A Construção Da Democracia e o Fenómeno Da Corrupção Na República de Angola

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A construção da Democracia e o fenómeno da corrupção na República de Angola “A promiscuidade entre a política e os negócios pode ser perfeitamente legal, mas pode matar um regime” (António Barreto, 6 de Novembro de 2008, Lisboa, in Público) A construção da Democracia e o fenómeno da corrupção na República de Angola Quero antes de mais agradecer o convite formulado pela Associação Justiça, Paz e Democracia (AJPD) na pessoa do seu Presidente Dr. António Ventura, para estar nesta conferência e partilhar com todos alguns pensamentos, ideias, inquietações de uma jovem académica que, tal como muitos nesta sala, luta por uma verdadeira implantação do estado de direito democrático em Angola, livre do mal da corrupção. Durante o dia de ontem ouvimos brilhantes prelecções sobre a questão da corrupção, quer na vertente económica, social, ética e jurídico-penal. Pretendemos trazer para este fórum uma perspectiva diferente: a vertente jurídico- política da corrupção. É desta última dimensão que pretendo falar. Tentarei fazê-lo de forma a estabelecer uma ponte entre esta abordagem e os princípios da igualdade, dignidade da pessoa humana, do estado de direito, do democrático e do republicano. Angola vive um momento crucial de mudanças negativas que afectam a sua identidade e perigam o futuro do seu povo. Mudou a geografia política e humana, alterou-se a economia política e agudizou-se a crise social. Temos uma

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Quero antes de mais agradecer o convite formulado pela Associação Justiça, Paz e Democracia (AJPD) na pessoa do seu Presidente Dr. António Ventura, para estar nesta conferência e partilhar com todos alguns pensamentos, ideias, inquietações de uma jovem académica que, tal como muitos nesta sala, luta por uma verdadeira implantação do estado de direito democrático em Angola, livre do mal da corrupção.Durante o dia de ontem ouvimos brilhantes prelecções sobre a questão da corrupção, quer na vertente económica, social, ética e jurídico-penal. Pretendemos trazer para este fórum uma perspectiva diferente: a vertente jurídico-política da corrupção. É desta última dimensão que pretendo falar. Tentarei fazê-lo de forma a estabelecer uma ponte entre esta abordagem e os princípios da igualdade, dignidade da pessoa humana, do estado de direito, do democrático e do republicano.

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A construo da Democracia e o fenmeno da corrupo na Repblica de Angola A promiscuidade entre a poltica e os negcios pode ser perfeitamente legal, mas pode matar um regime

(Antnio Barreto, 6 de Novembro de 2008, Lisboa, in Pblico)

A construo da Democracia e o fenmeno da corrupo na Repblica de Angola

Quero antes de mais agradecer o convite formulado pela Associao Justia, Paz e Democracia (AJPD) na pessoa do seu Presidente Dr. Antnio Ventura, para estar nesta conferncia e partilhar com todos alguns pensamentos, ideias, inquietaes de uma jovem acadmica que, tal como muitos nesta sala, luta por uma verdadeira implantao do estado de direito democrtico em Angola, livre do mal da corrupo.

Durante o dia de ontem ouvimos brilhantes preleces sobre a questo da corrupo, quer na vertente econmica, social, tica e jurdico-penal. Pretendemos trazer para este frum uma perspectiva diferente: a vertente jurdico-poltica da corrupo. desta ltima dimenso que pretendo falar. Tentarei faz-lo de forma a estabelecer uma ponte entre esta abordagem e os princpios da igualdade, dignidade da pessoa humana, do estado de direito, do democrtico e do republicano.

Angola vive um momento crucial de mudanas negativas que afectam a sua identidade e perigam o futuro do seu povo. Mudou a geografia poltica e humana, alterou-se a economia poltica e agudizou-se a crise social. Temos uma repblica sem republicanismo, um estado democrtico sem democracia, um estado de direito que viola os direitos fundamentais dos cidados e uma Constituio derivada de fraudes e fundada na inconstitucionalidade.

Por outro lado, aps quase dez anos de paz militar, os angolanos comeam, a perceber que a guerra, afinal, no era a causa principal da represso, nem da corrupo; e que as desigualdades e a pobreza esto mais ligadas excluso social do que guerra. Percebem tambm que zelar pela boa governao dos recursos de todos no deve preocupar apenas os partidos polticos, mas constitui tarefa de todos os cidados. Vemos hoje uma juventude crtica, empreendedora e participativa, que comea a perder o medo e a encher-se de coragem para reivindicar os seus direitos, para falar poltica e exercer o poder poltico, tal como a juventude revolucionria dos anos 60 e 70 do sculo passado. Considero que chegou o momento de todos falarmos poltica, frontalmente e apresentarmos propostas correctivas para construirmos o nosso futuro.

O processo de construo da democracia angolana confunde-se com o processo de consagrao da Repblica. um processo complexo que envolve a transio cultural e material de Partido/Estado para estado de partidos; da guerra para a paz; da excluso para a incluso; da corrupo para a transparncia; da represso para os direitos humanos; de Estado de no direito para o Estado de direito. Envolve, prioritariamente, a aceitao de pertena a uma comunidade poltica Angola onde o exerccio do poder poltico tem por objectivo nico servir a comunidade; e onde o Estado uma pessoa de bem sob o controlo do cidado. Isto implica a subordinao de todos ao princpio republicano.

O processo de construo da democracia angolana teve o seu incio h mais de trs dcadas. Nasceu corrompido, foi vrias vezes defraudado e encontra-se encalhado exactamente porque os angolanos ou no compreenderam ou no aceitaram ainda o princpio republicano.

Depois de proclamada a Repblica Popular de Angola, em 1975, o processo de construo da democracia, envolveu batalhas militares entre exrcitos estrangeiros em solo angolano, intensa actividade diplomtica em solo estrangeiro e pouco ou nenhum dilogo estruturado srio entre angolanos, em solo angolano. Esta outra das razes porque o processo democrtico se encontra encalhado at hoje.

O Memorandum de Entendimento assinado no Luena, em 2002, foi essencialmente um documento militar que no envolveu um dilogo constitutivo srio para o processo de construo da democracia.

Todos estes eventos e documentos histricos, apesar de imprescindveis para o alcance da paz militar, revelaram-se insuficientes para o processo de construo da democracia.

Porque a cultura do totalitarismo, da intolerncia e da excluso, dominou tanto o movimento de libertao nacional como a sociedade e o Estado e a vida ps-independncia[1]; e porque nem os artfices da independncia nacional nem a sociedade formada aps ela herdaram da potncia colonial uma referncia de valores e princpios republicanos para o exerccio do poder poltico numa Repblica, a construo de uma democracia slida em Angola implica necessariamente dois passos prvios:

1. A estruturao e institucionalizao da reconciliao nacional como premissa da dignidade da pessoa humana e da cidadania igual para todos;

2. A estruturao de um dilogo franco e introspectivo sobre a natureza, os objectivos, os limites e os fundamentos do poder poltico numa Repblica.

Os programas concretizadores da reconciliao nacional tero de abarcar a dimenso cultural, poltica e econmica para se alcanar a plena restaurao e renovao do tecido social. O dilogo introspectivo dever incluir as regras de acesso ao poder e os contedos do seu exerccio para que, com base nos princpios universais, os angolanos possam compreender e aceitar, por exemplo, a resposta s seguintes questes fundamentais:

Quem deve deter o poder poltico? Deter e exercer o poder poltico a mesma coisa? Por quanto tempo deve o titular deter o poder poltico? Por quanto tempo deve o seu representante exerc-lo? E como? E porqu que o poder poltico pertence ao povo e s pode pertencer ao povo? E quem o povo? Que relao deve existir entre o titular do poder poltico e o titular de cargos polticos? Quais as regras de acesso ao exerccio do poder poltico? Porque que os titulares de cargos polticos no devem participar na organizao de eleies?

Que papel desempenham os princpios estruturantes da organizao do Estado na construo de uma sociedade justa, democrtica, solidria, de paz, igualdade e progresso social? O que significa dizer que Angola uma Repblica? E o que significa para o Presidente da Repblica dizer-se que a Repblica baseia-se na dignidade da pessoa humana e na vontade do povo angolano?

Acredito que encontrar-se a resposta correcta e estruturada a essas perguntas e aceit-las incondicionalmente - o que permitir desbloquear o processo de construo da democracia angolana.

De facto, a democracia angolana no se constri com Acordos assinados fora de Angola por alguns dos seus filhos, nem com Constituies impostas para promover os interesses de algumas famlias e muito menos com actos de corrupo, coaco ou de cooptao poltica ou econmica. A democracia um ambiente que se constri a partir da aceitao plena e sem reservas do princpio da igualdade entre os homens, dos direitos e liberdades individuais e do princpio do governo do povo, para o povo e pelo povo; a democracia constri-se com o dilogo permanente e inclusivo assente no pensamento liberal e no constitucionalismo moderno.

Esta tarde, proponho-me a contribuir para esse dilogo colectivo com a apresentao e discusso de trs teses:

1. A relao entre processo democrtico e corrupo endmica. Ao longo dos anos, o fenmeno da corrupo tem obstrudo o processo de construo da democracia angolana e tornou-se num obstculo srio para a afirmao da Repblica como Estado de direito. 2. O Estado actual no pode combater nem punir a corrupo, porque o seu governo funda-se na corrupo e promove a corrupo por sistematicamente subverter a democracia, defraudar a Constituio e utilizar a res publica para promover a res privata dos titulares de cargos pblicos.3. A actual gerao s cumprir o seu papel histrico se aceitar agora o desafio de firmar uma frente comum para criar as condies conducentes ao estabelecimento efectivo da Repblica de Angola como estado de direito democrtico.

Primeira tese

A relao entre processo democrtico e corrupo endmica. Ao longo dos anos, o fenmeno da corrupo tem obstrudo o processo de construo da democracia angolana e tornou-se num obstculo srio para a afirmao da Repblica como Estado de direito.

De acordo com a definio de Rui Teixeira Santos, agregamos na palavra corrupo um conjunto de comportamentos ilcitos, que afectam o pblico e o privado e que incluem extorso, fraude, nepotismo, o dinheiro sujo, o roubo, comisses, falsificao de registos, o trfico de influncias, lavagem de dinheiro e as contribuies de campanha[2].

A corrupo que obstri o processo democrtico essencialmente a corrupo da alta hierarquia, aquela que impacta a vida poltica e a estrutura do Estado. Susan Rose-Ackerman caracterizou os efeitos da corrupo na vida poltica e na estrutura do Estado defendendo que a corrupo da alta hierarquia cria cleptocracias, Estados extorsionrios ou Estados fracos e incentiva o monoplio, enquanto a corrupo da baixa hierarquia cria subornos competitivos com possvel espiral e Estados mafiosos[3].

A corrupo poltica que cria estados mafiosos uma falha do Estado. Tem-se debatido e evidenciado no s a existncia de uma relao entre a pobreza e a corrupo, entre o subdesenvolvimento e a corrupo, entre a eficincia e corrupo[4] mas tambm a existncia de uma relao estreita entre o efectivo exerccio da democracia num estado de direito e a corrupo.

desta ltima dimenso que trata a nossa apresentao. Na primeira tese, tentarei apresentar no tempo exemplos de como a corrupo poltica influenciou a construo da democracia; na segunda e na terceira teses estabelecerei uma ponte entre esta abordagem e os princpios da igualdade, dignidade da pessoa humana, do estado de direito, do princpio democrtico e do princpio republicano.

A corrupo poltica tem-se manifestado na forma de violao sistemtica dos acordos polticos e deturpao e manipulao de conceitos poltico-jurdicos fundamentais, como os conceitos de soberania, povo, unidade nacional e segurana do estado; manifesta-se tambm atravs de fraudes Constituio e fraudes eleitorais; manifesta-se ainda pela violao sistemtica dos princpios da supremacia da Constituio e da legalidade; engendra a banalizao da poltica e a subverso do papel do Estado, objectivando sempre o exerccio do poder poltico por uma classe ou grupo social ao arrepio do princpio republicano e do princpio democrtico.

A histria regista que, ao longo dos anos, a corrupo foi utilizada para subverter todas as etapas importantes do processo constitutivo da Repblica e do regime democrtico. Em 1975, as foras corruptivas sabotaram os Acordos de Alvor e impediram a organizao de eleies livres para os angolanos elegerem uma Assembleia Constituinte e redigirem a Constituio da sua primeira res publica.

A corrupo dos conceitos de soberania e povo, na dcada de 80, alimentou o fratricdio e a poltica de excluso. As negociaes polticas foram utilizadas como manobras tcticas dos objectivos militares, pelo que no se podia perder por via eleitoral o que j se havia alcanado no plano militar.

As motivaes dos mediadores estrangeiros tambm se revelaram corrompidas: provam-no o fiasco de Gbadolite, promovido pelos interesses de Mobutu, em Junho de 1989, os interesses cruzados de Portugal, em 1975, as ambiguidades, cumplicidades e contradies americanas e soviticas, na dcada de 90; e o papel geo-poltico que Cuba e frica do Sul jogaram na defesa de interesses opostos construo da Repblica e da democracia angolana[5].

Sados os estrangeiros e consagrada constitucionalmente a Repblica democrtica, a corrupo continuou a orientar a direco poltica e institucional do pas, agora por via de atentados e fraudes Constituio.

Um desses atentados ocorreu em 3 de Junho de 1996, quando, em contraveno ao disposto no Artigo 118 da Lei Constitucional, o Presidente da Repblica exonerou o Primeiro-ministro, um rgo autnomo, eleito (indirectamente) com a legislatura de 1992, antes do termo da legislatura e sem este ter apresentado a sua demisso, sem ter havido a eleio de um novo Presidente da Repblica, uma moo de censura, a dissoluo da Assembleia, ou outra situao de excepo, prevista na Lei Constitucional de ento.

Depois deste atentado, e no obstante JES ter nomeado um novo Primeiro Ministro, o Tribunal Supremo clarificou por Acrdo, e a requerimento de Eduardo dos Santos, que, apesar da existncia de um Primeiro-ministro, o Presidente da Repblica era o Chefe do Governo.

Um novo acto de corrupo que bloqueou o avano do processo democrtico ocorreu em 22 de Julho de 2005, por via judicial, quando Eduardo dos Santos causou que o Tribunal Supremo lavrasse o Acrdo relativo ao Processo Constitucional n 12, que agrediu o princpio republicano ao decretar, na prtica, que o Presidente da Repblica em exerccio poderia perpetuar-se no poder.

Os dois processos eleitorais realizados em 1992 e em 2008, tambm foram eivados de actos de corrupo na forma de fraudes estruturadas. A fraude eleitoral de 2008 foi planeada para permitir dois outros actos de corrupo: utilizar um acto democrtico a eleio para subverter a democracia e utilizar os resultados laboratoriais da eleio para subverter os direitos polticos dos cidados, impedindo-lhes de exercer o direito a soberania atravs do sufrgio universal para a escolha do seu representante para o cargo de Presidente da Repblica de Angola.

Assim, por via da corrupo, foi consagrada em 2010 uma Constituio autoritria, que foi aprovada em contraveno s regras procedimentais e ao princpio da separao de poderes que constitui limite material imposto em 1992 ao poder constituinte formal; que agride tanto o princpio republicano como o princpio democrtico ao configurar-se instrumento e no fundamento do poder; que ir, por isso, bloquear a realizao de processos eleitorais competitivos e credveis, pelo facto de consagrar um sistema de governo que, segundo o professor Jorge Miranda, aproximase, sim, do sistema de governo representativo simples[6], a que, configuraes diversas, se reconduziram a monarquia cesarista francesa de Bonaparte, a repblica corporativa de Salazar segundo a Constituio de 1933, o governo militar brasileiro segundo a Constituio de 19671969, vrios regimes autoritrios africanos[7][8].

A pergunta que se coloca agora : pode o Estado actual combater e punir a corrupo?

Segunda tese

O Estado actual no pode combater nem punir a corrupo, porque o seu governo funda-se na corrupo e promove a corrupo por sistematicamente subverter a democracia, defraudar a Constituio e utilizar a res publica para promover a res privata dos titulares de cargos pblicos.

O desenvolvimento desta tese implica uma apreciao sumria da actuao dos sucessivos governos do Partido/Estado luz dos princpios fundamentais da Repblica de Angola, porquanto, segundo De Plcido e Silva, nos princpios no se compreendem somente os fundamentos jurdicos, legalmente institudos, mas todo axioma jurdico derivado da cultura jurdica universal. Compreendem, pois, os fundamentos da Cincia Jurdica, onde se firmaram as normas originrias ou as leis cientficas do Direito, que traam as noes em que se estrutura o prprio Direito[9].

Assim, mesmo no inscrito nas leis, mas porque os princpios servem de base ao Direito, so tidos como preceitos fundamentais para a prtica do Direito e proteo aos direitos[10].

Analisemos o primeiro princpio: Angola uma Repblica soberana e independente, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade do povo angolano, que tem como objectivo fundamental a construo de uma sociedade livre, justa, democrtica, solidria, de paz, igualdade e progresso social.

A primeira parte do preceito, Angola uma Repblica soberana, rico em contedo porque se refere, antes de mais, comunidade poltica que corresponde Nao angolana no rigoroso sentido histrico-cultural. Numa repblica existem coisas pblicas e coisas privadas. A res publica tem a ver com tudo que seja do domnio pblico, tudo que seja de todos, como o diamante e o petrleo, de que nenhum indivduo pode apropriar-se. Outra coisa a res privata todos os bens que todas ou determinadas pessoas podem adquirir. Temos que ter em ateno que nenhum titular pode aproveitar-se da qualidade de membro ou titular de um cargo poltico para fazer transferir da res publica para sua res privata e por isso que o legislador constituinte estabeleceu inelegibilidades, responsabilidades criminal e civil dos titulares de cargos polticos e incompatibilidades[11].

Para alm deste aspecto, regista Jorge Miranda, pode ainda, contudo, encarar-se a repblica numa perspectiva algo diversa na perspectiva de uma democracia mais exigente e qualificada. Sendo nela o poder do povo e constituindo o povo de cidados livres e iguais, procura-se levar esta ideia at ao fim, em total coerncia. Pois, se a proscrio da hereditariedade se justifica por isso, ento outras consequncias podero e devero estar-lhe ligadas, em nome do mesmo princpio do princpio republicano[12].

A essncia do princpio republicano bem explicada pelo eminente professor: No se trata apenas de eleger, e de eleger periodicamente: trata-se de eleger todos os titulares de todos os rgos polticos; e trata-se tambm, desde logo, de banir quaisquer desigualdades, designadamente quaisquer privilgios de nascimento. No se trata apenas de eleger, directa ou indirectamente, o Chefe do Estado; trata-se ainda de qualquer cidado activo poder vir a ser eleito e de poder vir a ascender a qualquer magistratura. Mas, mais, o princpio republicano postula:

a) A configurao de todos os cargos do Estado, polticos e no polticos, em moldes de estatuto jurdico traduzido em situaes funcionais, e no em direitos subjectivos stricto sensu ou, muito menos, em privilgios;

b) A prescrio de incompatibilidades entre os cargos;

c) A responsabilidade poltica pelo seu exerccio;

d) A temporariedade de todos os cargos do Estado, polticos e no polticos, electivos e no electivos;

e) Consequentemente, a proibio quer de cargos hereditrios, quer de cargos vitalcios; a durao curta dos cargos polticos;

f) A limitao da designao para novos mandatos (ou do nmero de mandatos que a mesma pessoa pode exercer sucessivamente), devendo entender-se a renovao assim propiciada tanto um meio de prevenir a personalizao e o abuso do poder como uma via para abrir as respectivas magistraturas ao maior nmero de cidados;

g) Aps o exerccio dos cargos, a no conservao ou a no atribuio aos antigos titulares de direitos no conferidos aos cidados em geral (e que redundariam em privilgios)[13].

Ao furtar-se sistematicamente eleio para o exerccio de cargos electivos; ao personalizar, abusar e perpetuar-se no poder impedindo a abertura da respectiva magistratura ao maior nmero de cidados ; ao concentrar em si prprio os poderes que a Constituio de 2010 confere ao Presidente da transio e isentar-se da responsabilidade poltica pelo seu exerccio, o actual Chefe de Estado ofende o princpio republicano e desqualifica-se, portanto, para poder combater a corrupo endmica. No se pode actuar como Presidente da Repblica sem se respeitar o republicanismo e as suas regras.

No segundo segmento do artigo, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular, fixam-se os fundamentos e os limites da aco do Estado na proteco do ser de todas as pessoas. A dignidade da pessoa humana um prius, a vontade popular est-lhe subordinada; no se lhe contrape como princpio com que tenha de se harmonizar, porquanto a prpria ideia constitucional de dignidade da pessoa humana que a exige como forma de realizao, ensinam Antnio Corts e Jorge Miranda; no h respeito da vontade do povo angolano sem respeito da dignidade da pessoa humana. Uma sociedade que respeita a dignidade da pessoa humana, ensina Miranda, aquela em que as pessoas so reconhecidas como plos de liberdade, so tratadas com justia e apoiadas com solidariedade. Desta forma, se a vontade popular se subordina finalisticamente dignidade da pessoa humana, tambm esta, por sua vez, se liga ao modelo ideal de sociedade que lhe corresponde: o de uma sociedade livre, justa e solidria[14].

E aqui se manifesta particularmente a falha do Estado. Para a maioria em Angola, o que est em causa exactamente a disfuncionalidade de um sistema que viciante, manipulador do exerccio efectivo de direitos e liberdades, criando abusos, contornando a lei e as regras, fazendo com que os mais abastados, os mais protegidos e os mais ricos fiquem cada vez mais ricos por via dos actos de uma gesto danosa e predadora da coisa pblica e custa do sacrifcio da dignidade humana da maioria.

E mais: a falha do Estado agravada porque a classe que enriquece ocupa cargos pblicos, controla o poder poltico do Estado por via do Partido/Estado, que, por sua vez, controla tanto a administrao da justia como a administrao eleitoral.

Na prossecuo dos interesses das suas res privata, e com recurso a esquemas de corrupo poltica e econmica, a classe no poder faz com que a larga maioria seja excluda da efectiva participao na gesto da res publica (coisa pblica) e do acesso aos principais bens de primeira necessidade, nomeadamente gua, energia, alimentao, vesturio, educao, assistncia mdica e medicamentosa, saneamento bsico e habitao condignos.

No se constri uma sociedade livre, justa e solidria, com esquemas de corrupo institucionalizada que empobrecem a grande maioria da Nao e impedem o desenvolvimento da dignidade da pessoa humana.

Outra falha do Estado reside no facto de os seus rgos no investigarem convenientemente os furtos ao Tesouro j tornados pblicos; os chamados investimentos de angolanos titulares de cargos pblicos enriquecidos de dia para noite; os esquemas de sobrefacturao, contratao fraudulenta, negcios conseguem mesmos, etc., j amplamente denunciados e debatidos pelos prelectores que me antecederam.

O facto de o Estado angolano no investigar convenientemente as denncias pblicas de corrupo; o facto de nem o Chefe de Estado nem o titular do Poder Executivo terem vindo a pblico explicar como surgiram as fortunas das res privata com cargos pblicos ou seus parentes prximos, indiciam no mnimo que esses rgos se demitiram das suas funes constitucionais.

A relao de dependncia orgnica do Procurador-Geral da Repblica relativamente ao Chefe de Estado tem importantes consequncias do ponto de vista do princpio da separao e do controlo dos poderes e tem refraces profundamente negativas na possibilidade de combate corrupo. Se a essncia da corrupo reside principalmente no poder executivo, que titulado pelo Presidente da Repblica, no se pode garantir transparncia, autonomia e independncia do Procurador-Geral, se esta entidade responsvel pelo combate corrupo for nomeado e destitudo pelo Presidente da Repblica.

Exposta a dimenso do problema, conclui-se que a corrupo em Angola endmica, est na gnese do Estado e no se combate com simples normas jurdicas. Assim, pergunta-se: se o Estado angolano consolidou-se sob o signo da corrupo poltica, se o seu governo funda-se na corrupo, se a corrupo poltica promove e sustenta a corrupo econmica; se a endemia tornou-se num obstculo para a construo do Estado de direito em Angola, o que podemos fazer?

Que medidas profundas pode a Nao adoptar para a moralizao do Estado?

Terceira tese

A actual gerao s cumprir o seu papel histrico se aceitar agora o desafio de firmar uma frente comum para criar as condies conducentes ao estabelecimento efectivo da Repblica de Angola como Estado de direito democrtico.

Como referi no incio, Angola vive um momento crucial de mudanas negativas que afectam a sua identidade e perigam o futuro do seu povo. Acho que chegou o momento de todos falarmos poltica, frontalmente e apresentarmos propostas correctivas para construirmos o nosso futuro.

E penso que para isso que todos estamos aqui. A realizao de conferncias como esta muito importante, porque nelas podemos trocar ideias e programar outras aces. Eu trago algumas propostas.

O momento exige a interveno do soberano para a restaurao da repblica e a reformulao do Estado. Entendo serem estes os dois pilares da revoluo poltico-cultural que Angola reclama. Repito: a restaurao da repblica e a reformulao do Estado. E como se faz isso?

Proponho cinco medidas concretas, todas elas baseadas no princpio do estado de direito democrtico e no princpio da soberania popular, consagrados nos artigos 2 e 3 da Constituio:

1. Reforar o grau de participao individual no exerccio da soberania;2. Definir por consenso nacional o programa de reconciliao nacional;3. Declarar anti-republicana e antidemocrtica qualquer candidatura do actual Presidente da Repblica a um cargo electivo do Estado;4. Estabelecer por consenso nacional o novo sistema de governo para Angola 5. Estabelecer uma frente comum para terminar, por via eleitoral, o mandato do Partido/Estado na governao de Angola.

Reforar o grau de participao individual no exerccio da soberania;

O artigo 2 da Constituio proclama a Repblica de Angola um Estado democrtico de direito que tem como fundamentos a soberania popular, (...) o pluralismo de expresso e de organizao poltica e a democracia representativa e participativa.

verdade que est aqui declarado o princpio democrtico. Mas quem decide o futuro das Naes o povo activo. So os cidados activos que compem o povo activo e so estes que fazem a diferena.

Quando se fala em democracia participativa, comenta Jorge Miranda, pensa-se, todavia, em participao de grau mais intenso ou mais frequente do que o voto de tantos em tantos anos ou mais prximo dos problemas concretos das pessoas. E isto pode ser feito atravs de um mais intenso e empenhado aproveitamento dos direitos polticos constitucionalmente garantidos, de uma integrao activa nos partidos e em diferentes grupos de cidados eleitores e de uma maior disponibilidade para o desempenho de cargos pblicos[15].

E isto assim, porque a democracia representativa do nosso tempo tambm uma democracia de partidos. Sem serem os nicos, eles so os sujeitos ou agentes centrais da sua dinmica, atravs da simplificao das escolhas eleitorais imposta pelo sufrgio universal, pelo contraditrio, parlamentar e no parlamentar e pela apresentao de alternativas programticas e de governo15.

O artigo 3 da Constituio estabelece que tanto a titularidade como o exerccio da soberania pertencem ao povo, que a exerce atravs do sufrgio universal, livre, igual, directo secreto e peridico, do referendo e das demais formas estabelecidas pela Constituio, nomeadamente para a escolha dos seus representantes.

Importa aqui abrir um parntesis para explicar o conceito jurdico de soberania antes de falarmos das formas do seu exerccio.

A soberania poder, vontade. Por isso, a soberania inalienvel pela sua prpria natureza. A vontade personalssima: no se aliena nem se transfere a outrem. S o dono da vontade a pode manifestar. Os delegados e representantes eleitos ho-de exercer o poder de soberania segundo a vontade do corpo social consubstanciada na Constituio e nas leis. A soberania (vontade nacional), sendo inalienvel, indelegvel e intransfervel. O povo transfere aos seus representantes o exerccio do poder de soberania, mas o conserva na sua substncia. Por isso que pode manifestar de tempos a tempos. E o momento actual um desses tempos, porque os representantes do povo deixaram de exercer o poder de acordo com a vontade geral expressa na Constituio e nas leis.

No sistema democrtico, os representantes do soberano no tm nenhuma autoridade para substiturem a vontade da lei pela sua prpria vontade. o direito, e no o arbtrio das pessoas, que regula as funes de governo e define as normas de conduta dos agentes do poder pblico. a lei que limita o poder de governo.

Durante muitos anos, estes conceitos foram corrompidos para sustentar interesses difusos. Uma guerra civil nunca pode ser feita para defender a soberania nacional porque todo o povo nacional, de um lado e do doutro, o detentor nico da soberania, que una, indivisvel, inalienvel e imprescritvel pela sua natureza.

As eleies, os referendos e as demais formas estabelecidas pela Constituio, so os actos especficos de exerccio da soberania e da manifestao da vontade do povo angolano que aliceram a Repblica angolana. Por isso, so verdadeiros e prprios actos jurdico-pblicos.

E quais so essas demais formas do exerccio da soberania?

Instrumentos desta soberania popular so por exemplo o exerccio do direito de voto atravs do sufrgio universal igual directo e secretos (artigos 54 e 3 n1 da CRA), a participao democrtica dos cidados na resoluo dos problemas nacionais (artigo 52 da CRA) pois que, o exerccio ou monoplio da poltica no deve ser apenas dos partidos polticos, os sindicatos e associaes polticas devem fazer o exerccio da mesma numa sociedade democrtica); e a participao dos cidados no exerccio do poder local. (artigos 213 a 222 da CRA).

o direito de sufrgio, o ius sufragii que faz os cidados optimo jure ou cidados activos na frmula de Sieyes e que melhor define os status activae civitatis (a que se referia Jellinek). Seria isso que provavelmente tambm queria realar Aristteles ao afirmar que, quando o povo era senhor do voto, se tornava senhor do governo (constituio de Atenas, na traduo de Delfim Ferreira Leo)[16].

Definir por consenso nacional o programa de reconciliao nacional;

Ao excluir todos os outros, primeiro em 1975 e depois em 1991 e mesmo em 2010, o MPLA definiu quem so os seus adversrios. No plano militar, era a UNITA, mas no plano poltico a toda a parte da Nao angolana que no se rev no MPLA. Portanto, o processo de construo da democracia implica primeiramente uma exaustiva discusso nacional sobre o futuro do pas. Esta a chave mestra da reconciliao nacional.

Filomeno Vieira Lopes, em artigo de opinio no Jornal portugus O Pblico aquando da conferncia de Bruxelas, em Setembro de 1995 reconheceu este facto ao afirmar, cito:

nossa convico que o xito de qualquer programa de reconciliao nacional pressupe uma exaustiva discusso interna sobre os rumos que o pas deve seguir. Uma discusso exactamente no exclusivista. O pas possui, neste momento, um grau de desestruturao a todos os nveis (institucional, social, poltico, etc.,) capaz de subverter qualquer inteno magnnima e reduzi-la a mero desperdcio (...) o problema de fundo que as balizas da convivncia poltica em Angola no se encontram ainda definidas () o golpe constitucional recentemente protagonizado pela bancada maioritria do MPLA no Parlamento, no teve um agreement completo da UNITA, cuja bancada votou contra.

Quinze anos depois, o Partido/Estado protagonizou novo golpe. E este teve o repdio firme da UNITA e de vrias outras foras democrticas. Mas a citao continua actual, pelo que se impe este amplo dilogo nacional para a definio dos grandes objectivos e dos grandes contedos da reconciliao nacional. Os programas concretizadores da reconciliao nacional tero de abarcar a dimenso cultural, poltica e econmica para se alcanar a plena restaurao e renovao do tecido social.

Declarar anti-republicana e antidemocrtica qualquer candidatura do actual Presidente da Repblica a um cargo electivo do Estado;

Dos princpios democrtico, republicano e da igualdade material resulta uma interdio da candidatura do actual Presidente quer para o cargo de Presidente da Repblica, quer para o cargo de Primeiro Ministro, no caso da adopo de um sistema de base parlamentar.

O princpio republicano tem como corolrio a no vitaliciedade dos cargos polticos. Ele pretende contrariar a lgica monrquica de sucesso dinstica ou a auto-proclamao do Chefe do Estado como dictator rei publicae constituendae causa ou Cnsul Vitalcio, de direito ou de facto. E esta expresso de direito ou de facto assume relevncia no momento em que ditadores natos procuram defraudar o constitucionalismo por se manterem no poder de facto mas no de direito. Na Rssia, por exemplo, observou-se que o autoritarismo e personalizao do poder em Vladimir Putin, tornou praticamente irrelevante a questo de saber se ele ocupa a posio de Presidente ou de Primeiro Ministro, na medida em que ele, de facto, quem exerce o poder. Na Venezuela observou-se recentemente a aprovao, por referendo, de uma emenda constitucional admitindo a reeleio ilimitada do Presidente. Quer o lder russo, quer o lder venezuelano, violaram a essncia do princpio republicano.

No nosso caso, a questo que se coloca cidadania nacional se uma pessoa que, pelas mais variadas razes, ocupou o cargo de Chefe de Estado durante mais de 30 anos pode voltar a candidatar-se em funes presidenciais, como se nada se tivesse passado.

Eu afirmo que no. No porque a candidatura de Jos Eduardo dos Santos fere trs princpios fundamentais: o princpio republicano, o princpio democrtico e o princpio da igualdade.

Jos Eduardo dos Santos no pode ser nivelado com os demais cidados, porquanto ele controla (no institucionalmente mas pessoalmente) a informao, a comunicao social, as finanas pblicas e a economia. E para o efeito conta com a mquina administrativa do Estado e com estruturas paralelas, civis e militares; conta ainda com a ausncia de controlo e a no prestao de contas; conta tambm com a subordinao do poder judicial e da actual administrao eleitoral. O peso que os mais de 30 anos de exerccio de poder lhe conferem, de direito e de facto, nas estruturas de poder poltico, econmico, militar e social do pas, distorce o processo poltico e democrtico republicano. A sua eventual candidatura favorece uma eleio anti-republicana e contribui para impedir a renovao da legitimidade democrtica e emperrar, ainda mais, o processo de construo da democracia.

E temos de ter coragem como Nao para afirmar que o Acrdo do Tribunal Supremo de 2005 nulo luz do constitucionalismo, porque ele viola o princpio republicano e o princpio democrtico. Se na Rssia e na Venezuela, os cidados estiveram distrados, em Angola, isto no devia acontecer. Os angolanos no deviam permitir que uma pessoa pisasse a res publica e cuspisse no estado de direito.

Portanto, deve ser entendido por todos os angolanos que o princpio republicano e o princpio democrtico, no permitem que o actual Presidente de mais de 30 anos exera o poder representativo de direito - como Presidente ou como outro rgo nem de facto - como lder partidrio ou como Deputado que exerce de facto o poder na sombra atravs do controlo de um delfim.

Estabelecer por consenso nacional o novo sistema de governo para Angola

Para restaurar a Repblica e reformular o Estado, as foras democrticas precisam de definir agora, bem antes das eleies, o novo sistema de governo que devero propor Nao.

Que modelos para Angola? Quais as melhores vias para se abolir o fenmeno do Partido-estado em Angola? A via eleitoral ou legislativa? A revoluo cultural ou social?

Qual o melhor caminho para Angola? Um estado de partidos ou um Estado de cidados? Se se adoptar o Estado de Partidos, que relao deve existir entre o Chefe do Estado e o sistema eleitoral? E entre o Chefe de Estado e o sistema partidrio? O Presidente da Repblica deve ser partidrio ou apartidrio? Quem deve ser o lder do partido poltico no poder?

At que ponto que a concentrao de poderes no Presidente da Repblica e a sua eleio directa, a duas voltas, pode afectar o multipartidarismo e a existncia de partidos coesos?

Em que medida que um sistema eleitoral proporcional para as eleies parlamentares, eventualmente com clusulas barreira, poderia funcionar como um elemento relativizador dos poderes presidenciais, sem comprometer a governabilidade e a estabilidade?

Deve o futuro Chefe de Estado realizar uma funo de arbitragem jurdica ou de arbitragem poltica? Os futuros presidentes devem mesmo ser chefes do executivo e executar as polticas do Parlamento? Deve o Parlamento limitar-se a executar legislativamente as orientaes polticas do Chefe de Estado, na sua qualidade de lder partidrio?

Alguns autores defendem que se o Presidente da Repblica exerce funo governante, ou executiva, ento, de acordo com a teoria cvico-republicana do poder poltico, a dimenso patriarcal e simblica da figura de Chefe de Estado que ele personifica devia diluir-se em favor da sua dimenso cvica e igualitria, bem como o reforo da responsabilidade poltica e da vinculao jurdica. Nesse sentido, Pedro Lomba afirma que "uma governao responsvel aquela que age segundo critrios morais ou de acordo com padres de justia, aquela cuja legitimidade pblica e consensualmente aceite. Um dos corolrios da moralidade poltica a interdio da arbitrariedade; outro, o respeito pelos direitos individuais dos cidados... Quanto mais representativos, mais responsveis foram e so obrigados a ser os titulares do poder poltico[17].

Estabelecer uma frente comum para terminar, por via eleitoral, o mandato do Partido/Estado na governao de Angola (e definir medidas de participao poltica que garantam que as eleies de 2012 sejam realmente livres, democrticas e credveis).

A pluralidade e a liberdade poltica no deveriam dispersar o voto conveniente. O voto conveniente tem precedncia ao voto militante exactamente porque o momento exige que os patriotas e democratas angolanos, de todos os partidos, coloquem o interesse nacional acima do interesse pessoal ou de grupo. Este o grande desafio que se apresenta nossa gerao nas prximas eleies.

H os que defendem que Angola precisa primeiro de uma revoluo poltico-cultural pacfica para restaurar a repblica e s depois deveria realizar eleies. Eu acho que esta revoluo j est em marcha.

E deve notar-se que, como ensinam os constitucionalistas, revoluo um movimento de profundidade nacional destinado a uma ampla reforma social, tica e jurdica. a substituio de uma ideia de direito por outra, enquanto princpio director da actividade social. No apenas uma mudana ocasional de centro do poder de dominao, mas uma transmutao da sociedade na sua estrutura total, legitimando-se principalmente pela sua consonncia com o pensamento dominante e com as tradies histricas da nacionalidade.

disto que Angola necessita. O importante que seja feita por acordo, de forma pacfica, porque, como ensina Jorge Miranda, por exemplo, ... a revoluo no o triunfo da violncia; o triunfo de um Direito diferente ou de um diverso fundamento de validade do sistema jurdico positivo do Estado. No antijurdica; apenas anticonstitucional por oposio anterior Constituio no em face da Constituio que, com ela, vai irromper. A revoluo procura privar o direito da sua fora, mas para atingir esse fim ela coroa de direito a fora revolucionria.

E como afirmou recentemente o Presidente da UNITA, e passo a citar: Angola precisa no de temer a mudana, mas de perspectiv-la bem no interesse de todos, sem revanchismos nem caa s bruxas, mas com grandeza moral e no esprito da reconciliao e da construo da nao.

A frente comum a que me refiro pode assumir vrias formas. Pode ser uma frente de aces concertadas, um frum de concertao poltica, uma agenda nacional de interveno poltica, um movimento nacional, ou mesmo uma plataforma eleitoral ou pr eleitoral.

O primeiro passo seria definir o formato e acordar nos objectivos a alcanar. E para isso defendo ser necessrio que se privilegie a frmula quem no contra ns por ns, ao invs da frmula quem no por ns contra ns. Ou seja: as foras democrticas no so adversrias umas das outras. O adversrio da Nao angolana um s, o Partido/estado. E Angola s tem um Partido/Estado. Foi ele quem definiu, pela sua conduta governativa, o povo angolano como seu adversrio. ele que subverte a democracia e o estado de direito. Mais ningum governa. Por isso s h uma grande contradio e no duas.

Haver certamente contradies ou diferenas menores reflectidas na pluralidade poltica nacional. Mas o momento para se mobilizar a Nao para participar e agir no quadro da contradio maior. o voto conveniente para 2012.

O segundo passo seria a definio de medidas de participao poltica que garantam que as eleies de 2012 sejam realmente livres, transparentes, democrticas, credveis e controladas pelos eleitores. E neste quadro que a sociedade dever desenvolver aces pr-activas para reivindicar a criao de condies democrticas para a realizao de eleies democrticas.

De momento, defendo que no h no pas um ambiente de liberdade, justia e igualdade, que permita a realizao de eleies livres, justas e competitivas. No pode nunca ser qualificada de democrtica uma eleio onde participa um Partido/Estado. A eleio s ser competitiva se for democrtica, e s democrtica se for feita entre competidores iguais. O princpio da igualdade constitui um dos elementos estruturantes do constitucionalismo. Por isso, desde os primrdios do constitucionalismo moderno, est-lhe reservado um lugar saliente. Da mesma forma, em Frana, a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789, fonte das Constituies liberais, continha, logo no seu artigo 1, a clebre frmula les hommes naissent et demeurent libres et gaux en droits.

A Constituio angolana no se limita a declarar o princpio da igualdade (Art. 23 da CRA). Aplica-o, desde logo, a zonas mais sensveis na perspectiva da ideia do direito, em particular na competio poltica entre a colectividade poltica para o exerccio do poder poltico.

Hoje, a campanha eleitoral permanente e os actos conducentes formao e expresso da vontade popular realizam-se a todo o tempo (Art 17 da CRA) Por isso, no que diz respeito s eleies, so corolrios imediatos do princpio da igualdade, a no privao efectiva de direitos por motivos polticos (Art 23 n 2 da CRA); a igualdade entre as pessoas e entre os partidos (Art 23 n 1/ 17 n 4 da CRA); a igualdade no acesso imprensa e no tratamento dado pela imprensa (Art 17 n4/ Art 41 da CRA); o acesso livre aos eleitores; a no discriminao no exerccio do direito de reunio e de manifestao (Art. 21 h) da CRA); o acesso igual aos recursos pblicos para fins poltico-partidrios; e a no utilizao dos cargos pblicos nem dos recursos pblicos para fins partidrios. a observncia desses parmetros nos perodos intercalares s eleies, que garante, junto com o voto igual no momento eleitoral, o sufrgio igual.

Ora, enquanto existir e participar nas eleies um Partido que se confunde com o Estado e que utiliza os rgos do Estado, seus agentes e seus recursos, para intimidar os cidados, as eleies no sero democrticas.

Enquanto existir e participar nas eleies um Partido, que adopta para si e utiliza smbolos que se confundem com os smbolos de todos ns, nenhuma eleio ser democrtica.

Enquanto participar como concorrente s eleies um Partido que manipula a informao pblica e usa, controla e abusa da imprensa do Estado, dispondo de mais de dez horas por dia de tempo de antena, estas eleies no podem ser democrticas.

Enquanto existir e participar como concorrente s eleies um Partido que utiliza a Polcia, os Administradores, governadores e sobas para promover a intolerncia e a violncia, no se poder falar em eleies democrticas.

Concluso

Tudo dito, a sntese da minha mensagem : o momento exige a interveno do soberano para a restaurao da repblica e a reformulao do Estado.

Esta uma exigncia imposta pelos princpios consagrados nos artigos segundo e terceiro da Constituio. Vamos, por isso, reforar o grau de participao individual no exerccio da soberania; vamos definir por consenso nacional o programa de reconciliao nacional; vamos declarar anti-republicana e antidemocrtica qualquer candidatura do actual Presidente da Repblica a um cargo electivo do Estado; vamos estabelecer por consenso nacional o novo sistema de governo para Angola e vamos, desde j, estabelecer uma frente comum para terminar, por via eleitoral, o mandato do Partido/Estado na governao de Angola.

Hoje, importa, acima de tudo, preparar plenamente o cidado para viver uma vida individual na sociedade e ser educado no esprito dos ideais de: paz, liberdade, dignidade, igualdade, tolerncia, justia, fraternidade, solidariedade e democracia, como garantes da defesa e respeito pelos direitos fundamentais rumo construo de uma Nao democrtica e sem os perigos da corrupo quer seja econmica, social ou poltica.

Esta a mensagem que dirijo esta Conferncia sobre Transparncia, Corrupo, Boa Governao e cidadania em Angola.

Esta a mensagem que dirijo esta Conferncia sobre Transparncia, Corrupo, Boa Governao e cidadania em Angola.

Muito Obrigada!

Bibliografia

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CANOTILHO, J.J. Gomes/MOREIRA, Vital, Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, Vol. I, 4 ed., Coimbra Editora, 2006.

CANOTILHO, J.J. Gomes/MOREIRA, Vital, Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, Vol. II, 4 ed., Coimbra Editora, 2010.

CROKER, Chester A., High Noon in Southern Africa, W.W. Norton & Company, Inc., 1992.

LOMBA, Pedro, Teoria da Responsabilidade Poltica, Coimbra Editora, 2008.

MIRANDA, Jorge/MEDEIROS, Rui, Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, Tomo I, 2 ed., Coimbra Editora, 2010.

SANTOS, Rui Teixeira, Economia Poltica da Corrupo Caso dos Estados Lusfonos, Editora Bnomics, 2009.

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WEBBA, Mihaela, Os Poderes do Presidente da Repblica no Sistema Jurdico-constitucional e Poltico Angolano, Dissertao de Mestrado, FDUC, Coimbra, 2009.

WEBBA, Mihaela N./HILRIO, Esteves, A Constituio da Repblica de Angola Direitos Fundamentais, a sua promoo e proteco. Avanos e Retrocessos, relatrio de direitos fundamentais, Edio Open Society, Luanda, Novembro, 2010.

[1] CROKER, Chester A., High Noon in Southern Africa, W.W. Norton & Company, Inc., 1992.

[2] SANTOS, Rui Teixeira, ob. cit., p. 101.[3] Ackerman, Susan Rose, apud SANTOS, Rui Teixeira, Economia Poltica da Corrupo Caso dos Estados Lusfonos, Editora Bnomics, 2009, p. 132.[4] Idem.[5] CROKER, Chester A., High Noon in Southern Africa, W.W. Norton & Company, Inc., 1992.

[6]Sobre o sistema de governo representativo simples no confronto de outros tipos de governo, v. Manual , III, 5 ed., Coimbra, 2004, pgs. 396 e segs.[7]Cfr. Manual , I, pgs. 152, 301 e segs., 210211 e 221, e Autores citados.[8]Vital Moreira fala em presidencialismo superlativo em artigo no jornal Pblico de 9 de Fevereiro de 2010. Mihaela Webba defendia j na vigncia da LCA a existncia na prtica de um hiperpresidencialismo pelo facto de a Lei Constitucional atribuir vastos e excessivos poderes ao Presidente da Repblica; WEBBA, Mihaela, Os Poderes do Presidente da Repblica no Sistema Jurdico-constitucional e Poltico Angolano, Dissertao de Mestrado, FDUC, 2009. Quanto ao sistema de governo Mihaela Webba defende que o nosso actual sistema um sistema misto presidencial atpico, por causa das diversas caractersticas que recolhe dos sistemas parlamentar, presidencial e semipresidencial, com maior incidncia para o presidencial; WEBBA, Mihaela N./HILRIO, Esteves, A Constituio da Repblica de Angola Direitos Fundamentais, a sua promoo e proteco. Avanos e Retrocessos, relatrio de direitos fundamentais, Edio Open Society, Luanda, Novembro, 2010. [9] De Plcido e Silva, Vocabulrio Jurdico, 24 ed., Editora Forense, 2004.[10] Idem.[11] Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituio, 7 ed., Almedina, 2003, p. 227-228. CANOTILHO, J.J. Gomes/MOREIRA, Vital, Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, Vol. I, 4 ed., Coimbra Editora, 2006.[12] Jorge Miranda, Constituio Portuguesa Anotada, Tomo I, 2 ed. ampliada, Coimbra Editora,2010.[13] Idem.[14] Idem.[15] Idem. [16] Idem.[17]Pedro Lomba, Teoria da Responsabilidade Poltica, Coimbra Editora, 2008, p.70,77.