 1998 275

12 5 U.S. (1803).13 O justice of the peace, embora possa encarre-

gar-se de “casamentos” e ter “jurisdição em peque-nas causas”, não corresponde com exatidão ao nosso“juiz de paz”. Muitas vezes suas funções equivalemàs do nosso oficial de justiça. Daí ter preferido nãotraduzir a expressão, acolhendo conselho de GustavRADBRUCH em sua pequena grande obra Der Geistdes englischen Rechts (El espíritu del derecho inglés.Trad. espanhola por Fernando Vela. Madrid: Revistade Occidente, 1958, p. 17).

14 POLETTI, Ronaldo (Controle da constitucio-nalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p.45) diz que Marshall, antes de decretar a incompe-tência da Corte, teria decidido “a causa quanto aomérito, declarando o direito de MARBURY à possedo cargo de Juiz. Com isso, tornava pública sua opi-nião, e a da Suprema Corte”. Dominique ROUS-SEAU, por sua vez, enfatiza que John Marshall“déclare que la loi de 1789 accordant à la Cour suprê-me le droit d’imposer la nomination de juges fédérauxest contraire à la Constitutuion et que la Cour ne peuten conséquence examiner la demande de Marbury,celui-ci gardant cependant la possibilité d’assigner leMinistre ... devant un autre tribunal pour obtenirréparation de son juste grief” (La justice constitution-nelle en Europe. Paris: Montchrestien, 1992, p. 16).

15 Cf. TRIBE, Laurence H. Constitutional choi-ces. Cambridge, Mass.: Harvard University Press,1985, p. 52.

16 Cf. WHYTE, John D. in Pays de common lawna coletânea Le contrôle juridictionnel des lois, pu-blicado por Louis FAVOREAU e John-AnthonyJOLOWICZ. Paris: Économica, 1986, p. 157.

17 Cf. ROUSSEAU, Dominique, ob. cit., p. 14.18 288 U.S. 249 (1933).19 Cf. CHEMERINSKY, ob. cit., p. 54 (To grant

that relief is beyond the power conferred upon thefederal judiciary).

20 300 U.S. 227, 239-240 (1937).21 Cf. The Constitution of the United States of

America — analysis and interpretation, obra editadapor Johnny H. KILLIAN. Washington: Library ofCongress, 1987, p. 691.

22 Nos Estados Unidos, não se dispõe de umaactio popularis, em que o cidadão possa, no interessedifuso da coletividade, provocar o órgão judicante.Exige-se, sempre, um “interesse direto pessoal”(SCHWARTZ, Bernard. Direito constitucional ame-ricano. Trad. de Carlos Nayfeld. Rio de Janeiro: Fo-rense, 1966, p. 191).

23 Ob. cit., p. 13.24 Cf. FAIRÉN GUILLÉN, Victor. Temas del or-

denamiento procesal, tomo I. Madrid: Tecnos, 1969,pp. 134 e seg.

25 “before the defeat of the Armada Spain was thegreatest, richest, farthest-flung empire on earth...”

(DURANT, Will e Ariel. The story of civilization: 7 -The age of reason begins. New York: MJF Books,1961, p. 274).

26 História da Inglaterra. Trad. de Carlos Do-mingues. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Ed., p. 217.

27 Thomas Hobbes, o precursor do positivismojurídico, escreveu uma obra contra a supremacia dacommon law, tal como defendida por Coke (Cf. BO-BBIO, Norberto, O positivismo jurídico - lições defilosofia do direito. Trad. de Márcio Pugliesi. S. Pau-lo: Ícone, 1996, p. 35).

28 Cf. PINTO, Roger. Éléments de droit constitu-tionnel, 12. ed. Lille: Morel & Corduant, 1952, p. 79.

29 Cf. HORTA, Raul Machado. Estudos de direi-to constitucional. Belo Horizonte: Livraria Del ReyEditora, 1995, p. 149.

30 Les constitutions de la France depuis 1789.Paris: GF - Flammarion, 1979, p. 67.

31 Os ex-presidentes da República também fa-zem parte do Conselho (Cf. ROUSSEAU, Domini-que, ob. cit., p. 51).

32 PIZZORUSSO, Alessandro. Curso de dere-cho comparado. Barcelona: Editorial Ariel S/A, 1987,p. 131.

33 ROUSSEAU, Dominique, ob. cit., pp. 80 e 81.(Pour le professeur Jean-Jacques Dupeyroux, ou-vrir en France le contrôle ‘a posteriori’ serait immé-diatement soumettre au jeu de la censure constitutio-nnelle des pans entiers du droit social, fiscal, desétrangers, des successions... et créer en conséquenceune ‘pagaille insondable’ selon , cette fois, le mot duprofesseur Jean Rivero).

34 O Decreto n. 848, de 11 de outubro de 1890,calcado do Judiciary Act norte-americano de 1789,dá, no art. 9º, a competência originária e também re-cursal (o recurso extraordinário, que então não tinhanome) do STF para julgar os atos contrários a tratadoou convenção, e também contrários à própria Consti-tuição. A Lei n. 221, de 20 de novembro de 1894, noart. 13 também era expressa: “Os juízes e tribunaesfederaes processarão e julgarão as causas que se fun-darem na lesão de direitos individuaes por actos oudecisão das autoridades administrativas da União”.

35 O art. 3º consagrou o controle judicial comodefesa. Dispunha: “Na guarda e applicação da Cons-tituição e das leis nacionaes a magistratura federal sóintervirá em especie e por provocação da parte”.

36 “Do Poder Judiciário... Art. 59. Ao SupremoTribunal Federal compete I. Processar e julgar.....”.“Art. 60. Compete aos juizes ou Tribunaes Federaesprocessar e julgar: a) as causas em que alguma daspartes fundar a acção, ou a defesa, em disposição daConstituição federal; b) todas as causas propostascontra o Governo da União ou Fazenda Nacional,fundados em disposição da Constituição, leis e regu-lamentos do Poder Executivo, ou em contractos cele-brados com o mesmo Governo; c) as causas prove-

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Revista de Informação Legislativa276

nientes de compensações, reinvidicações, indemni-zação de prejuizos ou quaesquer outras, propostaspelo Governo da União contra particulares ou vice-versa”....

37 Cf. BITENCOURT, Carlos Alberto Lúcio, Ocontrole jurisdicional da constitucionalidade das leis.Atualização de José AGUIAR DIAS. Rio de Janeiro:Forense, 3. ed., pp. 13 e seg.

38 Até a época de Henry II (neto de Henry I), aspendengas judiciais eram decididas pelos respectivosdireitos locais (barões feudais). Henry II iniciou,então, reformas, introduzindo as Assizes of Claredon(1166) e Northampton (1176). Aí se acha o “germe”do julgamento pelo júri, que passou, depois, a abran-ger também matérias civis (interdita). Começa, então,a vida do common law, aplicado por juízes itineran-tes do rei (Cf. MAITLAND, F. W. The constitutionalhistory of England. Cambridge: University Press,1950, pp. 10 e seg.).

39 O stare decisis inglês é mais rígido do que oamericano. A mais alta corte de justiça do país, aHouse of Lords, fica presa a seus próprios preceden-tes (The House of Lords is bound by its own decisi-ons — Cf. WADE. E. C. S. e BRADLEY, A W. Cons-titutional law. 7 ed., 2. Impression. London: Long-mans, 1966, p. 311). O Parlamento, porém, podecorrigir os desacertos do Judiciário, baixando lei (sta-tute). Nos Estados Unidos, todavia, isso é mais difí-cil, pois, embora o Congresso possa fazer leis contra-riando decisões da Suprema Corte, a situação se tor-na mais complicada por causa da rigidez do sistemaconstitucional. Daí não ser incomum à própriaSuprema Corte mudar seus precedentes (Cf.SCHWARTZ, ob. cit., p. 201).

40 Do poder judiciário. Rio de Janeiro: LivrariaFrancisco Alves, 1915, p. 140.

41 Id, p. 141.42 Sem prejuízo de que em outros países também

possa existir a convivência entre os dois sistemas,como é o caso da Alemanha (Cf. FERRARI, ReginaMaria Macedo Nery. Efeitos da declaração de in-constitucionalidade, 2. ed. S. Paulo: RT, 1990, p. 120).

43 Controle da constitucionalidade. Revista deProcesso, ano 23 (abril/junho de 1998), n. 90, p. 15.

44 Os juízes, bem lembra José Joaquim GomesCANOTILHO, exercem seu “direito de exame” ou“direito de fiscalização”, “pois têm acesso directo àconstituição, aplicando ou desaplicando normas cujainconstitucionalidade foi impugnada” (Direito cons-titucional, 4. ed. Coimbra: Almedina, 1987, p. 793).

45 O Professor Jorge MIRANDA, ob. cit., p.325, arrola como um dos pontos negativos da “fisca-lização” concentrada “a sua vulnerabilidade às pres-sões vindas dos órgãos com poder efectivo no Esta-do”.

46 A Professora Cármen Lúcia Antunes ROCHA,preocupada com o afastamento do povo do processode controle das leis e dos atos normativos, entende

que a própria lei ordinária poderia legitimar o cidadãopara propor, subsidiariamente, a ação direta de in-constitucionalidade. Combina o art. 1º, parágrafoúnico, com os art. 102, parágrafo único, e art. 5º, § 2º,todos da Constituição de 1988 (Cf. Ação direta deinconstitucionalidade: a legitimidade do cidadão bra-sileiro in Revista Forense, vol. 318, ano 88, pp. 27 eseg.).

47 Grundgesetz (Lei Fundamental), art. 93, pará-grafo 1º, n. 2. Constituição da República Portuguesa(art. 278º).

48O juiz, à evidência, não “anula” a lei por ele tidacomo incompatível com a constituição. Apenas “de-clara” sua “incompatibilidade” com a lei máxima.Nosso Ruy Barbosa já admoestava: “Uma coisa édeclarar a nulidade. Outra, anular. Declarar nula umalei é simplesmente consignar a sua incompatibilidadecom a Constituição, lei primária e suprema” (ApudBITTENCOURT, ob. cit., p. 99).

49 A maioria dos autores entende que, por ser“declaratória”, a sentença tem efeito ex tunc. CelsoBASTOS, porém, observa que “(e)m nosso enten-der, não há uma necessidade inexorável de fazer re-troagir a declaração de inconstitucionalidade à pro-mulgação da lei (efeito ex tunc), porque não há qual-quer liame lógico em fazer corresponder a data dosurgimento do vício com a da sua subtração do orde-namento jurídico”(Comentários à constituição doBrasil. 4. vol., tomo III. S. Paulo: Saraiva, 1997, p.85).

50 Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. Ação resci-sória e divergência de interpretação em matéria cons-titucional in Revista dos Tribunais, ano 5, n. 17 (ou-tubro-dezembro de 1996), pp. 50 e seg.

51 JOLOWICZ no Résumé des Débats in Le con-trôle juridictionnel des lois, obra publicada por FA-VOREAU, Louis e JOLOWICZ, J. - A Paris: Écono-mica, 1986, p. 9.

52 ARAÚJO CASTRO não via com bons olhos ainovação, temendo que o Senado suspendesse deci-são proferida pela Corte Suprema em um único julga-do de inconstitucionalidade (A nova constituição bra-sileira. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1935, p. 247).

53 Cf. JACQUES, Paulino. Curso de direito cons-titucional, 7. ed. Rio: Forense, 1974, p. 64. A Ata daprimeira sessão da Subcomissão Constitucional re-gistra, em 11/11/1932, os seguintes nomes: Afraniode Mello Franco, José Américo, Antônio Carlos Ri-beiro de Andrada, João Mangabeira, Agenor de Rou-re, Prudente de Moraes, Arthur Ribeiro de Oliveira,Oliveira Vianna, Oswaldo Aranha, Antunes Maciel,Carlos Maximiliano e Góes Monteiro (Cf. AZEVE-DO, José Affonso Mendonça de, Elaborando a cons-tituição nacional - atas da subcomissão elaboradorado anteprojeto 1932/1933, ed. fac-similar. Brasília:Senado Federal, 1993, p. 9). Arthur Ribeiro de Oli-veira (12/06/1866 -24/03/36) era o representante doSupremo Tribunal Federal (Cf. BALEEIRO, Alio-mar. O Supremo Tribunal Federal, êsse outro des-

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conhecido, 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p.169). Arthur Ribeiro renunciou, sendo substituídopelo Ministro Castro Nunes.

54 Elaborando a constituição nacional, ob. cit.,pp. 511 e seg.

55 O art. 97, 1, da Lei Fundamental de Bonn (Bon-ner Grundgesetz) diz: “Os juízes são independentese subordinados unicamente à lei” (Die Richter sindunabhängig und nur dem Gesetze unterworfen)

56 POLETTI, ob. cit., p. 145. PINTO FERREI-RA faz as seguintes anotações: “Discute-se tambémse o Senado é obrigado a suspender a execução do atonormativo federal que o STF declarar inconstitucio-nal, mediante resolução. As opiniões divergem, opi-nando afirmativamente Lúcio Bittencourt, AlfredoBuzaid, Celso Bastos e Manoel Gonçalves FerreiraFilho. Contra se manifestam Josaphat Marinho,Mário Guimarães, Aliomar Baleeiro e Paulo Bros-sard” (Comentários à constituição brasileira. 2. vol.S. Paulo: Saraiva, 1990, p. 619).

57 Em seus Comentários à Constituição do Bra-sil, 4. vol., tomo I, o Professor Celso Ribeiro BAS-TOS se filia à corrente que entende que o Senado agevinculadamente, isto é, está obrigado a suspender alei ou ato normativo tido por inconstitucional peloSTF. Ao Senado toca examinar a regularidade formalda decisão declaratória. Exemplifica com um casoconcreto, em que o relator, Senador Amir Lando,levantou a questão de quorum do art. 97 da Consti-tuição, uma vez que a votação no Supremo se fez por6 a 5 (RE n. 150.764-1-PE). A “suspensão” se fazmediante “resolução” (Regimento Interno do SenadoFederal, art. 388).

58 Ob. cit., p. 135: “Nos Estados que adotam aorientação americana, a declaração de inconstitucio-nalidade não tem esse efeito revogatório. O tribunalnão anula, rescinde, cassa, destrói ou revoga a lei,senão, apenas, lhe recusa força formal, o caráter obri-gatório e irrefragável que lhe é inerente, negando-lheaplicação a um dado caso”.

59 Ada Pellegrini GRINOVER admoesta: “A de-cisão declaratória de inconstitucionalidade, operadaincidenter tantum, não tem o condão de fazer coisajulgada material. A lei continua eficaz, podendo qual-quer juiz, e inclusive o próprio Supremo TribunalFederal, aplicá-la por entendê-la constitucional, en-quanto o Senado Federal, por resolução, não suspen-der sua executoriedade. A partir desse momento, amanifestação do Senado — que não revoga nem anu-la a lei — simplesmente lhe retira a eficácia ergaomnes mas, por isso mesmo, ex nunc, consoante aque parece ser a melhor doutrina” (Ação rescisória edivergência de interpretação em matéria constitucio-nal. Artigo doutrinário in Revista dos Tribunais, ano5, n. 17 - outubro/dezembro, 1996).

60 José Afonso da SILVA, em seu Curso de direi-to constitucional positivo. 6. ed. S. Paulo: Revista dosTribunais, 1990, p. 52, enfatiza: “A declaração de

inconstitucionalidade, na via indireta, não anula a leinem a revoga; teoricamente, a lei continua em vigor,eficaz e aplicável, até que o Senado Federal suspendasua executoriedade nos termos dos arts. 52, X”.

61 O Professor Gilmar Ferreira MENDES diz que,hoje, o instituto de suspensão da execução pelo Se-nado se mostra “obsoleto”. Indaga: “Se o SupremoTribunal pode, em ação direta de inconstitucionalida-de, suspender, liminarmente, a eficácia de uma lei, atémesmo de uma Emenda Constitucional, por que ha-veria a declaração de inconstitucionalidade, proferidano controle incidental, valer tão-somente para as par-tes?” (O controle incidental de normas no direitobrasileiro in Revista dos Tribunais, ano 6, n. 23 -abril/junho de 1998-, p. 50 )

62 Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. O controle in-cidental de normas no direito brasileiro in Revistados Tribunais, ano 6, n. 23 (abril/junho de 1998), pp.30 e seg.

63 A Constituição alemã de 1919 (Die Verfassungdes Deutschen Reichs), denominada “Constituiçãode Weimar” (Weimarer Verfassung), previa, no art.108, a instituição de um Tribunal do Estado (Staats-gerichtshof), que certamente se incumbiria do con-trole das leis (Nach Massgabe eines Reichsgesetzeswird ein Staatsgerichtshof für das Deutsche Reicherrichtet). Infelizmente a intenção de Hugo Preussnão ganhou corpo, pois a gaia República teve vidacurta (1919/1933). Nas eleições de 1932, os partidoscomunista e nacional-socialista tiveram expressivavotação. Os partidos comprometidos com a Repú-blica alcançaram pouco mais de um terço. Uma dascausas foi o desemprego acarretado pela Grande De-pressão (Cf. HOBSBAWM, Eric . Era dos extremos- o breve século XX -1914-1991. 2. ed. 8. impressão.S. Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 139). Cou-be à Constituição da Áustria (1920) concretizar ocontrole por meio do Verfassungsgerichtshof.

64 Procédures et techniques de protection desdroits fondamentaux - cour constitutionnelle autri-chienne, artigo doutrinário publicado na obra Coursconstitutionnelles européenes et droits fondamentaux,cit., p. 195 “La grande nouveauté du contrôle de laconstitutionnalité en 1920 fut que ce contrôle portaitsur la lois. Ce contrôle n’était pas possible sous lerégime de la Monarchie. Le Reichsgericht n’était pascompétent pour contrôler les lois, à cause du rôle dumonarque dans la procédure législative et de sa po-sition dans le système constitutionnel en tantqu’organe inviolable et non responsable: le monar-que avait le pouvoir de sanctionner les lois. La Cons-titution fédérale de 1920 dans son article 140 prévoitque la Cour constitutionnelle peut annuler des loisdes Länder à cause de leur inconstitutionnalité”.

65 A Corte constitucional federal austríaca é com-posta de um presidente, de um vice-presidente, dedoze juízes titulares e de seis juízes suplentes. Aidade limite para se ficar no cargo é 70 anos. Tanto opresidente quanto o vice-presidente “sont toujours

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plus ou moins proches des deux partis politiquesmajoritaires au Parlement” (ERMACORA, artigodoutrinário cit., p. 190).

66 O controle judicial de constitucionalidade dasleis no direito comparado, ob. cit., p. 119. Na Áus-tria, no caso de anulação da lei, a Corte podia permitirque a lei inconstitucional ainda vigorasse por umperíodo não superior a um ano. Permitia-se, ainda, arepristinação da lei revogada pela lei inconstitucional(Cf. ERMACORA, artigo cit., p. 196).

67 CANOTILHO, ob. cit., pp. 797/798.68 A Constituição Federal, em seu art. 125, § 2º,

diz expressamente que “cabe aos Estados a institui-ção de representação de inconstitucionalidade de leisou atos normativos estaduais ou municipais em faceda Constituição estadual...”. Assim, no controle abs-trato, as leis municipais são examinadas diretamentepelo Tribunal de Justiça do respectivo Estado. Daíasseverar Carlos Mário da Silva VELLOSO que“(n)ão há, na ordem constitucional brasileira, contro-le em abstrato de lei ou de ato normativo municipalem face da Constituição Federal” (Temas de direitopúblico. Belo Horizonte: Livraria Del Rey Editora,1994, p. 96). Celso Ribeiro BASTOS anota: “Como

se vê, os atos municipais estão excluídos do controlepor via direta no plano federal. São impugnáveis poressa via apenas em face da Constituição Estadual”(ob. cit., p. 130). Se a ofensa da lei municipal for àConstituição Federal, a impugnação se fará por meioda via de exceção, ou seja, mediante recurso extraor-dinário (Cf. BASTOS, Celso, ob. cit. p. 148).

69 Reclamação 390-RS, relator Ministro CAR-LOS VELLOSO (ob. cit., p. 96). O Professor GilmarMendes, no artigo doutrinário citado (pp. 54 e seg.) ,defende a introdução, no sistema brasileiro, do inci-dente de inconstitucionalidade diretamente no Supre-mo Tribunal Federal para dirimir, em primeira mão,controvérsia sobre a inconstitucionalidade de lei ouato normativo federal, estadual ou municipal.

70 Ob. cit., p. 792.71 Também no caso de declaração de inconstitucio-

nalidade pelo Supremo pela via de ação, não se fazcomunicação ao Senado (Cf. POLETTI, ob. cit. , p.143). No mesmo sentido PINTO FERREIRA, ob.cit. p. 618.

72 BASTOS, Celso, ob. cit., p. 155.73 Ob. cit., p. 159.

* Notas bibliográficas conforme original.

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Leonardo Henrique Mundim Moraes Oliveira éProcurador do Banco Central do Brasil, ex-Assessorde Desembargador do Tribunal de Justiça do DistritoFederal e Territórios, Conciliador licenciado dosJuizados Especiais Cíveis e Criminais do DistritoFederal.

1. IntroduçãoA recente proliferação dos contratos de

seguro de automóvel tem gerado algumas rele-vantes questões processuais, como, por exem-plo, a da competência territorial para julgar açãoregressiva de reparação de danos proposta porcompanhia seguradora.

A regra geral é a prevista no art. 94 do CPC,segundo o qual as ações pessoais devem serpropostas no foro do domicílio do réu. No casoespecífico de danos oriundos de acidente deveículos, todavia, dispõe excepcionalmente oparágrafo único do art. 100 do CPC:

“Art. 100. (...)Parágrafo único. Nas ações de repa-

ração de dano sofrido em razão de delitoou acidente de veículos, será competenteo foro do domicílio do autor ou do localdo fato.”

Ao exercer seu legítimo direito de regres-so contra o responsável pelos danos (súmu-la 188 do STF), costumeiramente a compa-nhia seguradora propõe a ação regressiva noforo do local onde mantém sua sede, apro-veitando-se assim da exceção supracitada porter-se sub-rogado nos direitos e ações dosegurado, conforme previsão do art. 988 doCódigo Civil. Entretanto, não nos parece,data venia , que a prerrogativa do parágrafoúnico do art. 100 do CPC seja passível detransferência por sub-rogação.

Da inaplicabilidade do parágrafo únicodo art. 100 do CPC às companhiasseguradoras

LEONARDO HENRIQUE MUNDIM MORAES OLIVEIRA

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Especificidade da prerrogativa.3. Conclusão.

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2. Especificidadeda prerrogativa

Toda forma de exceção deriva de um motivoespecífico que lhe justifica a elaboração e lhe dásuporte na aplicabilidade.

No caso do parágrafo único do art. 100 doCPC, o foro excepcional ali previsto foi estabe-lecido em benefício personalíssimo da vítima doabalroamento automobilístico – geralmente oautor da ação –, com a finalidade precípua depoupar-lhe mais desagrados do que já sofrera.Além do dano material e quiçá moral, não seriajusto – pensou o legislador de 1973 – que ovitimado necessitasse arcar ainda, entre outras,com despesas de deslocamento ao domicílio doréu para satisfação do seu direito. Celso Agrí-cola Barbi, em “Comentários ao Código de Pro-cesso Civil”, afirma:

“Dada a grande extensão territorial dopaís, veículos pertencentes a pessoaresidente em um local causam dano emacidente ocorrido em outro, a centenasou milhares de quilômetros. A regra geraldo foro do domicílio do Réu não era capazde atender às necessidades surgidasdessa nova fonte de demandas, porque avítima tinha de ajuizar sua ação em dis-tantes comarcas, longe do seu domicílioe do local do fato.” (Forense, 1975. p.458-459)

Daí a intransmissibilidade da prerrogativa deforo à companhia seguradora: os danos e pecu-liares desagrados foram por outrem sofridos,cabendo à sub-rogada suportar apenas no cam-po financeiro, o que a torna uma credora comumsubmetida à generalidade do art. 94 do Códigode Processo Civil. Como afirmou no STJ o Mi-nistro Barros Monteiro,

“O disposto no art. 100, parágrafoúnico, do CPC constitui norma de natu-reza excepcional, pelo que há de ser inter-pretado restritivamente. A ação de regres-so é movida pela seguradora com baseno pagamento feito ao segurado e nodireito que, em conseqüência, se sub-rogou – e não na qualidade de vítima dodano resultante do acidente de veículos.”(REsp nº 19767/92 – 4 ª Turma – Unâni-me – DJ 7/2/94).

Não bastasse, e considerando-se que cadauma das filiais da pessoa jurídica enseja umdiferente domicílio (art. 35, § 3º, do CC), tem-seque estender à seguradora o foro privilegiadoimplicaria dotá-la de boas chances de inviabili-

zar qualquer defesa da parte acionada. Ao aco-lher a Exceção de Incompetência nº 16.651/96,patrocinada pelo articulista, bem asseverou oJuiz José de Aquino Perpétuo do Tribunal deJustiça do Distrito Federal e Territórios:

“Quis o legislador facilitar à vítima deacidente de trânsito que, se tivesse quese submeter à regra geral do art. 94 doCPC, seria duplamente sacrificada e, porvezes, ficaria obstaculizada de invocar atutela jurisdicional, o que, em derradeiraanálise, seria a inocuidade do princípioconstitucional da inevitabilidade e aces-sibilidade da jurisdição. (...) Imaginemos,ao contrário, a hipótese de poder a segu-radora propor a ação, valendo-se do pará-grafo único do art. 100, no foro da Capitaldo Acre contra o Réu residente em Ta-guatinga-DF, postulando, sob pena deconfesso, seu depoimento pessoal.”

Confirmando a supracitada Decisão, assen-tou brilhantemente a 2ª Turma Cível do EgrégioTJDF:

“COMPETÊNCIA. ACIDENTE DE VEÍCULO.AÇÃO REGRESSIVA. SEGURADORA. (...) Aregra estabelecida no parágrafo único doartigo 100 do Código de Processo Civilfoi criada estritamente em favor da vítimade delito ou acidente de veículo, não seaplicando aos casos de sub-rogação ouação regressiva da Seguradora, para osquais prevalece a regra geral do foro dodomicílio do réu, disposta no artigo 94 domesmo diploma processual.” (Agl 6.801/96 – Rel. Des. Hermenegildo Gonçalves –Unânime – DJ 5/2/97)

Por fim, vale ressaltar que a Jurisprudênciado Colendo STJ tem-se firmado, gradativamente,pela pertinência da tese ora defendida, conside-rando intransmissível, por sub-rogação, a facul-dade prevista no parágrafo único do art. 100 doCPC. Confira-se:

“CIVIL. ACIDENTE DE VEÍCULOS. FORO

PRIVILEGIADO. A excepcionalidade de foroda vítima de acidente (CPC, art. 100, pará-grafo único) é concedido em homenagemà sua situação personalíssima, e, por issomesmo, não é passível de transmissão àsub-rogada. (...)” (REsp nº 35.500/93 –Relator Ministro Cláudio Santos – 3ªTurma – Unânime – DJ 13/09/93)

“COMPETÊNCIA. ACIDENTE DE VEÍCULOS.SUB-ROGAÇÃO. O foro excepcional, asse-gurado à vítima do acidente (CPC, art. 100,

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parágrafo único), em homenagem à suasituação pessoal, constitui prerrogativaprocessual que não se transmite ao quese sub-roga no direito de receber indeni-zação.” (REsp nº 17.794/92 – Rel. Min.Nilson Naves – DJ 13/10/92)

3. ConclusãoConclui-se, do exposto, que efetivamente é

vedado à companhia seguradora arvorar-se emsub-rogada de uma prerrogativa inserida num

contexto específico e com destinatário certo,razão pela qual o foro competente para a açãoregressiva de reparação de danos oriundos deacidente de veículos é o do domicílio do réu,nos termos do art. 94 do CPC. Ao estabelecer apossibilidade de propositura da ação reparató-ria no domicílio do autor, agiu o legislador pie-tates causae – em face da suposta situação depenúria do que foi diretamente lesado –, nãosendo este o caso das companhias segurado-ras, cujo direito ostentado é decorrente de merae corriqueira sub-rogação creditícia.

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Excesso de poder no exercício da funçãolegislativa

1. IntroduçãoO Estado Moderno, herdeiro da crítica ilu-

minista, evoluiu demasiadamente no último sé-culo. Entre outras mudanças, o Estado Liberaldiluiu-se com a construção da legislação sociale a inclusão desses direitos de novo tipo nostextos das Constituições, desaguando no quese convencionou chamar de Estado Social.

O “breve século XX”, na expressão usadapor Hobsbawm, foi marcado por profundastransformações na sociedade política. Ao Esta-do foram apresentadas novas demandas, asquais só ele poderia solucionar. Superou-se aface individualista que o liberalismo clássicohavia imposto à vida social até, aproximadamen-te, a primeira guerra mundial e o Estado foi obri-gado a abandonar a letargia que o caracteriza-va, tendo que praticar uma intervenção mais vi-sível na vida social1.

Porém, um núcleo conceitual que liga o Es-tado moderno à defesa das liberdades não foi

GUSTAVO FERREIRA SANTOS

Gustavo Ferreira Santos é Mestre em Direito pelaUniversidade Federal de Santa Catarina e ProcuradorJudicial do Município do Recife.

1. Introdução. 2. Status jurídico dos princípiosconstitucionais. 3. O fundamento da idéia de limite àliberdade de conformação do legislador. 4. Instru-mentos jurídicos de limitação à liberdade do legisla-dor. 4.1. O desvio de poder legislativo. 4.2. O princí-pio da razoabilidade. 4.3. O princípio da proporcio-nalidade ou da proibição do excesso. 5. Conclusões.

SUMÁRIO

1Apesar da retomada de alguns lemas do libera-lismo clássico, pela ideologia conhecida por neolibe-ralismo, a intervenção estatal continua, e tende a con-tinuar, sendo reconhecida como inevitável, seja natarefa de impor limites à atuação de forças econômi-cas, seja como prestador de serviços públicos essen-ciais.

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superado, pelo contrário, apenas se complexifi-cou. Somaram-se aos clássicos direitos “con-tra” a atuação estatal outros direitos a presta-ções do Estado.

O rol dos chamados direitos fundamentaisse alargou, o que exigiu novos caminhos paraos intérpretes da Constituição, que passaram avê-la em sua especificidade. Nasceu uma her-menêutica constitucional destacada da ativida-de interpretativa comum. A complexidade dostextos constitucionais do nosso tempo, verda-deiros catálogos de princípios, exige elementosmetodológicos próprios para a interpretação eaplicação de suas normas.

Cabe, ainda, ressaltar a necessidade de quea Constituição ocupe o lugar de destaque a elareservado pelos estudos constitucionais con-temporâneos. Faz-se mister a manifestação da“vontade de constituição” em todos os atoressociais, elemento essencial para a verificaçãoda tão pretendida força normativa da constitui-ção (Hesse).

Um tema que avulta na nova realidade dosestudos constitucionais, e que, ao nosso ver,pede urgente atenção em nosso país, é a aferi-ção dos limites que impõe a Constituição à li-berdade do legislador.

A atividade de legislar conhece alguns limi-tes explícitos e outros limites implícitos. Sejadando conformação às normas constitucionais,seja restringindo propriamente direitos, o legis-lador se vê limitado por parâmetros encontra-dos no texto da Constituição. No presente mo-mento, interessa-nos uma limitação implícita daatividade legislativa que entendemos ser ine-rente ao conceito hoje consensual de Estado. É olimite radicado na idéia da proibição do excesso.

Inquestionavelmente, ao legislador apresen-ta-se uma exigência de que, na sua atividade deconcreção das normas constitucionais, busquereduzir os efeitos negativos que porventura seusatos possam causar aos chamados direitos fun-damentais.

Neste trabalho, partindo de uma discussãosobre o grau de liberdade atribuído pela Consti-tuição ao legislador ordinário, procuramos cor-relacionar três teorias que, a despeito de teremorigens diversas, completam-se (às vezesconfundem-se) na fixação de anteparos aos avan-ços do legislador no campo dos direitos fun-damentais. Estudamos, pois, a aplicação do des-vio de poder à atividade legislativa, a teoria dodue process of law (com o princípio da razoabili-dade) e, por fim, o princípio da proporcionalidade.

Antes, porém, abordamos, de forma sucin-ta, a questão da natureza jurídica dos princípiosconstitucionais, pois os limites à atividade dolegislador adiante estudados se apresentam soba forma de princípios.

2. Status jurídico dos princípiosconstitucionais

A posição dos princípios na topografia cons-titucional é de inegável destaque. A doutrinaconstitucional evoluiu, e continua a evoluir, nosentido de dar aos princípios um status privile-giado, uma capacidade cada vez maior de atua-rem na solução dos conflitos que se apresen-tam frente ao ordenamento jurídico.

No passado, os princípios tinham uma posi-ção de transcendência, não sendo considera-dos normas jurídicas. Eram, quando muito, refe-rências a serem manipuladas na atividade deinterpretação de alguma norma.

Sustentava-se que os princípios tinham umageneralidade que não lhes permitia incidir dire-tamente na realidade. Dos princípios não nas-ceriam direitos subjetivos, que apenas surgiri-am quando o princípio fosse concretizado poralgum ato normativo.

Superou a doutrina a concepção que dife-renciava princípios e normas constitucionais.Tal entendimento constituía-se em limitação àconcreta aplicação da Constituição. Hoje, reco-nhecem-se diferenças entre os chamados prin-cípios gerais do direito, de caráter meramentedescritivo e os princípios constitucionais posi-tivados, de conteúdo normativo. Nesse senti-do, os princípios são reconhecidos como ver-dadeiras normas jurídicas.

As normas jurídicas se apresentam, então,sob duas formas: ou como regras, ou como prin-cípios. A sua diferenciação conceitual tem ge-rado polêmica, mas pode-se extrair do debateem torno do tema algumas proposições queapontam no sentido da solução do problema.

Eros Grau, sob a influência dos escritos deRonald Dworkin, indica duas diferenças bási-cas entre as categorias de normas: a) as regrasjurídicas, não comportando exceções, são apli-cáveis de modo completo ou não são, de modoabsoluto, não se passando o mesmo com os prin-cípios; b) os princípios jurídicos possuem umadimensão – a dimensão do peso ou importância –que não comparece nas normas jurídicas2.

2A ordem econômica na Constituição de 1988, p.114.

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Outro autor a teorizar sobre a diferença en-tre regras e princípios é o alemão Robert Alexy.Segundo ele, as regras e os princípios se distin-guem pelo grau de generalidade, mais elevadono caso dos princípios. Os princípios, segundosua teoria, são mandatos de otimização, cujaaplicação depende de determinadas possibili-dades fáticas e jurídicas3.

Um momento da aplicação do direito no qualfica evidente a distinção entre regras e princípi-os é quando se verifica a colisão de direitos.

Quando duas ou mais regras aparentam es-tar em conflito, a solução é encontrada nos tra-dicionais critérios de solução de antinomias ju-rídicas. São três os critérios apresentados pelaTeoria Geral do Direito para a eliminação dasantinomias: o cronológico, no qual prevalece anorma posterior (lex posterior derrogat prio-ri); o hierárquico, que faz prevalecer a normasuperior (lex superior derogat inferiori) e o daespecialidade, que constitui o predomínio danorma especial (lex especialis derrogat gene-rali)4. Em todos os critérios, a atividade tende aeliminar as regras que não resistem ao julga-mento, aplicando-se apenas uma regra ao casoconcreto.

Em relação aos princípios, inobstante o re-conhecimento de seu status de norma jurídica,não é possível a utilização de tais critérios. Osprincípios constitucionais não obedecem à ló-gica do tudo ou nada.

Diferentemente das regras, dois ou mais prin-cípios podem-se compor e incidir sobre um mes-mo fato. Ocorre que, na aplicação dos princípi-os, procede-se uma ponderação de valores, atu-ando los dois princípios no caso concreto, compesos distintos, sem que um retire a validade dooutro.

J.J. Gomes Canotilho5, em uma síntese con-ceitual da tendência ao reconhecimento da for-ça normativa dos princípios, sugere alguns cri-térios para diferenciá-los das regras:

a) o grau de abstração: os princípios sãonormas com um grau de abstração mais elevadoque as regras;

b) o grau de determinabilidade na aplica-ção do caso concreto: as regras têm aplicação

direta, enquanto os princípios carecem de con-cretização;

c) o caráter de fundamentalidade no siste-ma das fontes do direito: os princípios têm pa-pel fundamental no ordenamento, devido suaposição hierárquica no sistema das fontes e suafunção estruturante dentro do sistema jurídico;

d) a “proximidade” da idéia de direito: osprincípios são “standards” juridicamente vin-culantes radicados nas exigências de justiça(Dworkin) ou na “idéia de direito”(Larenz), en-quanto as regras podem ser normas vinculati-vas com conteúdo meramente funcional;

e) a natureza normogenética: os princípiossão fundamento das regras, estão na base ouconstituem a ratio das regras jurídicas.

Duas questões devem ser esclarecidas, se-gundo o mesmo autor, no intuito de se superar acomplexidade da distinção entre regras e princí-pios: 1) saber qual a função dos princípios (setêm função retórica ou argumentativa ou se sãonormas de conduta); 2) saber se existe só umadiferença de grau ou se há entre princípios eregras jurídicas uma diferenciação qualitativa.

Quanto à primeira questão, responde o con-sagrado constitucionalista que os princípios sãomultifuncionais. No tocante à segunda ques-tão, responde que os princípios se diferenciamqualitativamente das regras jurídicas.

Tal diferenciação qualitativa se expressa nosseguintes aspectos: a) os princípios são nor-mas jurídicas impositivas de uma otimização,compatíveis com vários graus de concretização,consoante os condicionalismos fáticos e jurídi-cos, enquanto as regras são normas que pres-crevem imperativamente uma exigência, que éou não é cumprida. A convivência dos princípi-os é conflitual e eles coexistem. A convivênciadas regras é antinômica e elas se excluem; b) osprincípios permitem o balanceamento de valo-res e de interesses consoante o seu peso e aponderação de outros princípios eventualmen-te conflitantes. As regras não deixam espaçopara outra solução, pois, se a regra tem valida-de, deve ser cumprida na exata medida (obede-ce à lógica do “tudo ou nada”); c) no conflitoentre princípios, é possível a ponderação e aharmonização. Mas, é insustentável a vali-dade simultânea de regras contraditórias; d)os princípios suscitam problemas de valida-de e peso . As regras colocam apenas a ques-tão da validade6.

3Edilsom Pereira de FARIAS, Colisão de direi-tos, p. 26.

4Norberto BOBBIO, Teoria do ordenamento ju-rídico, p. 91.

5Direito constitucional, p. 166. 6Ob. Cit., p. 167.

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3. O fundamento da idéia de limite àliberdade de conformação do legisladorAs instituições modernas são alicerçadas na

idéia do equilíbrio entre atuação estatal e pre-servação das liberdades. A crise do Estado Li-beral, que sucumbiu por conta de suas própriasmazelas, ensinou-nos sobre o caráter inevitávele, muitas vezes, essencial da intervenção doEstado. Mas, por outro lado, as experiênciastotalitárias nos alertaram para a necessidade depreservação dos direitos do homem, que exi-gem o reconhecimento do seu valor universal.

A idéia de limitação do Poder Público é ine-rente ao processo que redundou na criação doEstado Moderno, a forma de sociedade políticaque marca o nosso tempo. O grande meio deveiculação dessa necessidade de controle foi aadoção do princípio da separação dos poderes,que permitiu a atribuição a diferentes corpos doexercício das três funções estatais, cada um dos“poderes” responsável, em certa medida, pelocontrole do outro, em um sistema de freios econtrapesos.

O surgimento do chamado Estado Modernofoi resultado de um conjunto de movimentos,entre eles a reforma protestante, o renascimen-to e a ilustração, que entravam em choque comos valores e as instituições do antigo regime.Max Weber, um dos mais lúcidos analistas doprocesso de modernização, chamou tal modifi-cação na sociedade de racionalização.

A racionalização foi caracterizada por umdesencantamento do mundo da vida. O funda-mento espiritual cedeu lugar à razão. Uma razãoque esquadrinha, calcula e, acima de tudo, nor-matiza. A racionalização foi marcada por umaexigência crescente de eficácia, mas, também,por uma autonomização de esferas de valoresantes embutidas na religião, a saber: a ciência, amoral e a arte7. A dominação política passou, apartir desse momento, a ter um fundamento le-gal-racional, baseando-se as relações políticasna crença em normas objetivas coletivamenteestabelecidas.

O processo histórico acima descrito promo-veu, ainda, a autonomização do indivíduo, fren-te ao social, com um reconhecimento de umnúcleo de direitos inatos, conforme sustentadoinicialmente pelo revolucionário jusnaturalismo,direitos esses que aos poucos foram sendo po-sitivados, exigindo proteção.

Norberto Bobbio chamou atenção para a ra-dical transformação na relação entre Estado ecidadãos que o Estado Moderno operou:

“passou-se da prioridade dos deveres dossúditos à prioridade dos direitos do cida-dão, emergindo um modo diferente deencarar a relação política, não mais pre-dominantemente do ângulo do soberano,e sim daquele do cidadão, em correspon-dência com a afirmação da teoria indivi-dualista da sociedade em contraposiçãoà concepção organicista tradicional”8.

A face mais visível dessa nova sociedadepolítica é o conceito de Estado de Direito. Inici-almente ligado à necessidade de proteger o in-divíduo do arbítrio estatal, tinha um conteúdoliberal. Em sua essência, o Estado de Direitoveiculava o princípio da legalidade, o princípioda tripartição dos poderes estatais e o reconhe-cimento dos direitos individuais. Evoluiu talconceito acompanhando a evolução do próprioDireito Constitucional. Hoje, vige o conceito deEstado Democrático de Direito, abraçado pelaConstituição brasileira, com conteúdo mais am-plo, anexando à noção clássica de Estado de Di-reito exigências democráticas que não podem sernegligenciadas por um Estado Constitucional.

Uma característica do Estado de Direito sedestaca, merecendo estudo à parte, em face desua importância para as Constituições contem-porâneas: o sistema dos direitos fundamentais.Os primeiros “direitos fundamentais” reconhe-cidos pelo Poder Público eram, antes de tudo,direitos individuais, como já referido neste tex-to. Tinham objetivo de proteger o indivíduo dopoder arbitrário do próprio Estado.

Como se sabe, esses direitos fundamentaistalhados pelo liberalismo tinham por fim preser-var uma esfera da vida ao indivíduo, deixando-alivre da ação do Estado. Nessa categoria de di-reitos estavam o direito de propriedade, a liber-dade de locomoção, a liberdade de imprensa etc.

A concepção liberal dos direitos fundamen-tais foi superada e incluíram-se nas Constitui-ções, como resultado do desenvolvimento deoutras exigências por parte da sociedade, direi-tos de natureza coletiva, que se valiam de umateoria social. Rompeu-se a compreensão indivi-dualista, sendo reconhecidos direitos funda-mentais que cabiam ao homem não mais isola-damente, mas como membro de coletividades.Passou-se, também, a considerar o indivíduo

7Sérgio Paulo ROUANET, Mal-estar na moder-nidade, p. 121. 8A Era dos direitos, p. 3.

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titular de direitos a prestações do Estado, pre-vendo as constituições direitos econômicos,sociais e culturais.

Alguns autores falam em direitos fundamen-tais de primeira geração, os titularizados pelosindivíduos e oponíveis ao Estado, e direitos fun-damentais de segunda gerações, os direitossociais, culturais, econômicos e os titularizadospor coletividades. Há quem fale, como KarelVasak e Etiene-R. Mbaya, em direitos de terceirageração, apoiados na idéia de fraternidade ouna de solidariedade, como o “direito ao desen-volvimento” do qual fala este segundo autor9.

Jorge Miranda indica algumas tendênciasatualmente verificadas no domínio dos direitosfundamentais, a saber:

“a diversificação do catálogo, muito paralá das declarações clássicas; a acentua-ção da dimensão objectiva dos direitos,como princípios básicos da ordem jurídi-ca, sejam eles quais forem; a considera-ção do homem situado, traduzida na rele-vância dos grupos e das pessoas colecti-vas e na conexão com garantias instituci-onais; o reconhecimento de um conteú-do positivo, inclusive nos direitos de li-berdade; a interferência não apenas dolegislador mas também da Administraçãona concretização e na efetivação dos di-reitos; a complexidade de processos e detécnicas de regulamentação; a produçãode efeitos não apenas verticais (frente aoEstado) mas também horizontais (em re-lação a particulares); o desenvolvimen-to dos meios de garantia e a sua ligaçãoaos sistemas de fiscalização da constitu-cionalidade e da legalidade”10.

A criação das leis é um dos momentos maisdelicados do exercício das funções estatais. Nomomento em que estabelece as regras a seremseguidas por todos, o legislador adentra no cam-po da liberdade individual, muitas vezes limi-tando direitos, atingindo interesses. Nos depa-ramos, no curso de nossa investigação, com umaquestão de inegável importância: tem o legisla-dor liberdade de escolha no exercício de suaatividade? Ou o seu trabalho é apenas uma exe-cução da Constituição?

Não nos interessam, pela inutilidade eviden-te, as respostas extremas. Não podemos aceitar

uma posição que vê a tarefa do legislador comototalmente livre de condicionantes. Mas, poroutro lado, não podemos tomar como verdadei-ra a visão segundo a qual o legislador é apenasum mero executor das tarefas já definidas peloconstituinte.

Não é possível, conforme magistralmentedemonstrado por J. J. Gomes Canotilho na suatese intitulada “Constituição Dirigente e Vincu-lação do Legislador”, transpor para o campo doDireito Constitucional a noção administrativis-ta de discricionariedade.

A imprestabilidade da noção de discriciona-riedade ocorre, primordialmente, em função daespecificidade da posição constitucional dolegislador, que, pelo princípio democrático, te-ria assegurada uma liberdade de escolha alémda que se atribui ao administrador.

Ressalte-se, ainda, que o princípio da legali-dade exige do administrador que, mesmo no exer-cício do poder discricionário, submeta-se aosfins definidos na lei, apenas cuidando de esco-lher meios adequados aos fins. Já na atividadelegislativa não há essa estrita vinculação aosfins, sendo dado ao legislador a possibilidadede também eleger, em várias ocasiões, fins a se-rem buscados.

Aceitamos a existência de uma liberdade deconformação do legislador, porém, mitigada, re-conhecendo, também, que ao legislador sãodirigidas exigências e limites. Não esquecemosa advertência de J. J. Gomes Canotilho de que“a lei, no Estado de Direito Democrático-Cons-titucional, não é um ato livre dentro da consti-tuição; é um acto, positiva e negativamente de-terminado pela lei fundamental”11.

Fala-se em conformação de normas consti-tucionais, quando o legislador dá contornos àdefinição do preceito constitucional, aclarandoseu sentido. Por outro lado, fala-se em verda-deira restrição de direitos quando, na atividadeconcretizadora, limita-se o âmbito de proteçãodesses direitos. Suzana Toledo Barros, analisan-do a atividade do legislador, leciona que

“uma lei não há que ser considerada res-tritiva se, objetivando aclarar o âmbito deproteção de um direito, venha expurgaruma conduta que a própria Constituição,por meio de uma interpretação sistemáti-ca, repele”,

9Cf. Paulo BONAVIDES, Curso de direito cons-titucional, p. 480-481.

10Manual de direito constitucional, p. 24.11Constituição dirigente e vinculação do legisla-

dor, p. 244.

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complementando a autora que“as fronteiras entre restrição de direitos esimples conformação da norma constitu-cional só podem ser demarcadas por pro-cesso de interpretação, diante, pois, deuma situação concreta, constituindo aprimeira questão a ser dirimida em sedede controle da constitucionalidade da leitida como restritiva a direito fundamen-tal”12.

A Constituição não erige apenas limitesmateriais, proibindo o legislador de editar deter-minados atos, as chamadas determinantes ne-gativas, mas, também, estabelece ordens, diri-gindo a atividade legislativa, as chamadas de-terminantes positivas. Este segundo modelo denorma constitucional marca profundamente asconstituições programáticas ou dirigentes.

O surgimento de formas de controle da cons-titucionalidade da omissão legislativa, além deindicar a existência de “direitos às normas”, con-firma que a atividade legislativa é profundamen-te condicionada pela Constituição, que, em al-guns casos, dirige uma ordem peremptória aolegislador.

Põe-se, por fim, o problema da densidadedas normas constitucionais. Como é evidente,não há uma uniformidade na configuração dospreceitos constitucionais, existindo normas comgrau de densidade elevado, trazendo já contor-nos precisos, enquanto há outras que são tãogenéricas que exigem a mediação do trabalhodo legislador para terem efetividade.

Diz-se possuir a norma abertura quandocarece de definições mais aprofundadas e den-sidade quando já traz os elementos necessáriosà sua aplicação. É no magistério do já citadoProfessor J. J. Gomes Canotilho que encontra-mos de forma clara esses conceitos:

“a abertura de uma norma constitucionalsignifica, sob o ponto de vista metódico,que ela comporta uma delegação relativanos órgãos concretizadores; a densida-de, por sua vez, aponta para a maior pro-ximidade da norma constitucional relati-vamente aos seus efeitos e condições deaplicação”13.

A limitação do poder do legislador tem queser operada por institutos jurídicos que se apre-sentem como critérios objetivos, evitando re-

meter-nos a noções vagas, presas fáceis da sub-jetividade do intérprete e aplicador, tais como aidéia de “justiça” ou a exigência de “bom sen-so”.

Em nosso país, não há, ainda, uma tradiçãojurídica que fundamente a imposição de tais li-mitações; apesar de terem surgido, nos últimostempos, obras doutrinárias a estudar o tema,especialmente sob a inspiração de experiênciasde outros países, não avançamos muito na ma-téria, havendo debilidade na apreciação jurisdi-cional dos limites. Comentando a teoria admi-nistrativista do desvio de poder adotada peloConselho de Estado francês, Victor Nunes Lealensaia uma explicação sociológica para a ques-tão:

“nossa concepção da divisão de pode-res, lastreada pela tradição imperial daquase completa desproteção do indiví-duo, em face dos atos administrativos ile-gais ou abusivos, não comportaria tãoextensa interferência dos órgãos jurisdi-cionais que constituem um poder autô-nomo na atividade dos órgãos adminis-trativos, que pertencem a outro poder”14.

Desde o século passado, a necessidade delimite à atuação do Estado, presente na ideolo-gia que construiu as instituições modernas, evo-luiu qualitativamente, ultrapassando os murosda literalidade dos clássicos direitos do homem.As novas exigências passaram a manifestar-sena prática, como se verá a seguir, com a Supre-ma Corte norte-americana e o Conselho deEstado francês encetando controles da atuaçãoestatal baseados no due process of law e nodesvio de poder, respectivamente. Neste sécu-lo, na Alemanha, desenvolveu-se outro princí-pio com a mesma preocupação: o princípio daproporcionalidade.

4. Instrumentos jurídicos de limitação àliberdade do legislador

4.1. O desvio de poder legislativo

A teoria do desvio de poder origina-se naFrança. Nasce a partir de postulados teóricosdo Direito Administrativo. O contencioso admi-nistrativo no Conselho de Estado francês, apartir da primeira metade do século passado,avançou sobre os chamados “atos de império”,que antes não eram passíveis de controle. Cons-12O princípio da proporcionalidade e o controle

de constitucionalidade das leis restritivas de direitosfundamentais, p. 151.

13Direito constitucional, p. 189.14Apud José CRETELLA JÚNIOR, Desvio de

poder na administração pública, p. 30.

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tatava-se, naquele momento, que haviam ele-mentos regrados mesmo nos atos discricionári-os, elementos esses que poderiam ser objeto defiscalização.

Em uma mudança na jurisprudência do Con-selho de Estado, surgiu um recurso chamado de“excesso de poder” para controlar os atos deautoridades públicas em alguns aspectos. Noinício, o recurso controlava o vício de incompe-tência do órgão de onde emanava o ato, pas-sando, em pouco tempo, a alcançar, também, ovício de forma. Eduardo García de Enterría afir-ma ter sido a técnica do desvio de poder

“a terceira via de penetração na esferaisenta da discricionariedade: a liberda-de de decisão conferida ao órgão não oautoriza a afastar-se do fim em conside-ração ao qual a potestade se outorgou”15.

A técnica do desvio de poder serve comocritério a controlar o chamado mérito do ato ad-ministrativo, que se apresenta quando há a uti-lização do poder discricionário pelo administra-dor. Segundo Seabra Fagundes, o mérito do atoadministrativo “se relaciona com a intimidadedo ato administrativo, concerne ao seu valorintrínseco, à sua valorização sob critérios com-parativos”. O mesmo autor complementa:

“ao ângulo do merecimento, não se dizque o ato é ilegal ou legal, senão que éou que não é o que devia ser, que é bomou mau, que é pior ou melhor do queoutro. E por isto é que os administrativis-tas o conceituam, uniformemente, comoum aspecto do ato administrativo, relati-vo à conveniência, à oportunidade, à uti-lidade intrínseca do ato, à sua justiça, àfinalidade, aos princípios da boa gestão,à obtenção dos desígnios genéricos eespecíficos, inspiradores da atividadeestatal”16.

Tal postulado teórico, portanto, sustentaque não devem ser reputados válidos os atosadministrativos editados com finalidade distin-ta daquela estabelecida pela regra de compe-tência que atribui o poder à autoridade. Fulminaos atos editados com finalidade outra que nãoaquela que aparenta buscar.

Na definição de André de Laubadère,“há desvio de poder quando uma au-

toridade administrativa cumpre um ato de

sua competência mas em vista de fim di-verso daquele para o qual o ato poderialegalmente ser cumprido”17.

Apesar das evidentes diferenças entre a ati-vidade administrativa e a atividade legiferante,posteriormente houve a transposição da idéiado desvio de poder para o campo do controledos atos legislativos. Caio Tácito nos ensinaque a idéia de aplicar a teoria do desvio depoder à análise constitucional foi pioneiramen-te sustentada por Santi Romano18.

O que fundamenta a migração do direito ad-ministrativo para o campo do direito constituci-onal é a constatação de que, tal qual a atividadeadministrativa, a atividade legiferante é finalís-tica, havendo, portanto, a possibilidade de secontrolar o ato legislativo, cotejando a sua fina-lidade com a regra de competência que atribuiuo poder ao órgão legislativo e outras normasconstitucionais pertinentes à matéria.

Na França, não avançou muito sobre a ma-téria, em razão da especificidade do controlefrancês da constitucionalidade das leis, que, porser um controle político e não judicial, limitou aaplicação da teoria do desvio de poder sobre aatividade do legislador.

No Brasil, registra-se, já há algum tempo, aaplicação pelo Poder Judiciário da teoria do des-vio de poder legislativo em sede de controle deconstitucionalidade das leis.

Em 1951, o Ministro Orozimbo Nonato, doSupremo Tribunal Federal, sustentou que, combase na caracterização do desvio de poder, erainconstitucional uma lei que estabelecia, na ci-dade de Santos-SP, imposto de licença sobre ascabines de banho, pois, segundo seu entendi-mento, “o poder de taxar não pode chegar à des-medida do poder de destruir”19.

Em decisão de agosto de 1967, cujo relatorera o Ministro Prado Kelly, o Supremo conside-rou inconstitucional dispositivo que buscava,no bojo de uma lei de organização judiciária,beneficiar apenas um serventuário, sob o argu-mento de que não obedecia ao escopo do inte-resse público20.

O principal problema da aplicação da teoriado desvio do poder legislativo está na dificul-

15Curso de direito administrativo, p. 400.16Apud Maria Sylvia Zanella DI PIETRO, Direi-

to Administrativo, p. 180.

17Apud Celso Antônio Bandeira de MELLO, Dis-cricionariedade e controle jurisdicional, p. 56.

18Desvio de poder legislativo, Revista Trimestralde Direito Público, n. 1: 67.

19Cf. Suzana Toledo BARROS, p. 99.20Cf. Caio TÁCITO, ob.cit., p. 66.

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dade, já anteriormente referida, de se aplicar aoDireito Constitucional conceitos próprios doDireito Administrativo, como por exemplo a no-ção de discricionariedade, essencial a estateoria.

A atividade do legislador não está tão vin-culada a fins como a atividade do administra-dor, sendo que, em muitos momentos, ao legis-lador se apresentam apenas os “fins últimos”definidos pela Constituição, não havendo, parao ato concreto a ser editado, uma finalidade es-pecífica definida pelo Constituinte, sendo-lhedado definir os fins.

Em alguns casos, não se caracterizará o des-vio de poder, apesar de ser possível notar-se airrazoabilidade ou a desproporcionalidade damedida. Isso ocorrerá quando o legislador, per-seguindo o fim definido pelo Constituinte, to-mar medida de eficácia duvidosa ou que preju-dique direito cuja proteção se afigure, no casoconcreto, mais importante do que o direito quea medida legislativa visa proteger.

4.2. O princípio da razoabilidade

O princípio da razoabilidade tem suas ori-gens ligadas ao desenvolvimento da doutrinado due process of law, de matriz anglo-saxã.Apesar de sua origem remeter-se a preceitos daMagna Carta, de 1215, foi a práxis constitucio-nal da Suprema Corte norte-americana que deli-neou o chamado devido processo legal e comele o princípio da razoabilidade.

A evolução de uma noção meramente pro-cedimental do due process of law, que marcou oseu nascedouro, para uma noção substantiva,hoje reconhecida, não foi tranqüila. Essa traje-tória da jurisprudência da Suprema Corte em tor-no da cláusula do devido processo legal podeser dividida em três fases nitidamente distin-tas21.

Uma primeira fase, que vai de 1835 a 1890,foi caracterizada por sua natureza adjetiva, pro-cessual. Reconhecia-se, nessa fase, o direito aum procedimento regular. Consagraram-se asgarantias processuais do contraditório e daampla defesa.

No final do século passado, nota-se a extra-polação do campo processual para uma práticade verificação dos fundamentos de justiça nadecisão do legislador. Inaugura-se uma segun-

da fase do desenvolvimento do devido proces-so legal, que persiste até 193522.

O controle da “razoabilidade” das normasera feito sob o pretexto de proteger os direitosindividuais. Visava, principalmente, a defesa dodireito de propriedade e da liberdade contratu-al, numa clara indicação de que a ideologia eco-nômica que guiava as decisões era o liberalis-mo, do laissez-faire laissez-passer.

Nesse período histórico, em que o mundoconhecia a emergência da legislação social, ogoverno norte-americano teve dificuldade deestabelecer certos direitos trabalhistas, em vir-tude da resistência da Suprema Corte, que invo-cava o princípio da razoabilidade na defesa daliberdade de contrato e declarava a inconstitu-cionalidade de medidas como a que estabeleciauma jornada máxima de trabalho. Várias deci-sões reconheciam a inconstitucionalidade deatos normativos sob o fundamento de violaçãoao conteúdo substancial da cláusula do devidoprocesso legal, tendendo, a maioria das deci-sões, a um subjetivismo, o que rendeu ensejoàs mais diversas críticas23.

Alguns autores referem-se a esse períodocomo sendo o do “governo dos juízes”, em re-ferência ao grande número de decisões atinen-tes ao mérito de decisões de governo, decisõesessas, como já falado, baseadas em critériossubjetivos.

A política do New Deal, do presidente Roo-sevelt, foi decisiva na superação dessa fase his-tórica, acabando por consolidar mudanças es-truturais, exigidas pelo capitalismo de então,consagrando o intervencionismo estatal e ochamado Estado do Bem-Estar24.

Uma terceira fase na história da aplicação dadoutrina do due process of law pela SupremaCorte dos Estados Unidos, que vem de 1937

21Aqui utilizamos os marcos temporais apresen-tados por Raquel Denize STUM, Princípio da pro-porcionalidade no direito constitucional brasileiro,p. 153.

22 “Após alguns ensaios de aplicação do substan-tive due process, a Corte finalmente invalidou, porinconstitucional, uma lei estadual que impedia que osresidentes de Louisiana contratassem seguros de seusbens com empresas de fora do Estado. A decisão quemelhor simbolizou esse período, todavia, foi proferi-da em Lochner vs. New York, onde, em nome daliberdade de contrato, considerou-se inconstitucionaluma lei de Nova York que limitava a jornada de traba-lho dos padeiros”. Luís Roberto BARROSO, Inter-pretação e Aplicação da Constituição, p. 201.

23Cfr. Suzana de Toledo BARROS. ob. cit., p.58-61.

24Raquel Denize STUM, Ob. Cit., p. 157.

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aos dias atuais, é caracterizada pela restrição doseu uso a contextos não econômicos, o que in-clui a liberdade de expressão, a liberdade deculto, o direito à imagem, o direito à privacida-de, entre outros direitos.

Trata, pois, o princípio da razoabilidade deuma exigência dirigida ao legislador no sentidode que, ao limitar direitos individuais, seja pro-cedida uma verificação da legitimidade dos finsda medida adotada. Com isso, abre-se ao PoderJudiciário a possibilidade de examinar o méritodo ato legislativo, procedendo um julgamentovalorativo, com o intuito declarado de preser-var, o quanto possível, as liberdades individu-ais franqueadas pela Constituição.

Há uma dificuldade concreta em definir a ra-zoabilidade, que vem do caráter amplo do dueprocess. A própria Suprema Corte dos EstadosUnidos, em mais de uma oportunidade, reco-nheceu essa dificuldade. No julgamento do casoSolesbee vs. Balkcon, o Juiz Felix Frankfurterafirmou que “due process of law é aquilo quediz respeito às mais profundas noções do que éimparcial, reto e justo”25.

Em um esforço teórico de sistematização damatéria, Luís Roberto Barroso apresentou umadefinição bastante rica, segundo a qual

“o princípio da razoabilidade é um parâ-metro de valoração dos atos do PoderPúblico para aferir se eles estão informa-dos pelo valor superior inerente a todoordenamento jurídico: a justiça”.

Afirmando que tal princípio é mais fácil de sersentido do que conceituado, asseverou que ele“se dilui em um conjunto de proposições quenão o libertam de uma dimensão excessivamen-te subjetiva”. Por fim, o referido constituciona-lista arremata:

“é razoável o que seja conforme a razão,supondo equilíbrio, moderação e harmo-nia; o que não seja arbitrário ou capri-choso; o que corresponda ao senso co-mum, aos valores vigentes em dado mo-mento ou lugar”26.

No Brasil, a Constituição adota a cláusulado devido processo legal, enunciada entre osdireitos fundamentais. Sua principal aplicaçãoprática, porém, tem sido no campo do direitoprocessual. Isso não significa, entretanto, que

não se tenha projetado aqui a noção substanti-va do instituto.

Apesar da forte influência norte-americanana formação de nosso direito constitucional,especialmente por meio dos institutos do fede-ralismo e do controle judicial de controle da cons-titucionalidade das leis, não avançamos muitono entendimento dessa faceta material da cláu-sula do devido processo legal, diferentementeda Argentina, que já consolidou o princípio darazoabilidade em seu sistema constitucional.

O princípio da razoabilidade é reconhecidopelos doutrinadores e pela jurisprudência naci-onais. No campo doutrinário, a mais freqüentereferência está no Direito Administrativo, em queo princípio tem a função de balizar a atividadediscricionária do administrador. Weida Zanca-ner, administrativista paulista, alerta-nos que oprincípio da razoabilidade “exige, simplesmen-te, que a Administração Pública no exercício daatuação discricionária seja racional, equilibra-da, sensata e de modo compatível com o bemjurídico que ela pretende curar”27.

O princípio da razoabilidade, em sua aplica-ção à atividade administrativa, tem, segundoCelso Antônio Bandeira de Mello, fundamentonos mesmos preceitos constitucionais que dãobase aos princípios da legalidade e da finalida-de, ou seja, os arts. 5º, II e LXIX, 37 e 84 danossa Carta Magna28.

Na jurisprudência, apesar de mais freqüen-temente tratar de temas administrativos, há de-cisões que se referem ao princípio no exercíciodo controle da constitucionalidade das leis.

A principal crítica dirigida ao uso do princí-pio da razoabilidade associa o substantive dueprocess of law ao chamado “governo dos juí-zes”, alertando para a possível reedição dosfatos que marcaram um período da história judi-cial dos Estados Unidos de recordação nãomuito boa.

Mas, o subjetivismo pode ser substituído, eo tem sido pelos autores que tratam do proble-ma, por uma aplicação cuidadosa das noçõesde equilíbrio e moderação. Não é tarefa difícil es-tabelecer um conceito comum de “ato arbitrário”a servir de parâmetro negativo a ser imposto aoEstado. Mas, por outro lado, só a reiterada aplica-ção do critério pode dar ao conceito as caracterís-ticas de objetividade de que ele necessita.

25Apud Adhemar Ferreira MACIEL, Due pro-cess of law, Revista de Informação Legislativa. n.124: 97.

26ob. cit., p. 204.

27Razoabilidade e moralidade na Constituição de1988, Revista Trimestral de Direito Público, n. 2:209.

28Ob.Cit., p. 55.

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4.3. O princípio da proporcionalidade ou daproibição do excesso

O princípio da proporcionalidade, tambémconhecido por princípio da proibição do exces-so, manifestou-se primeiramente, ainda sem aforma hoje conhecida, na Suíça29. Apesar disso,esse princípio tem no direito constitucional ale-mão o seu principal espaço de aplicação. Suanoção mais aceita na atualidade foi construída apartir de indicadores formulados pela jurispru-dência do Tribunal Constitucional Federal ale-mão.

No século passado, já eram registradas, naAlemanha, as idéias que baseariam o entendi-mento hoje existente de proporcionalidade. Je-llinek, em 1791, advertia que “o Estado somentepode limitar com legitimidade a liberdade do in-divíduo na medida em que isso for necessário àliberdade e à segurança de todos”30.

Porém, somente neste século, no segundopós-guerra, é que o princípio da proporcionali-dade ganha força, com a sua adoção pelo Tribu-nal Constitucional Federal alemão.

A experiência do regime implantado peloPartido Nacional-Socialista mostrou não sersuficiente a previsão de um complexo catálogode direitos fundamentais em uma Carta Política,como o que havia sido editado na Constituiçãode Weimar.

Após um período de certa indefinição con-ceitual, a referida Corte estabeleceu, em decisãode março de 1971, o seguinte standard:

“o meio empregado pelo legislador deveser adequado e necessário para alcançaro objetivo procurado. O meio é adequa-do quando com seu auxílio se pode al-cançar o resultado desejado; é necessá-rio, quando o legislador não poderia terescolhido um outro meio, igualmenteeficaz, mas que não limitasse ou limitassede maneira menos sensível o direito fun-damental31”.

Com o tempo, a jurisprudência iria evoluirpara o entendimento segundo o qual o princí-pio da proporcionalidade tem uma estruturacomplexa, sendo ele formado por três subprin-cípios, a saber: o princípio da adequação, o prin-cípio da necessidade e o princípio da proporci-onalidade em sentido estrito.

A aplicação do princípio da proporcionali-dade, como forma de averiguar a constituciona-lidade ou não de determinada medida legislati-va, exige que sejam manipulados os três sub-princípios sucessivamente, como um verdadei-ro “teste” da proporcionalidade entre o meioescolhido pelo legislador e o fim que alega bus-car.

O princípio da adequação é o primeiro pas-so na aferição da constitucionalidade da lei frenteao princípio da proporcionalidade. Indaga talsubprincípio se a medida é adequada à obten-ção do fim que o legislador pretende atingir.

O segundo passo é a aplicação do princípioda necessidade. Nele reside a exigência de queo legislador não pode tomar medida restritivade direito fundamental se existem outras medi-das menos gravosas que podem ser adotadas.Havendo, assim, meio mais idôneo para a con-secução do fim pretendido, não se justifica aadoção da medida restritiva.

Nesse momento da aplicação do princípioda proporcionalidade, o juiz deve indicar qual éo meio mais adequado ao fim. Na lição de Ra-quel Denize Stumm,

“a opção feita pelo legislador ou o execu-tivo deve ser passível de prova no sen-tido de ter sido a melhor e única possibi-lidade viável para a obtenção de certosfins e de menor custo ao indivíduo”32.

Por fim, há o princípio da proporcionalidadeem sentido estrito, que cuida da ponderaçãoentre direitos, bens ou interesses. Em via de re-gra, uma medida legislativa visa proteger deter-minados direitos, bens ou interesses. Ocorre que,ao incidir na realidade, a medida, por via oblí-qua, acaba por atingir outros direitos, bens ouinteresses constitucionalmente protegidos, li-mitando-os. Apresenta-se, nesse caso, uma co-lisão de direitos, que se resolve pela pondera-ção de valores. Caso seja constatada a prece-dência, no caso concreto, dos direitos a seremlimitados, não deve prevalecer a medida, pordesproporcional, devendo ser declarada a suainconstitucionalidade.

Suzana Toledo Barros afirma, para a clarifi-cação dos conceitos, que

“a diferença básica entre o princípio danecessidade e o princípio da proporcio-nalidade em sentido estrito está, portan-to, no fato de que o primeiro cuida deuma otimização com relação a possibili-dades fáticas, enquanto este envolve29Cfr. Paulo BONAVIDES, ob.cit., p. 332.

30Idem, p. 328.31Idem, p. 330. 32Ob.Cit, p. 79.

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apenas a otimização de possibilidadesjurídicas”33.

A “sede material” do princípio da proporci-onalidade está nos direitos fundamentais, queclamam por uma proteção efetiva, e no conceitode Estado de Direito. Assim, conclui-se que, naaplicação da nossa Carta Política, podemos in-vocar o princípio da proporcionalidade, por fun-dar-se tal princípio em institutos por ela adota-dos.

Na jurisdição constitucional em nosso país,não houve, ainda, um desenvolvimento do con-ceito de proporcionalidade a ensejar uma apli-cação tão ampla como a que esse princípio co-nhece no direito alemão. Apesar disso, já exis-tem decisões referindo-se ao princípio quandodeclara o Supremo a inconstitucionalidade dedispositivo legal.

Ainda se verifica, nessas decisões, uma cer-ta confusão, às vezes uma identificação com-pleta, com o princípio da razoabilidade. Em deci-são de 1993, cujo relator foi o Ministro Sepúlve-da Pertence, o Supremo Tribunal Federal decla-rou a inconstitucionalidade de lei do Estado doParaná, sob a alegação de ofensa ao princípioda “proporcionalidade e razoabilidade das leis”.Vejamos a redação da ementa:

Ementa – Gás liquefeito de petróleo:lei estadual que determina a pesagem debotijões entregues ou recebidos parasubstituição a vista do consumidor, compagamento imediato de eventual diferen-ça a menor: argüição de inconstituciona-lidade fundada nos arts. 22, IV e VI (ener-gia e metrologia), 24 e paras., 25 e par. 2,238, além de violação ao princípio de pro-porcionalidade e razoabilidade das leisrestritivas de direitos: plausibilidade jurí-dica da argüição que aconselha a sus-pensão cautelar da lei impugnada, a fimde evitar danos irreparáveis a economiado setor, no caso de vir a declarar-se ainconstitucionalidade: liminar deferida”(Reqte: Confederação Nacional do Co-mércio. Reqdos: Governador do Estadodo Paraná e Assembléia Legislativa doEstado do Paraná.

Como se nota, não há, ainda, um grau desistematização a permitir que, objetivamente,conheça-se o alcance do princípio. Não quere-mos, com isso, pregar a transposição acrítica aodireito nacional da doutrina germânica reco-nhecedora dos subprincípios do princípio da

proporcionalidade. Apenas constatamos que,apesar de já introduzido em nosso meio, neces-sita ser tratado com atenção pela doutrina e pelajurisprudência para, em conformidade com nos-so sistema constitucional, conferir-se a tal prin-cípio uma feição mais concreta que lhe dê efeti-vas condições de aplicação.

Diversos países, sob influência do consti-tucionalismo tedesco, já conhecem e adotam oprincípio da proporcionalidade como princípiode direito positivo constitucional, destacando-se, neste rol, Portugal e Espanha.

Consideramos que, entre os três critériosaqui estudados, o princípio da proporcionalida-de é o que melhor cumpre a tarefa de limitar aliberdade de conformação do legislador.

O princípio da proporcionalidade, com osseus subprincípios, mostra-se compatível como conceito de Robert Alexy, já citado neste tra-balho, segundo o qual os princípios são man-datos de otimização, pois o critério da proporci-onalidade auxilia no momento em que o intér-prete deve aquilatar o alcance da norma enunci-ada nos princípios. Assim, é grande a sua im-portância na interpretação especificamenteconstitucional34.

Sobre a relevância do princípio da propor-cionalidade, Paulo Bonavides afirma que a suaaplicação ao Direito Constitucional é

“tão revolucionária e tão importante quan-to a da Tópica há algumas décadas naesfera da Teoria do Direito e dos méto-dos interpretativos, graças a ela, larga-mente renovados e reavaliados”35.

5. Conclusões1. A idéia de limitação do poder é inerente

ao Estado Moderno, especialmente à versãomais atual de Estado Democrático de Direito,justificando-se positivamente a imposição, aolegislador, de exigências quanto ao equilíbrioentre meios e fins no exercício de suas funções.

2. Os princípios constitucionais se apresen-tam como normas juridicamente vinculantes,sendo mandatos de otimização (Alexy). As Cons-tituições contemporâneas são verdadeiros ca-tálogos de princípios, sendo essa a forma como

33Ob.Cit., p. 81.

34Cf. Inocêncio Mártires COELHO, Interpreta-ção constitucional, e Márcia Haydée Porto de CAR-VALHO, Hermenêutica constitucional.

35Ob.Cit. p.320.

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se apresenta, no mundo jurídico, a maioria dosdireitos fundamentais.

3. A teoria do desvio de poder se aplica àatividade legislativa que é, assim como a admi-nistrativa, finalística, mas enfrenta problemaspráticos em virtude da imprestabilidade para odireito constitucional de alguns conceitos pró-prios do direito administrativo, fundamentaispara a noção de desvio de poder, como, por exem-plo, o conceito de discricionariedade.

4. O princípio da razoabilidade pode ser de-duzido do texto da Constituição brasileira, queenuncia a cláusula do due processo of law, ne-cessitando, porém, de definições mais claras arespeito do seu conteúdo, pois a análise entremeios e fins fundada em uma noção de justiçapode redundar em decisões judiciais subjetiva-mente marcadas pelo aplicador da Constituição,sendo a jurisprudência da Suprema Corte norte-americana, especialmente na fase atual que apli-ca o princípio da razoabilidade a contextos nãoeconômicos, uma importante fonte inspiradora.

5. O princípio da proporcionalidade, em vir-tude do grau de objetividade alcançado na dou-trina e na prática da Corte Constitucional daAlemanha, é o instrumento, entre os referidosneste texto, que mais se adequa às necessida-des constatadas de limitação da liberdade dolegislador. Ainda avulta a sua importância comocânone da interpretação constitucional dos prin-cípios, entendidos como mandatos de otimiza-ção, pois seus subprincípios da necessidade eda adequação “testam” as circunstâncias de fatoe de direito às quais se remetem os princípios.

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*Notas bibliográficas conforme original.

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Frank Larrúbia Shih é Procurador AutárquicoFederal da Superintendência de Seguros Privados –SUSEP –, ex-Professor da Faculdade Moraes Júnior/RJ e Advogado no Rio de Janeiro.

1. PrescriçãoO escólio de Eduardo Couture preconiza

que, se o advogado encontrar o direito em con-flito com a justiça, deve lutar pela justiça1.

Esse mandamento indicativo na arte daadvocacia encontra séria limitação no institutoda prescrição, que louva não a justiça, mas sima segurança jurídica, pois Ihering2 sempreobservava, com singeleza ímpar, que a paz é ofim colimado pelo direito.

Assim, situações ainda que injustas podemser consolidadas pelo decurso do tempo, justa-mente em homenagem ao princípio da seguran-ça jurídica e da paz social, pois o tempo é umaforça da qual não se pode subtrair nenhumespírito humano, afinal, o que durou por muitotempo, só por essa razão, parece mesmo algo demuito sólido e indestrutível.

A consolidação de situações jurídicas –justas ou injustas – em função do tempo deno-mina-se prescrição, que, no inexcedível magis-tério de Beviláqua, traduz-se na perda da açãoatribuída a um direito e de toda a sua capaci-dade defensiva, em conseqüência do não-uso

A prescrição no contrato de seguro

FRANK LARRÚBIA SHIH

SUMÁRIO

1. Prescrição. 2. Contrato de seguro. 3. Atribui-ções legais da SUSEP: perfil panorâmico. 4. Pres-crição aplicável ao contrato de seguro e a jurispru-dência do STF e do STJ sobre o tema. 5. Efeitos daprescrição no processo administrativo.

1 COUTURE, Eduardo. Os mandamentos doadvogado. 3. ed. Porto Alegre : Fabris, 1987.

2 IHERING, Rudolf Von. A luta pelo Direito. 6.ed. Rio de Janeiro : Forense, 1987.

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dela, durante um determinado espaço detempo3.

A perda da ação a que nos referimos não érelativa ao direito constitucional de ação (CF,art. 5º, XXXV), porquanto inconcebível a perdade garantia constitucional qualificada comodireito potestativo e autônomo (Chiovenda)4.A referência é da ação específica e correspon-dente ao direito material em questão, adotan-do-se, para essa visão, a teoria imanentista ins-culpida no art. 75 do Codex Civil.

Como cediço, o instituto da prescrição temaspecto bifronte, vale dizer, importa não só emsanção à desídia do titular do direito, comotambém corresponde ao anseio social em esta-belecer um clima de segurança e harmonia, nãose permitindo que demandas fiquem indefinida-mente em aberto. Sob este último prisma, adota-mos a linha de entendimento do preclaro SilvioRodrigues5, forte na tese irrefragável de que asnormas sobre prescrição são de ordem pública,insuscetíveis de derrogação por convençãoentre particulares, não afetando essa conside-ração a vedação legal imposta ao juiz de nãopoder conhecer da prescrição de direitos patri-moniais, se não for invocada pelas partes (CC,art. 166).

A propósito, um estudo acurado sobre o cri-tério científico para distinguir a prescrição dadecadência e identificar as ações imprescritíveisestá disponível na excelente monografia doProfessor Agnelo Amorim Filho (Revista dosTribunais, 300/7).

O objeto de nosso estudo está vocacionadoao exame da prescrição liberatória nas relaçõesjurídico-contratuais de natureza securitária, emespecial o exame de seus efeitos na sede admi-nistrativa e judicial.

2. Contrato de seguroA definição legal do contrato de seguro está

prevista no art. 1.432 do Código Civil:“considera-se contrato de seguro aquelepelo qual uma das partes se obriga paracom a outra, mediante a paga de um

prêmio, a indenizá-la do prejuízo resul-tante de riscos futuros, previstos no con-trato”.

A natureza peculiar do contrato de seguroprivado recomenda um breve estudo sobre osseus elementos essenciais: a) segurado e segu-rador; b) risco; c) prêmio; d) apólice.

Segurado e segurador são as partes donegócio jurídico. Segurado pode ser qualquerpessoa física ou jurídica, desde que presente acapacidade civil. O segurador só pode ser pessoajurídica constituída sob a forma de sociedadeanônima ou cooperativas, sendo que suasatividades são precedidas necessariamente deautorização governamental e não se sujeitam àfalência nem se submetem ao regime da concor-data. Em caso de insolvência, o regime será dedireção-fiscal ou de liquidação extrajudicial com-pulsória, conforme o caso (Decreto-Lei nº 73/66, arts. 24, 26 e 94).

O Risco é o elemento nodal do contrato deseguro, pois constitui o seu próprio objeto. Oseu conceito sofre variações em função da mo-dalidade do seguro, mas a maioria dos autores odefinem como acontecimento futuro e incerto,sempre alheio à vontade das partes. Não se deveconfundir risco com sinistro, pois este é o fatoque se receia e cujos efeitos se quer evitar, ouseja, é a consumação do risco.

O Prêmio, segundo Pedro Alvim6, é a remu-neração que o segurado deve pagar ao segura-dor pela garantia que lhe dá pela cobertura decerto risco. É a compensação pela assunção dorisco. Daí a noção de proemium, no sentido derecompensa. O fundo comum constituído pelosprêmios dos segurados é que ampara o paga-mento das indenizações e a lei o qualifica devital importância para a estabilidade das opera-ções das seguradoras, tanto que qualquer inde-nização somente será paga mediante prova daquitação do prêmio devido, antes da ocorrênciado sinistro (Decreto-Lei nº 73/66, art.12, pará-grafo único).

A Apólice é o instrumento do contrato deseguro, que só pode ser por escrito, ad solem-nitatem (substância do ato). Aliás, o próprioart. 1.433 do Código Civil alerta que o contratonão obriga as partes antes de reduzido a escritoe reputa-se perfeito e acabado com a emissãoda apólice ao segurado.Todavia, essa regra nãoé absoluta, pois o art.10 do Decreto-Lei nº 73/66autoriza a contratação de seguros por simples

3 BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do DireitoCivil. 3. ed. Rio de Janeiro : Rio, 1980.

4 GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. Teoria geraldo Processo. 14. ed. São Paulo : Malheiros, 1991.

5 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 21. ed. SãoPaulo : Saraiva, v.1. 1990.

6 ALVIM, Pedro. O contrato de seguro. 2. ed.Rio de Janeiro : Forense, 1986.

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emissão de bilhete de seguro, mediante solicita-ção verbal do interessado, sendo que o Conse-lho Nacional de Seguros Privados – CNSP é oórgão responsável pela regulamentação dessaespécie de contratação, padronizando as cláu-sulas e os impressos necessários.

A par dessas breves e basilares noções, pas-samos ao exame das atribuições da Superinten-dência de Seguros Privados – SUSEP, traçan-do-lhe o perfil e a importância diante do mercadosecuritário no Brasil.

3. Atribuições legais da SUSEP:perfil panorâmico

A Superintendência de Seguros Privados –SUSEP é – ao contrário do que o nome sugere –uma autarquia federal vinculada ao Ministérioda Fazenda, com a competência legal de executara política traçada pelo Conselho Nacional deSeguros Privados – CNSP, fiscalizando a consti-tuição, organização, funcionamento e operaçõesdas sociedades seguradoras, entre as quaispodemos destacar: a) processar os pedidos deautorização para constituição, organização efuncionamento, fusão, encampação, grupamen-to, transferência de controle acionário e reformados estatutos das sociedades seguradoras, opi-nando sobre os mesmos, e encaminhá-los aoCNSP; b) baixar instruções e expedir circularesrelativas à regulamentação das operações deseguros, de acordo com as diretrizes do CNSP;c) fixar condições das apólices, planos de ope-rações e tarifas a serem utilizadas obrigatoria-mente pelo mercado segurador nacional; d) apro-var os limites de operações das sociedadesseguradoras, em conformidade com o critériofixado pelo CNSP; e) examinar e aprovar as con-dições de coberturas especiais, bem como fixaras taxas aplicáveis; f) autorizar a movimentaçãoe liberação dos bens e valores obrigatoriamenteescritos em garantia de reservas técnicas e docapital vinculado; g) fiscalizar execução dasnormas gerais de contabilidade e estatísticafixadas pelo CNSP para as sociedades segura-doras; h) fiscalizar as operações das socieda-des seguradoras, inclusive o exato cumprimentodo Decreto-Lei nº 73/66, de outras leis perti-nentes, disposições regulamentares em geral,resoluções do CNSP, e aplicar as penalidadescabíveis; i) proceder à liquidação das sociedadesseguradoras que tiverem cassada a autorizaçãopara funcionar no país; j) organizar seus servi-ços, elaborar e executar seu orçamento.

A SUSEP também tem o dever legal de fisca-lizar as sociedades de capitalização, de previ-dência privada e de corretagem de seguros eplanos previdenciários (Decreto-Lei nº 261/67,Lei nº 6.435/77 e Decreto-Lei nº 73/66). Maisrecentemente, as pessoas jurídicas de direitoprivado que operam planos ou seguros priva-dos de assistência à saúde também ficaram sub-metidas ao poder de polícia da Autarquia (Leinº 9.656/98).

Temos observado que muitos profissionaisdo direito, aqui incluídos até mesmo juízes emembros do Ministério Público, desconhecema verdadeira natureza jurídica da SUSEP, orasendo confundida como pessoa jurídica dedireito privado, ora como se fosse um CadastroNacional das apólices emitidas pelas segurado-ras. Até mesmo em juízo ocorre esse lamentávelequívoco, quando o advogado demandacobrança de indenização contra a SUSEP emlitisconsórcio com a seguradora, a título de –incrível – responsabilidade solidária.

A atuação da SUSEP no mercado securitá-rio lato sensu tem perfil constitucional, poisessas atividades, ultima ratio, são de interven-ção no domínio econômico, evidenciada pelaregulamentação do mercado, v.g., pela fixaçãode tarifas no mercado segurador ou pela tutelados direitos básicos do consumidor, uma vezque a legislação consumerista aplica-se às rela-ções jurídico-contratuais securitárias (CF, art.174 e Lei nº 8.078/90, art. 2 º).

Todavia, o efetivo cumprimento de suas atri-buições legais está algemado à política gover-namental, uma vez que os atuais cortes severosde orçamento afetam de forma expressiva odesempenho dessas atividades, sendo impres-cindível também que os cargos de chefia, antesde o serem em comissão, que o sejam tambémde competência, questão essa de relevo paratoda a Administração Pública, mas completa-mente esquecida pela Reforma Administrativa(EC 19, de 4/6/98).

Não é verdadeiro o entendimento de queuma instituição pública fraca reverte-se embenefício para os fiscalizados e em prejuízo paraos segurados. Uma entidade deficiente na suaestrutura e com servidores desmotivados reve-la-se muito perniciosa a todos, sobretudo mesmoaos fiscalizados, porque suas atividades ficarãoenlaçadas eternamente ao crivo de um serviçopúblico deficiente e insatisfatório, açoitadas pelamorosidade e erros decorrentes desse cenárioindolente. A pedra de toque, portanto, consiste

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na valorização do servidor público, como tam-bém em uma administração francamente empe-nhada de corpo e alma à causa pública, apoiadasempre por estrutura administrativa indispen-sável à execução dos encargos que lhe são atri-buídos por lei.

Nesse aspecto, a SUSEP, dentro de suaslimitações, tem empenhado esforços contínuospara prestar bom atendimento ao público e exe-cutar com senso de dever as suas atribuições.

4. Prescrição aplicável ao contratode seguro e a jurisprudência do STF

e do STJ sobre o temaO pálio manancial da prescrição no contrato

de seguro está elencado no art.178, § 6º , II, doCodex Civil, que considera o prazo de um anopara a ação do segurado contra o segurador evice-versa, se o fato que a autoriza verificar-seno país, contado o prazo em que o interessadotiver conhecimento do mesmo fato. Se esse fatoverificar-se fora do Brasil, o prazo será de doisanos (art. 178, § 7º, V).

O Código Comercial também prevê o prazoânuo, porém apenas correlato aos seguros marí-timos, com as especificações que lhe são pró-prias (CCom, art. 447 e 666).

O Decreto-Lei nº 73/66, a despeito de regularas operações de seguros e de resseguros, nadadispõe sobre prescrição, razão pela qual aplica-sea lei civil e a comercial para o trato da matéria.

Em Direito Comparado, entre os países queadotam um Código de Seguros, no caso daFrança e da Argentina, denota-se que os prazosde prescrição são notoriamente exíquos. PedroAlvim, citando J.C. Moitinho de Almeida7, ensi-na que se trata de uma necessidade imperiosaem razão da própria natureza do contrato deseguro, pois a perpetuação do tempo é incom-patível com o desaparecimento dos vestígiosdo sinistro, dando azo às simulações e fraudes,além de onerar as operações securitárias comuma acumulação excessiva de prêmios em dívida.

A par dessa observação, é preciso ter emlinha de projeção que o entendimento da pres-crição ânua só é cabível nas lides que se esta-belecessem entre segurado e segurador, não seestendendo em casos de demanda de segura-dora contra terceiro causador do dano, mor-mente em ação regressiva, conforme bem acen-tuado por Voltaire Marensi8.

A esse respeito, o Supremo Tribunal Federale o Superior Tribunal de Justiça têm adotadoposição pacífica de que, não se fundando emcontrato de seguro, mas sim na sub-rogação dedireitos, a ação regressiva proposta pela segu-radora contra o responsável pelos danos sujei-ta-se à prescrição vintenária (RE 85800–8–SP;Resp 69174–MG; 31965–SP; 9001–PR; 77426–PR; 4463–PR; 5101–RS; RT 448/8; 502/237; 604/205; 640/205).

Não obstante, o próprio STF impressionoua jurisprudência reinante ao estabelecer, o quetemos como exceção, a Súmula 151:

“Prescreve em um ano a ação do segu-rador sub-rogado para haver indenizaçãopor extravio ou perda de carga transpor-tada por navio”.

Exceções à parte, temos que a prescriçãoânua não se impõe ao beneficiário do seguro,que tem a seu favor a prescrição vintenária, poiso mesmo não tem a qualificação de seguradoem face da interpretação estrita do art. 178,§ 6º,II, do CC. (REsp.5101–RS, DJ.,6/5/91; Resp.32034–SP, DJ.,12/4/93). A propósito, em favordesse prisma, Maria Helena Diniz9 traz à memó-ria que, se para ser segurado basta ter capaci-dade civil, o mesmo não se verifica com relaçãoao beneficiário, pois a lei estabelece restrições aessa condição, v.g., àquele que for inibido dereceber doação do segurado (CC, art. 1.474).

Em outro ângulo de visada, desde a Súmula101, do STJ, não mais se deduz controvérsia deprazo prescricional aplicável ao segurado emgrupo. Lourival G. de Oliveira, in “Comentáriosàs Súmulas do Superior Tribunal de Justiça”10,preleciona que a questão posta à solução eraoriginária dos seguros de grupos nos quaisempresas empregadoras figurassem como esti-pulantes e seus empregados como segurados.Defendia-se a tese de que, até então, o empre-gador era o verdadeiro segurado e seus empre-gados os beneficiários, tendo a favor dessesúltimos a prescrição vintenária. Todavia, o STJ,com percuciência, não permitiu confusão entrea figura jurídica do estipulante (empregador) coma do empregado (segurado), preconizando oprazo de um ano para a ação de indenização do

7 ALVIM, op. cit.8 MARENSI, Voltaire Giavarina. O seguro no

Direito brasileiro. 14. ed. São Paulo : Malheiros,1997.9 DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático

dos contratos. São Paulo : Saraiva, v.4.1993.10 OLIVEIRA, Lourival Gonçalves. Comentários

às Súmulas do Superior Tribunal de Justiça. SãoPaulo : Saraiva, v. 2. 1995.

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segurado em grupo contra a seguradora, con-firmando, na sua inteireza, a autoridade e vali-dade do art. 21, § 2º, do Decreto-Lei nº 73/66:“Nos seguros facultativos o estipulante é omandatário dos segurados”.

Outro ponto de relevo é referente ao termoinicial da prescrição. Prima facie, o art.178, § 6º,II, do CC é claro: contado o prazo do dia em queo interessado tiver conhecimento do fato. Quefato? Por óbvio, o sinistro.

Diante dos casos concretos, ou o seguradoqueda-se inerte em avisar o sinistro, por desí-dia, fazendo-o após o decurso de um ano, hipó-tese em que a seguradora pode suscitar comeficiência a prescrição a seu favor ou, mais co-mum, avisada do sinistro in tempore, nega aseguradora o pagamento da indenização após oseu período de exame.

Não sendo recomendável a existência dedois termos iniciais para um único prazo pres-cricional, o STJ perfilhou a tese de que feita acomunicação (aviso do sinistro), tem-se porsuspenso o prazo prescricional enquanto aseguradora não cientificar o segurado dosmotivos da recusa ao pagamento da indeniza-ção. É dizer, o prazo inicia-se com o conheci-mento do sinistro pelo segurado, suspende-secom o aviso do sinistro e recomeça no dia emque o segurado toma conhecimento da recusada seguradora em liquidar o sinistro. É a aplica-ção da condição suspensiva de que trata o art.170, I, do Digesto Civil. Nesse sentido: REsp.00807–RS, D.J.,14/12/92; 21547–RS, D.J.,16/8/93;52236-SP, D.J., 20/3/95; 70367–SP, D.J., 11/12/95.

Sem a pretensão de exaurir o cipoal de ques-tões que enlaçam a matéria, passamos ao examedos efeitos da prescrição no processo adminis-trativo punitivo, no âmbito da SUSEP.

5. Efeitos da prescriçãono processo administrativo

Como já exposto anteriormente, a Superin-tendência de Seguros Privados – SUSEP – exer-ce poder de polícia administrativa sobre as com-panhias seguradoras, de capitalização, previ-dência privada, corretagem e, agora, sobre aspessoas jurídicas que operam planos ou segu-ros privados de assistência à saúde.

O instrumento normativo que regula a apli-cação de penalidades às entidades infratoras éa Resolução CNSP nº 14/95, revestida como umverdadeiro caderno de sanções.

Em sintonia com a garantia constitucionaldo contraditório e da ampla defesa, o referidonormativo dispõe sobre o rito e as oportuni-dades de defesa das entidades que venham asofrer autuação por infração administrativa.

Nessa borda, observamos que o jurídico dasentidades fiscalizadas tem por hábito invocar aprescrição no contrato de seguro como meio deexcluir a sanção administrativa, pois, segundoessa hipótese, não seria deduzível a ocorrênciade qualquer infração ante à inércia do própriotitular do direito.

Sobre a proposição, a Procuradoria-Geral daSUSEP tem a dicção unânime de seus procura-dores no sentido de que a prescrição de direitomaterial não se confunde com a prescrição dainfração administrativa, sendo essa, aliás, a minhacompreensão expendida no Parecer/PRGER/Contencioso/nº 254/95, ocasião em que anotei

“... com referência a prescrição, avulta deimportância salientar que o âmbito de atua-ção do poder de polícia da SUSEP não éobstada pela eventual prescrição havidaentre o segurado e o segurador. A infra-ção administrativa não está no âmbito dointeresse privado. Constatada a infração,será imposta, através de processo regular,com garantia da ampla defesa, pois àobservância à política de seguros e a esta-bilidade das relações no mercado securi-tário assentam-se no interesse públicoprimário”.

Ainda nessa linha de idéias, manifestei-meem outro caso semelhante:

“A prescrição suscitada gera efeitosna relação jurídica material entre os con-tratantes, contudo, não tem o condão deretirar o poder de fiscalização da Autar-quia sobre as denúncias a serem apura-das, pois, a razão do poder de polícia é ointeresse social e seu fundamento estána supremacia geral que o Estado exerceem seu território, o que, aliás, revela-senos mandamentos constitucionais e nasnormas de ordem pública, que a cadapasso opõem condicionamentos e restri-ções aos direitos individuais em favor dacoletividade”. (Parecer/PRGER/Conten-cioso/nº 415/95).

Merece reflexão, por último, se o procedi-mento administrativo é hábil para interromperou suspender o prazo prescricional no Judiciá-rio. Recente julgado da Primeira Turma do Tri-bunal de Justiça do Distrito Federal, Ap. Cív.

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41528/96 (D.J., 5/3/97), considerou interrompidoo prazo prescricional com a digladiação admi-nistrativa das partes perante a SUSEP. Com aminha ressalva de entendimento, tenho que oTribunal não andou bem nesse julgado, que seencontra em flagrante rota de colisão com atradição jurisprudencial no Supremo TribunalFederal, que é pela inadmissibilidade de afeta-ção do prazo prescricional em decorrência de

atividade administrativa, a exemplo do protestocambiário e da simples vistoria, que não inter-rompem a prescrição (Súmulas 153 e 154). A pro-pósito, o Superior Tribunal de Justiça, no REsp.52.236-SP (D.J., 20/3/95), asseverou que o proce-dimento administrativo instaurado perante aSUSEP não influi na contagem do prazo ânuode prescrição, corroborando a uniformizaçãodesse entendimento sobre a matéria.