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A confiança na Justiça éurn. vaLor essencial JUfl ON RO TOlO NRI ES GASIA PRESIDENTE DOS PREITO TRIBUNAL DE JUSTIÇA E sta Ana Filipa Pinto, André Silva e Rui Miguel Simão Fotografla Hugo Silva A passadera vermelha percorre a escadaria e recebe-nos à entrada de um edifíco com história. Uma história feita de valores. Ao percorrermos o edifício sentimos, na primeira pessoa, a vida da Justiça em Portuga. A vida de um dos pilares da Democracia. Ao longo do corredo~ os retratos ilustram essa mesma vida. Percorremos com o olhar e ficamos a conhecer os rostos que compuseram o passado que determinaria o “agora’ Um corredor que nos leva a um gab~nete, sóbrio e, ao mesmo tempo, imponente. Aqui iríamos estar à conversa com o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Juiz Conse heiro António Henriques Gaspar, sobre esta viagem que não cabe num corredor e, como não poderia deixar de ser, sobre Justiça. Soilicitare 5

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A confiança na Justiçaéurn. vaLor essencial

JUfl ON ROTOlO NRI ES

GASIAPRESIDENTE DOS PREITO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

E sta Ana Filipa Pinto, André Silva e Rui Miguel Simão Fotografla Hugo Silva

A passadera vermelha percorre a escadaria e recebe-nos à entrada deum edifíco com história. Uma história feita de valores. Ao percorrermoso edifício sentimos, na primeira pessoa, a vida da Justiça em Portuga.A vida de um dos pilares da Democracia. Ao longo do corredo~ osretratos ilustram essa mesma vida. Percorremos com o olhar e ficamosa conhecer os rostos que compuseram o passado que determinaria o“agora’ Um corredor que nos leva a um gab~nete, sóbrio e, ao mesmotempo, imponente. Aqui iríamos estar à conversa com o Presidentedo Supremo Tribunal de Justiça, Juiz Conse heiro António HenriquesGaspar, sobre esta viagem que não cabe num corredor e, como nãopoderia deixar de ser, sobre Justiça.

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ENTREVISTA COM ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR

Como se pode explicar à sociedade civil o papel doSupremoTribunal de Justiça (STJ)?

O Supremo Tribunal de Justiça é, nos termos da Constituição, o árgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais. Hierarquia judiciária que é exercida por via de recurso nos díversos graus das instâncias judiciais nacionais. Nessa sua posiçãode árgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais, podemos dizer que o STJ julga e decide sobre questões de direito,os casos mais relevantes que lhe sejam submetidos por via derecurso. A relevância dos casos é determinada, em princípio,segundo critérios objetivos relacionados com o valor da causadas matérias civis e laborais e ainda com a natureza e a gravidade da pena efetivamente aplicada em matéria criminal.Esta é a posição que o STJ exerce no âmbito da jurisdição. Aoexercer estas competências, nos casos mais relevantes, produzdecisões que vão constituindo o seu patrimônio jurisprudencial. Para além disso, as decisões do STJ têm também a funçãode servir de orientação, por um lado, para a comunidade jurídica, por outro, para os tribunais das instâncias, sobre os sentidos possíveis da jurisprudência e, com isso, contribuir, atravésda interpretação do direito, para a certeza e segurança dasrelações jurídicas. A jurisprudência do STJ, nesta matéria, nãoé obrigatária porque não temos um sistema de precedente,como existe nos sistemas anglo-saxánicos. Pela força da convicção, a jurisprudência do STJ é um guia e uma orientaçãopara a comunidade jurídica em geral. A par da função de julgamento, o STJ tem uma outra função relevantíssima: fixar ajcirisprudência, em casos de divergênciasjurisprudenciais, que,não sendo obrigatária, auxilia na resolução de divergências.

Olhando para os números, verificamos uma quebra napendência e resultados bastante positivos na resoluçãode casos.

Exatamente. Neste momento, podemos dizer que há umaátima capacidade de resposta que é única, pois não encontramos nenhum exemplo similar noutros supremos tribunaisque tenham um tempo de resposta igual ao do nosso STJ. Estaé uma situação que muito nos orgulha e que depende da prápria organização do tribunal mas, sobretudo, do empenho, dadedicação, do esforço e do trabalho dos seusjuízes. Atravessámos tempos difíceis no que diz respeito a alterações processuais no regime de recursos, tanto em processo civil, como emprocesso penal. Nos últimos três anos — uma tendência comalguma consistência desde 2010 —, verificou-se uma descidado número de recursos, o que torna o STJ, neste momento,num tribunal ideal com um rácio perfeito entre o número dejuízes e o número de decisões nos processos que são distribuídos em cada ano.

Podemos dizer que é um desafio gerir um órgão como oSTJ em tempos de austeridade?

Sim, é um desafio. Os tempos de austeridade obrigam-nossempre a outro tipo de escolhas. Dentro das instituições doEstado, os tribunais sempre foram austeros. Austeros na sua

imagem, na sua forma e na sua gestão. Diz-se que, se sempre foram austeros, estão mais preparados para viver com aausteridade e eu respondo que, em termos culturais, sim, mas,em termos práticos, não, pois, se já são austeros, não podemaumentar o nível de austeridade. Por esse motivo, os últimostempos não foram fáceis, obrigaram-nos a contenções e aescolhas difíceis. Houve investimentos adiados, que tiveramde ser deixados para melhores tempos, nomeadamente nosequipamentos, na manutenção do edifício, dos acervos documentais, biblioteca, etc. É uma instituição muito complexano que diz respeito à gestão. Tem uma estrutura orçamentalque todos os anos tem de ser acordada com o Ministério dasFinanças. Há sempre, da parte do Ministério, um elevado nívelde compreensão, nos limites do possível, para as nossas dificuldades e para a nossa situação específica. Esperemos que2015 seja um pouco melhor.

Já podemos dizer que, apesar do cenário queatravessamos, a Justiça portuguesa é um auxiliar docrescimento económico?

Não podemos esquecer que, muitas vezes, as mensagenssão o produto de muitas simplificações. E a simplificação dascoisas complexas é sempre terrível. Relativamente à questão,costumo responder que a Justiça não está ao serviço da economia como sua função primordial. A Justiça está ao serviçodos cidadãos, das pessoas individuais, das pessoas concretas, das empresas, das relações econômicas e do ambientepropício ao estabelecimento de uma economia equilibrada.Apenas posso dizer que a Justiça tem que ter instituições quepossam responder de forma adequada, previsível e em tempo útil às relações interpessoais, às relações de cidadania eàs relações práprias da economia. A Justiça deverá criar umambiente adequado para que nele se desenvolvam relaçõeseconômicas equilibradas. Outra coisa bem diferente é o quenormalmente acontece. Há uma injunção sobre a Justiça parareso ver problemas que a Justiça não criou. A Justiça sofre, emtermos de organização e de procura, consequências de umaeconomia que já estava doente. A economia não ficou doenteporque a Justiça adoeceu, a Justiça é que sofre as consequências de uma economia desequilibrada. As relações têm de servistas nesta perspetiva.

Aos olhos do cidadão português, a Justiça já tem rostomais credível?

Eu gostaria muito que assim fosse. O que posso garantiraos cidadãos é que podem confiar nesta instituição. Se confiam, ou não, é algo que depende muito de uma realidadevolátil que são as percepções. As percepções são sempreuma construção ou reconstrução feita sobre qualquer coisa que pode estar distante da realidade. Temos sernpreesteparadoxo que temos de resolver. Quant,g~a issoicostUmo’dizerque a confiança na Justiça é um valoressencial.Não àvehios,mas sentimo-la. É fundamental, sobietudolpara ainstituiçãojudical, que a confiança seja o pilàn’ê a~garaI~tia.essÕncial da

existência de uma sociedade democrática. Para isso, a confiança tem que ser construída, todos os dias, em cada ato eem cada momento.

E, não esquecendo o Impacto dessas perceções,podemos afirmar que a Justiça já comunica melhor?A comunicação social já tem outra sensibilidade paragerir os princípios norteadores da Justiça? Como é quepodemos olhar para esta relação?

É uma questão complicada que exige uma gestão paradoxal. A Justiça tem capacidade de comunicação, mas existeuma contradição inicial que dificilmente poderá ser resolvida:aquilo que a Justiça pode comunicar nem sempre interessa àcomunicação. Envolvidos neste paradoxo sá poderemos sairdaqui cumprindo as regras da Democracia e aceitando doisprincípios essenciais: a confiança, entre os agentes da justiçae os mediadores comunicacionais, e a compreensão, sendoque, às vezes, para compreender é preciso um esforço, poisa Justiça comunica, mas não pode reduzir tudo às expressõesmais simples.

Há quem diga que a comunicação social é umdos poderes que também se ergue. Em Portugal,conseguimos manter a fronteiras entre os diversospoderes?

Isso é histárico. Se analisarmos a relação complexa entre apolítica, a Justiça e a comunicação social no século XIX, encontramos exemplos interessantíssimos. Se me perguntar, hoje, seas fronteiras estão traçadas, eu respondo que sim,,claramentetraçadas na Constituição e na lei, Se respeitarmos essas fronteiras, não existem conflitos, nem intromissões. Entre os agentes de justiça e os agentes políticos existe a consciência dasfronteiras, o que torna a nossa Democracia muito adulta. Existeuma outra perspetiva que diz respeito à politização da Justiça,uma ideia com a qual não concordo, pois são campos com

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+rNeste momento, podemos dizerque há uma ótima capacidade deresposta que é única, pois nãoencontramos nenhum exemplosimilar noutros supremos tribunaisque tenham um tempo de respostaigual ao do nosso STJ. Esta é umasituação que muito nos orgulha eque depende da própria organizaçãodo tribunal mas, sobretudo, doempenho, da dedicação, do esforço edo trabalho dos seus juízes.

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A Justiça está ao serviço dos cidadãos,das pessoas individuais, das pessoasconcretas, das empresas, das relaçõeseconómicas e do ambiente propícioao estabelecimento de uma economiaequilibrada. Apenas posso dizer quea Justiça tem que ter instituiçõesque possam responder de formaadequada, previsível e em tempo útilàs relações interpessoais, às relaçõesde cidadania e às relações próprias daeconomia.

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fronteiras bem traçadas. A Justiça só intervém quando paratal é solicitada e, quando assim acontece, não pode deixar dedecidir, mesmo quando for para decidir que não tem competência para tal. A minha única preocupação reside no factode, muitas vezes, seguirmos relatos comunicacionais, circunstâncias em que há a tentação de fazer um uso alternativo doprocesso, transformando-o e fazendo leituras que não são juridicas, mas políticas. É um risco ao qual a Justiça tem de estaratenta para não. se deixar envolver.

Disse, no discurso que proferiu na sessão solene deencerramento do vi congresso dos Solicitadores,que “a absorção dos conflitos numa sociedadeplural é uma missão de Justiça’: No contextoatual do país (e do mundo), qual o papei que ficareservado para uma entidade como o SupremoTribunal de Justiça?

Recordo-me bem dessa intervenção, que tive muito gostoem fazer. Nela referia-me à absorção dos conflitos que é a obrada Justiça como valor, ideia e ação e não em termos institucionais. E, nesse contexto, tinha em vista uma multiplicidadede atuações, mesmo através de instâncias não institucionaisou de instâncias informais, as quais podem absorver ou eliminar os conflitos numa fase mais preventiva do que reativa. Hámuitas instâncias, desde as mediações, à atividade dos advogados, solicitadores, das instituições de Justiça, etc. Todas elassão modos de absorção dos conflitos nessa perspetiva muitoampla.

E, partindo dessa perspetiva que apela a uma atuaçãode natureza mais preventiva, o cenário atual torna tudoainda mais desafiante?

São realidades que decorrem das interações sociais e económicas. A sociedade evoluiu muito rapidamente, uma aceleração, talvez, inesperada. Gerou novas complexidades, algunsdesequilíbrios e a dissolução das redes informais de apoio esolidariedade. O isolamento de cada um, sem o amparo dessas redes tradicionais que esta aceleração do tempo esgotou,torna a sociedade mais conflitual. Falamos de conflitos demédia/baixa intensidade, mas que têm de ser resolvidos. Essaaceleração produziu outra dinâmica e uma outra necessidade de intervenção por parte das instâncias de resolução deconflitos.

No que diz respeito ao papei do Solicitador, consideraque o mesmo tem acompanhado essa evoluçãoacelerada dos tempos?

Sim, a Solicitadoria coincide com uma missão muito relevante. É óbvio que, perante a evolução da sociedade, as novasinter-relações, a complexidade dessas relações, o isolamentodos indivíduos, os novos deveres ou a invocação de novosdireitos, o Solicitador se tem adaptado às novas realidades.E, evidentemente, adaptando-se a todas as novas realidades,prepara-se para saber responder.

ENTREVISTA COM ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR

Já no que concerne ao Agente de Execução,como avaliaria o percurso trilhado pela profissão?

É uma função nova, que nasceu com a criação deste modelode Ação Executiva, mas essencial. Para além de ser uma missãode interesse público é, na Ação Executiva, uma função pública.Dessa forma, o bom ou o mau exercício das funções de Agentede Execução, a sua dedicação e os seus instrumentos de apoio,nomeadamente as novas possibilidades informáticas de auxílio, podem ajudar a tornar a sua ação mais eficiente, revestindoa também de uma maior eficácia. O Agente de Execução é um

ator central do atual modelo de Ação Execut va.

Em Portugal, podemos afirmar que os órgãos defiscalização e disciplinares dos operadoresjudiciaisinteragem?

Comuncam quando têm necessidade de o fazer. Existe uma grande abertura comunicaciona entre os diversosórgãos de gestão e de disciplina nas interações que mantêmEsta interação pode ainda ser vista de uma outra perspetiva.Uma perspetiva que tem sido discutida e que consiste na promoção da participação de elementos externos nos sistemasde disciplina de algumas instituições da área da Justiça. Nãosei até que ponto é que, também nos órgãos de outras instituições, não seria um ganho, em termos de transparência ede atenuação corporativa, a existência de elementos vindosdo exterior.

A pergunta mais feita em tempos de incerteza:Olha para a Europa com apreensãoou esperança?

Numa perspetiva interna, temos contactos frequentes comos diversos órgãos judiciais da Europa. Os Supremos Tribunais têm uma rede própria de organização. Estabelecem-serelações de partilha e conhecimento com as diversas nstâncias e com os presidentes dos diversos Tribunais Supremos.Temos encontros regulares, colóquios, conferências, etc. Eestamos a trabalhar numa construção europeia sem pressa.Como cidadão, posso dizer que vi a construção europeia commuita esperança. Nos últimos tempos, tenho visto com muitaapreensão e espero pelo momento em que voltarei a ver commuita esperança.

“Possa eu; no fim do tempo que me concederam,possa eu dizer: — caminhei o meu caminho; combati obom combate; guardei, íntegros, os valores da Justiça,e cumpri as promessas da República”— Foi assim que terminou o seu discurso de tomadade posse. Assim continuaria a definir o seu objetivomáximo enquanto Presidente do SupremoTribunal de Justiça?

Foi um desígnio que afirmei para mim mesmo, que quispartilhar. É um desígnio que mantenho e que pretendo executar com a ajuda de todos, não só dos agentes da justiça, mastambém dos cidadãos, a quem a Justiça pertence.::