A Construção da Dimensão Humana - Dignidade, Direitos ... · Européias e seus Parceiros...

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1 Seminário A Construção da Dimensão Humana - Dignidade, Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais Comissão de Cidadania e Direitos Humanos

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Seminário

A Construção da Dimensão Humana -

Dignidade, Direitos Humanos Econômicos,

Sociais e Culturais

Comissão de Cidadania e Direitos Humanos

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Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul

Mesa Diretora da Assembléia LegislativaDo Estado do Rio Grande do Sul – 2001

PresidenteDeputado Sérgio Zambiasi (PTB)

1º Vice-PresidenteDeputado Francisco Appio (PPB)

2º Vice-PresidenteDeputada Maria do Rosário (PT)

1º SecretárioDeputado Alexandre Postal (PMDB)

2º SecretárioDeputado João Osório (PMDB)

3º SecretárioDeputado Paulo Azeredo (PDT)

4º SecretárioDeputado Marco Peixoto (PPB)

Comissão de Cidadania e Direitos Humanos

Presidente Vice-PresidenteDeputado Padre Roque Grazziotin (PT) Deputada Luciana Genro (PT)

Titulares

Deputada Maria do Rosário (PT) Deputado Francisco Áppio (PPB) Deputado Marco Peixoto (PPB) Deputado Manoel Maria (PTB) Deputado Elmar Schneider (PMDB) Deputada Iara Wortmann (PPS) Deputado José Ivo Sartori (PMDB) Deputado João Luiz Vargas (PDT) Deputado Vieira da Cunha (PDT) Deputado Aloísio Classmann (PTB)

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Apresentação

A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa

do Rio Grande do Sul (CCDH) realizou, em 30 de março de 2001, em parceria

com o Movimento Nacional dos Direitos Humanos/RS, o seminário A

Construção da Dimensão Humana - Dignidade, Direitos Humanos

Econômicos, Sociais e Culturais. Em paralelo, promoveu a exposição

fotográfica da Plataforma de Articulação e Diálogo das Agências Ecumênicas

Européias e seus Parceiros Brasileiros (PAD), retratando perspectivas de

atuação dos Direitos Humanos num contexto de violações e conquistas.

O evento explicitou o compromisso da CCDH em contribuir para que os

direitos econômicos, sociais e culturais se incorporem verdadeiramente ao

conjunto único, indivisível e universal dos Direitos Humanos.

Divulgar o conteúdo tratado no Seminário é o objetivo desta publicação,

visando ampliar ao máximo o acesso a este debate e incentivar a reflexão sobre

o lugar e a responsabilidade de cada um no Sistema de Proteção dos Direitos

Humanos, especialmente dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Deputado Padre Roque Grazziotin

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Presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos

A Construção da Dimensão Humana-

Dignidade, Direitos Humanos Econômicos,

Sociais e Culturais

Data: 30 de março de 2001 Local: Plenarinho da Assembléia Legislativa do RS

9h às 11h: PalestrasDra. Flávia Piovesan - Direitos Humanos Econômicos, Sociais e CulturaisDr. José Carlos Moreira da Silva Filho - Direitos Sociais11h às 12h - Debate

14h às 16h - Mesa RedondaA Dimensão Humana na Consolidação dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, através damanifestação dos Poderes

Executivo: Mozar Arthr Dietrich - Depto. Cidadania da STACAS/RSLegislativo: Dep. Padre Roque Grazziotin - Presidente CCDHH/ALJudiciário: Dr. Rui Portanova - DesembargadorMinistério Público: Dr. Claúdio Barros e Silva - Procurador-Geral de JustiçaPlataforma DHESC: Professor Valdevir Both - MNDH

16h15min às 18h - Debate e encaminhamentos18h - Encerramento

- Exposição Fotográfica PAD -

Data: de 26 a 30 de março de 2001 Local: Espaço Novos Talentos - Assembléia Legislativa

Direitos Humanos no Brasil e na Europa: Perspectivas de atuação num contexto de Violações eConquistas

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- Exposição organizada pela Plataforma de Articulação e Diálogo das Agências EcumênicasEuropéias e seus Parceiros Brasileiros (PAD), composta de 84 fotografias, retratando as condiçõesde vida de cidadãos e cidadãs brasileiros e de vários países europeus.

Direito Social e seus significados, o princípio da alteridade

José Carlos Moreira Da Silva Filho

A proposta que me foi feita é no sentido de tratar do tema dos direitos sociais,em função da discussão do Pacto dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais eCulturais. Na verdade, o título dessa conferência seria o direito social e seussignificados, o princípio da alteridade.

Inicialmente vou explicar um pouco esse título e, ao mesmo tempo, dar notíciassobre o sistema da exposição e das etapas que vamos procurar vencer. Sem dúvida,agradeço a presença de todos e espero que consigamos construir um diálogo profícuoesta manhã.

Embora a Dra. Flávia Piovesan ainda não possa estar presente, manifesto deantemão que é uma imensa honra poder figurar ao seu lado para discutir tema queconsidero de fundamental importância e de particular apreço.

O título Direito social e seus significados, princípio da alteridade surgiu apartir de dois pontos. Primeiramente, de um trabalho que desenvolvi na UniversidadeFederal de Santa Catarina, onde fiz meu mestrado. Na ocasião, procurei estudar opensamento da chamada filosofia da libertação latino-americana.

Dentro dessa filosofia há inúmeras correntes, e procurei privilegiar opensamento do filósofo argentino Enrique Dussel, que considero extremamente rico efértil, para que, a partir dele, possamos fazer reflexões envolvendo aspectos atinentesaos direitos sociais.

Talvez aqueles que fizeram o curso de Direito, estudam ou tenham interesse emler texto jurídico, ou até mesmo quem não esteja nesse meio, podem ter percebido quequando se fala em direito social normalmente vem à tona uma série de significados esentidos que muitas vezes são misturados entre si e não são divisados em suaespecificidade.

Esse esforço, fruto de uma pesquisa que desenvolvi na Universidade do Vale doRio dos Sinos, onde sou docente e coordenador do curso de Direito, procurou pontuaralgumas direções que se encontram por trás desse rótulo, desse tema direito social.Percebi que nessas direções diferentes podemos encontrar um fundamento único eamplo que informa todas essas direções. Este fundamento é exatamente a outra parte dotítulo da conferência, que é o princípio da alteridade.

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Esse termo, essa significação vem exatamente das investigações que realizei emtorno da filosofia da libertação latino-americana. O filósofo Enrique Dussel desenvolveo que ele chama de ética da alteridade – alter vem do outro – e vou procurarespecificar esse sentido mais adiante.

Desculpo-me pelo tom excessivamente acadêmico que possa adotar, é umtraquejo, uma decorrência de lidar com a academia. Dedico-me quase quepraticamente à universidade, mas espero que possa contribuir com alguns subsídiosteóricos para tornar essa reflexão mais rica.

É fundamental fazer um contexto do aparecimento da temática dos direitossociais. Em seguida, começarei a divisar uma das direções que o termo direito socialpode apontar; seria uma direção que poderia chamar de perspectiva sociológica oucaráter formal do direito social. De antemão já esclareço o que quer dizer. Muitasvezes quando se fala em direito social, além de enfocar determinados conteúdos queesses direitos devem abraçar, está-se fazendo referência à forma como as normas deconduta são produzidas na sociedade.

O direito pode ser classificado como social, não apenas em função doconteúdo de justiça social que ele busque atingir, mas também pela forma como essedireito é elaborado. Essa questão traz à tona a discussão de uma nova teoriademocrática que busque ir além da democracia representativa, perceber na sociedadeas movimentações coletivas de grupos como movimentos sociais e visualizar nessaatividade política a produção de legítimos direitos.

Existe essa perspectiva que coloca o enfoque de maneira muito mais intensa naforma de produção – por isso o temor formal – e não necessariamente no conteúdo quese esteja defendendo por intermédio daquela movimentação coletiva. Inúmerosautores procuraram aprofundar essa faceta, digamos, do direito social. No entanto, umdestacou-se dando uma solidez teórica para o discurso do direito social edesenvolvendo seu discurso exatamente nessa época – que vou falar anteriormente aesse ponto – sobre o contexto de aparecimento de direito social. Refiro-me ao juristarusso, naturalizado francês, Jorge Sgorvitz. A partir dele muitos outros se colocaram.

Num terceiro momento, vou procurar dar conta já num sentido que poderia serchamado de material, ser classificado como ético-filosófico e identificado no tema dosdireitos sociais. Neste sentido, vou trazer à tona as reflexões, dentre inúmeras quepodem ser feitas nesse rótulo, sobre perspectivas ético-filosóficas do direito social, afilosofia do argentino Enrique Dussel, até porque outros autores já procuraram fazeruma ponte entre o pensamento desse filósofo e as reflexões sobre os direitos,especialmente os Direitos Humanos.

Vou procurar dar conta do chamado aspecto material dos direitos sociais, aocomentar esse ponto. Quando se fala em direito social, também está-se fazendo

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referência a um determinado conjunto de direitos que possui certas características ecertos valores a preservar e a efetivar.

Finalmente, não poderia deixar de ser, quando se fala em direitos sociais é dese dar conta da perspectiva constitucional dessa discussão. Vamos observar também atradição dos direitos humanos, a discussão dos direitos humanos, até mesmo naantigüidade clássica e em outras culturas e ciclos culturais, como o ciclo culturalsemita. Enfim, como o termo Direitos Humanos foi, sem dúvida alguma, popularizadoe tornado célebre a partir do liberalismo, dos chamados direitos de primeirasdimensões e assim por diante, como vamos observar.

Neste século, a doutrina constitucional alemã, procurando prestar maiorefetividade ao que então se havia tido como uma mera declaração de princípios, ouideais atrás do termo Direitos Humanos, ou declaração de direitos, procurou emprestaruma noção de maior eficácia jurídica aos Direitos Humanos, passando a chamá-los dedireitos fundamentais, na medida em que eles integrassem a ordem constitucional dassociedades modernas.

Vamos procurar desenvolver essa discussão dos direitos fundamentais noâmbito do direito constitucional, enfocando a nossa realidade constitucional etrazendo à tona pontos polêmicos como, por exemplo, o dos direitos sociais serem ounão considerados verdadeiros direitos fundamentais, que vêm bem ao encontro dadiscussão no âmbito internacional.

Aliás, a professora Flávia Piovesan certamente vai abordar esses pontos. Essadiscussão revela-se como mais um argumento a favor da noção de que os direitossociais são indissociáveis em relação aos direitos individuais e que os DireitosHumanos devem ser vistos numa perspectiva global e indissociável. Esta discussãojuridicamente se coloca especificamente no ponto do art. 60, § 4 que trata dos limitesformais, a reforma constitucional, isto é, das chamadas cláusulas pétreas.

No § 4º do art. 60 é dito que não será objeto de deliberação a proposta deemenda tendente a abolir. E vem lá no inciso IV, os direitos e garantias individuais.Este termo deu espaço para que muitos juristas dissessem que apenas os direitosindividuais fazem parte desse núcleo irreformável da Constituição, os direitos sociaisnão. Vamos analisar essa polêmica e apresentar argumentos favoráveis. A proposta,portanto, seria óbvia. Poderíamos ainda enunciar outros sentidos para o termo direitosocial, mas procurando divisar algumas direções básicas. Então, vamo-nos manterpresos a essas aqui.

Conforme o roteiro informado, primeiramente trataremos do contexto deaparecimento da temática do direito social, para que possamos ter um pouco melhor anoção das circunstâncias que envolveram as discussões sobre esse tema.

Sem dúvida, poderíamos fazer um contexto diferente e, por exemplo, falar da

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tradição, alguns juristas fazem isso.O jurista mexicano Jesus Antonio de la Torre Rangel, que também analisa o

pensamento do filósofo argentino Enrique Dussel, observa que na tradição bíblicapercebe-se os Direitos Humanos no sentido dos direitos sociais de forma muito maisevidente do que na tradição Ocidental, que na nossa tradição, liberal-democrática.Refere-se ao conceito de Mispá que, de acordo com os profetas, seria a proteção dosmais débeis. Na própria Bíblia, pode-se perceber uma tradição em busca da efetivaçãodos direitos sociais e uma preocupação com o pobre. Essa é uma das característicasprimordiais dos chamados direitos sociais.

Para que possamos visualizar melhor esse termo dentro da discussão dosDireitos Humanos na nossa sociedade Ocidental, vamos comentar sobre a prioridadeno aparecimento dessa temática no século passado, dentro da esteira, da seqüência,dos chamados Direitos Humanos, a partir da tradição liberal.

Na segunda metade do século XIX, graças, entre outros fatores, à SegundaGrande Revolução Industrial, uma série de novas circunstâncias na sociedadecomeçaram a aparecer, denunciando a limitação e a incapacidade do discurso políticosocial e econômico trabalhado até então pela sociedade liberal, do Estado liberal, docapitalismo concorrencial. Na medida em que novos atores começaram a aparecer nasociedade e novas demandas começaram a surgir com maior pujança, de modo quenão pudessem ser atingidas ou satisfeitas pela visão do capitalismo liberal no seuinício, do Estado liberal, isso causou o aparecimento e a necessidade de uma discussãoteórica em prol de direitos que trouxessem um novo modelo de Estado, um novomodelo de pensamento político, econômico e de sociedade.

Por exemplo, percebeu-se uma nova classe social com maior evidência, àmedida em que os meios de produção começaram a passar por uma forteindustrialização, gerando a classe do proletariado. De outro lado, o capitalismoconcorrencial passou a dar maior ênfase ao plano de produção e não tão-somente aoplano de circulação das mercadorias como ocorria no capitalismo concorrencial doEstado liberal, dando, assim, maior ênfase também nas próprias relações de produção,que é uma característica do capitalismo industrial.

Isso começou a gerar uma série de exigências de direitos que não eram vistos,nem integrados dentro do discurso liberal proveniente da Revolução Francesa e foiemblemático nas obras da época. Inclusive, o romance de Émile Zola, Germinal,retrata com bastante clareza de que modo os direitos trabalhistas simplesmente nãoeram atendidos e não tinham espaço dentro da visão política, econômica e socialconstruída a partir da sociedade liberal de antanho.

Começaram a surgir novos atores, trabalhadores e sindicatos, e o ânimoassociativo tornou-se mais evidente à medida que as desigualdades, que escapavam da

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explicação de mundo fornecida pela visão de mundo liberal, apareciam num carátercoletivizado. Essa é uma das razões pelas quais entendemos o direito social comodireito coletivo. Isso é o direito social que veremos em última análise, como porexemplo, o direito dos trabalhadores passa pelo atendimento individual.

Ao falarmos em direitos sociais, temos a idéia de coletivo ou de coletivização,porque as desigualdades, que são objeto de atendimento dos direitos sociais e dopensamento utópico, se dão coletivamente. Portanto, são frutos de uma visão maisrealista da sociedade e menos idealizados. Os Senhores devem ter a noção de que avisão de mundo da sociedade liberal é uma visão idealizada, que parte de um contratosocial e na qual as duas grandes figuras que a compõem são dicotômicas, ou seja,separadas entre si. De um lado, está o indivíduo que tem sua vontade, sua autonomia eonde todos são iguais; de outro, o Estado. A essa visão de mundo corresponde adivisão que até hoje informa, de certo modo, nossa maneira de ver a realidade política,que é a divisão entre sociedade civil e Estado.

Não havia espaço para os grupos intermediários, os grupos coletivos, que secolocam, não em um plano idealizado do Contrato Social, de Rousseau, por exemplo,mas, sim, num plano concreto de desigualdades que surgem a partir dos papéis quecada um ocupa na organização econômica e social. Aliás, dentro do discurso clássicodo liberalismo, os grupos intermediários, as associações e, inclusive o coletivo, eravisto como um ambiente pernicioso no sentido de possibilitar o desvirtuamento davontade individual.

O Plano do Direito Civil, ou seja, o Plano do Direito dos Contratos,fundamenta-se na vontade individual. O direito vê a relação contratual como umarelação entre dois indivíduos livres, que têm liberdade para contratar. Todo o direitocivil está fundado na idéia de autonomia da vontade, seja no âmbito do direito dapropriedade ou no âmbito do direito contratual. O proprietário tem a liberdade dedispor, como bem entender, de sua propriedade. As partes têm liberdade para escolhercom quem contratar, como contratar e o que contratar. Isso possibilita a circulação damercadoria.

O contrato revelou-se como o reflexo jurídico dessa visão de mundo liberal.Existe uma grande dificuldade para essa visão de mundo entender o ânimo associativoe o coletivo. Esse estado de coisas criou uma insatisfação social que começou a trazermuitas convulsões sociais e um novo pensamento: o chamado Pensamento Utópico.Por trás desse termo, podemos perceber todos os pensadores que desenvolvem umdiscurso em prol do social. O grande pensador utópico desse período foi Karl Marx.

Paralelo ao pensamento dele, desenvolveram-se vários outros pensadores,alguns se classificando como marxistas, embora Karl Marx tivesse afirmado que nãoera um marxista, na medida em que não compactuava com algumas correntes que aí se

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colocavam.Esse estado de coisas forçou a estrutura, a sociedade capitalista, a se rearranjar.

O capitalismo, que se ancorava na organização política do Estado liberal, teve de sertransformado, na medida em ao Estado abstencionista, que é o Estado liberal,impunha-se o dever de abster-se de intervir na vida das pessoas, uma vez que elasteriam direito à sua liberdade, à sua integridade física, o direito de livre manifestaçãode opiniões – todos eram iguais perante a lei – e assim por diante.

A tarefa do Estado, dentro de uma visão liberal, é a de um Estado mínimo, quenão intervém, negativo. Na medida em que a organização livre – economicamentefalando – da sociedade, livre dentro da concepção do liberalismo, fundado numindividualismo extremo, não estava dando conta de responder a essas demandassociais que apareciam cada vez mais em função da transformação do capitalismoconcorrencial para o capitalismo industrial, o Estado, enquanto estrutura política, tevede ser reformulado também, para procurar evitar o rompimento do próprio sistemaeconômico quando estava montado. Aí surge uma nova feição de Estado soberano,que é o Estado intervencionista ou o chamado welfare state ou Estado do bem-estarsocial.

O Estado deixa de ter uma postura de abstenção e passa a ter uma postura deintervenção na realidade, uma postura positiva. Ele tem de garantir educação, saúde,enfim, garantir que os trabalhadores possam ser protegidos na relação desigual quemantinham com seus empregadores, de tal modo que o contrato de trabalho escapariada incidência do total do princípio da autonomia da vontade. Certas cláusulas docontrato de trabalho não poderiam ser reféns de uma pretensa liberdade que seinstauraria na relação entre empregador e empregado.

Ainda que o trabalhador fizesse um contrato com seu empregador no sentidode não receber o salário pelo seu trabalho, essa relação, caso fosse objeto de umademanda judicial, teria essa cláusula considerada nula e o trabalhador, obviamente,teria direito a contraprestação salarial.

O welfare state, sem dúvida, além de ter sido incentivado por esse novo estadode coisas, foi incentivado pelas duas grandes guerras que aconteceram nesse século,exigindo uma atitude mais presente do Estado em termos de providenciar mantimentose remédios. O crack da bolsa de 1929 também gerou a necessidade de uma novaatuação do Estado, intervindo mais na economia, na medida em que aconteceu muitainflação e muito desemprego a partir dele.

A primeira formulação constitucional deste Estado e, conseqüentemente, dosdireitos sociais que este Estado deveria contemplar, podemos identificar naConstituição de Weimar, 1919, que prenunciava – antecedeu – o Nacional Socialismoe a Constituição Mexicana de 1917. De posse desses elementos, conseguimos

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visualizar um pouco melhor a pujança que os direitos sociais começaram a assumir.Muitos autores, inclusive de maneira confusa, no próprio âmbito do direito,

identificam a discussão do direito social pura e simplesmente com o direito dotrabalho, na medida em que as reivindicações trabalhistas foram aquelas que sedestacaram mais. Até o próprio Gurvith dava ênfase ao direito do trabalho como orepresentante dos direitos sociais.

Transportando essa discussão para os dias atuais, evidencia-se como é limitadauma visão dos direitos sociais que busque reduzi-lo apenas ao direito do trabalho.Atualmente, falamos em direito ao trabalho, não apenas no direito de ter um saláriodigno, de ter condições dignas de trabalho, coniventes com a própria humanidadedaquele que está ali empregando sua força de trabalho. Isso sem falar de outrosdireitos que também se incluem dentro desse rótulo de direitos sociais, como o direitoà educação. Os próprios direitos culturais podem ser aí incluídos, na medida em que acultura também se reflete a partir da posição que o indivíduo ocupa no seu grupo eassim por diante.

Dentro do contexto sugerido para a segunda etapa do roteiro, podemos falarnuma visão sociológica ou formal dos direitos sociais. Destacamos sobremaneira oautor Georges Gurvith que procurou trabalhar essa noção e deu uma grandeconsistência teórica para o tema dos direitos sociais. Esse jurista, nascido na Rússia,em 1894, e naturalizado francês, faz algumas divisões. Sua intenção é procurar olharpara a realidade social vendo nela uma organização política e jurídica mais complexado que a visão de mundo liberal havia fornecido.

Ele desenvolve algumas categorias explicativas dessa realidade social econtrapõe, por exemplo, o direito social a um chamado direito individual. Procuracriar tipos, trazendo à tona a categoria de Max Webber, de tipos ideais, ou seja, tiposque nos ajudam a entender a realidade, mas que necessariamente não existem na suapureza na realidade concreta. Tipos que se interpenetram, que se misturam, mas quesão úteis para que possamos entender um pouco melhor a realidade com a qual nosdeparamos.

Gurvith nos fala de um direito social e de um direito individual. O direitoindividual seria o decorrente do desenvolvimento clássico do liberalismo. Oliberalismo fala em liberdade, mas essa é recalcada na idéia de indivíduo. O direitoindividual é aquele, por exemplo, contemplado no Código Civil Napoleônico, que foi,sem dúvida, o bastião dessa sociedade e que até hoje, de certa forma, ainda ocupa ochamado senso comum teórico dos juristas – expressão do professor Luís AlbertoVará.

O direito individual está calcado numa idéia de delimitação. Delimito aquiloque é meu e delimito o meu espaço dentro da sociedade. Esse direito é reflexo de uma

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ordem institucionalizada por um direito que exatamente procurou individualizar essatônica individual. De outro lado, existe o chamado direito social dentro da visão dessejurista. Esse direito seria o reflexo de uma fusão comunitária. Ele torna um pouco maiscomplexa essa análise do direito social, percebendo que existem vários níveis de fusãona sociedade.

Existem fusões que são efêmeras, por exemplo, uma multidão ou uma massaque se encontra na rua para protestar em relação a algo, e aí envolvendo vários valorese objetivos naquela relação que é social, na qual ocorre uma fusão, que tão logo seforma e que tão logo se dissipa. Existe também uma fusão mais intensa e outramoderada – ele faz essas tipologias todas. Mas o que ele busca perceber no direitosocial é que o esforço de delimitação do indivíduo cede para um discurso que passapelo indivíduo e envolve os outros membros do grupo que se encontram na mesmasituação em que aquele indivíduo está.

A idéia de fusão comunitária que o direito social traz é uma idéia desolidariedade mais visível, em que as pessoas de um mesmo grupo, portanto passandopelas mesmas vicissitudes e situações, identificam conjuntamente uma mesmanecessidade que exija a demanda de um determinado direito.

Sem dúvida que esse direito social, à medida que se reflete em grupos queatuam de forma corporativa, pode acabar degenerando na mesma dinâmica e formaçãoque os próprios direitos individuais, à medida que os grupos se coloquem contráriosuns aos outros e percam de vista exatamente essa tônica solidarista, comunitária e defusão.

Gurvith também faz uma divisão entre o direito espontâneo e o direitoorganizado. Associa o direito organizado, de maneira mais evidente, com os direitosindividuais, na medida em que estes, conforme eu disse anteriormente, foram fruto deuma institucionalização de um Estado liberal e de uma determinada codificação queressaltou a vida civil calcada no indivíduo. Portanto, o direito de propriedade, deliberdade contratual, da inviolabilidade do seu próprio corpo e assim por diante,seriam decorrência de algo já institucionalizado.

O direito social, como ainda não tinha uma resposta institucionalizada eorganizada, foi classificado por esse autor como direito espontâneo, ou seja, umdireito que surgia espontaneamente a partir das relações econômicas, sociais eculturais dos grupos dentro da sociedade.

Então, partindo dessas duas grandes divisões – que ele obviamente torna maiscomplexa na sua obra, mas não vem ao caso aprofundar aqui –, ele identifica umasoberania jurídica e uma soberania política.

A soberania política seria traduzida com a visão clássica da organização depoder a partir do liberalismo, isto é, o Estado, enquanto organização de poder central

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dentro da sociedade, monopolizaria esta soberania. E ele identifica a soberania políticacom essa visão clássica do Estado como sendo o ator fundamental e, muitas vezes,quase que exclusivo na atuação pública.

De outro lado haveria a soberania jurídica, que é vista pelo autor exatamentena existência de direitos paralelos em relação ao direito estatal. E, sem dúvida alguma,essa conclusão do Georges Gurvith deu espaço para o desenvolvimento de muitospensadores dentro do direito, que se colocam sob a direção do pluralismo jurídico.

Não poderia deixar de fazer referência a um autor gaúcho, contemporâneo, querealmente é de grande envergadura e tem contribuído muito para oxigenar, digamosassim, o pensamento jurídico, mostrando que a realidade com a qual nos deparamos émuito mais complexa do que aquela que nos foi passada pela visão de Russeau em seuContrato Social. Refiro-me ao autor Antônio Carlos Wolkmer, que tem uma obraintitulada Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura no Direito.

Essa mesma linha é seguida pelo sociólogo português Boaventura de SouzaSantos, autor que esteve no Fórum Social Mundial, que há muito tempo já fazia umapesquisa aqui no Brasil, no Rio de Janeiro especialmente, onde morou por um tempona favela do Jacarezinho, chamando-a de Pasárgada, e onde teve a oportunidade deperceber que ali havia um direito ou uma organização jurídica paralela em relação àorganização jurídica estatal – e esta é uma discussão tanto política quanto jurídica.

E o autor observou que, naquela favela, os espaços de poder na sociedade erammuito mais amplos e complexos do que os espaços institucionalizados e organizados,seja na organização dos partidos políticos, nos espaços dos poderes públicos e, maisadiante, no espaço dos próprios sindicatos.

É isso que traz a discussão da sociologia política dos novos movimentossociais, mostrando que existem outras formas de fazer política na sociedade, dando,portanto, mais razão ainda à visão desse jurista chamado Georges Gurvith, quepercebia que a sociedade era algo bem mais complexo do que a visão de que o mundoliberal procurava passar.

Não só no plano cultural, mas no próprio plano efetivo o Estado possui umpapel primacial, sem dúvida alguma, em que pese a existência de outras organizaçõespolíticas na sociedade, ainda mais no caso do Brasil, em que o Estado veio antes dasociedade civil, é óbvio que o Estado ainda exerce um papel fundamental e deveexercer da melhor forma o espaço institucional que lhe cabe.

Para encerrar essa rápida análise do pensador russo, gostaria de dizer que eletambém faz uma tipologia do direito social em relação ao Estado, falando de umdireito social puro, que seria um direito totalmente alheio à organização institucionaldo Estado, no qual o grau de interação entre os membros que compartilham aquelesdireitos seria máximo e tão intenso a ponto de contemplar a ausência de uma sanção

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incondicional.Isso quer dizer que a pessoa que pertence àquele grupo só vai se submeter a

sanções, ou seja, às conseqüências pelo descumprimento da norma instituída, casoqueira e caso acredite efetivamente. Todos sabem que um dos fundamentos do direitomoderno é exatamente a sanção incondicional ou a heteronomia dos direitos. A normaé um padrão de conduta quer você compactue ou não com o preceito que ela traduz,com a determinação da conduta que deve ser adotada.

A conseqüência para o descumprimento dessa norma é uma sanção punitiva.Existem também outras formas de garantir o cumprimento da norma, uma delas é que,à medida que alguém cumpre de forma exemplar, a sanção é premial, ou seja, a pessoaé premiada. Esses são alguns conceitos jurídicos básicos. Dentro da concepção dedireito social puro, a sanção não é algo que vem de fora, mas algo assumido, de fato,por aquela pessoa. O tipo, então, que Gurvith criou.

Há a idéia oposta desse direito social, que tem o maior índice deespontaneidade e difusão possível, que é o direito social subordinado, direito socialque foi cooptado pela organização institucional, a ponto de desmobilizar a própriaespontaneidade e legitimidade daqueles direitos que haviam nascido.

Gurvith menciona esse direito social como direito de dominação ou desubordinação. Podemos até interpretar uma certa degenerescência do estado do bem-estar social como poderíamos utilizar essa categoria do Gurvith para explicar o estadodo bem-estar social, em que pese contemplar muitas vezes normas que em si mesmosão importantes, fundamentais e uma conquista que deve ser mantida.

Ao mesmo tempo, essa atuação do Estado acabou por desmobilizar umainiciativa espontânea que surgiu no seio da sociedade e, o que é pior, retirar essespróprios sujeitos da sua posição ao formular as suas próprias demandas e a sua própriahistória.

Existe uma coletânea, feita pela Universidade de Brasília, que tambémdesenvolve uma vertente do chamado pluralismo jurídico, que é o projeto do Direitoachado na rua, desenvolvido inicialmente pelo Prof. Roberto Lira Filho e agoralevado adiante pelo professor José Geraldo Souza Júnior.

Essa coletânea tem um segundo volume chamado Introdução crítica aoDireito do Trabalho, que possui um artigo muito interessante da Socióloga ProfªMaria Célia Paoli, em que ela observa que, no nosso caso, a CLT significou um poucoessa desmobilização do movimento sindicalista que era bastante forte no Brasil nesseperíodo. Então, o Estado chamou para si a tarefa de formular as demandas sociais,cortando, de certa forma, a comunicação com esses espaços.

Mas é possível que haja essa comunicação, e é isso que Gurvith quer dizerquando nos fala, finalmente, de uma terceira categoria de direito social em relação ao

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Estado, que é o chamado direito social condensado ou direito de colaboraçãodemocrático. Embora ele perceba a existência de um direito social avesso ou cooptadopelo Estado, ele percebe que é possível haver uma comunicação entre essas instânciasespontâneas, nas quais se gesta o direito social, e as dimensões institucionalizadaspelo Estado.

À medida que o Estado mantém sempre aberto esse canal de comunicação comesses movimentos, com esses direitos, cria-se o chamado direito de colaboraçãodemocrático ou direito social condensado.

Nessa visão de Gurvith, pode-se perceber que ele coloca ênfase nesse aspectoformal do direito social. Como bom sociólogo, ele está preocupado em como asociedade se organiza, em como esses direitos são produzidos, se eles levam em contaa participação efetiva dos grupos que sofrem e que exigem esses direitos, ou se ele nãocontempla essa participação.

A ênfase aqui é colocada com relação à forma, à maneira como os direitos sãoproduzidos. Sem dúvida que o termo direito social também nos traz um sentido deconteúdo, um sentido material. Na tradição bíblica podemos perceber, num conceitode Mispá, de proteção dos mais débeis, a preocupação com o outro – daí o termoalteridade.

Acredito que o princípio da alteridade é o que melhor exprime o sentidomaterial e ético do direito social: à medida que temos uma preocupação com o outro,temos consciência da desigualdade, de uma diferença que não só deva ser eliminada –aquela diferença que traz a miséria humana para uns enquanto afasta outros dessamesma miséria –, mas que reconhece a dignidade do outro em participar desseprocesso. Ou seja, temos ao mesmo tempo a ênfase nesse aspecto formal edemocrático, a partir do princípio da alteridade, e a ênfase no aspecto de conteúdo, deeliminação da injustiça social.

Nesse sentido, vem a calhar o desenvolvimento teórico do pensador argentinoEnrique Dussel – A Filosofia da Libertação Latino-Americana –, que também é ligadaa alguns setores da teologia da libertação. Mas esse autor, paralelamente à suaparticipação na teologia da libertação, preocupou-se em fazer um discurso filosóficoque poderia inclusive prescindir de uma referência ao nível teológico, embora adiscussão teológica seja importante e fundamental.

Esse pensador procurou desenvolver essas categorias e esses fundamentos apartir de uma reflexão eminentemente racional, sem dúvida respaldada também pelafé. Dussel nos fala de um princípio ético da alteridade, de um pensamento voltadopara o outro. Cabe a pergunta: quem é o outro? O outro pode ser definido em inúmerasdimensões: podemos falar no outro no sentido psicológico, no sentido cultural, nosentido econômico, no sentido político, enfim, em todas as instâncias em que

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convivemos.Dussel privilegia algumas concretizações do que vem a ser esse outro. Posso já

adiantar que ele coloca o foco no outro contemplando aquele que é excluídomaterialmente da sociedade, isto é, aquele que não tem as suas necessidades humanasfundamentais satisfeitas.

Eu estava lendo o relatório feito pela sociedade civil – já que o Estado não fezo relatório que está determinado no Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais eCulturais, de 1966 –, que se organizou e produziu um belíssimo material. Olhandoeste material, podemos perceber que, sem dúvida, é preciso colocar a ênfase, quandose fala em direitos econômicos, sociais e culturais, não apenas nas chamadasnecessidades fundamentais ou nos direitos de subsistência, mas sim pensar no serhumano na sua dimensão mais ampla e digna possível.

Ao pensarmos no contexto latino-americano – daí por que esse pensamento seinsere na esteira da filosofia da libertação latino-americana –, não podemos deixar dever que grandes parcelas da nossa sociedade não têm sequer essas necessidadesmínimas devidamente satisfeitas e que, portanto, devemos colocar os nossos esforçosprioritariamente nessa direção, na medida em que uma boa parcela da nossa populaçãovive uma situação de miséria extremada – situação referendada aqui no relatório.

Para procurar tornar um pouco mais inteligível essas categorias do filósofo,procurarei sintetizar as bases. Num trabalho de Mestrado que fiz e que foi objeto depublicação, desenvolvi um pouco melhor essas categorias, mas agora serei rápido.

Dussel faz uma divisão da realidade basicamente entre dois espaços: achamada totalidade e a exterioridade. A exterioridade seria o espaço no qual o outroapareceria; e a totalidade é uma visão de mundo que não dá espaço para que o outroapareça em sua efetiva alteridade. Então, a totalidade seria tudo o que está ao nossoredor, os entes, quer dizer, os objetos, os sentidos e os significados que nos cercam,sendo que esses entes estão referenciados a um determinado fundamento, ou algunsfundamentos e valores, que estão na base dessa nossa forma de ver a realidade.

Então, interpretamos todos os entes que nos cercam a partir dessesfundamentos e desses valores. E à medida que não permitimos que outras realidades,outros fundamentos e outras culturas possam se expressar a partir de si mesmo, einterpretamos os entes que emergem desse âmbito da exterioridade como algo queacaba remetendo àquilo que desde de sempre conhecemos, estamos evitando que ooutro apareça na sua alteridade e estamos subsumindo esse outro dentro de uma leiturafeita a partir dos nossos próprios referenciais, impedindo que essa realidade possaemergir.

Concretizando essas categorias, Dussel preocupa-se, inicialmente, com acontextualização histórica da América Latina. Pode-se perceber no relatório que há

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uma ênfase com relação aos direitos indígenas – está no pacto também. Então, Dusselpreocupa-se em reconstruir a história do chamado descobrimento, que também é umtermo polêmico. Alguns autores falam em conquista e outros falam até em invasão.

Enfim, o que Dussel busca mostrar é que, quando houve o desembarqueeuropeu nas terras americanas, o outro, desde o início, não foi visto como o outro,mas, sim, foi subsumido em um fundamento que a visão eurocentrista trazia, já pelopróprio nome que foi dado a esse outro com o qual foi travado contato inicialmente.Os Senhores sabem que quando Cristóvão Colombo chegou na América Central viu oshabitantes autóctones – habitantes naturais dessas terras – e os chamou de índios. Porque índios? Porque, na visão de Colombo, aqueles eram os habitantes das Índias.

Então o outro foi visto como o mesmo, ou seja, houve uma interpretação dooutro não a partir da sua cultura, dos seus referenciais, dos seus próprios valores e dassuas necessidades e direitos, mas a partir do sentido que se imagina que aqueles entespreencheriam.

Para Dussel, trazemos desde o início um sentido de inferioridade latino-americana, um sentido de um povo que não afirma a sua própria cultura, que nãoafirma os seus próprios princípios. Temos a impressão de que a nossa base culturalfundamental é européia, mas basta ler uma obra de peso – uma das obras que, acredito,seja uma das mais importantes do Brasil, que foi Casa Grande e Senzala, do GilbertoFreyre –, para perceber que a visão européia é fundamental e explica muitas categoriascom as quais nos deparamos, mas a cultura indígena e a negra fazem parte, de maneiraindissociável, da nossa forma de ver a realidade.

Embora Gilberto Freyre tenha colocado no seu livro maior ênfase na culturanegra, não deixou de perceber quanto a cultura indígena contribui para o nosso dia-a-dia e quanto está presente na nossa visão de mundo, mas sem que percebamos isso.

Há o chamado mito da inferioridade latino-americana, de que devemos atingirum determinado patamar de que somos subdesenvolvidos ou um patamar cultural queainda não atingimos, mas que não traz a nossa própria realidade.

E esse estado de coisas, em nível cultural, também trouxe uma exclusãomaterial, uma exclusão mundial. A estrutura econômica mundial acabou trazendo umasituação de extrema miséria e exclusão para o contexto latino-americano. É a partirdesse contexto que Dussel busca raciocinar, dentro do seu pensamento de alteridade.Ele diz que a visão eurocentrista constrói uma totalidade na qual não conseguimos vera exterioridade desse excluído material latino-americano.

Dussel também desenvolve essas categorias em outras direções, e há umadireção especial que tem tudo a ver com a nossa discussão a respeito dos direitossociais. Dussel também faz, mais adiante no seu itinerário teórico, uma releitura daobra de Karl Marx. Nessa releitura, ele busca aplicar essas categorias de totalidade e

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exterioridade para o sistema capitalista, observando que esse sistema pode serconsiderado como uma totalidade e que o fundamento desse sistema é o valor, que porsua vez é o fundamento do capital.

Observa também que esse valor está presente em todos os entes que noscercam. Podemos classificar tudo, inclusive as pessoas, a partir da referência a essevalor. Então, o valor que uma pessoa possui enquanto força de trabalho, enquantoproprietário de determinados meios de produção, o valor que têm todos os objetos quenos cercam. Até mesmo as reflexões culturais e os espaços de lazer e de meditaçãopodem ter um preço e podem ser interpretados com fundamento no próprio valor dessesistema.

É isso que Dussel observa, procurando traduzir para as suas categorias. Ele vêque o capital circula, o valor transita de uma a outra determinação. Este livro, porexemplo, pode ser chamado de mercadoria, na medida em que pego o dinheiro – quetambém é um ente fundado no capital – e entrego para receber este livro, o valor setransforma e passa a estar presente neste livro. Se o livro rasga, esse valor édepreciado; se vendo este livro por um valor maior do que aquele que comprei, essevalor é aumentado.

Existem os valores fixos, nos meios de produção fixos; existe o tempo detrabalho necessário, enfim, todas aquelas categorias que Marx também analisou e quesão, nada mais, nada menos, do que outras determinações do valor.

Nesse sentido, pode-se perceber que a forma como o sistema está montado,não está voltado para a finalidade da satisfação das necessidades humanas, quer dizer,indiretamente pode-se atingir isso – que é defendido no discurso liberal-capitalista.Mas a prioridade e a própria lógica do sistema não são essas, mas, sim, o aumento dovalor abstrato do capital.

O jurista mexicano Oscar Correias – muito conhecido no meio jurídico – dizque o Direito, por sua vez, contribui para criar situações que possam perpetuar acirculação desse valor e permitir que ele adquira um valor cada vez maior, permitindoao sistema atingir a sua finalidade, que é o aumento do valor abstrato.

A observação que o jurista faz é fundamental em relação a alguns setores doDireito, entre eles o do Trabalho, que tradicionalmente é considerado um Direitoprotetivo, uma dimensão libertária na medida em que busca amenizar a desigualdadesocial, que o próprio sistema acaba trazendo. De outro lado, o chamado Direito doConsumidor, visto por muitos setores como um verdadeiro espaço, um verdadeirobastião de garantias ao qual o cidadão deve se apegar para também amenizar essadesigualdade.

O que Oscar Correias percebe é que esses setores do Direito, emboraobviamente tenham uma lógica que aponte para a exterioridade desse sistema, que

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busque o valor da humanidade, eles podem ser também subsumidos dentro dessalógica caso não tenhamos consciência de que o fundamento da totalidade do sistemaem que vivemos não privilegia diretamente a satisfação das necessidades humanas e adignidade humana, mas, sim, o valor abstrato do capital.

Então, se esquecermos de que numa relação de trabalho na verdade há umcontrato de compra e venda da força de trabalho, se ocultarmos essas relações básicascom eufemismos, podemos perder de vista essa situação, esse fundamento. Da mesmaforma o Direito do Consumidor, no qual as mercadorias transformam-se em bens eserviços, o comprador vira consumidor, o vendedor vira fornecedor e assim pordiante.

Lógico que não estou dizendo que os direitos sociais e o Direito doConsumidor deveriam ser colocados de lado porque compactuam com uma lógica oucom um fundamento que não trazem a satisfação das necessidades humanas. Não éisso, mas é preciso que tenhamos consciência e clareza quanto a essa questãofilosófica e fundamental do sistema que nos move, sob pena de acabarmos entrandonesse torvelinho sem perceber, deixando de contribuir, de forma mais eficaz, parauma sociedade que efetivamente privilegie o valor da pessoa humana.

Com isso, podemos delinear alguns sentidos do Direito Social: enquantoforma de produção de normas; enquanto superação das desigualdades, no sentido dejustiça social; e no aspecto do coletivo, porque as desigualdades acontecemcoletivamente – os aposentados, os trabalhadores.

Conforme o prometido, como não poderia deixar de ser ao tratar-se de umtema como este, também temos a projeção do Direito Social no aspecto jurídicoconstitucional. Temos toda a tradição dos Direitos Humanos, que foi trabalhadoinicialmente pelo Liberalismo, dentro dessa vertente que estamos privilegiando emtermos de contexto. Já disse que podemos visualizar Direitos Humanos, até mesmona antigüidade clássica podemos ver presente essa discussão.

O termo Direitos Humanos, portanto, assumiu infelizmente, ao longo dessahistória instaurada pelo liberalismo clássico, passando por essa dinâmica dosDireitos Sociais, por um lado, um sentido pejorativo – que está presente na discussãoque a Professora Flávia Piovesan desenvolve – ao dizer que a chamada declaração dedireitos acabou assumindo uma conotação de mera retórica, no sentido de apontarpara ideais e valores que não necessariamente teriam uma eficácia jurídica.

Muitos autores defendem que, no plano do Direito, deveríamos substituir otermo Direitos Humanos pelo de Direitos Fundamentais, para tentar afastar essesentido pejorativo que se apegou ao termo e colocar mais ênfase em que essesdireitos são fundamentais e constitucionais, devendo ser assim aplicados.

Ora, acredito que o termo Direitos Humanos, pela sua forma e maneira como

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se coloca, é fundamental e não pode deixar de existir. Mas é interessante perceberessa questão terminológica. Então, os Direitos Humanos, dentro dos direitos constitucionais, transformam-se em direitos fundamentais, que vêm desde a doutrina constitucional alemã. E essadiscussão constitucional de certa forma procurou reproduzir, nos seus textos naordem jurídica, a discussão histórica que se instaurou sobre as chamadas gerações dedireitos, termo que também é muito atacado – no relatório isso está expresso – pordar a idéia de que esses direitos existiram em uma determinada época, agora foramsubstituídos por outros e estão desatualizados, devendo ser substituídos. Mas a idéia,sem dúvida, não é essa.

Nesse sentido, Ingo Wolfgang Sarlet, juiz do Rio Grande do Sul que fezdoutorado em Munique, na Alemanha, tem um livro excelente sobre essa questão noplano do Direito Constitucional chamado Efetividade dos Direitos Fundamentais,pela Livraria do Advogado, que traz o termo dimensões de direitos. Acredito queseja uma proposta interessante, na medida em que evita essa visão cronológica deque esses direitos estão datados e de que não pertencem mais à atualidade. De todaforma, é importante termos uma visão cronológica de quando esses direitos surgiram.

Essa classificação é fundada, por um lado, nessa seqüência cronológica e, poroutro, num tipo de direito que está traduzido na primeira, segunda ou terceiradimensão. Na primeira dimensão de direitos, podemo-nos reportar ao século XIX everemos os chamados direitos de defesa ou direitos de liberdade, aos quais écorrelato a idéia de estado mínimo, de estado abstencionista: os direitos individuais,como o direito de integridade física, o direito de ir e vir, de inviolabilidade dopróprio lar, e o polêmico direito de propriedade, que não está colocado no pacto.

Existem muitas teses e conheço um colega que está desenvolvendo um estudonessa área, na Universidade Federal de Santa Catarina, que argumenta que o direitode propriedade, como é visto, atravanca a realização dos direitos humanos, não ospromovendo.

Na segunda metade do século XIX, podemos ver uma outra decorrênciadesses direitos de defesa ou de liberdade, que se traduz nas liberdades políticas esociais: o direito de associação, de organização partidária, de voto – extensível àsmulheres e aos outros setores da sociedade. Uma decorrência dos direitos de defesa edos direitos de liberdade.

Aparece, então, a segunda dimensão de direitos, mais ou menos no final doséculo XIX e primeira metade do século XX, os chamados direitos sociais ouprestacionais exigem uma atitude positiva por parte do Estado no sentido deimplementar e garantir a satisfação desses direitos, e não apenas uma atitude deabstenção ou de Estado mínimo.

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Conforme já se observou, esses direitos trabalham com uma lógicacoletivizada, já que as desigualdades acontecem nos espaços coletivos da sociedade.Obviamente, essa discussão inicial dos direitos sociais foi, de certa forma, como jádisse antes, muitas vezes, confundida, pura e simplesmente, com os direitostrabalhistas. Essa é uma visão muito limitada da dimensão dos direitos sociais. Bastaver a situação em que nos encontramos hoje, quando se discute esse tema cada vezmais, conforme já comentei. Isso está no art. 6º da Constituição no que se refere aodireito ao trabalho.

Existe um jurista espanhol, Davi Sanches Rubio, que também trabalha comDussel na filosofia da libertação latino-americana, que vai entender no direito aotrabalho uma estratégia fundamental de luta de todos os países em prol da dignidadehumana na medida em que, conforme estamos organizados, o trabalho torna-se, nãosó um meio de subsistência, mas também uma ocupação social e de identidade dentroda organização social que deve ser buscada. Obviamente o direito do trabalho nãopode ser considerado satisfatório no seu atingimento se entendermos que bastaqualquer salário e qualquer ocupação.

Infelizmente, está se vendo o direito ao trabalho sendo posto, muitas vezes,como uma desculpa para desmerecê-lo e colocá-lo numa situação desvantajosaporque não se fala mais num salário digno, não se fala mais em condições dignas ounos direitos que estão colocados no art. 7º da Constituição.

Finalmente, viria a terceira dimensão de direitos que seriam os direitoschamados planetários ou de solidariedade, que também podem ser entendidos peloconceito de interesses difusos. Aqui percebemos uma diferença em relação aosdireitos sociais. E por que percebemos? Naturalmente, é pela terceira dimensão dedireitos de proteção ao meio ambiente, de determinação dos povos e assim pordiante. Então percebemos aqui uma diferença. Por que, quando se fala em direitossociais, percebe-se com clareza o princípio da alteridade muito mais até do que noschamados direitos de terceira dimensão ou de terceira geração.

Vamos pensar bem: quando pensamos, por exemplo, em um meio ambientesadio, não estamos apenas pensando no outro que está numa situação desigual.Pensamos, em última análise, em nós mesmos. São chamados direitos desolidariedade porque todos se encontram na mesma situação. Então, na medida emque uma ofensa ao meio ambiente vá trazer prejuízos a uma determinada sociedade, auma determinada localidade, não é apenas àquela sociedade que essa ofensa vaitrazer prejuízo. Vai trazer prejuízo a todo ecossistema e a todos aqueles que vivemno planeta. Se o aumento da indústria tecnológica, o aprimoramento dessastecnologias se torna cada vez mais patente, essa ameaça também se torna cada vezmaior.

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Portanto, os direitos de terceira dimensão envolvem todos nós. É um todo.Por isso são considerados direitos de solidariedade. Nos direitos sociais, percebe-se adimensão de alteridade na sua maior intensidade. Vemos o outro numa situaçãodesigual e construímos um pensamento e uma ação em prol desse outro tanto nosentido de eliminar a desigualdade ultrajante em sua dignidade como no sentido depermitir que esse outro se manifeste como sujeito de sua própria história. Nessesentido, o princípio de alteridade ganha maior poder explicativo.

Cabe dizer, finalmente, que essas dimensões de direito estão sempre emconstante transformação. Isso está expresso com clareza no § 2º do art. 5º, que tratado princípio da abertura material do catálogo, incorporando inclusive os tratadosinternacionais que discorrem sobre os direitos fundamentais da ordemconstitucional brasileira, o que também – depois vamos ver – é mais um argumentopara dizer que os direitos sociais são, sim, um limite formal à revisãoconstitucional, isto é, integram as chamadas cláusulas pétreas.

Então, tratando desse aspecto, é indubitável – vou procurar agoraargumentar nesse sentido para justificar essa afirmação – que o reconhecimento queos direitos de primeira, de segunda e de terceira dimensão estão no Título II danossa Constituição, que trata dos direitos e garantias fundamentais. Isso é bem maisvisível no plano dos direitos sociais na medida em que há um capítulo especial paratratar deles. Há uma maior dúvida em relação aos direitos de terceira dimensão, masbasta olharmos o art. 5º, inc. LXXIII, por exemplo, onde se trata da ação popularpara proteger o meio ambiente. Vamos ver que o meio ambiente é um valor que estáinserido nos direitos fundamentais.

Da mesma forma, no art. 5º, inc. XXXII, diz que o Estado deve produziruma legislação que proteja o consumidor, porque os direitos deste também sãovistos, muitas vezes, como direitos de terceira dimensão, pois envolvem um todoindiferenciado onde todos estamos inseridos.

Quais são os questionamentos que cercam o direito social como direitofundamental? Primeiro argumento: os direitos individuais têm um preceito claro,qual seja, preceito é o que a norma diz que devemos fazer ou não em certassituações. Preceito é o seguinte: o Estado deve abster-se. O Estado deve deixar queas pessoas atuem e deve garantir que as pessoas tenham essa liberdade demanifestar seu pensamento, de não serem violadas em sua integridade física, emsuas idéias, de não serem discriminadas em função de raça, credo, religião, gênero,idade e assim por diante. Então o preceito é claro.

Em relação aos direitos de segunda dimensão, os chamados direitos sociais,sabe-se o resultado ao qual se quer chegar, mas a conduta efetiva que o Estado deveassumir não está dito na norma. A norma é indeterminada, é vaga porque não traz o

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preceito que deve ser realizado pelo Estado como destinatário da norma nem pelosmembros da sociedade. Isso é algo que deve ir mudando paulatinamente na medidaem que vivemos cada vez mais numa sociedade participativa onde não só o PoderPúblico é a instância de participação do poder na sociedade, muito embora ela sejamuito importante. Na nossa própria cultura brasileira, é fundamental.

Os direitos sociais devem ser vistos como um preceito para todos osmembros da sociedade, em especial para aqueles que ocupam posições de relevo naprodução econômica, cultural e social. Portanto o preceito não é claro. Isso faz comque muitos autores digam que os direitos sociais traduzem normas programáticas. Otermo programático foi trazido pelo eminente jurista Rui Barbosa que trouxe àdiscussão do Direito Constitucional norte-americano a diferença entre normas self-executing e not self-executing, quer dizer, auto-aplicáveis e não auto-aplicáveis, queforam traduzidas para o nosso Direito como normas programáticas.

Essas normas padeceriam do mesmo efeito das chamadas declarações dedireitos humanos. Teriam apenas uma exortação em termos de valores e elencariamideais a serem atingidos por todos os povos e sociedades, mas não traduziriam umaeficácia jurídica ou uma imposição de dever aos poderes públicos e a toda asociedade. Ora, analisando esse aspecto em particular, mais uma vez mencionandoIngo Sarlef que o critica de maneira incisiva e diz que se chamar os direitos sociaisde normas programáticas – e até ele muda o termo que prefere chamar de normas decunho programático –, significa dizer que os direitos sociais, sendo normas decunho programático, não têm nenhuma eficácia. Então ele não partilha desse termoe entende que esse termo é inadequado, porque é óbvio que, sem dúvida, hádiferenças em termos de eficácia em relação aos direitos individuais e sociais.

Direitos sociais traduzem uma complexidade muito maior. Daí a dizer queeles são ineficazes, que são meras normas programáticas, há uma distância. Antesde tratar da eficácia dos direitos sociais e como poderíamos visualizá-la, gostaria deelencar um outro argumento que se põe como um obstáculo à efetividade dosdireitos sociais, que é a chamada Tese da Reserva do Possível. A implementaçãodesses direitos depende de políticas públicas, de uma série de instâncias que estãoinstitucionalizadas, da previsão orçamentária que o Executivo faça tramitar noCongresso e assim por diante. Muitas vezes, o Estado pode deparar comdificuldades ou ausência de recursos para implementar aqueles direitos. E esse é umobstáculo que é levado em conta.

Outro problema gerado é a ingerência na administração do Executivo. E aísurge a dúvida: o direito social contemplado na Constituição é ou não é Direitosubjetivo público? O que é isso? Existem inúmeros conceitos de Direito subjetivo,inúmeras reflexões sobre esse conceito fundamental, mas o Direito subjetivo traduz,

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entre outros sentidos, o interesse de ação, quer dizer, um direito que a pessoa tem defazer valer um direito no âmbito judicial. E aí surge a pergunta: um trabalhador queesteja desempregado, por exemplo, pode ir ao Poder Judiciário e exigir que o seudireito ao trabalho seja cumprido porque há uma norma? É auto-executável porqueé um direito fundamental? Essa é uma discussão que surge.

Ingo Sarlet, desenvolvendo argumentos sobre essa tese, diz que, por seróbvio, não pode haver uma ingerência do Poder Judiciário no Poder Administrativoa ponto de interferir, por exemplo, na previsão orçamentária. Deve-se levar emconta a aplicação do princípio da dignidade humana de tal modo que, no momentoem que a dignidade mínima de uma pessoa esteja ameaçada pela não-satisfação deum direito fundamental previsto pela Constituição, então esse direito deve sercumprido e assegurado de alguma forma.

Lênio Streck, em seu livro Hermenêutica Jurídica em Crise, quando fala emdireitos sociais, traz alguns exemplos inclusive nesse sentido como concretizaçãodo chamado direito à saúde, condenando o Estado a providenciar remédios que peloSUS não estavam sendo fornecidos no caso de uma pessoa que tinha Aids.

Como estou me estendendo no meu tempo, vou procurar avançarrapidamente para concluir. É óbvio que os direitos sociais são eficazes. Até há umacrítica à técnica legislativa que foi utilizada na Constituição. Percebemos que noart. 5º, o § 1º, que trata da auto-aplicabilidade dos direitos fundamentais e o § 2º,que trata da abertura material do catálogo, inclusive abertos aos tratadosinternacionais, não deveriam estar subsumidos ao art. 5º, mas deveriam estar sereferindo a todo título. Isso traz uma falsa idéia de que só os direitos do art. 5º têmaplicação imediata ou podem ser acrescidos de novas discussões de tratadosinternacionais. Isso é falso. Por isso há críticas que muitos fazem nesse sentido.

Então a primeira eficácia dos direitos sociais é que têm uma eficáciarevogatória. De antemão, todas as normas anteriores à Constituição que contrastemcom esses direitos e seus objetivos devem ser consideradas revogadas por essasnormas. Aqui se trata de revogação, e não de inconstitucionalidade uma vez que oSupremo Tribunal Federal acatou a tese de não aceitar a inconstitucionalidadesuperveniente, isto é, já que a norma, quando foi criada, estava sob a égide daantiga ordem constitucional, e não havia sido considerada inconstitucional namedida em que sobrevenha uma nova ordem constitucional incompatível com essanorma, que não é inconstitucional porque, quando foi gerada, a Constituição apermitia e era de acordo com ela. Então o que acontece?

Se a Constituição simplesmente revoga essa norma, qual é o efeito práticodisso? Não pode ser objeto de recurso extraordinário ou de ação direta deinconstitucionalidade o questionamento dessa norma, mas, sim, de uma ação que

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vise à sua ilegalidade pura e simplesmente, e não a sua inconstitucionalidade. Háuma eficácia revogatória e, em relação às normas posteriores, pode ser sustentada ainconstitucionalidade da norma. E aí vemos o princípio da proibição do retrocesso,que é uma imposição voltada ao Poder Público no sentido de que não retroceda nagarantia desses direitos sociais, isto é, não elabore normas que visem a umretrocesso nessa área. Isso é auto-aplicável, pois é uma eficácia direta que existe,muito embora não esteja sendo entendida assim principalmente devido a muitasmedidas provisórias que se vêem acontecendo por aí. É uma eficácia hermenêutica,sem dúvida, porque a interpretação da legislação infraconstitucional e dos própriosramos do Direito Público e do Direito Privado devem levar em conta os princípiosdo direito social como norte hermenêutico para as normas infraconstitucionais.

Não vou desenvolver esse tema, mas traz à tona uma discussão que agoraestá em voga sobre a Hermenêutica Jurídica. Temos uma cultura jurídicaextremamente pobre e desatualizada em relação a como interpretar as normasjurídicas. Muitos autores estão trazendo a discussão da Hermenêutica, que é daFilosofia do Direito, especialmente para o âmbito do Direito Constitucional.Apenas gostaria de citar um autor, o Prof. Lênio Streck, cuja obra HermenêuticaJurídica em Crise trata a respeito desse tema e fornece-nos um bom panorama sobreessa discussão, que é Hermenêutica Jurídica em Crise.

A eficácia dos direitos sociais impõe ao legislador e aos Poderes Públicosregulamentarem essas normas, torná-las mais eficazes, mais aplicáveis. Em algumasobras que andei lendo da Professora Flávia Piovesan, coloca-se a possibilidade atémesmo de uma indenização do Poder Público na medida em que omite-se dessedever impingido pela ordem constitucional.

Um outro argumento de quem critica os direitos sociais é que eles ferem asliberdades. É recorrente essa visão que contrapõe os direitos sociais aos direitosindividuais, que um não pode harmonizar-se com o outro e que advogar direitossociais seria interferir de maneira intolerável nas liberdades que devem serpreservadas dentro da sociedade.

Não me alongarei nesse ponto, mas farei a leitura de um trecho do relatóriofeito pela sociedade de uma advertência do Professor Antônio Augusto CançadoTrindade, que sintetiza e coloca por terra, ou escanteia, esse tipo de argumentação.Ele diz o seguinte: De que vale o direito à vida sem o provimento de condiçõesmínimas de uma existência digna, senão de sobrevivência – alimentação, moradia,vestuário; de que vale o direito à liberdade de locomoção sem o direito à moradiaadequada; de que vale o direito à liberdade de expressão sem o acesso à instruçãoe à educação básica; de que valem os direitos políticos sem o direito ao trabalho;de que vale o direito ao trabalho sem o salário justo, capaz de atender às

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necessidades humanas básicas; de que vale o direito à liberdade de associaçãosem o direito à saúde; de que vale o direito à igualdade perante a lei sem asgarantias do devido processo legal. E os exemplos se multiplicam.

Isso sem falar que os direitos de primeira dimensão também têm um aspectopositivo, que exige uma prestação do Estado. Então, é preciso que o Estado faculteou permita uma estrutura judiciária que dê conta do atendimento das demandasindividuais dos cidadãos na Justiça, para que esses direitos não sejam violados. Issoexige uma prestação positiva do Estado. Da mesma forma, para que os direitospolíticos sejam exercidos – os direitos de manifestação –, o Estado também precisapropiciar todo um aparato.

De outro lado, os direitos de segunda geração também têm uma tônicaabstencionista, isto é, a liberdade de associação sindical, o direito de greve, tudoisso implica também. Isso reforça a tese de que os direitos individuais e sociais nãodevem ser vistos de forma dissociada, que os direitos humanos devem ser vistos nasua integralidade, e que a nossa visão do homem em função das nossas vicissitudessociais torna-se cada vez mais complexa. Isso devemos ter claro.

O último argumento de quem procura combater os direitos sociais em suaeficácia é que eles não são cláusulas pétreas, ou seja, não seriam um limite àreforma material da Constituição. Como eu havia lido anteriormente, no art. 60, §4°, inciso IV da Constituição está dito: Não será objeto de deliberação a propostade emenda tendente a abolir – não a acrescer – os direitos e garantias individuais,e pronto. Esse termo foi o apanágio ao qual muitos juristas e pensadores seapegaram para dizer que só o art. 5° não pode ser reformado, que o art. 7°, porexemplo, pode ser reformado à vontade.

O termo individuais aqui colocado na verdade expressa o jogo de forças quedesenvolveu-se na Assembléia Nacional Constituinte entre as chamadas forçasconservadoras e progressistas. Foi mais ou menos um acordo de cavalheiros. Porum lado, os direitos sociais estariam contemplados na Constituição, bem como afunção social da propriedade. Por outro lado, esses direitos não teriam umaaplicação imediata, ficariam reféns de uma regulamentação posterior e também nãoseriam objeto de limite à reforma material da Constituição. Esse é um primeiroargumento.

Um segundo argumento é desenvolvido por Manoel Gonçalves Ferreira emum artigo. Ele diz que a tradição constitucional brasileira quanto a essa expressãodireitos e garantias individuais – que não é a mesma do art. 5°, onde consta dosdireitos e deveres individuais e coletivos – sempre significou e sempre apontou paraos direitos de primeira dimensão.

Um outro argumento, que o Ives Gandra trouxe em um artigo, é o seguinte:

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o caráter flexível dado pelo legislador ao salário e à jornada de trabalho no art. 7°,permitindo que por convenção ou acordo coletivo o salário pudesse ser reduzido e ajornada aumentada, era um sinal de que esse artigo não pertencia às cláusulaspétreas, porque o próprio termo seria contraditório. Se a própria Constituição estáautorizando a serem flexibilizados, então eles não seriam cláusula pétrea.

E, finalmente, o argumento de que só são cláusulas pétreas alguns direitossociais, como o de associação e ao mandado de segurança coletivo, entre outros,que estão lá no art. 5°, como é em Portugal.

Para rebater esses argumentos, começaremos pelo último. Embora Portugaltenha sido a nossa metrópole e haja um refluxo atual dos constitucionalistasportugueses como Jorge Miranda e o próprio Professor Canotilho – voltando umpouco atrás no que dizia sobre constituição dirigente –, a realidade deles é outra,não é a mesma que a nossa, de capitalismo periférico. A Constituição portuguesanão é um parâmetro que possa nos guiar. Temos a nossa própria Constituição, anossa autodeterminação e a nossa própria discussão política.

A tradição constitucional brasileira também não pode servir de argumento,basta dizer que nossa última Constituição era fruto de um regime autoritário. Então,o argumento que a tradição constitucional brasileira sempre deu esse sentido paraesse termo também não é relevante e não pode ser levado em conta.

Outro ponto é a interpretação para o termo individuais. Ora, os direitossociais também são direitos individuais. Essa é a noção da indissociabilidade dosdireitos. Os direitos sociais são coletivizados, como eu disse antes, porque sãovisualizados nas desigualdades que acontecem coletivamente, em grupos. Percebe-se uma identidade entre os indivíduos que compõe o grupo e que sofrem de umacerta desigualdade, mas os direitos que serão satisfeitos para todos serão satisfeitospara cada um daqueles que compõe esse grupo. Então, obviamente os direitossociais são também, em última análise, direitos individuais, só que trabalham comuma lógica transindividual e não apenas com uma lógica de delimitação egoísticaou individual.

Outro ponto: se excluíssemos os direitos sociais e entendêssemos que só oart. 5° é cláusula pétrea, também os direitos políticos e os próprios direitos denacionalidade ficariam excluídos enquanto direitos fundamentais, o que evidencia-se como um contrasenso, sem dúvida.

Em relação ao argumento da flexibilidade, o fato da Constituiçãoestabelecer que por convenção ou acordo coletivo o salário pode ser reduzido e ajornada de trabalho aumentada, não quer dizer que não se está aí a preservar umlimite à reforma constitucional. Basta dizer que se fosse possível reformar esseartigo através de uma emenda, poderíamos conviver, por exemplo, com a seguinte

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situação: o salário pode ser reduzido por determinação do empregador,independente de convenção ou de acordo coletivo, porque pressupõe-seteoricamente, embora muitas vezes não ocorra, que a convenção e o acordo coletivoprocuram diminuir uma relação de desigualdade, daí porque estariam autorizadospela Constituição.

Entretanto, o argumento mais importante para considerar os direitos sociaiscomo cláusula pétrea e, portanto, como legítimos direitos fundamentais, é que nãodevemos ser reféns de uma interpretação gramatical da lei; devemos priorizar umainterpretação teleológica, que leve em conta a finalidade da lei.

Então, devemos pensar qual é a finalidade da Constituição, para que servemos seus limites materiais e para que servem as suas chamadas cláusulas pétreas. Elasservem para manter a identidade constitucional e para que a Constituição possacumprir com a sua finalidade. E qual é essa finalidade? Ela está prevista no art. 1°da Constituição: A República Federativa do Brasil, formada pela uniãoindissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em EstadoDemocrático de Direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, adignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa eo pluralismo político. São os direitos fundamentais que estão aqui contemplados.

Está aqui dito que vivemos num Estado Democrático de Direito. E o que éum Estado Democrático de Direito? É um Estado que busca atender às promessasda modernidade, que no nosso caso estão muito longe de terem sido minimamentesatisfeitas – falamos aqui em Estado do bem-estar social, mas sabemos que arealidade latino-americana é bem distante disso –, e um Estado que permita aparticipação política, inclusive.

Como último argumento, já fazendo a ponte para a palestra da ProfessoraFlávia Piovesan, os pactos internacionais também dizem isso. No § 2° do art. 5°está a abertura material aos catálogos, e os pactos internacionais dizem que osdireitos individuais e sociais são indissociáveis.

Desculpem-me, sou um pouco prolixo e acabei alongando-medemasiadamente. Poderemos nos aprofundar mais depois, no debate. Muitoobrigado.

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Mestre em Direito, Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná,Coordenador Adjunto do Curso de Direito da Universidade do Vale dos Sinos -Unisinos/RSe membro da Comissão de Especialistas em Ensino de Direito.

Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais

Flávia Piovesan

- Começaremos a nossa conversa enfrentando três questões: qual aconcepção contemporânea dos direitos humanos; qual os mecanismos jurídicos deproteção desses direitos, e aí tomando como ponto de partida tudo o que já foi aquiapresentado com relação à perspectiva constitucional – a nossa ênfase será na

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perspectiva internacional, com destaque para o Pacto Internacional dos DireitosEconômicos, Sociais e Culturais, e finalmente o impacto da globalização econômicano processo de efetivação dos direitos sociais e, portanto, como enfrentar oprocesso de desconstitucionalização ou flexibilização desses direitos.

Compartilho das posições aqui externadas com relação a cláusulas pétreas.Entendo que os direitos sociais são protegidos pela cláusula do art. 60, parágrafo 4º,inciso IV, de modo que temos argumentos em comum em prol da juridicidade, daefetividade e da necessidade de que esses direitos sejam vistos como tal.

Foi publicada no jornal O Globo, deste sábado, uma matéria que deve noschamar a atenção quando se fala do princípio da alteridade, como tão bemexaminado pelo Professor José Carlos Moreira da Silva. O princípio da alteridade écrucial quando se fala dos direitos econômicos, sociais e culturais, na medida emque temos que ver o outro como um sujeito de direito e na medida em que temosque encontrar mecanismos – vou-me limitar à esfera jurídica, que é a de minhaatuação, mas não há dúvida que há outras tantas estratégias a serem somadas àjurídica – para que esses direitos possam ser aplicados.

O jornal O Globo, deste sábado, divulgou o relatório do Índice deDesenvolvimento Humano do município do Rio de Janeiro. É a primeira vez que sefaz uma pesquisa nessa direção, porque, em geral, o IDH se atém a raízes, bastalembrar que o nosso País figura no 71º lugar no ranking do desenvolvimentohumano que considera outros 150 países. O Brasil está na metade, em 71º lugar, eos Senhores podem perceber que essa posição é bastante recuada, mesmo o Brasilse dizendo, com o orgulho, a 8ª ou 9ª ou 10ª economia mundial em termos de PIBnacional. Lamentavelmente, não estamos em sintonia no tocante aodesenvolvimento humano, que considera analfabetismo, escolaridade, saúde, renda,expectativa de vida, dentre outros pontos. Estamos no 71º lugar.

Tendo em vista o apartheid socioeconômico existente no Rio de Janeiro, foiele destacado como o primeiro município do mundo a ser objeto de uma pesquisado PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – a respeito doÍndice de Desenvolvimento Humano. Qual a conclusão que se chegou? Lagoa é omelhor bairro do Rio de Janeiro e Acari o pior. Isso significa dizer que a Lagoa é omelhor bairro da Cidade com índices de condição de vida comparáveis aos da Itália,enquanto Acari se assemelharia às condições de vida na Argélia, na África. Emtermos numéricos, a taxa de analfabetismo na Lagoa é de 2% e em Acari 16%. Aescolaridade média na Lagoa é 12 anos e em Acari 3 anos. Renda per capita familiarna Lagoa é de 2 mil 126 reais e em Acari é de 115 reais. Expectativa de vida naLagoa é de 73 anos e em Acari 56 anos. Esses dados fazem com que a ONUconclua que há uma diferença de 96 anos de atraso em relação à Lagoa se nós

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tomarmos Acari, ou seja, há uma diferença secular que distancia a realidade deAcari à da Lagoa. Há décadas a expectativa de vida aqui no Brasil era de 56 anos.Hoje, a depender do recorte de classe, teremos uma outra resultante.

Isso tem absoluta pertinência ao tema dos direitos econômicos, sociais eculturais. Vou tentar fazer menção, o tempo todo, à palestra do Dr. José CarlosFilho para reforçar a idéia da alteridade. É fundamental que incluamos essa grandeparcela da população brasileira que vive em Acaris, seja em Porto Alegre ou SãoPaulo ou em outras regiões.

Trago também uma matéria publicada no dia de hoje no jornal Estado deSão Paulo em que Mary Robinson, que infelizmente deixou de ser alta comissáriada ONU para Direitos Humanos nesta semana e reassumiu a presidência da Irlanda,diz que a pobreza é a negação de qualquer direito ao cidadão e qualquer estratégiade desenvolvimento deve conter ações que possam fortalecer os direitos humanos.Fica claro, então, que a pobreza é uma violação aos direitos do cidadão.

Não sei se os Senhores conhecem um trabalho interessante de autoria doProfessor Marcelo Paixão sobre IDH e sua perspectiva racial. De qualquer maneira,o Brasil está em 71º lugar com relação à leitura racial. Se indagamos como vive apopulação branca no País, nós subimos 30 casas e figuramos em 43º lugar. Seindagamos como vive a população negra, nós caímos 30 casas e figuramos em 78ºlugar. Na nossa fala vamos também reforçar a idéia de que direitos humanos devemser concebidos sobre a perspectiva de raça, etnia, gênero, dentre outros critérios.Pertencer a uma raça, a um gênero, a uma etnia importa no modo pelo qual direitossão exercidos ou violados. É fundamental que se tenha essa percepção, até porquequando se fala em direitos econômicos, sociais e culturais temos de enfrentar osprocessos de etnização e feminização da pobreza. A pobreza, em outras palavras, aviolação aos DESC – Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – tem uma feição,tem uma cara e esta apresenta um gênero, uma etnia e uma raça preferencial. Háalvos preferenciais no processo de exclusão de direitos.

Feitos esses comentários preliminares, começamos com a primeira questão.O que significaria os Direitos Humanos Sociais, Econômicos e Culturais? De quemaneira os direitos humanos podem ser concebidos na ótica contemporânea e deque forma a concepção de direitos humanos abraça os direitos econômicos sociais eculturais? Filio-me àqueles e àquelas que defendem a historicidade dos direitoshumanos. Os Direitos Humanos são relativos, são históricos, são invenção humana;não são um dado, mas são construídos.

Não obstante à historicidade desses direitos, a todo tempo traduzem umaplataforma emancipatória. Quem defende Direitos Humanos, e aqui temos váriosdefensores, seja com relação à gênero, raça, adolescência, criança, todos nós

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partilhamos da mesma ótica da gramática de inclusão. Quem defende DireitosHumanos defende uma gramática de inclusão em reação às formas de opressão,exclusão e desigualdade.

Como disse, a nossa intervenção terá como prisma a ótica internacional. Afonte do Professor Norberto Bobbio sustenta essa historicidade dos DireitosHumanos afirmando que estes nascem como direitos naturais universais e aí evocaele todo o legado iluminista que defendia direitos inalienáveis à condição humana,direitos que não precisavam ser escritos, mas que eram invioláveis, imprescritíveise, portanto, naturais e universais.

Num segundo momento, diz ele, esses direitos se desenvolvem comodireitos positivos particulares. Cada Estado, dentre eles o Brasil e outros 200Estados que integram a nossa ordem internacional, vai trazer a sua gramáticaprópria de direitos. Eles perdem em alcance, deixam de ser universais, tornam-semais locais, mas ganham em termos de positivação e concretude; tornam-seexplícitos, para finalmente encontrarem a sua plena realização, numa terceira fase,como direitos positivos universais. É esse o momento que nos interessa.

Cada vez mais há parâmetros. Cada vez mais experiências como a realizadaquando da feitura do relatório paralelo ao Pacto Internacional dos DireitosEconômicos, Sociais e Culturais mostram que há parâmetros mínimos na esferainternacional que devem ser seguidos pelos Estados. Por exemplo, o PactoInternacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foi ratificado por maisde 140 Estados, dentre eles o Brasil. Esse é o parâmetro mínimo que deve serpreservado, por mais diferentes que sejam esses países, esses Estados. Então, temosque avaliar de que maneira foi construída essa gramática universal de proteção dosDireitos Humanos.

E aqui me reporto à Declaração Universal de 1948, que é o grande marco doprocesso de internacionalização dos Direitos Humanos. É ela que nasce com aperspectiva de reconstrução dos direitos e resgate da dignidade humana quandotudo parecia estar perdido, em face das atrocidades acometidas ao longo daSegunda Guerra Mundial. Então, é importante trabalhar com este duplo vetor: aSegunda Guerra Mundial significa a ruptura dos Direitos Humanos e o pós-guerrasignifica a esperança da sua reconstrução. A Declaração se situa ali em 1948 comoo eixo inicial de reconstrução dos Direitos Humanos. Portanto, esse é o seu legado,sua ambição, sua pretensão.

Isso nos faz repensar a própria noção de cidadania, porque hoje exercerdireitos e garantias não significa apenas nós exercermos direitos e garantiasprevistos constitucionalmente. Temos que somar o âmbito local ao âmbito regionale global. Temos que somar os direitos que aqui estão aos direitos previstos, por

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exemplo, no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais.Além da Declaração trazer essa tônica universalizante, é o primeiro

documento histórico que se clama universal, faz uma gramática universal, ou seja, adignidade é inerente a toda e qualquer pessoa, independentemente da sua classe,raça, gênero e etnia. A dignidade é a fonte de percepção do outro como sujeito dedireito, ela demarca isso. Além dessa linguagem da universalidade dos DireitosHumanos, a Declaração vem contribuir enormemente na concepção dos DireitosHumanos, porque é o primeiro documento da história da humanidade que traz aleitura de que os Direitos Humanos são indivisíveis, interdependentes einterrelacionados.

No relatório paralelo, inclusive, há algumas passagens dedicadas justamenteaos Direitos Humanos como sendo indivisíveis e universais. Essa é a gramáticacontemporânea, esse é o construído contemporâneo. Citando o Professor CançadoTrindade, cada vez mais temos de ver os Direitos Humanos como uma unidade emque direitos civis e políticos, as liberdades clássicas, hão de ser somados aosdireitos sociais, econômicos e culturais.

Tão importante quanto a liberdade de expressão, de pensamento, de ir evir, os direitos civis clássicos, o direito à integridade física, moral, o direito a nãoser submetido à tortura, os direitos políticos, são também importantes o direito àeducação, à saúde, à moradia, à terra, à alimentação, dentre outros. Esses bensdevem ser reivindicados, e esse é o lema da Declaração sob a gramática de direitose não como generosidade, compaixão de qualquer Estado. Esse é o grande avançoem termos conceituais que a Declaração traz. Saúde, educação, trabalho emoradia são direitos públicos, são Direitos Humanos e não apenas caridade adepender da boa vontade de um ou outro governante. Não são caridade, nãosão generosidade, não são compaixão, mas são direitos.

Se os Senhores perceberem, não há dúvida de que há o ranço ideológico.Há autores que denominam os direitos civis e políticos de blue rights e os direitoseconômicos, sociais e culturais como red rights. Os direitos civis e políticos são osque o mundo ocidental bem conhece, com a liderança dos Estados Unidos, e osdireitos sociais, econômicos e culturais – saúde, educação e trabalho – o mundooriental tem amplo conhecimento. Há muito de ideológico nesse cenário.

Como morei nos Estados Unidos por um ano, posso testemunhar que lá háuma grande dificuldade, inclusive daqueles que militam nos Direitos Humanos, deentender os direitos sociais como Direitos Humanos. Por tradição liberal, a própriaconstituição norte-americana só prevê direitos civis e políticos, não há qualquerprevisão de direitos sociais, econômicos e culturais. A Suprema Corte já declarouque a educação não é direito, é política pública e não pode ser reivindicada perante

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os tribunais. Então, há a tônica de se falar que direitos civis e políticos sãoDireitos Humanos, mas os direitos sociais, econômicos e culturais são políticapública, expectativa de direito, mas não podem ser reivindicados como direitos.

Entendo que são autênticos, verdadeiros direitos fundamentais, e que a suanão-observância compromete o todo dos Direitos Humanos. Violar o direito àsaúde, à habitação e à educação significa também comprometer o livre e plenoexercício dos direitos civis e políticos.

Esse consenso do pós-guerra, que foi o consenso da Declaração de 1948 eque afirmou a universalidade e a indivisibilidade dos Direitos Humanos, teve aacolhida de 48 países, sendo que oito se abstiveram, mas ninguém votou contra.Com isso, essa Declaração nasceu como um código forte, simbolicamente, porquenão contou com qualquer voto vencido.

Atualmente o mundo é outro, pois contamos com 217 países. Portanto, émuito diferente do mundo da década de 50, no qual havia 56 países ou pouco maisdo que isso. Houve um processo de descolonização, no qual muitos países seformaram enquanto tal e assim por diante. É por isso que se questiona: até queponto o pacto ou o consenso do pós-guerra da Declaração contém balastros delegitimidade hoje num outro cenário? Essa pergunta, de alguma forma, pode serrespondida quando, há poucos anos, ou seja, em 1993, foi realizada a Conferênciade Viena sobre Direitos Humanos, na qual se reforçou a mesma ótica.

Essa Conferência contou com a participação de 171 países, entre eles oBrasil, e veio proclamar que todos os direitos humanos são universais,interdependentes e interrelacionados. Esse é o legado, o construído que temos.

Reitero que falar de Direitos Humanos hoje não é o mesmo que fazê-lo nadécada de 50, nem tampouco o seria se estivéssemos nesta sala em 2050. OsDireitos Humanos têm uma história. Direitos como meio-ambiente edesenvolvimento sustentável nem eram sonhados como direitos em 1948 e hojesão pautas emergentes.

Tendo em vista a indivisibilidade dos Direitos Humanos, quais seriam osmecanismos jurídicos de proteção dos direitos econômicos, sociais e culturaisconsiderando a realidade brasileira? Compartilho de todas as posiçõesapresentadas no sentido de que a Constituição confere lastro e garante proteção aesses direitos. Como afirmei, destacarei aqui a normatividade internacional.

A Declaração Universal foi acolhida em 1948, e, a partir dela, começarama ser elaborados tratados, convenções e declarações dos Direitos Humanos. Umadas grandes preocupações foi a de que não era um tratado. Até hoje se entende, etambém defendo, que a Declaração, depois dos 50 anos de sua adoção, setransformou em costume nacional, porque foi sendo referência para os países,

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tendo seus dispositivos proclamados nas constituições etc.O debate que se instaurou logo após a Declaração de 1948 foi: Como

podemos emprestar aos seus dispositivos uma linguagem jurídica vinculante?Como podemos transportá-la para a linguagem dos tratados internacionais? Veio,então, a proposta de juridicização da Declaração, que começou em 1949 eterminou apenas em 1966. Foram quase 20 anos de trabalhos, de debates e decontrovérsias sobre essa questão.

Havia dois blocos. O Bloco Oriental entendia que a Declaração deveriaresultar num só pacto, uma vez que atestava a indivisibilidade dos DireitosHumanos. Portanto, o mesmo pacto deveria prever direito civil e político e direitoseconômicos, sociais e culturais; o Bloco Ocidental considerava que tinham decingir em dois pactos, porque os direitos civis e políticos têm auto-aplicabilidade,demandando apenas de uma abstenção. Os direitos econômicos, sociais e culturaisdemandam de uma ação estatal, sendo, assim, direitos progressivos.

Os orientais consideravam essa posição como ideologia, porque, para eles,era o oposto. Acreditavam que os direitos sociais, educação, saúde e culturatinham aplicabilidade imediata e que a demanda, de acordo com a sua experiênciahistórica e com a realização progressiva, são os direitos civis e políticos.Consideravam que a sua realidade não estaria sendo respeitada.

Sintetizando, o Bloco Ocidental foi vencedor, e foram feitos dois pactos.Lamentavelmente, esses pactos apresentam a mesma visão trazida pelo BlocoOcidental, ou seja, o pacto de direitos civis e políticos vai buscar os direitosprevistos na Declaração, os ampliando, detalhando e prevendo. São direitos deaplicabilidade imediata, e o Estado tem de garantir esses direitos desde logo, semescusa e sem demora.

O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturaisenuncia também um extenso catálogo de direitos inspirados na Declaração – indoalém, sendo mais minucioso, como o direito ao trabalho, justa remuneração,moradia, previdência, saúde e educação –, mas prevê que esses direitos têm a talrealização progressiva diversamente dos demais direitos civis e políticos.

Faço uma crítica a essa construção, porque, cada vez mais, entendemos queos direitos humanos sejam eles direitos civis e políticos, ou direitos econômicos,sociais e culturais demandam prestações positivas e negativas. É ilusório esimplista entender, por exemplo, que o direito de voto – um direito políticofundamental – ou o direito à segurança sejam direitos que demandem apenas daabstenção do Estado. Quanto custa o direito de voto? Não estou dizendo que nãovale a pena esse preço. Quanto custa manter o aparato eleitoral? Quanto custamanter o aparato de segurança para que se proteja o direito à liberdade?

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Vejam que os direitos civis e políticos têm um custo. Não li nenhumtrabalho que equacionasse esses custos, tal como o direito à saúde e à educação.Por isso, considero temerária a doutrina que alguns defendem sobre o princípio dareserva do possível. O que é o possível? Entendo que nesse ponto há toda umadiscussão ideológica. Por que é possível investir numa direção e não em outra?

Penso que temos de ter esse viés crítico e entender que os DireitosHumanos são complexos e que ambos – direitos civis e políticos, e direitoseconômicos, sociais e culturais – demandam ações e omissões do Estado. É muitocomum ter-se a visão bastante simplista de que uns são direitos positivos e outros,direitos negativos.

De qualquer maneira, corroboramos no sentido de que devemos extrair omáximo de eficácia dos direitos econômicos, sociais e culturais. Na linguagem,esses direitos estão previstos como direitos de aplicação progressiva, ou seja, cabeaos países, e é sua obrigação, reconhecer e, progressivamente, implementá-los,utilizando o máximo dos recursos disponíveis. Isso também fala do pacto.Também concordamos que da aplicação progressiva desses direitos resulta acláusula da proibição do retrocesso social, significando que se é progressivo, temde ir para frente. Isso torna juridicamente censurável o retrocesso quando se falaem políticas públicas referentes aos direitos econômicos, sociais e culturais.

Trago aqui a voz de Canotilho, para quem o princípio da proibição doretrocesso social pode formular-se assim: O núcleo essencial dos direitos sociais járealizado e efetivado deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendoinconstitucionais quaisquer medidas que se traduzam, na prática, em umaanulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo social.

Creio que, nós, que estamos no âmbito jurídico, temos de endossar essagramática da progressividade e da proibição do retrocesso social, banindo, comoafirmou o professor, leituras que entendam que os direitos sociais são normasprogramáticas, despidas de qualquer eficácia e com isso anulam e esvaziam aimperatividade e efetividade desses direitos.

Se o Brasil e mais 140 países são partes do Pacto Internacional dosDireitos Econômicos, Sociais e Culturais, não pode posteriormente, quando se vêcobrado pela implementação desses direitos, se esconder numa falaciosa escusa desoberania nacional.

Ser parte desse pacto é ato de soberania. O Brasil só o é no livre e plenoexercício de sua soberania. Foi assim que contraiu obrigações jurídico-vinculantespara se tornar parte desse pacto. Não pode ocorrer, mas muitas vezes ocorre, de oBrasil ser soberano na hora em que entra num tratado ou que reconhece ajurisdição internacional de uma corte e, depois, quando se vê cobrado pela ONU a

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respeitar e a observar aqueles parâmetros, considera uma afronta à soberanianacional. Isso é o uso hipócrita do termo soberania, porque soberano é o país queentra nesse jogo internacional porque assim quis.

Como afirmei, os tratados de Direitos Humanos são parâmetros mínimosde proteção – aqui está o piso mínimo e não o teto máximo de proteção. Se o Paísfor mais avançado, se a legislação doméstica for mais progressista, ótimo. Não seaplica esse mínimo.

Lembro que, além do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,Sociais e Culturais, o Brasil também ratificou o Protocolo de San Salvador emmatéria de direitos econômicos, sociais e culturais que entrou em vigor em 1999.A diferença é que esse pacto se atém ao sistema da ONU, e o outro, que fizmenção, se atém ao sistema da OEA e também reforça a importância de garantir-seos direitos econômicos, sociais e culturais, como trabalho, saúde, previdênciasocial, educação, cultura etc, e reitera a mesma linguagem. O protocolo de SanSalvador prevê que os países partes – e o Brasil o é – devem investir o máximodos recursos disponíveis para alcançar progressivamente a plena efetividadedesses direitos.

Lembro, também, que esse protocolo permite o recurso ao direito depetição a instâncias internacionais, no caso, à Comissão Interamericana deDireitos Humanos, para defender dois direitos que ele prevê: o direito à educaçãoe direitos sindicais. Inclusive, houve uma reunião recente da PlataformaInteramericana dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, nos dias 15 e 16, naqual existe toda uma linha de advocacia internacional para que casos de afronta aesses direitos, os quais não possam ser resolvidos no campo nacional, ou seja,esgotadas as reservas internas, possam ser encaminhados à referida comissão.

Sustentamos a visão de que temos de somar o Pacto Internacional dosDireitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo de San Salvador com oarcabouço nacional e, fundamentalmente, com a Carta de 1988. Temos de somaras duas perspectivas, os dois parâmetros, e avaliar qual é a melhor maneira, asmelhores estratégias de defesa e de litigância dos direitos econômicos, sociais eculturais.

A Carta de 1988 é o nosso pacto pós-ditadura e, no fundo, estáabsolutamente sintonizada com essa concepção contemporânea. Endossa agramática da universalidade e da indivisibilidade; prevê o valor da dignidadehumana, que é núcleo básico e formador do ordenamento jurídico. As normasjurídicas hão de ser interpretadas com essa hermenêutica renovada, capaz deseguir a teologia do sistema – a racionalidade do sistema é essa; aposta nosdireitos fundamentais, no valor da dignidade humana e no valor do Estado

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Democrático de Direito.Por essa condição, os tratados, como é o Pacto de Direitos Civis e

Políticos. E o protocolo de San Salvador entra pela porta do art. 5º, & 2º, queprevê que os direitos aqui previstos não excluem outros. Então, temos os direitosconstitucionais expressos, implícitos, e os direitos internacionais, que devem sersomados ao rol dos nossos direitos.

No campo, também sustento que os direitos sociais integram os direitosfundamentais. A própria Constituição, numa análise literal, responde issoafirmativamente. Basta ver que, quando a Constituição, no Título II, trata dosDireitos e Garantias Fundamentais, traz não só os direitos civis e políticos,nacionalidade, mas também os direitos sociais. Quer dizer, não restam dúvidas deque esses direitos estão previstos na Constituição e nos tratados internacionais.

A grande dificuldade reside na relação entre o direito e a política. Narealidade, temos esse desafio. Como diz Canotilho, a Constituição sempre temcomo tarefa a realidade. Juridificar constitucionalmente essa tarefa ou abandoná-laà política é esse o grande desafio. Ou seja, as Constituições pretendem conformaro político.

Se avaliarmos o legado impacto e o balanço desses pouco mais de 12 anosde vigência da Carta de 1988, veremos que temos 37 emendas à Constituição.Numa análise sistemática, se quisermos avaliar qual o prumo do processo dereforma da Constituição, perceberemos que são reformas que buscamdescaracterizar a roupagem social do nosso Estado; que buscam trazer aberturadesenfreada da nossa economia aos mercados internacionais; que fragilizam alinguagem dos direitos econômicos, sociais e culturais. Têm sido esses o impactodas reformas, fundamentalmente daquelas realizadas pós 1995.

Esse é o grande dilema de quem estuda hoje Direito Constitucional. Temosesta Constituição e temos a Carta emenda, com 37 emendas, que apontam umoutro rumo, não só aqui no Brasil, mas na América Latina como um todo, que é ogrande rumo da reforma do Estado no campo previdenciário, administrativo,econômico, judicial. Quer dizer, o momento da reforma do Estado. Isso, de algumaforma, responde a plataforma neoliberal, a plataforma da globalização econômica.

Tememos imensamente o impacto destruidor dessas reformas no tocante aesse arcabouço denso, protetivo, dos direitos econômicos, sociais e culturais. Querdizer, quem vai vencer a batalha? De que maneira? Quais as forças de exclusão ede inclusão resultantes nesse cenário?

Assim passamos à última questão que se refere ao impacto da globalizaçãoeconômica no processo de efetivação dos direitos sociais. Como devemos

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enfrentar a flexibilização e a desconstitucionalização desses direitos?Se olharmos para a América Latina nas últimas décadas, veremos que

foram três os grandes desafios: abertura política, estabilização econômica ereforma social. Essas foram as três grandes bandeiras. Hoje, a agenda dos paíseslatino-americanos passou a incluir, com preocupação central, a inserção naeconomia globalizada.

No final de janeiro, todos acompanhamos a realização do Fórum SocialMundial aqui em Porto Alegre. Há toda uma crítica construtiva feita com relação àplataforma neoliberal, aos cortes de despesa pública, à privatização, àdesconstitucionalização(?4:18?) e essa abertura desenfreada do mercado aocomércio internacional.

Gosto muito de uma frase de Habermas: Hoje, são antes os Estados que seacham incorporados, engolidos pelos mercados e não a economia política,limitada pelas fronteiras nacionais ou estatais. Quer dizer, é chocante notar que,hoje, das 100 maiores economias mundiais, 51 são multinacionais e 49 são doEstado. É nesse cenário que temos de inserir e fazer a nossa avaliação.

Hoje, o próprio BID, Banco Mundial, a ONU e o próprio FMI têmconsenso de que a plataforma neoliberal, a plataforma da globalização econômicatem aumentado a pobreza, o protecionismo e tem gerado uma exclusão cada vezmais crescente. Com isso, grande parte das pessoas vivem mais no estado danatureza do que propriamente no Estado Democrático de Direito. É bastantetemerária essa flexibilização dos direitos econômicos, sociais e culturais. Esqueci-me de trazer, mas houve um encarte publicado na Folha de São Paulo sobre oBrasil privatizado. Há estudos excelentes do Aloysio Biondi: Brasil Privatizado, oDesmonte do Estado.

Qual é o desafio? Vejam, Senhores, que o Estado brasileiro está deixandode ser prestador direto de direitos, de políticas públicas com as privatizações. OEstado passa a ser regulador do modo pelo qual o setor privado vai prestar nãoessas políticas públicas – pois setor privado nenhum prestará política pública –,mas serviços. Isso traz toda uma revolução no tocante à gramática dos direitoseconômicos, sociais e culturais. O Estado deixa de ser prestador direto depolíticas, passa a ser agente regulador econômico; direitos se transformam emserviços; o cidadão se transforma em consumidor. Isso tudo é bastante temerário,pois, seguramente, quando a população cair, não terá o poder aquisitivo e o poderde consumo para usufruir esses serviços.

Tomo a liberdade de passar aos Senhores um artigo que versa sobre osdireitos trabalhistas. Posso ter uma posição jurássica, mas entendo ser fundamentalo fato de que não podemos deixá-los flexibilizados. A proposta que há de reforma

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do art.7º, caput, da Constituição, é no sentido da flexibilização total. Ou seja,direitos como férias, licença-gestante, licença-paternidade, salário mínimo, tudoisso dependerá do contrato. As Centrais Sindicais ficaram indignadas com aproposta de reforma. Agora, o Governo tenta recuar, tenta evitar que isso seja feitovia reforma da Constituição, mas já há projeto de mudança da CLT com o mesmosentido. Na verdade, trata-se de uma reforma constitucional por via oblíqua. Atentativa é para submeter e condicionar todos os parâmetros mínimos na áreatrabalhista a contrato, que pode ser individual ou coletivo.

Hoje, vivemos com um alto índice de desemprego. Isso acaba tornandoprecária e assimétrica a relação de trabalho. É fundamental que o Direito tenhaesse papel compensatório. Segundo dados, somos a quinta populaçãoeconomicamente ativa do mundo, mas, em contrapartida, temos a terceira maiorquantidade de desempregados. São dados de 1999, pesquisados em 141 países.

Na Folha de São Paulo, foi publicado um artigo do Professor MárcioPochman, da Unicamp, sobre o desemprego na economia global. Nesse artigo, hámenção sobre esse estudo.

Num cenário como esse, imaginem os Senhores o poder de barganha, denegociação dos trabalhadores, do próprio movimento sindical, já que há umexército de excluídos que se submeteria a qualquer condição de trabalho. Issoseria a própria globalização da escravidão.

É por tudo isso que entendo ser de fundamental importância imaginarmosestratégias de proteção e de salvaguarda dos direitos econômicos, sociais eculturais em espaços como este, reafirmando a indivisibilidade desses direitos,lembrando que a vulnerabilidade econômico-social leva à vulnerabilidade dosdireitos civis e políticos, lembrando o legado de Amartya Sen, Prêmio Nobel daEconomia em 1998, autor de um excelente livro, traduzido recentemente para oportuguês: O Desenvolvimento como Liberdade. Ele diz que a negação daliberdade econômica sob a forma de pobreza extrema torna a pessoa vulnerável aviolações de outras formas de liberdade. Ou seja, a negação de liberdadeeconômica implica a negação da liberdade social, política e outras. É umeconomista partilhando desta ótica tão clara da indivisibilidade dos DireitosHumanos.

Torno a dizer que os grupos sociais mais vulneráveis são aqueles que maissofrem nesse processo, especialmente as mulheres e, no caso brasileiro, apopulação negra dentre outros setores.

Termino minha participação, citando um autor chamado Jack Donelli quediz que se os Direitos Humanos são os que civilizam a democracia, o estado debem-estar social é o que civiliza os mercados. Quer dizer, se os direitos civis e

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políticos mantêm a democracia em índices razoáveis, os direitos econômicos esociais estabelecem parâmetros e limites adequados aos mercados, de forma quemercados, eleições, por si só, não são suficientes para assegurar Direitos Humanospara todos. Daí, emerge este desafio: a construção de um novo paradigma.

A contribuição do Fórum Social Mundial foi extraordinária nesse sentido,dando visibilidade, experiências exitosas com relação à defesa dos direitoseconômicos, sociais e culturais em outras partes do mundo. Nesse arcabouçoconstrutivo, é capaz de dar visibilidade a uma estratégia que busca odesenvolvimento sustentável, mais igualitário e mais democrático. O imperativoda eficácia econômica tem de ser conjugada com a exigência ética de justiça socialem uma ordem democrática que garanta a todos o pleno exercício dos direitoscivis, políticos, econômicos, sociais e culturais sob a perspectiva de gênero, raça,etnia, entre outros critérios.

Concluo citando Saramago, numa passagem que considero da máximaimportância: O mundo não está em ordem; a ordem é sempre ao que nósbuscamos construir. Temos de inventar essa ordem. Segundo o autor, as pessoasnascem todos os dias e só delas é que depende continuarem a viver o dia de ontemou começarem, de raiz e berço, o dia novo, o hoje.

Espaços como este são oportunidades de revitalização, de construção deestratégias em prol da defesa radical e intransigente da dignidade humana.

Muito obrigada.

Professora da Faculdade de Direito da PUC de São Paulo; coordenadora do Grupo deTrabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado/SP; membro do ComitêLatino-Americano do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher; integrante daComissão Justiça e Paz; membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da PessoaHumana; ativista da Anistia Internacional; autora de diversos livros sobre o tema.

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Debate

Virgínia Feix – advogada da Themis- Estudos de Gênero e AssessoriaJurídica:

-Tenho uma pergunta com relação à eficácia dos Direitos Humanos e, maisespecificamente, sobre a relação entre a sociedade civil e a tutela dos direitosdifusos.

Em função de um fato ocorrido aqui no Rio Grande do Sul, a Temisresolveu canalizar uma indignação nacional com relação a certas letras de música– no caso agora, do ritmo funk – que afrontam diretamente a dignidade dasmulheres e crianças e que incitam a violência. A iniciativa não se deu numaperspectiva moralista ou de censura, mas numa discussão de direitos. Em nome daliberdade de expressão, até que ponto nós poderíamos apontar outros princípiosconstitucionais, mas entendemos que não. Nessa perspectiva, discutimos o quefazer e acabamos concluindo por uma representação no Ministério Públicopedindo providências e fazendo essa discussão com a sociedade. Nessa discussãodo que fazer nos vem claramente a necessidade de construir procedimentos paraque a sociedade civil possa compartilhar da titularidade de interposição de açõescivis públicas. A nossa perspectiva é de fazer um seminário internacional aindaeste ano e aproveito para pedir a contribuição dos juristas que fazem parte da mesanesse sentido. Seria esta a questão que apresentaria à Mesa: pensarmos ouapontarmos caminhos nessa perspectiva.

Flávia Piovesan – Agradeço à Virgínia Feix. É uma questão tormentosa edifícil, mas lembraria que há precedentes no caso de São Paulo com relação aoMovimento Negro. Houve uma reação a algumas músicas e o Movimento Negroacabou reagindo, seja com representação administrativa junto ao Conar, seja commedidas judiciais. Recordo-me no ano retrasado ao receber denúncias doMovimento Nacional de Direitos Humanos não com relação à música, mas aoutdoor alusivo a uma campanha pelo armamento em reação ao Projeto de Lei queprevia os armamentos. Foi um caso interessante do qual participei elaborando ainicial da ação civil pública. Aí houve essa ponte do movimento social, ou seja, ademanda nasceu do movimento social, especialmente do Movimento Nacional dosDireitos Humanos e de vários grupos do movimento negro, entendendo que ooutdoor – não sei se aqui chegou esse outdoor – da Mainardi em que havia umjovem negro com uma tarja nos olhos – a campanha sou da paz –, com uma arma,

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dizia: Você é da paz, eles não. Vamos desarmar os bandidos e não os cidadãos debem.

Era absolutamente esteorotipada a visão que lá se tinha. Para quem lia, obandido é o negro, é o jovem de periferia e assim por diante. Foi um casointeressante, pois veio do movimento social, ou seja, o laço de legitimidade haviae, no grupo de trabalho de direitos humanos da procuradoria que coordeno,debatemos esse caso, fizemos a inicial e o Estado de São Paulo propôs, comoautor, a ação civil pública. Foi feito pela Procuradoria do Estado de São Paulo. Foium caso interessante, primeiro, porque houve a demanda de entidades, segundo,porque várias vítimas foram humilhadas e agredidas com aquele outdoor e o quefoi muito bom é que o Juiz foi sensível. Sempre ficamos com aquele medo de quepode ser uma decisão exitosa, mas pode não ser e aí tem que ser avaliado o custodisso. Nesse caso, houve a constituição de tutela antecipada com a determinaçãoimediata de remoção dos outdoors e multas. O processo assumiu uma feiçãopública e política também bastante acentuada, porque o indivíduo que estava nooutdoor dizia que ele não era negro. Ele dizia-se branco, só que a comunidadenegra inteira viu-se nele refletida. É aquela negação da negritude pelo próprionegro. O movimento negro se viu nele. Essa ação não se volta para defender o seudireito, ele pode se achar vermelho, azul, amarelo, o que importa é que as pessoasse viram nele e a comunidade viu-se humilhada por estar ali refletida naqueladimensão.

O fundamental, portanto, é que a ação civil pública é um instrumentojurídico de grande lastro político também. Pela lei, quem pode propor é oMinistério Público, o Estado, o Município, a União e entidades se estiveremlegalmente constituídas há dois anos, se tiverem no seu estatuto essa previsão. Ogrande problema é que nós não podemos instaurar o inquérito civil público. Isso émedida do Ministério Público, só ele pode. Então, ficamos em desvantagem nessesentido. A Themis ou outras entidades não poderiam requisitar provas, nãopoderiam instaurar o inquérito no sentido de levantar evidência em relação a esseassunto.

Parece-me que a estratégia a ser adotada no caso das ações civis públicaspara que exista realmente a defesa de direitos difusos, que a sociedade se sintarepresentada, é através de audiências públicas, dando visibilidade a questão,chamando setores significativos da sociedade civil para que, então, exista oinstrumento judicial e a ação seja proposta. Dou um exemplo, mas ainda estamostrabalhando com o Ministério Público e outras entidades, atuando com oMinistério Público Federal numa ação civil pública que busca ações afirmativasem prol de mulheres no tocante à administração pública federal, já que há um

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estudo mostrando uma discrepância no tocante aos cargos de chefia que estariamsendo distribuídos de forma bastante desigual entre homens e mulheres. Avantagem é que houve a instauração de inquérito civil público. Há volumes evolumes, o Ministério Publico oficiou e todas as entidades oficiadas responderam,há provas, portanto há indícios, e agora queremos dar visibilidade e ampliar essedebate. A idéia é fazer uma audiência pública fazendo com que a sociedade civilse sinta envolvida para que, então, a ação judicial possa representar a voz e apluralidade da sociedade civil.

Entendo qual a tua questão. Muitas vezes pode parecer que é a Themis enão a sociedade civil que se vê. Não sei se essa é a tua preocupação, no campo dalegitimidade.

Virgínia Feix – A questão seria buscar construir procedimentos para queas organizações da sociedade civil pudessem ser autoras na ação civil. Nesse caso,a estratégia que talvez seja construída, já manifestada pelo Procurador daRepública de Cidadania e Direitos Humanos, é de fazer audiência pública einstaurar imediatamente inquérito civil público. Ele está propondo que, se indicadaa ação civil pública, venhamos a ser litisconsorte.

Flávia Piovesan – Ótimo. Isso é o que estamos também avaliando emtermos de estratégia para essa outra. Que não seja o Ministério Público sozinhomonopolizador da ação, mas que seja o Ministério Público e entidades x, y e z.

Virgínia Feix – Até porque fizemos um ato e contamos com o apoio dedezenas de entidades ligadas à criança e ao adolescente e às mulheres, queassinaram um documento de apoio à representação.

Flávia Piovesan – Concordo. Acredito que essa é a via: audiência públicae também segurar no pólo ativo da demanda, ou seja, ser autor e provocador doPoder Judiciário.

José Carlos Moreira Da Silva Filho – Faço apenas um rápidocomentário. Sem dúvida alguma, tudo que foi apresentado também sinaliza para adireção da importância exatamente de uma preocupação como a tua, ou seja, deaproximar as instâncias legítimas de organização da sociedade civil em relação àsinstâncias institucionais. Nesse ponto temos uma riqueza muito grande em nívelinstitucional, através do Ministério Público, enquanto quarto poder, que deve atuarna medida em que também houver uma maior interação com a sociedade civil.Então, a sociedade civil aproximando-se mais dessa instância e ao mesmo tempo oMinistério Público também tornando-se sensível, acredito que teremos uma maioreficácia até em termos estratégicos, na medida em que há uma grande resistênciapolítica e jurídica às reivindicações e mobilizações que não sejam legitimadas ouque não passem por essas instâncias, o que observa-se em determinados segmentos

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sociais que independentemente de uma mediação com instâncias que integram afunção da justiça colocam os seus direitos e exigem o seu atendimento. Acreditoque é uma estratégia fundamental e importante.

Esse assunto, em termos acadêmicos, também traz uma discussão bastanteinteressante no que se refere ao conflito de princípios, a antinomia de princípios.Pela própria tradição jurídica à qual o nosso senso comum está aferrado, temosuma dificuldade muito grande de trabalhar com noção de princípios. Até mesmo oSupremo Tribunal Federal há bem pouco tempo tinha uma posição majoritária deque a ofensa a um princípio constitucional não era interpretada dentro da alínea ado inciso I do art. 102, que aborda os casos de recursos extraordinários, na medidaem que interpretavam que o princípio não seria uma ofensa direta à Constituição,exatamente pela sua vagueza e ambigüidade. Um entendimento que já foicontraditado ali mesmo. Temos essa cultura de que princípio é uma determinaçãoe, quando se coloca em contradição com os outros, há um argumento a mais. Naverdade, vamos deixar que os funks invadam as nossas telas a todo momento.Ontem mesmo vendo televisão, em pelo menos dois canais estavam sendo exibidascoisas dessa natureza. Realmente impõe-se um questionamento em relação aoprincípio da dignidade, do respeito a determinados valores em contraposição aoprincípio da liberdade de expressão.

É importante utilizar-se a estratégia referida, pois como é polêmico pensarem termos de censura ao exibir determinadas imagens, a propagar determinadasfrases, é importante também adotar uma estratégia no sentido de compartilhar osmesmos espaços para dar uma outra visão, para mostrar que essa não é uma visãounívoca ou pelo menos para polemizar aquilo de uma forma interessante.

Flávia Piovesan – Faço um último comentário interessante à luz até doque disse o José Carlos. Também vejo que essa reflexão sobre a Themis esboça oquanto o movimento de direitos humanos em geral se apega mais a estratégiaspolíticas e não tanto a estratégias jurídicas. Entendo como fundamental quepossamos somar as duas estratégias, a política e a jurídica, e tentar litigar perante oPoder Judiciário causas de direitos humanos como essa e como tantas outras eprovocar o Judiciário. O Judiciário brasileiro é pouco provocado em relação adireitos humanos. Nós, como um todo, sabemos fazer manifestação, seminário,tecer fóruns, passeata, agora valer-se de estratégias jurídicas ainda é umaprendizado que está em construção. No estudo que fiz no ano passado, percebe-seisso. A sociedade civil sente-se mais próxima do Legislativo, sabe chegar aoLegislativo. Vejam quantos da sociedade civil estão aqui. O Legislativo está deportas abertas. No Executivo, querendo ou não, há um trânsito. O Legislativo e oExecutivo incorporaram a lógica dos direitos humanos, basta dizer que há

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comissões de direitos humanos aqui e nos demais Estados da Federação, naCâmara Federal, e, gostemos ou não, no âmbito federal o tema também foiintrojetado e foi incorporado, há, inclusive, Secretaria Nacional dos DireitosHumanos. Nos Executivos estaduais isso também chegou. E, no Poder Judiciário,não chegou.

O processo de democratização não encurtou a distância entre a população eo Judiciário. E aí é uma outra longa discussão que não quero entrar. Há pesquisasque mostram que 80% da população latino-americana se vê distanciada doJudiciário. E esse é o maior problema. Uma pesquisa feita aponta que 75% dosjuízes brasileiros se vêem distantes da população e entendem que esse é o maiorproblema. Ações como essa são fundamentais para reduzir a distância que há entreo Judiciário e a população e permitir que ele seja quiçá um locus de afirmação dedireitos. Pelo menos tem que ser testado e provocado para isso.

José Carlos Moreira da Silva Filho – Para reforçar o que a Professoradisse em relação ao Poder Judiciário, há um estudo feito por um autor gaúcho,José Felipe Ledur, publicado pelo Sérgio Antônio Fabris, que fala do direito aotrabalho. Ele fez uma pesquisa jurisprudencial sobre em quantas decisões nosTribunais Superiores se havia tratado ou tentado tratar o tema da dignidadehumana. Simplesmente, ele não encontrou. Encontrou em apenas duas açõesenvolvendo habeas corpus.

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Mesa redonda

A dimensão humana e a consolidação dos direitos econômicos,sociais e culturais

Deputado Pe. Roque Grazziotin

- A proposta deste Seminário que está sendo realizado é que,posteriormente, seja feita uma publicação que nos auxilie profundamente nessanova visão desafiante dos Direitos Humanos nos dias de hoje, em que todosestamos buscando um aperfeiçoamento.

Inicio falando a respeito da dimensão humana, da dignidade, que não éalgo óbvio e nem consensual. Na disputa histórica entre dois projetos decivilização, a dimensão humana nem sempre aparece como um elemento de basenegociável e inarredável de qualquer tratado, convênio ou norma de convivênciasocial. Ao contrário, na atualidade, por incrível que pareça, a dimensão humanatem sido cada vez mais posta em xeque, cada vez mais vilipendiada na balança dedecisões que determina o destino do meio ambiente, da paz e das condições devida dos povos.

Proclamar os Direitos Humanos constitui-se num dos primeiros momentosde progresso de um projeto de civilização, um projeto humanista e solidário que seopõe à hegemonia dos interesses econômicos concentrados e excludentes, projetode um novo mundo, que acreditamos possível e viável.

Na Declaração Universal dos Direitos Humanos materializaram-se doispactos internacionais, que formam a chamada Carta da ONU sobre DireitosHumanos: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o PactoInternacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

A Doutrina Oficial da ONU, de 1989, a partir de Viena, afirma a igualdade,a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a interpelação dosdireitos humanos individuais, civis, políticos, econômicos, sociais e culturais dassociedades e dos povos. De certa forma, isso não deixa de ser uma novadeclaração ou proclamação que, se não avançar em termos de esforço e deconcretização, permanecerá na mera retórica, principalmente no que diz respeito

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aos direitos econômicos, sociais e culturais.Se é verdade que a possibilidade de realização é elemento imprescindível

dos direitos, é nesse ponto que devemos concentrar os nossos esforços,criatividade e coragem. Dar um passo adiante não queimando etapas, mas criandocondições para que as anteriores não caiam no vazio da mera eficácia simbólica. Afome não é nada simbólica, como também não é a ignorância, a tortura e aexclusão.

Qual é o elo que falta entre a normatização internacional e a satisfação realdas necessidades básicas, que realmente possibilitam a autonomia e a liberdade?

Sem preocupar-me em hierarquizar, aponto algumas condiçõesindispensáveis e ainda insuficientes para a plena realização dos Direitos Humanos,especialmente dos direitos econômicos, sociais e culturais. Primeiro, em termosteóricos, a impossibilidade de realizar plenamente os direitos humanos, de acordocom a doutrina oficial da ONU, condiciona a própria definição dos direitoseconômicos, sociais e culturais como outro tipo de direito.

São fundamentais. É como se afirmássemos que, como é praticamenteimpossível acabar com o extermínio de adolescentes pobres, não existe o direitofundamental à vida no ordenamento jurídico brasileiro, ou que ele não é universal,mas apenas para os ricos. Ou que, como ainda são torturados escandalosamentenas delegacias e nos presídios, não exista o direito à integridade física e moral noBrasil, a não ser para aqueles que nunca são suspeitos de nada. Da mesma forma,porque não são combatidos a fome e o trabalho infantil, não se quer dizer que aalimentação, a saúde e o trabalho digno não sejam direitos fundamentais.

Segundo, a título de condições jurídicas, a debilidade jurídico-constitucional dos direitos econômicos, sociais e culturais no Brasil é causa quecontribui para a não-realização pela via da proteção, ou seja, não há mecanismo deamparo às violações dos direitos econômicos, o que explica também por que nãosão considerados direitos fundamentais, mas, sim, sociais, com toda a carga,abertura e imprecisão que o termo social implica.

Percis Barba propõe que devemos considerar esses direitos comosubjetivos, posto que, frente ao titular do direito – sujeito ativo – existe um sujeitoidentificável obrigado por esse direito – sujeito passivo. Nessa linha, grande partedos advogados brasileiros também propõem a auto-aplicação de todos os direitosconstitucionalizados, numa verdadeira inversão da lógica do saber jurídicodominante.

É necessário, em qualquer caso, cimentar juridicamente e não só comoimperativo moral o estatuto jurídico constitucional dos direitos econômicos,sociais e culturais.

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Terceiro, no que diz respeito às condições éticas, Barba nos ensina que osdireitos, juntamente com os valores e princípios, formam o conteúdo de justiça deuma sociedade democrática e moderna, tendo como objetivo último ajudar paraque todas as pessoas possam alcançar o nível de humanização máximo possívelem cada momento histórico.

O que ocorre atualmente é uma inversão de valores que sobrepõe oprincípio do crescimento da autonomia individual, da eficiência econômica e dacompetitividade ao princípio da igualdade e da solidariedade.

Assim, fica difícil disputar a legitimidade de ações positivas de prestaçãosociais para todos os cidadãos, que por diversos motivos não produzem, nãoconsomem, enfim, não participam plenamente do jogo utilitarista, mercantilista econsumista em que se resume o modelo econômico e político brasileiro atual.

Quarto, as condições sócio-políticas baseiam-se no trabalho, um dosprincipais pilares de sustentação dos direitos econômicos, sociais e culturais quevêm se debilitando rapidamente, não só em sua dimensão de direito, mas tambémde fato.

A internacionalização das atividades econômicas e seus reflexos diretos nomercado formal e informal de trabalho tem excluído famílias e comunidadesinteiras das possibilidades reais de gozo de todos os Direitos Humanos. O Estadonão dá conta de tal rombo, nem em termos de políticas públicas de redistribuiçãode riquezas, propriedades e terras, nem em termos de reorganização estrutural domodelo que causa esse desastre social.

Quinto, em termos de condições econômicas, a escassez crônica derecursos, decorrente de opções políticas que nem sempre estão ao alcance doEstado nacional, e muito menos do local, serve sempre de justificativa pararecortes cada vez maiores nos gastos sociais, frente ao crescimento ilimitado dasnecessidades básicas da população. Mas a margem de decisão nacional e local échave para a existência e condições concretas de realização dos direitoseconômicos, sociais e culturais.

E aí cabe todo o tipo de iniciativas e alternativas ao modelo excludentedominante, como, por exemplo, o Orçamento Participativo, Frentes de Trabalho,Programa Primeiro Emprego e tantos outros programas sociais. Não sãofundamentais, não se realizam, não se protegem, não são legítimos socialmente enão são objeto de interesse econômico. Como afirmar, nessas condições, que osdireitos econômicos, sociais e culturais são Direitos Humanos, ao lado dos direitosindividuais, civis e políticos?

Esses direitos não partem da ficção de que basta ostentar a condiçãohumana para ser titular, se o ponto de partida, no nosso entendimento, é outro, é o

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da desigual distribuição da riqueza e da propriedade que impede que as pessoaspossam satisfazer por si mesmas as suas necessidades básicas. Se o ponto dechegada, sua utopia é justamente o ponto de partida dos Direitos Humanosindividuais, é a universalidade no limite, a democracia só é possível numa situaçãode homogeneidade e oportunidades sociais.

O desafio que se impõe a todos nós está, tanto quanto em relação aosdireitos individuais, civis e políticos, na criação de mecanismos efetivos deproteção. Os direitos individuais, civis e políticos dependem, atualmente, quaseexclusivamente da boa vontade política de não violá-los. Não dependem quase deverbas, de prioridades orçamentárias ou de políticas afirmativas. Bastaria umaordem decidida, ações eficazes de controle e punição para que, imediatamente,diminuíssem as barbaridades das torturas contra cidadãos que estão sob oscuidados do Estado, delegacias de polícia, viaturas policiais, militares, Febem,hospitais públicos e privados com leitos psiquiátricos.

Há bases legais, éticas e estruturas institucionais coerentes com o Estatutodos Direitos Humanos Individuais que permitem um avanço maior do que oalcançado até aqui. Já os direitos econômicos, sociais e culturais carecem ainda debases teóricas e metodológicas, éticas e políticas, e de recursos para que se possamfundamentar e conquistar a sua plena realização.

Entretanto, assim como os direitos individuais dependem, como alavancaprimeira para a sua eficácia, da vontade política, de iniciativas de açõesafirmativas positivas e atenção às necessidades básicas sem discriminação, odesafio está em criar mecanismos de realização e proteção dos direitoseconômicos, sociais e culturais.

Aos operadores do Direito cabe enfrentar o desafio de construirsolidamente uma lógica alternativa dominante, ou seja, sustentar a auto-aplicabilidade das normas constitucionais, a automática aplicação das normasinternacionais e a criação de mecanismos de proteção efetivos ágeis e acessíveispara os casos de violação ou de omissão do Estado.

Aos legisladores cabe enfrentar o desafio de conformar políticas públicasde redistribuição das riquezas, contingenciar verbas à existência de umainstitucionalidade democrática e plural, priorizar a criança e o adolescente emtodas as iniciativas de fiscalização, promoção e legislação, criando medidas legaispara a mediação entre os setores privados que combatem a exploração e aexclusão.

Aos executores cabe enfrentar o desafio de destinar todos os recursosdisponíveis, inclusive contando com a ajuda internacional e iniciativas privadaspara as políticas e programas concretos de combate à pobreza, de desenvolvimento

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auto-sustentável de proteção das culturas diversas e de oportunidade de autonomiaindividual, familiar e comunitária.

Ao Ministério Público cabe fiscalizar tudo isso, obrigando-nos a cumprircom as nossas responsabilidades e a propor punição para toda a sorte de violação,negligência ou omissão.

À sociedade cabe lutar pela transformação dos direitos em poderes,disputando, em todos os momentos, espaços concretos de participação dosprocessos de decisão. Cabe disputar modelos éticos que contemplem asolidariedade, a auto-ajuda e o cooperativismo. Cabe também autogarantir-se, aomesmo tempo em que pressionar o Estado, para que, como mediador, seja umaliado e um priorizador dos Direitos Humanos em todas as frentes de suaintervenção.

A democracia mais radical e a realização dos Direitos Humanos são doispilares que se sustentam mutuamente, apoiando e protegendo os valores maiscaros à civilização que queremos construir. Há que combater a atitude cínica deafirmar a bondade dos direitos econômicos, sociais e culturais, desde que fora doordenamento jurídico que os garanta e proteja. Há que combater a posturaabsolutista cega, que atribui automática efetividade sem a criação de mecanismosde amparo individual e coletivo.

Há que lutar por uma lógica de reciprocidade não só entre direitos edeveres, mas também entre direitos individuais e sociais. Por exemplo, equiparar odireito à inviolabilidade do domicílio ao direito de moradia. Há que trabalhar paraque haja novas realizações no campo desses direitos, contando com a auto-ajudasocial e com movimentos de voluntariado qualificado e comprometido.

Há que fugir da lógica da reserva do possível, da ideologia da ditadura doscofres vazios, libertando a criatividade e a ousadia de inverter prioridades, aindaque com recursos escassos. Há que desmascarar a crise como pontual e comojustificativa sempre imprevista para que programas se desmoronem, projetos nãosaiam do papel e verbas não cheguem.

A famosa crise é, na verdade, estrutural e corresponde a uma parcela dasociedade que não está em crise, mas vive dela. A Comissão de Cidadania eDireitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, honrando asua trajetória de trabalho pioneiro neste campo, assume nesta gestão, de formamais explícita e comprometida, a árdua tarefa de contribuir para que os direitoseconômicos, sociais e culturais se incorporem real e eficazmente ao conjuntoúnico, indivisível e universal dos Direitos Humanos.

Esta Comissão propõe-se a trabalhar também para que, ainda quetardiamente, os direitos fundamentais à vida, à integridade física e moral e à

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liberdade se realizem plenamente em nosso País.Agradeço a presença e a participação de todos neste painel que estamos

iniciando.

Presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa.A dimensão humana e a consolidação dos direitos econômicos, sociais eculturais, na visão do Judiciário

Rui Portanova

Gostaria de agradecer o convite para participar deste painel e dizer quelogo levantei a questão se, na verdade, eu estaria aqui para representar o PoderJudiciário. E esta é uma dificuldade bastante grande que tenho, mas deram-meuma certa liberdade para não o representar, porque, do ponto de vista dos DireitosHumanos, tenho uma visão crítica em relação ao que tem sido colocado dentro doPoder Judiciário em geral.

Ficaria extremamente constrangedor se eu colocasse aqui, representando oPoder Judiciário, a minha posição particular, mas foi-me dito que eu viriarepresentando a mim mesmo.

Portanto, peço desculpas aos Senhores porque, certamente, cometerei umequívoco de linguagem que percebi no momento em que estava pensando arespeito. Falarei eles no sentido da visão tradicional de Poder Judiciário, e naverdade somos nós, eu também sou tão conservador, tão neutro quanto é o PoderJudiciário como um todo, ou seja, quando eu estiver falando eles, não fiquemimaginando que estou sendo mais crítico do que gostaria de ser. Trata-se apenasda forma como me manifesto na minha crítica: eles, é o Poder Judiciário e sou eutambém.

A pergunta que faço, em razão de parte do que foi dito pelo Padre Roque, eque gostaria que conduzisse toda a minha fala, é no sentido de saber se para oJudiciário adianta ter lei. E gostaria de mostrar aos Senhores como é difícil ficarnuma posição de representante do Poder Judiciário e possibilitar esta resposta.

O primeiro enfrentamento, que me parece ser o mais radical de todos, é queentendo que o Poder Judiciário não é neutro, apesar de a maioria das pessoas quetrabalha no Judiciário, que trabalha com o Direito, ver o juiz como neutro. Façouma distinção entre imparcialidade e neutralidade. O juiz é imparcial, mas não é

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neutro. Imparcialidade é aquela relação que liga o juiz com a parte. Por isso o juiznão pode julgar o caso do seu irmão, do seu pai e da sua mãe, pois tem umarelação com a parte. Ele tem de ser imparcial, mas não é neutro.

A neutralidade é o instituto que liga o juiz, não enquanto ser e nãoenquanto indivíduo, mas enquanto cidadão, com o tema posto em juízo e não coma parte posta em juízo. E aqui o juiz não é neutro. Se na imparcialidade o juiz temde se omitir para não julgar os casos dos seus irmãos ou de seus parentes, naneutralidade o juiz é obrigado a se comprometer, porque a sentença é o sentimentoe provém de sentir – e o sistema quer que o juiz diga o seu sentimento. Éexatamente por isso que um juiz homossexual pode julgar um caso dehomossexual, um juiz negro pode julgar um caso de racismo e um juiz homem oumulher pode julgar um caso em que tenha sido envolvida uma questão demachismo.

E os juízes – desculpem, mas agora vou começar com eles – acham que sãoneutros, ou seja, não se apercebem que são machistas, racistas, heterossexualistase capitalistas. E não se apercebendo disso, ou às vezes se apercebendo um poucomais, acabam reproduzindo o que chamo de ideologia dominante, que é omachismo, o racismo, o capitalismo e o heterossexualismo. Para dentro do PoderJudiciário sempre vêm causas que a todo o momento estão sendo cortejadas essasideologias, algumas vezes mais claramente, noutras nem tanto.

Daí não poder acusar o Poder Judiciário, por exemplo, de não ser humano,que é a dimensão proposta neste painel. Nem posso dizer que não obedece à lei.Obedece, mas acontece que faz uma determinada escolha de toda a lei que existe, eobedece à dimensão humana. As decisões obedecem, só que obedecem a umadeterminada dimensão humana: àquela que é capitalista, racista, machista eheterossexualista.

Então, não se pode acusar o Judiciário de não tratar o humano. Apenas quetrata o humano prestigiando mais o capital do que o trabalho, mais o individual doque o social, mais a lei do que a ética, mais a busca da liberdade do que a busca daigualdade – nesta perspectiva, a minha visão é crítica. Na dimensão ética, paracitar um exemplo, recentemente o Presidente do Tribunal fez passar uma circularperguntando se dentro dos gabinetes dos desembargadores havia nepotismo.

Respondi, perguntando se a resposta que eu tinha de dar também envolviao que se chama de troca-troca. Não aquele filho que eu contrato, ou filho de umdesembargador que eu contrato, mas o filho do procurador ou do juiz do Tribunalque eu contrato e que, por sua vez, contrata o meu filho. Se isso eu também tinhade informar, porque sei que essa não é uma dimensão jurídica legal, não consta naConstituição, mas é uma dimensão ética e que pode minar, do ponto de vista ético,

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aquilo que é uma conquista contra o nepotismo no Rio Grande do Sul.Foi-me dito que eu só deveria informar o que consta da emenda

constitucional. Então, informei que no meu gabinete não havia nepotismo, massugeri ao Presidente do Tribunal que fizesse a mesma pesquisa, fazendo circularum novo ofício, para fins de eliminar as questões de ponto de vista ético,perguntando aos desembargadores se contratavam em seus gabinetes algum filhode procurador ou de juiz do Tribunal de Contas que, por sua vez, contratassetambém o seu próprio filho; e se nos gabinetes era contratado namorado ounamorada de um filho ou de uma filha.

O ofício foi recentemente respondido. Ainda não foi dito se será feita apesquisa ou não, mas pode-se sentir que no Poder Judiciário, na perspectiva deinterior e administrativa, a preocupação é muito mais legal do que ética.

Pretendo fazer um enfrentamento dessa dimensão humana, dessaperspectiva e dessa visão crítica, muito mais do ponto de vista cível, que é a minhaárea de atuação – talvez fosse interessante fazer do ponto de vista criminal, masnão tenho engenho e arte para isso, pois não é a área em que trabalho – e do pontode vista do processo, nem tanto do direito material.

Mesmo que eu não trabalhe com a visão criminal, gostaria de lembrar quea Lei das Execuções Penais, se fosse cumprida, não deixaria margem à discussãosobre aplicações de humanidade e de atendimento aos Direitos Humanos. Apesarde a lei não ser atendida – e vejam como aqui não basta ter a lei –, a minhapergunta já se responde. Temos a lei para uma boa execução criminal, masdesrespeitada, certamente em nome de outros valores.

Gostaria de falar da dimensão do humano na perspectiva do ECA eprocessual, de aplicação do ECA e na parte cível. Há um ano e meio venhotrabalhando com as medidas contra adolescentes, e tenho visto que os maioresestão melhor processualmente protegidos do que os menores – sei que não se usamais a expressão menores. Tenho tido uma preocupação muito grande, dentro doTribunal, de fazer uma aproximação entre o Código de Processo Penal e o ECA,na sua parte processual, mas, ainda assim, com muita dificuldade, porque, se hoje,no interrogatório criminal, é absolutamente indispensável a participação de umadvogado, ainda há muita dúvida, principalmente das duas câmaras. Eu diria quesó três desembargadores entendem que o adolescente sendo ouvido, precisa estaracompanhado de seu defensor. Só três desembargadores anulam, de ofício, essetipo de situação. Vejam, aí já se tem uma violação do princípio constitucional dadefesa, algo já consagrado no Processo Penal, não é trazido para dentro do ECA.Pelo ECA, ainda, uma questão revelantíssima, o Tribunal tem que destinar umaverba para a equipe interprofissional fazer os exames nos adolescentes infratores,

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é obrigado a destinar uma verba para isso, a lei determina que o juiz podedeterminar que faça um laudo antes de decretar a interação, que é justamente paraauxiliar o tipo de medida que vai aplicada, mas 90% dos processos infracionaisnão têm nenhuma preocupação em relação a fazer laudos.

Eu, particularmente, tenho anulado, porque apesar de a maioria dosdesembargadores entenderem que aquele laudo é facultativo do juiz, costumodizer que, infelizmente, continuo juiz, e para mim é importante que um laudovenha, ainda que seja em segundo grau, para fazer a identificação, tenho anulado,então, os processos para que se proceda a esse laudo, mas sou vencido, apenas umoutro desembargador me acompanha. Está lá, com todas as letras, no Código, queo juiz pode pedir o laudo, porém, os juízes não pedem os laudos.

E a execução do ECA sofre do mesmo problema da execução penal nonormal. Verdadeiramente temos, na Febem, um presídio, não é outra coisa, e a leifala que o juiz pode revisar a medida em até seis meses, porém, a interpretação quetem se dado é que só se revisa a medida de seis em seis meses. Quer dizer, omenor pode ter sua solução dois meses depois de uma entrevista com um juiz, masainda assim terá que esperar mais quatro meses, o que é uma afronta à lei. Temos alei, mas devido a uma política judiciária, não a obedecemos.

No Cível também, não há falta de lei, apenas há uma forma de dimensãohumana, e que esta forma dominante de se ver a dimensão humana, a mim, datavênia, merece crítica. É uma forma capitalista. Não falta lei, por exemplo, paraproteção da função social da propriedade, contudo, não se tem visto nenhumfazendeiro que tenha suas terras ocupadas pelo Movimento Sem Terra, precisaralegar nas suas petições iniciais que a sua propriedade tem função social. E nem osjuízes têm a mínima preocupação em saber se aquela terra tem função social ounão. Não conheço nenhum caso de juízes, diante de uma ocupação do MovimentoSem Terra, de ir até o local para saber se a terra está tendo função social, e funçãosocial da propriedade está prevista na Constituição, é elemento essencial do direitode propriedade. Logo, temos lei, mas mesmo assim, a lei, em relação à funçãosocial da propriedade, que é a Lei Maior, e que tem aplicação imediata, não temsido levada em consideração.

Também é constitucional, mas tem outros argumentos, a limitação dosjuros. Novamente, uma visão capitalista do juiz. Não adianta haver lei dizendo queos juros estão limitados a 12%, porque os bancos cobram o que querem. Esse é odetalhe mais significativo. Não estou dizendo que os bancos só abusam, os bancoscobram o que querem, em termos de juros, e não existe nenhum tipo defiscalização. Eles podem cobrar 12, 15 ou 50% por mês, nenhum tipo defiscalização existe, estão liberados os juros no Brasil, apesar de termos leis. O

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Poder Judiciário tem deixado os bancos cobrarem o que querem, não tem nenhumafiscalização, não tem nenhuma limitação. O Poder Judiciário tem deixado cobrar,no Rio Grande do Sul, menos do que nos outros estados, evidente, e aqui umelogio, algumas câmaras, alguns juízes do Rio Grande do Sul têm criado algumtipo de limite.

Nesse mesmo rumo, o Brasil desobedece o Pacto de São José,principalmente o Supremo Tribunal Federal, quando permite a prisão do devedorfiduciário, quando o Pacto de São José diz que só permitirão a prisão poralimentos. Trata-se de uma prisão por dívida, por depositário, e o Pacto de SãoJosé foi assinado pelo Brasil mas ainda assim o Supremo permite esse tipo deprisão. Evidentemente, aqui temos mais do que uma lei, temos um tratado, e aindaassim não é respeitado, certamente em nome de uma visão capitalista do direito,qual seja, a de proteção das financeiras, porque elas mesmas é que fazem esse tipode contrato.

Trata-se de uma visão ideológica branca. Não temos casos de crimes deracismo, são raros, num país racista como o nosso. Esses crimes que são trazidospara dentro do Judiciário são raros os que têm julgamento de procedência, seja doponto de vista cível, seja do ponto de vista criminal. E o que é pior, encontramosalgumas decisões exatamente racistas, algumas decisões que vieram a público pelojornal, que representam a perspectiva de juízes que, sem dúvida, são racistas, ouno mínimo não se apercebem da sua ideologia racista. Por exemplo, aquela quesaiu recentemente, que um negro foi chamado de macaco e o juiz disse que eraperfeitamente normal um negro ser chamado de macaco, porque isso é um ditopopular, os sem cabelos são chamados de carecas, os baixos são chamados deanões e os negros são chamados de macacos, então seria uma coisa absolutamentenormal. Vejam que é um tipo de enfrentamento. Ele está fazendo o que ele entendede direito humano. Se ele tiver a grandeza de entender, ele verá que quando tuchamas alguém de careca ou alguém de anão, não se perdeu a dimensão dohumano, mas se chamas alguém de macaco, realmente perdeste a dimensão dohumano.

É o mesmo que acontece com os homossexuais, que são chamados debichas, onde se perde a dimensão do humano. Agora, no que diz com a questão dafamília homossexual, aqui o Poder Judiciário, parece-me, pode dar algunsexemplos, principalmente no segundo grau, onde, recentemente foi reconhecida asociedade, e o companheiro homossexual pode usar, então, da meação dos bensque foram adquiridos na constância daquela união homossexual, mas a tendênciaé, certamente, avançar ao ponto de, nas relações familiares de homossexualidade,o companheiro ou a companheira homossexual herdar no lugar do cônjuge.

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Tentarei me explicar, se não tiver descendente nem ascendente, a lei diz que herdao cônjuge. Pois bem, ainda não temos um caso absolutamente julgado, mas há apossibilidade de o companheiro ou companheira homossexual herdar ali e excluiro irmão, que seria o próximo a receber a herança. Então, realmente, acho que nessaperspectiva, há algum avanço.

Concluindo, volto à pergunta inicial: adianta lei? Não adianta lei, o queadianta é mudar a mentalidade, é o juiz reconhecer que ele é um ser ideológico,que ele coloca algo de seu dentro de cada processo, e a partir desse momentopoderemos construir um Poder Judiciário mais democrático.

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

A dimensão humana e a consolidação dos direitos econômicos,sociais e culturais, na visão do Ministério Público

Cláudio Barros e Silva

– Creio que as posições técnicas trazidas na visão do Deputado RoqueGrazziotin, também a visão crítica do Desembargador Rui Portanova, conhecidopelas suas posições no Tribunal, tentando de fato avançar, modificar praxes,juntamente com outros magistrados que lutam também pela transformação doJudiciário, refletem a necessidade de termos numa mesa posicionamentos que sãoclaros e refletem a visão de cada um. O Deputado Roque Grazziotin tentou refletira posição da visão do Legislativo, o Desembargador Rui Portanova tentou refletir

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uma posição crítica a respeito do Judiciário, incluindo-se neles, e tentarei refletiruma visão de Ministério Público falando de nós, digo nós porque tenho aqui cincocolegas do Ministério Público que trabalham exatamente nesta área, na dimensãode estudar, refletir e avançar com relação às questões dos Direitos Humanos.

Realmente me incluo dentre aqueles que acreditam que a instituição doMinistério Público tem que ter compromissos claros com os avanços sociais, aocontrário dos magistrados, que são inertes, e tentam avançar quando provocados,se não são provocados não podem criar, não podem avançar. É quando têm apossibilidade de vir num painel como este e refletir uma posição do Judiciário, quepodem ir um pouco mais adiante do que ficar esperando a provocação. Nós não,saímos para o campo, estamos já há algum tempo trabalhando e buscandoefetivação de direitos fundamentais.

Todos sabemos que a Constituição de 1988 procurou refletir na suaorganização formal posicionamentos claros de avanço social. Não há dúvidaalguma que a constituição que temos é uma constituição que procurou resgatar acidadania. Faço parte de uma geração de cidadãos brasileiros que proibida de semanifestar na faculdade. Fui proibido de militar efetivamente, embora militasseem determinado momento histórico da minha vida, tanto nos movimentos pré-universitários quanto na própria universidade.

Tive a oportunidade de conviver com pessoas que hoje estão militandoexatamente nessas questões, tentando avançar e transformar a sociedade. Quando aConstituição procurou formalmente destacar as questões da cidadania, elaprocurou mostrar a todos nós que era necessário fazer ou pelo menos despertar apopulação brasileira com relação a algumas questões que haviam ficado noesquecimento, ou num provocado esquecimento, pela força, até, durante mais de25 anos.

Então, aqueles que lutaram, alguns de forma até utópica, e que ficaraminclusive no meio do caminho nesta luta, que lutaram para que construíssemos umEstado Democrático, que de fato fosse de direito e que a cidadania fosse plena,eles sonhavam na efetivação de um texto que pudesse avançar e ele avançou. Hoje,se temos juízes discutindo quando julgam no segundo grau a questão de umarelação homossexual é porque se permite chegar ao judiciário uma demanda comoessa. Há 12 anos sequer os juízes teriam a oportunidade de apreciar isso, pois ainicial em relação a essa sociedade de fato não seria recebida.

O que estamos tendo é a oportunidade de avançar no nosso sistemajudiciário com relação às questões que passamos a discutir depois que tivemos aoportunidade de também avançar em relação aos Direitos Humanos e sociais.Buscou-se avanços que efetivassem transformações.

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O Ministério Público sabe que quando o legislador formatou aConstituição, determinando as competências de cada um dos poderes do Estado,das instituições estatais, determinou que a instituição do Ministério Público nãoestaria mais vinculada aos poderes do Estado, mas ao seu lado para lhe controlar.O legislador quis que a sociedade tivesse um caminho para a efetivação dedireitos.

Mauro Capeletti, um dos maiores pensadores de transformação de avançoque estudou com profundidade o acesso à Justiça, em determinada oportunidade,disse que víamos o direito sem conseguir perceber as três ondas que se colocavampara todos nós, e que era necessário, naquele momento histórico, metade dadécada de 80, que conseguíssemos fazer essa identificação.

Dizia Capeletti, que na primeira onda éramos pobres não no sentidoeconômico mas no sentido ético. Para nós valia, em determinado momento, a Leide Gerson, levar vantagem em tudo. Passamos a ter isso como real e efetivo semnunca criticar tal lei. Para nós também valia a Lei do Robertão, do dando que serecebe. O Ministério Público Brasileiro, há quatro ou cinco anos, tentou investigara compra de votos feita para efeitos de aprovação de uma emenda constitucionalque determinava a reeleição do presidente. Isso foi identificado mas foi barrado nainvestigação, não chegando sequer a ser discutido no Judiciário. O é dando que serecebe que nos leva a oportunidades como essa.

A sociedade brasileira, embora a identificação das pessoas, dosdeputado que não voltaram ao parlamento, não chegou a ter claro oreconhecimento disso em uma sentença. São situações claras que passamos aaceitar de forma tácita.

Hoje, pelos avanços da cidadania e maturidade do povo brasileiro, nãose permite mais que essas questões fiquem esquecidas ou restritas a livros. Temosque avançar e transformar. Estamos, de fato, caminhando para a efetivação destesdireitos. O Capeletti disse que somos pobres moralmente e também com relação àsinformações. Talvez as informações sejam justamente o grande avanço queteremos no terceiro milênio. Quem detiver o conhecimento e a informação nãoserá aquele que exercerá o poder formal mas o poder do conhecimento. Aliás,Humberto Eco já dizia que quem detém o conhecimento detém o poder e quequem não detém o conhecimento será escravo daquele que o detiver.

Esta é a grande questão que estamos passando neste momento, segundoMauro Capeletti, que disse tudo isso há 15 ou 20 anos em relação a essa primeiraonda que diz respeito à pobreza. Mas, a nossa pobreza refletia, de forma clara,naquela década, uma situação que era mundial, ou seja, sabíamos que tínhamos os

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direitos massificados da sociedade, assim como os direitos dos consumidores; daspessoas portadoras de deficiência; do meio ambiente; direitos referentes às pessoasque não querem a afirmação da improbidade administrativa e direito com relaçãoao mercado de capitais, todos eles igualmente não estavam formalmenteregulamentados.

Passamos a identificar tudo isso e ainda o direito das mulheres; dasminorias – índios, pretos, prostitutas, homossexuais –; etc, enfim direitos quereconhecíamos mas não tínhamos sequer uma legislação para tentar proteger.

A partir do momento em que passamos a identificar isso, passamos a ternecessidade de identificar uma segunda onda. Essa era a onda em que seidentificava a necessidade da formalização dos direitos. Não adianta nada dizerque temos leis, normas constitucionais, e não cumpri-las ou desprezá-las. Quandotivermos a cultura da obediência à lei ou de que uma decisão judicial tenha que serefetivamente cumprida e que se tenha posicionamento crítico, fundamentais paraos avanços sociais, teremos isso como norma para todos nós.

A partir de 1985, o nosso país passa a ter norma constitucional que definiudireitos dos portadores de deficiência; dos consumidores; do meio ambiente; dainfância e da juventude. Todos esses direitos são supraindividuais, estando acimados direitos meramente individuais. Quando digo isso o faço com a claraconvicção de que a nós, que saímos de uma faculdade de direito, foi ensinadoresolver problemas puramente individuais.

O Ministério Público já começou a sair dessa praxe que nos foi ensinada.A magistratura é esperta em resolver um conflito de interesses individuais. Ouseja, eu consigo solucionar um conflito que diga respeito a um processo deexecução. Para isso sequer juiz era necessário porque é a força do podereconômico na mão e na caneta de um juiz. Mas isso se resolve no processo. Agora,a solução de questões relativas ao Sistema Único de Saúde; ao internamento emhospitais psiquiátricos; à Febem; ao consumidor; ao meio ambiente etc. não dizemrespeito a interesses individuais mas de uma comunidade inteira, a pessoas quesequer conhecemos. O resultado desse processo se dará em benefício dasociedade, do cidadão. Não tivemos ainda uma discussão clara e um avanço emrelação a algumas questões.

Mais do que isso, para evitar a discussão de mérito dessas questões, quedizem respeito aos direitos de todos nós – por serem Direitos Humanos – ficamoslimitando, por vezes, a discussão da questão formal, puramente processual quediscute a legitimidade ou não de o Ministério Público entrar com essa demanda.Com isso, terminamos com um processo que discute, por vezes, interesses demilhões de pessoas.

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Por que não se quer fazer isso? Porque não se quer discutir isso. Talvezpara se manter uma situação de discriminação, de exclusão e de manutenção deelites em nosso país. Quando vemos uma regra que diz que o Ministério Públicotutela o interesse da sociedade e é o defensor deles, pela norma constitucional,sabemos que ele não é o único, ele não tem legitimação exclusiva para isso.Também o são o Legislativo, o executivo, o Judiciário, os entes estatais, fundaçõese a sociedade organizada, aqueles que podem, eventualmente, promoverdemandas. Mas são poucos que promovem ações civis públicas embora a leipermita que se possa eventualmente promover ação civil pública. Quem faz isso,em 98% das demandas civis públicas postas ao Judiciário, é o Ministério Público.

Temos uma lei, de ação civil pública, de avanço social fundamental, quecontém uma regra que determina que o Ministério Público, como órgão estataltutelando interesses da sociedade, está isento de pagar custas processuais. Ele temisenção para recorrer sem sofrer os ônus da sucumbência porque o direito materialnão é seu mas das pessoas que recebem o benefício ou prejuízo de uma decisão.Quem tem vantagem com a decisão não é o Ministério Público e sim a sociedade.

É imputado ao Ministério Público, eventualmente, a sucumbênciaexatamente para não permitir que ele demande nestas questões. Isso é umasituação de criação contra legem em prejuízo da sociedade claramente no sentidode manter uma estrutura de opressão, discriminação e exclusão. Lutamos,judicialmente, para denunciar exatamente isso que não diz respeito ao MinistérioPúblico. Se não tivermos legitimidade não promovemos a ação, mas a sociedadetambém não terá tutela. Ou seja, se somos o caminho da tutela e me impedem detutelar porque não tenho dinheiro para pagar e não tenho que ser condenado – oEstado que o seja mas não a instituição sob o argumento de que tem orçamentopróprio – mas convenhamos, a lei diz que o Ministério Público está isento e nósestamos negando tutela, negando o acesso à Justiça, negando a implementação dedireitos fundamentais.

Mas isso tudo quando se passou a trabalhar exatamente essas novasquestões. A grande diferença talvez esteja aí, quando a lei passou a definir direitosfundamentais e o Ministério Público começou a alcançar esses direitos, ou seja,tentar implementá-los em juízo.

A terceira onda vai além, diz que não adianta reconhecermos os direitos senão buscarmos sua efetivação. Os direitos não devem mais ser vistos pela óticados seus produtores, sejam eles juízes, promotores, advogados, doutrinadores,professores, enfim aqueles que fazem o direito para a manutenção, mas por todosnós como direito dos seus consumidores, sob a lógica daqueles que necessitam dasua implementação, que é o cidadão, a sociedade, que é aquele que quer que o seu

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direito individual e humano se inclua nessa proposta do Deputado RoqueGrazziotin em relação aos direitos econômicos, sociais e culturais. Ele deve teressa amplitude e ser reconhecido. Na medida em que o direito deve ser doconsumidor e não mais do produtor temos que ter formas de fazer com que odireito seja efetivo. Hoje o direito é efetivo para uma elite brasileira. São poucas aspessoas que tem acesso à Justiça, que tem condições de implementar os seusdireitos e que sequer sabem ou conhecem plenamente quais são.

Se a grande maioria da população brasileira não tem acesso à Justiça, elaestá excluída da possibilidade de efetivação dos seus direitos. Mais do que isso, sereconhecemos que 50 milhões de brasileiros estão naquela faixa que ganha menosdo que 1 (um) dólar/dia, ou se tem emprego formal, ou se não o tem, veremos queessas pessoas estão fora de uma estrutura do direito que é feito para a manutençãoexatamente daqueles que estão dentro do direito. Temos que interpretarexatamente as questões neste sentido. Quando Capeletti fala dessa questão eleprocura identificar isso para que possamos refletir a respeito.

A norma Constitucional, em seu artigo 98, impôs que tivéssemos, em cadaEstado brasileiro, aquilo que já se experimentava no Rio Grande do Sul antes dalei ordinária feita no Brasil, com relação aos Juizados Especiais Civis. Ou seja, amatéria civil, que trabalha basicamente com o patrimônio, nós nospreocupávamos. Sobre essas nós formamos os nossos juizados especiais. Sobre ocriminal, ficamos discutindo na Câmara dos Deputados sobre sua formalização.Então, vamos fazer a lei: aí então o Judiciário brigava para manter sua jurisdição,o Ministério Público brigava para manter a titularidade da ação penal, a políciabrigava para manter o inquérito policial. Passamos quatro ou cinco anosdiscutindo no Congresso Nacional até que se chegou a uma lei que criava osJuizados Especiais Criminais e que é claramente o neoliberalismo no direito penal.Tudo se resolve por dinheiro, se tiver dinheiro não responde processo, se não tiverdinheiro será processado.

Então esta é a regra prevista na norma constitucional com relação aosJuizados Especiais. Mas, quando falamos na terceira onda temos que achar formasde solução de conflitos que, por vezes, sequer passa pelo juiz. Tínhamos que teroportunidades de, em quarteirões, em bairros, em comunidades, ou em cidadespequenas, de permitir que aquelas pessoas que servem à comunidade, líderescomunitários, possam resolver os conflitos normais da comunidade sem aparticipação do judiciário, do Ministério Público, deixando que aqueles quetrabalham com direito formal trabalhem nas questões maiores, como por exemploos problemas que envolvem os consumidores, os problema da infância e dajuventude, questões que dizem respeito aos interesses do meio ambiente e outros.

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Creio que este é o grande caminho rumo à solução, que está previsto naterceira onda do Capeletti. Mas, com esse recado que foi dado em meados dadécada de 80, passamos então, com os compromissos constitucionais impostos aoMinistério Público, a organizar a instituição e a ter, por exemplo, promotores quenão trabalham com juízes. Temos promotorias que trabalham com a comunidade.

Não temos um juiz do consumidor, mas quatro promotores em PortoAlegre que são os promotores do consumidor. Não temos um juiz de defesa dosdireitos do cidadão e dos Direitos Humanos, mas quatro promotores, que aquiestão, que trabalham com essa matéria. Não temos um juiz do meio ambiente, masquatro promotores que trabalham com as questões que envolvem essa questão.Não temos um juiz que trabalhe a matéria do crime organizado, mas setepromotores que trabalham com ele. Assim por diante.

Temos procurado trabalhar assim. Esses são os colegas que trabalhamdiretamente com a comunidade e que levam as demandas perante o juiz, emboraele seja especializado na matéria. Proponho que tivéssemos juízes que estudassema matéria dos direitos não individuais e sim supraindividuais. Ou seja, teríamos umjuiz expert em conflito coletivo e difuso, que saberia o significado de cada um dosatos que tem repercussão geral e não individual.

Sendo assim teríamos, por exemplo, um juiz expert em crime organizado,que tem um resultado que agride a própria sociedade. Quando trabalhamos aimprobidade administrativa, seja na área criminal ou na civil, e temos exemplosdisso em nosso Estado, passamos a ter um resultado efetivo. Chegamos a ter umacâmara especializada, no Tribunal, para analisar os crimes praticados porprefeitos. Passamos a estudar a legislação de forma clara e específica com relaçãoa algumas situações. Exemplo disso foi que o Ministério Público se especializouna matéria. Com isso, a sociedade passou a acreditar na punição dos homenspúblicos, como prefeitos que há muito tempo praticavam delitos e que hoje estãoforagidos. Passamos a dar respostas para a sociedade.

Teríamos mais avanços se tivéssemos juízes especializados emimprobidade administrativa, civil; juízes trabalhando com questões do meioambiente, direito do consumidor etc. A especialização nestas matérias permitiriaque os Direitos Humanos fossem implementados exatamente nos resultados que sebuscaria em demandas colocadas em juízo.

Não tenho nenhuma dúvida que para o Ministério Público avançar nasquestões dos Direitos Humanos temos que, de fato, querer e ter isso comoprioridade e como proposta de ação. Se o Ministério Público não quiser fazer issopode ficar como não sendo prioritário na ação. Sendo assim, teremos muitas outras

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demandas que poderão ser prioritárias e que, exatamente, estarão permitindo quese mantenha uma sociedade em que não se possa discutir questões, por exemplo,de quilombos no Estado, sobre as quais temos colegas trabalhando. Temos 36quilombos identificados. Temos colegas trabalhando diretamente na questãoindígena, não só do Ministério Público Estadual como também do Federal. Algunscolegas trabalham com questões relativas à saúde, à educação.

Segunda-feira, estaremos aproximando os Município do Estado natentativa de resolvermos a questão do transporte escolar, que é obrigação doEstado, por termo de ajustamento.

Se não tivermos isso como prioridade, poderemos trabalhar em umprocesso em que a intervenção – por exemplo em um processo de usucapião, ondeas partes são legítimas e estão bem representadas, tem advogadas etc. – doMinistério Público se daria apenas por um parecer no processo, sem reflexo maiorcom relação à sentença. Ou teremos a opção. Ou nós vamos ter a opção paraafirmação da cidadania ou dos Direitos Humanos ou teremos a opção de mais umavez passarmos – e digo isso porque fui reconduzido, pelo voto dos meus colegas –porque isso passou a ser prioridade dentro do Ministério Público.

Há um reconhecimento da nossa instituição no sentido de que nós e não oProcurador quer isso. A instituição quer avançar e, de fato, transformar. OMinistério Público tem sido uma instituição de ponta neste país, o tem sidoreconhecido pela sociedade. Hoje todo mundo sabe o que faz o Ministério Público.A instituição, com todos os defeitos que possa ter, principalmente os individuais –porque ela é o resultado de todos nós – é reconhecida pela sociedade.

Coloco-me à disposição para um debate sobre a instituição, sobre nós, e oque podemos fazer para transformar uma sociedade que precisa, de fato, de gravestransformações sociais.

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Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul

A dimensão humana e a consolidação dos direitos econômicos,sociais e culturais, na visão do Executivo

Mozar Artur Dietrich

– Discutimos, na Secretaria, a partir do convite que nos foi formulado,para falarmos a respeito da dimensão humana e sua dignidade com relação aosdireitos humanos sociais, econômicos e culturais, e nos perguntamos, por que nãofalávamos dos direitos políticos e civis.

O Governo do Estado tem como uma questão muito cara a questão dosdireitos humanos políticos e civis.

É a partir da afirmação dos direitos civis e políticos, bem mais do quesimples garantias individuais do Estado, direitos muito mais amplos departicipação e de controle social, assim como a partir da garantia da efetivaçãodesses direitos, que o Estado dá condições para a sociedade exercer tais direitos.Sendo assim conseguiremos caminhar em direção a garantia dos direitos sociais,econômicos e culturais.

Nosso Governo tem como concepção muito cara, e princípio básico de toda

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a nossa ação, a construção da cidadania e a garantia dos Direitos Humanos de todapopulação. Vivemos, como já foi dito aqui, em uma sociedade com grandesdistorções e problema. Avançamos muito como humanidade, como nação, nagarantia dos direito, pelo menos em leis, mas muitas conquistas que foram obtidaspor nós, pela luta das instituições que aqui estão representadas e outras, estão seperdendo, em função de na última década o nosso país ter se subordinado a umaglobalização econômica que traz no seu rastro transformações profundas nosprocessos produtivos da sociedade e no papel do Estado.

Toda essa situação tem provocado uma perda gradativa e crescente dosdireitos sociais, com a deterioração dos serviços público e uma precarização nasrelações de trabalho, com desemprego etc. Tudo isso vem agravando, dia-a-dia, aexclusão social. O contingente de excluído em nossa sociedade é crescente,resultado deste processo econômico global que privilegia o capital em detrimentoda vida humana.

Entendemos que as ações de Governo que executamos devam serprioritariamente voltadas para aqueles segmentos que estão excluídos social,econômica e culturalmente ou que sequer, até hoje, chegaram a ser incluídos para,então, serem excluídos.

Para a caminhada em direção a esse objetivo, evidentemente, somoscontrários à concepção de um Estado mínimo, mas, também, não somosdefensores de um Estado total e absoluto, pois pensamos que o Estado deve ter otamanho necessário para desenvolver as ações que lhe cabe.

Não consideramos, também, que o Estado seja o único elementoalavancador e gestor de processos, pois entendemos que a sociedade devetrabalhar solidariamente. Hoje pela manhã, durante uma palestra, o Professor JoséCarlos Moreira falou na questão do direito da colaboração democrática, que, paranós, é uma concepção bastante cara, pois entendemos que o poder está, de fato,espalhado pela sociedade em milhares de instâncias, não somente nas do Estado,mas em coletivas, comunitárias, sindicais, empresariais e nos movimentos sociais,e que o Estado deve, sim, garantir a participação de todas essas instâncias emtodos os processos decisórios da nossa sociedade.

Portanto, partimos da concepção da soberania popular, envolvendo toda asociedade nesse processo de colaboração democrática, como foi referido, epensamos que esse é o caminho para se conceber e construir uma nova sociedadeparticipativa e democrática, que tenha em suas próprias mãos, e não nos gabinetes,o poder de decidir em todos os níveis, principalmente no econômico.

Não parto de uma visão economicista na qual a sociedade se insira, girandoem torno do econômico, pois entendemos que a sociedade tem muitos outros

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aspectos, mas não podemos negar a importância e a força da economia na nossasociedade.

Nós, do Governo do Estado, também não entendemos que esse projeto desociedade seja uma concepção exclusiva nossa; ao contrário, como já foi referidohoje de manhã, há toda uma luta histórica da participação popular na construçãodos Direitos Humanos, e pensamos que estamos no Governo exatamente paralevar adiante esse projeto, que tem sido gestado há séculos pela humanidade nabusca da soberania do povo e que está tão bem consubstanciado na nossaConstituição Federal, dita cidadã porque busca a participação popular, bem comona Constituição Estadual e nos pactos internacionais, que exigem a participaçãodas comunidades e da sociedade em geral nas decisões acerca das políticaspúblicas que os Governos devem desenvolver para a sociedade como um todo.

Portanto, entendemos que estamos fazendo nada mais do que se levaradiante um projeto que a humanidade há muitos séculos já está criando.

Mais concretamente, quando falamos na dimensão humana e naconsolidação dos direitos econômicos, sociais e culturais, temos basicamentequatro dimensões, que são um ponto de partida para alavancar as nossas ações.

A primeira dimensão, como não poderia deixar de ser, é a participaçãopopular. Entendemos que o controle social e a participação do povo são a base doGoverno democrático e popular do Estado. O Orçamento Participativo é, para nós,o maior instrumento de gestão pública do Governo e de uma participação direta euniversal de toda a sociedade, para se debater e decidir acerca de todas as grandesquestões que envolvem o Estado, desde a sua receita orçamentária, a matriztributária – insistimos no sentido de continuar a fazer essa discussão com asociedade –, o planejamento e o controle dos investimentos até a prestação decontas.

Estamos, agora, em pleno processo do Orçamento Participativo em todo oEstado, sendo que, mais uma vez, centenas de assembléias estão acontecendo evão ocorrer durante todo este semestre, onde reunir-se-ão centenas de milhares depessoas a exemplo dos anos anteriores. Pelo que temos visto nos últimos dias, estácrescendo cada vez mais a participação popular, pois a população, de fato, estádescobrindo, por meio do Orçamento Participativo, um instrumento muito fortepara exercer a cidadania e o controle e para tomar decisões.

Além do Orçamento Participativo, outros instrumentos muito importantespara a participação e o controle social são as conferências estaduais, que são muitomais do que meios simples de consulta popular, proporcionando um debate amploe profundo na nossa sociedade, que envolve determinados segmentos e políticassociais. No nosso entender, essas são instâncias, também, deliberam políticas.

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Temos a absoluta certeza de que todas as ações que o Governo do Estadoestá desenvolvendo e que todos os seus programas estão legitimados emconferências estaduais, não só no Orçamento Participativo, que já foramrealizadas. Houve várias nesses dois anos de Governo, como a Conferência daAssistência Social da Criança e do Adolescente, a Conferência do Meio Ambiente,a Conferência da Segurança e a Constituinte Escolar.

Para este ano, está prevista a realização de várias conferências. Teremos a1ª Conferência Estadual da Comunidade Negra, um momento importante ehistórico do nosso Estado, a 1ª Conferência Estadual do Idoso, a 1ª ConferênciaEstadual dos Direitos do Consumidor e a 4ª Conferência da Criança e doAdolescente.

Haverá a 1ª Conferência Crianças e Adolescentes do Estado, que tambémterá o apoio do nosso Governo, pois as crianças e os adolescentes reclamamsempre durante os encontros que as conferências que lhes dizem respeito são, defato, de adultos, já que as conversas são muito complicadas. Então, o MovimentoNacional de Meninos e Meninas de Ruas e outras entidades, com o apoio doConselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente – Cedica – e doGoverno do Estado, já estão preparando essa Conferência, que será realizada coma participação das crianças e dos adolescentes.

O 3º Fórum Estadual dos Povos Indígenas acontecerá neste ano. Em 1999houve o 2º Fórum, que trabalhou na reestruturação do Conselho e na definição daspolíticas do Governo do Estado com relação à comunidade indígena.

Um outro elemento importante da participação e do controle social dessaprimeira dimensão, para a garantia e a construção dos direitos econômico-sociais,são os conselhos estaduais de direitos. Desde o início do Governo, temosreafirmado a sua importância e temos incentivado, reestruturado e apoiado todosesses conselhos, que, atualmente, estão num processo crescente e bastantevigoroso de elaboração, de discussão e de deliberação de políticas de ação, defiscalização, de cobrança e de instigação do Governo. Entendemos que essesórgãos são supra-estatais, já que têm a participação de representantes do Governodo Estado e da sociedade civil.

Entendemos que esses conselhos também são instâncias de participaçãolegítimas da sociedade. Temos o Conselho Estadual da Comunidade Negra, dosPovos Indígenas, da Criança e do Adolescente, do Idoso, o Conselho deAssistência Social, o Conselho Estadual de Educação, o Conselho Estadual deSaúde e vários outros.

O Governo trabalha no sentido de dar garantia para que essas instâncias, de

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fato, sejam de envolvimento e de articulação desses segmentos sociais e dedeliberação.

Trouxe, para ser distribuído, um caderno do Orçamento Participativo, quecontém todos os programas e ações que estão sendo votados pelas suasassembléias no nosso Estado. São mais de cem programas e ações, todos, como jádisse, discutidos e deliberados por todas essas instâncias, e a sociedade, como umtodo, tem a oportunidade de conhecer o que foi decidido, por exemplo, peloConselho Estadual da Comunidade Negra e de, na sua comunidade, votar comrelação a esse programa, propor alterações ou ainda um outro projeto. Essecaderno é muito interessante porque contém, de forma resumida, praticamentetodas as ações e programas, o que nos dá uma idéia do conjunto da política que oGoverno do Estado desenvolve para todas as suas áreas. Para quem ainda não oconhece, o caderno está à disposição.

Uma segunda dimensão, que para nós também é muito cara, quandopensamos na consolidação da dignidade humana e dos Direitos Humanos, dizrespeito ao fato de que partimos da concepção do ser humano como prioridade.Combatemos a lógica neoliberal, que privilegia o capital e os grandesinvestimentos e investidores, porque entendemos que o ser humano deve ser ocentro, o objetivo e o ponto de partida de toda a idéia do Estado, e essa tambémnão é uma concepção nossa, mas da própria Constituição e dos pactosinternacionais.

Mas, infelizmente, na nossa sociedade neoliberal temos que chegar aoridículo de todo o dia reafirmar isso, quando achamos que devemos defenderpequenos projetos de economia popular e solidária em contrapartida a grandesinvestimentos de milhões de reais, que outros Governos insistem em fazer.Pensamos que o ser humano, que muitas vezes tem pequenos projetos, dos quaisvive, deve ser a prioridade.

Uma terceira dimensão, de vital importância para a execução de um projetode sociedade como esse, é a valorização local. Não somos contrários àglobalização, mas somos críticos com relação à globalização econômica da formacomo está sendo desenvolvida, porque ela vem, de fato, destruindo as pequenasglobalizações locais, que devem ser, ao contrário, fortalecidas.

Trabalhamos nesse sentido a partir, também, das decisões e das instânciasda sociedade, pois devemos privilegiar as matrizes produtivas locais. Em termosde projetos maiores, já temos várias ações com relação, por exemplo, ao Vale doSapateiro, ao setor moveleiro, mas, mais do que isso, o nosso Estado é muito ricoculturalmente, pois abriga inúmeras matrizes produtivas próprias, que seconstituíram historicamente há décadas ou séculos e que não se podem perder,

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devendo ser valorizadas. A não-valorização dessas economias é uma agressão aessas pessoas. Portanto, temos que ter muito cuidado na proteção das matrizesprodutivas locais do nosso Estado.

Uma quarta dimensão muito importante com relação à concepção dosDireitos Humanos é exatamente o aumento dos investimentos nas áreas sociais.Estamos trabalhando dentro do Governo do Estado no sentido de garantir maioresrecursos para estas áreas, como a da saúde, da educação, da assistência social e dahabitação, retomando-se as atividades da Cohab.

Também queremos assegurar investimentos em políticas de meio ambiente,de geração de empregos e de renda, e tem sido nessas assembléias do OrçamentoParticipativo, que já estão acontecendo no interior do Estado, que a população estáelegendo a geração de emprego e renda como uma das prioridades das ações que oEstado deve desenvolver.

Trouxe para os Senhores, também, um caderno contendo o resumo dasações que o Executivo estadual desenvolveu nos primeiros dois anos, que sãoresultado de um esforço do Governo em sistematizar as suas ações. No anopassado, quando se procurou e lutou para a elaboração do relatório das ONGs paraa ONU sobre os direitos econômicos, sociais e culturais, o Governo do Estado doRio Grande do Sul teve a coragem de apresentar também o seu relatório, mascomo era um relatório das ONGs, ele não foi, evidentemente, incluído nestapublicação que agora vocês receberam através da Comissão de Direitos Humanos.Mas, mesmo assim, insistimos em fazer a publicação porque precisamos tercoragem de mostrar à sociedade o que estamos fazendo, até para podermos recebercríticas e sugestões. Durante a Conferência Estadual dos Direitos Humanos do anopassado foi apresentado um relatório bem completo.

Inicialmente seriam essas as questões que gostaria de fazer, reafirmandoaquilo que já disse no início desta reunião, no sentido de que entendemos que aspolíticas do Governo do Estado do Rio Grande do Sul devem garantir este espaçode participação, de articulação e controle da sociedade civil. A sociedade tem oconhecimento e as condições necessárias para propor políticas e ações, fiscalizá-las e lutar para que sejam efetivadas.

Muito obrigado.

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Diretor do Departamento de Cidadania da Secretaria do Trabalho, Cidadania e AssistênciaSocial/RS

A dimensão humana e a consolidação dos direitos econômicos,sociais e culturais, na visão de uma Organização Não-Governamental

Valdevir Both

– Farei uma reflexão do ponto de vista da sociedade civil, maisespecificamente do Movimento Nacional de Direitos Humanos do Estado.

Quando falamos em Direitos Humanos, falamos em papéis, ou seja, emalguém que deve garantir e promover esses direitos, e para isso temos aqui doisatores fundamentais: o Estado e a sociedade civil, principalmente a partir da

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conferência de Viena realizada em 1993.Segundo Vitório Trevisol, vivemos uma emergência da sociedade civil, um

fenômeno político muito recente, cada vez mais fortalecido, mas ainda poucoconhecido, que é o trabalho da sociedade civil. Conhecida como o fenômenoONGs, ou Organizações Não-Governamentais, são os novos e mais criativosatores políticos da atualidade, tanto no âmbito interno como externo. Entretanto, otema na sociedade civil é histórico, e já foi abordado por Aristóteles, Hobbes,Locke, Kant e Rousseau. Mais tarde, o tema foi bem aprofundado por Hegel,Torqueville, Marx e, principalmente, Gramsci.

Na atualidade, principalmente, depois dos anos 80 e da grandes ditadurasno mundo, tivemos a volta reinventada do conceito de sociedade civil pararepresentar e entender o significado político e social de uma série deacontecimentos novos e políticos que emergiam tanto nos países do Oeste,América Latina e Europa. Temos, portanto, um fenômeno novo que começa a sertematizado, principalmente, a partir de Gramsci, que é a sociedade civil, e que, naverdade, vai contemplar esses novos fenômenos.

Temos também expressões políticas diferentes como os movimentos pelademocracia nos países da América Latina, a rede de levantes populares no LesteEuropeu que desejava o fim do socialismo real, também os movimentos sociais, acriação e o surgimento de milhares de ONGs que representam o fortalecimento deum setor, até então, reprimido e negligenciado pela modernidade.

Em 1839, tivemos a formação da primeira ONG e, em 1986, contávamoscom mais de 4.649 ONGs, organizações que aos poucos ganham formato de rede,se ampliam, adquirem um caráter internacional, dando visibilidade às lutas sociais.Podemos dizer que essas ONGs e os movimentos sociais, conforme a tradiçãoteórica, distinta entre eles, aprimoram uma distinção proposta por Gramsci entreEstado, mercado e sociedade civil. Essa última ficou conhecida como terceirosetor, a partir do qual os cidadãos arregimentariam recursos materiais e simbólicospara implementarem suas lutas em defesa das liberdades civis e políticas dosDireitos Humanos, do meio ambiente, na promoção da cidadania, dodesenvolvimento sustentável etc. Portanto, conforme Souza Santos, a sociedadecivil é um amplo, heterogêneo e complexo número de movimentos, entidadesiniciativas civis, que tomam forma de rede, coalizões e alianças não-estatais e não-econômicas, que ultrapassam os limites geopolíticos dos estados nacionais, comrelativa autonomia em relação aos governos, e se ligam às necessidades locais,com os interesses globais, no intuito de preservar e realizar valores, princípios ouinteresses públicos.

Ou seja, a sociedade civil lança-se para além das fronteiras para tematizar

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globalmente novas problemáticas que os Estados, muitas vezes, por limitações,não respondem ou até se abstém de fazê-lo. Conforme Habermas, a sociedade civilcapta o eco dos problemas sociais que vão ressoar nas esferas privadas,condensando e transmitindo-os, a seguir, para a esfera pública política, isto é,dando voz às demandas sociais. Há, então, um movimento da sociedade civil dealavancar, explicitar e legitimar, conforme vimos pela manhã, os problemas que,depois, serão levados para a esfera pública.

A luta recente pelos Direitos Humanos no Brasil tematiza este aspecto, ouseja, a importância da sociedade civil na construção dos Direitos Humanos.

Tivemos um Programa Nacional de Direitos Humanos que já pecou na suaessência, ao enfatizar os direitos apenas civis e políticos, esquecendo-se dauniversalidade, da indivisibilidade e interdependência, tão proclamados naConferência de Viena. Além disso, não conseguiu sequer garantir as limitadasações a que se propôs, e sequer entregou o seu relatório oficial para a ONU.Diante disso, a sociedade civil brasileira cumpriu função fundamental aodenunciar o limite do Estado e o descumprimento do seu papel primordial,apresentando um relatório paralelo, hoje referência para a ONU.

Cumpre à sociedade civil não assumir as funções do Estado, muito menosser a calibradora da pressão social, como muitos dizem, mas manter viva aconsciência dos Direitos Humanos da sociedade, o que significa organizar acidadania no sentido de capacitá-la para exigir os seus direitos, a partir daconstrução de espaços públicos que ensejem a formação e o controle social depolíticas públicas. Deste modo, estará efetivando o seu importante papel naconstrução e implementação dos Direitos Humanos, conforme a Declaração deViena, que lhe confere papel fundamental no esforço conjunto entre governo esociedade civil.

Conforme o § 25, a Conferência Mundial de Direitos Humanos reconhecea importante função que cumprem as organizações não-governamentais, napromoção de todos os Direitos Humanos e nas atividades humanitárias em nívelnacional, regional e internacional. A Conferência aprecia a contribuição que essasorganizações trazem à tarefa de aumentar o interesse público nas questões deDireitos Humanos. As atividades de ensino, capacitação e investigação nessecampo e a promoção e proteção dos Direitos Humanos e das liberdadesfundamentais. Apesar de reconhecer a responsabilidade primordial no que serefere à adoção de normas correspondentes aos Estados, a Conferência tambémaprecia a contribuição que as organizações não-governamentais trazem a esseprocesso.

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A Conferência insiste na importância de que prossigam o diálogo e acooperação entre governos e organizações não-governamentais. As organizaçõesnão-governamentais e os membros dessas organizações, que verdadeiramente seocupam na esfera dos Direitos Humanos, devem gozar dos direitos e dasliberdades reconhecidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e daproteção das leis nacionais. Esses direitos e liberdades não podem ser exercidos deforma contrária aos propósitos e princípios das Nações Unidas. As organizaçõesnão-governamentais devem ser donas de realizar suas atividades de DireitosHumanos, sem ingerências no marco da legislação nacional e da DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos.

Aqui no Estado, a partir dessa perspectiva, o desafio atual significaintensificar o processo de construção do Plano Estadual e do Conselho Estadual deDireitos Humanos, já iniciado pelo conjunto da sociedade e governo, através dasconferências. Isso significa uma luta conjunta entre Governo e sociedade civil,sem a troca de papéis, na promoção dos Direitos Humanos, a partir de açõesestruturais, capazes de garantir a todos os Direitos Humanos, processo que, comodissemos pela manhã, requer maior aproximação entre os diferentes poderes aquirepresentados e a sociedade civil, principalmente, entre o Ministério Público e oJudiciário. Muito obrigado.

Coordenador Estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos/RS

Debate

Presidente Roque Grazziotin – Pergunto aos presentes se gostariam de fazeralguma abordagem ou questionamento sobre este painel que foi colocado a partirde diversos ângulos do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público, doExecutivo e da Organização Civil sobre o tema da Dimensão humana naconsolidação de direitos econômicos, sociais e culturais, que é um grande desafio

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para a construção de uma nova sociedade.Essa dimensão vai-se tornando cada vez mais crítica, na medida em que

vamos nos desempermeabilizando e, ao mesmo tempo, nos questionando arespeito do que nos cerca. Isso vai-se somando às nossas utopias para a construçãode uma sociedade que seja possível, porque em muitas ocasiões, por intermédio damídia ou de outros órgãos, ou de filosofias que vão sendo impostas, parece quenão conseguimos sair de um mercantilismo, de um consumismo e nãoencontramos mais alternativas. O fato de estarmos aqui demonstra que é possívelconstruirmos algo diferente para a conquista de uma sociedade humana mais justae mais fraterna.

Concedo a palavra ao Sr. Dorvalino Filippini, da Fundação deAtendimento ao Deficiente e ao Superdotado do Estado do Rio Grande do Sul –Faders.Sr. Dorvalino Filippini – Farei um comentário e espero que possamos encontraruma forma de enquadrá-lo nesta discussão. Trabalho com pessoas portadoras dedeficiências, como surdez, cegueira e outras, e de altas habilidades. A deficiênciaque é mais discriminada em toda a sociedade é a mental. Percebi que essadiscriminação maior parte dos meios de comunicação. O jornal Zero Hora, quandofoi decretada a regulamentação da Lei nº 7.853, noticiou o fato sem fazer constar onúmero da lei, a data e utilizou o termo: deficiente físico.

Diante disso, entramos em contato com a empresa responsável esolicitamos que ao publicarem uma matéria o fizessem corretamente, porque foramvários os telefonemas para a Prefeitura e para o Estado querendo esclarecimentossobre a referida lei. Além do mais, alertamos que estavam utilizando aterminologia incorreta, porque ao referirem-se a deficiente físico, estavamdeterminando um tipo específico de deficiência, e que o termo correto é PessoaPortadora de Deficiência. Obtivemos a resposta de que somos um segmento muitopequeno e que não temos o direito de nos manifestar quanto ao termo com o qualqueremos ser referidos.

O Correio do Povo também utilizou a expressão: deficiente físico e,quando reclamei, alegaram que o termo era muito comprido e que não outilizariam por que não caberia na reportagem.

No Fantástico, contaram o caso de uma menina que ficou de cadeira derodas e a trataram como se fosse uma criminosa, utilizando o termo: Condenada aviver confinada em uma cadeira de rodas. Não sei como faríamos para inverteresse quadro. A mídia tem grande culpa, porque, quando apontamos a terminologiacorreta, se acham no direito de dizer que não temos o direito de escolher o termo

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com o qual queremos ser referidos. Não sei qual a lógica nisso.Quando uma pessoa comum – não uma pessoa portadora de deficiência –

vai comprar um carro, conta com financiamento, mas se preciso fazer umfinanciamento para adquirir uma cadeira de rodas ou um aparelho ortopédico, elesme negam. Por quê? Muito obrigado.Presidente Roque Grazziotin – Concedo a palavra ao Representante doJudiciário, Dr. Rui Portanova, que poderá fazer um comentário sobre esse assunto.Dr. Rui Portanova – O engraçado é que não é difícil fazer um comentário.Acontece que a gente, no Judiciário, para qualquer coisa que as pessoas falem, ficaimaginando que ação poderia ser inventada ou como o juiz poderia intervir paraobrigar a imprensa a usar a expressão inteira, qual seja, Pessoa Portadora deDeficiência. E se essa expressão não for utilizada, vamos fixar uma multa ou oquê? É uma situação um pouco complexa.

Acredito que o Padre Roque me passe essa questão exatamente para que euseja chato no sentido de pensar em uma forma de a burocracia judiciária poderintervir no procedimento do meio jornalístico e até da área financeira. Vejo quetalvez não estejas preocupado em pagar juro de 12% ao dia, mas, sim, numa formade conseguir um financiamento para poder comprar a cadeira de rodas.

Lembro que os movimentos têm essa importância muito grande de luta ede formação de uma consciência diferente. Creio que nunca há de se cansar defazer essa luta nas suas diversas facetas, inclusive essa do politicamente correto doponto de vista da linguagem. Sem dúvida, essa é uma idéia que tem de perpassarsempre. Vejo que o Judiciário lida – aproveito a tua questão para abordar isso –com um dos termos que o Capelleti usou e que o Cláudio referiu de passagem,chamado O acesso ao Judiciário, ou seja, sempre podemos pensar em ir buscar noJudiciário aquilo que queremos, pois esse Poder está de portas abertas. Costumodizer o seguinte: não tenha dúvidas de que podes entrar no Judiciário. O que nãosei é como vais sair dali. Os negros sabem bem disso também. Aliás, não se tratade saber como vai sair. Tu não sabes como vai andar ali dentro, porque são tãointricados os processos.

Imagino sempre essa perspectiva: que o Judiciário seja tambémconsiderado um local de luta, nem que seja para tencioná-lo, para que ele saia desua neutralidade, porque poder tem. Na perspectiva do politicamente correto, doponto de vista do Judiciário, creio que há como pensar isso. As Pessoas Portadorasde Deficiência devem ir ao juiz e, de alguma maneira, mostrarem que se sentiramofendidas pela forma como a Zero Hora publicou, a fim de fazer o juiz semovimentar.

Na palestra que chamo de O Poder do Poder Judiciário, tento mostrar

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exatamente a questão de que podes entrar no Judiciário. O problema é sair. Mas tuinfernizas a vida daquele que está ali se tiveres uma boa causa, mesmo que nãoganhes a ação, porque às vezes as vitórias dentro do Poder Judiciário não se dãocom a procedência ou a improcedência de uma ação, mas com a infernização davida do opressor. Essa é que me parece a grande vitória.

Costumo dizer ao pessoal do Movimento Negro: não sei se vocês jánotaram que para nós não basta ganhar uma ação. Ao negro não adianta muitoentrar com uma ação de dano moral contra o racista e ganhá-la, se o juiz não fez ainvestigação do racismo e condena a tanto tempo alegando que realmente foiprovado. Ganhar a ação assim, não tem graça nenhuma. Só o tem, quando o juizrevela que somos um País racista e, na sua sentença, mostra que aquela atitude écomum a tantas pessoas. Nesse caso, é o gol de placa. Para nós, nos movimentos,não basta fazer só um gol. Tem de ser um gol do Ronaldinho. Um gol de placa.

Por isso afirmo a você, que trabalha com o Movimento das PessoasPortadoras de Deficiência, que dá para pensar na perspectiva de buscar o PoderJudiciário. Não pense que vais ganhar, mas a Zero Hora é capaz de refletir.

Vamos ser bem claros: Nós, da esquerda, somos os perdedores. Oneoliberalismo ganhou, mas o nosso sonho continua. Ninguém mata o nossosonho. O que sobra do nosso sonho é infernizar a vida da direita nas suascontradições. Estão nos deixando o Judiciário aberto? Então vamos entrar ali, nemque seja para infernizar.

Quanto à questão do financiamento, lembro-me de que o Judiciárioobrigou os bancos a refinanciar as dívidas dos agricultores. Há decisões nessesentido. Não conheço nenhum financiamento específico que possas fazer paraadquirir uma cadeira de rodas ou outro equipamento, mas pode-se pensar numavinculação, em criar um tipo de empréstimo bancário com alienação fiduciária,assim como existem para os automóveis, eletrodomésticos e outros, pois, nofundo, a agência financeira é um comércio, e quando o comércio oferece, éobrigado a vender. Acredito que dá para se pensar em alguma forma de fazer isso.

Agora, nunca contar com o Judiciário, porque aí você precisa trabalharcom um outro tipo de situação.Presidente Roque Grazziotin – Dr. Rui, obrigado. Acredito que o Senhor nosabre uma perspectiva no sentido de que a sociedade civil, na prática, utiliza muitopouco o Judiciário e tem até medo dessa instituição. Creio que esse é um dosdesafios que temos de nos propor nesta caminhada.

Concedo a palavra à Psicóloga e Agente de Direitos Humanos, Sra. AnaPaula.Sra. Ana Paula – Boa-tarde, sou psicóloga e agente de Direitos Humanos. Atuo

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em um projeto, ainda em implantação e discussão pela Coordenação de DireitosHumanos da Prefeitura de Porto Alegre, que propõe que existam núcleos deDireitos Humanos regionais e descentralizados que possam fazer a ponte, ainterlocução com as comunidades locais. Esse projeto é vinculado ao ConselhoMunicipal de Direitos Humanos, que substitui o Conselho maior que tratava dasdiscriminações e violações.

Trabalho também na Fundação de Assistência Social e Cidadania naRegião Glória, Cruzeiro e Cristal. Gostaria que o representante do MovimentoNacional de Direitos Humanos pudesse falar um pouco mais acerca desse assunto.Ele disse que o movimento de Estado coloca duas diretrizes: o Plano Estadual deDireitos Humanos e a criação do Conselho Estadual. Gostaria que o Senhoresclarecesse como que um Conselho de Direitos Humanos, a partir da idéia deindivisibilidade dos direitos, interage com os outros. E gostaria de saber tambémcomo vem sendo pensado esse Conselho e que o Senhor comentasse o planoestadual.

O representante do Ministério Público referiu a importância da apropriaçãoda discussão dos Direitos Humanos pelas comunidades, para, enfim, para melhorara participação dos indivíduos. O representante do Ministério Público abordou essetema dando ênfase à visão do Judiciário, mas o que eu gostaria de saber é se essaquestão vem sendo pensada com um enfoque político. Os adultos é que definem,num plano teórico, as questões relativas às crianças e adolescentes. E isso limita oacesso das pessoas pela falta de informação e conhecimento, causada pela nossalinguagem. E gostaria de saber também o que tem sido feito pela ASTCS paraaproximar a comunidade dos projetos que estão sendo realizados em termos decidadania e Direitos Humanos.Sr. Valdevir Both – Na verdade, a pergunta é importante e se coloca numcontexto atual no Estado para todos os movimentos. Ou seja, o contexto atual daluta pelos Direitos Humanos vai abordar essas duas questões. Por que omovimento discute como duas diretrizes gerais a questão do Plano Estadual e acriação do Conselho Estadual de Direitos Humanos? Primeiro, porque entendemos– e a Conferência de Viena, reforça essa idéia – que a garantia, a promoção dosDireitos Humanos passa por planos consistentes, estruturais que os Estadosadotam para implementação dos Direitos Humanos.

Agora, esses planos devem ser construídos junto à sociedade e não em umcírculo restrito. A sociedade civil tem o papel de elaborar o plano, de fiscalizá-lo ede avaliá-lo junto com o Governo. De nada adiantará fazermos um plano dedireitos humanos como o de 1996, em nível nacional, pois sequer conseguiram

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implantar as ações que aquele plano previa. Portanto, não vale a pena investir, sefor para realizar um plano dessa forma. O que queremos – e o Estado está dandoum passo importante nesse sentido – é construir um plano estadual de Direitoshumanos em que estejam previstos os princípios básicos, ou seja, a universalidade,a interdependência, e a indivisibilidade.

Portanto, para nós é importante que se construa esse plano com essasdiretrizes junto com a população. E nessa perspectiva já realizamos duasConferências Estaduais de Direitos Humanos, um pouco, com esse objetivo. Aúltima conferência, se recordarmos, teve exatamente esse objetivo, ou seja,rediscutir, a partir das conferências regionais, as grandes diretrizes que deverãofazer parte do Plano Estadual de Direitos Humanos que iríamos construir a partirdeste ano.

Com relação ao Conselho Estadual de Direitos Humanos posso dizer queatualmente temos um Conselho muito restrito, pois ele está vinculado à Secretariada Justiça e da Segurança. Entendemos que a questão dos Direitos Humanos nãopassa só pelos direitos civis e políticos. A vinculação dos Direitos Humanos a umasecretaria específica configura uma certa concepção de Direitos Humanos.Portanto, o Governo assumiu na Conferência – e isso é importante – que iriareformular a lei que abarcaria, além dos direitos civis e políticos, o direitoseconômicos, sociais e culturais.

E assumiu até metade do ano a implantação desse novo Conselho. Ele teriaum papel intrasecretarias, ou seja, pensar junto com o Governo a política geral dosDireitos Humanos no Estado. E esse Conselho vai ter que ser representativo,legítimo junto à sociedade civil. Obviamente, se vamos construir um PlanoEstadual de Direitos Humanos, sem dúvida nenhuma, um Conselho legítimo, comtodas as instâncias a partir dessa nova concepção de Direitos Humanos, terá umpapel fundamental de acompanhar a execução de uma política geral de DireitosHumanos no Estado.

Por isso essa é uma grande questão para a sociedade, nesse contexto atual,ou seja, a construção de um Plano estrutural que é na verdade a garantia dosDireitos Humanos e depois, obviamente, acompanhá-lo e monitorá-lo.Presidente Roque Grazziotin – Há também um questionamento para o Sr. MozarDietrich.Sr. Mozar Artur Dietrich – Com relação ao que já foi dito sobre a criação doConselho Estadual dos Direitos Humanos podemos dizer que esse compromisso jáfoi assumido pelo Governador. Portanto, essa questão já está encaminhada emnível de Governo. É verdade que ela ainda está meio truncada. E existe a questãodos demais conselhos. Por exemplo, o Conselho Estadual do Idoso discute,

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encaminha e delibera a partir dos pactos internacionais e da Política Nacional doIdoso, as políticas que o Governo do Estado deve executar com relação àpopulação idosa do Estado. Evidentemente, que todos os conselhos devemcumprir o que determina os pactos dos Direitos Humanos. Essa é uma discussãoque os próprios conselhos irão travar buscando a solução dos problemas.

Em nível de Governo também tomamos uma decisão. Existia a discussãoacerca da criação de uma Secretaria dos Direitos Humanos e de umaCoordenadoria dos Direitos Humanos. Tomamos a decisão, com base em muitaconversa, de não criar esse órgão agora e ao contrário reforçar nas secretarias e emtodos os agentes políticos desse Governo a política dos Direitos Humanos comotransversal e plural. Dessa forma torna-se exigência de toda e qualquer secretaria,como a da Saúde e a de Transporte, a questão dos Direitos Humanos.

E é muito melhor que o Governo como um todo em todas suas instâncias,em seus órgãos políticos e de execução, entenda essa dimensão, essa concepção deDireitos Humanos do que criarmos uma secretaria específica que demandariaquestões de Direitos Humanos e começaria a entrar em enfrentamento com asdemais secretarias. Então a nossa decisão por enquanto é essa. Agora seriaimportante a criação de um Conselho que pudesse congregar todos os segmentosda sociedade e fazer a discussão desse assunto.

Fazemos a discussão sobre o Plano Estadual para o Idoso. Essa é umaatribuição do próprio Conselho Estadual do Idoso, em conjunto com os órgãos doGoverno. Então temos que pensar isso também como atribuição do ConselhoEstadual dos Direitos Humanos. Com relação a outra questão que levantaste, umadas diretrizes do Departamento da Cidadania, da Secretaria do Trabalho,Cidadania, e Assistência Social é exatamente trabalhar no sentido da capacitação,do fomento do que chamamos de controle social de descentralização. Temosportanto um programa de realização de encontros, seminários, palestras, materiaispara que as pessoas possam estar-se capacitando e não só as lideranças.

Por exemplo, temos um programa de capacitação de lideranças indígenasque já está em desenvolvimento através de vários órgãos do Governo Estado,Saúde, Educação, Agricultura. Estamos iniciando esse processo e indo ao encontrodas comunidades remanescentes de quilombos, com a participação derepresentantes da sociedade civil. O Governo iniciou no ano passado, em conjuntocom o movimento negro organizado, um processo de capacitação, inicialmente dealgumas lideranças. E o segundo passo, agora, é ir ao encontro das comunidadesremanescentes no sentido de capacitá-las para que possam exercer a cidadania, aparticipação.

Além disso, hoje, está acontecendo no município de Santo Cristo um

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encontro que está reunindo cerca de 150 grupos de terceira idade da região, nosentido de capacitar essas pessoas no que diz respeito aos Direitos Humanos, decidadania, de participação, de conselhos municipais de direitos, de controle social,de política estadual de idoso.

Estamos participando desse encontro com os representantes da Secretariada Saúde, da Educação, da Assistência Social. Temos para este ano programadodezenas de seminários e encontros. Queremos congregar a comunidade econselheiros de praticamente todos os tipos de conselhos que existem e realizarseminários regionais e municipais. Queremos congregar conselhos como ostutelares, de agricultura, de desenvolvimento, de educação, de saúde, comissõesmunicipais de emprego, enfim, todos os agentes organizados da sociedade.

O objetivo é trabalhar a capacitação em Direitos Humanos, emparticipação, em controle social e em cidadania. Percebemos exatamente isso, queas pessoas tem uma sede de formação e querem participar, mas sequer sabem quaisas instâncias que existem, quais os mecanismos e como acessá-las. Portanto, essa éuma preocupação nossa.Presidente Roque Grazziotin – Obrigado, Sr. Mozar Detrich pela suaparticipação. Está com a palavra a Sra. Heraida Cyreli Raupp.Sra. Heraida Cyreli Raupp – Sou assistente Social e atualmente estou nacoordenação do movimento da Secretaria Municipal de Administração.Primeiramente, gostaria de parabenizar a Mesa pela organização desse evento.Confesso que sinto uma grande pena pelo fato de poucas pessoas estarem ouvindoo que os Senhores falaram para que possamos debater em outros espaços. Queromanifestar o meu encantamento com o Dr. Rui, porque ele conseguiu dar umaescrachada na questão da ideologia dominante.

Até porque nós, nos nossos movimentos dos quais participamos,precisamos a todo momento repensar, reconstruir os conceitos, porque quandofalamos em machismo parece distante, mas nos movimentos vemos que muitoshomens ainda não dividem suas tarefas com as suas companheiras, porque aindapensam que são elas que têm que realizar três, quatro, cinco turnos de trabalho.

Com relação ao racismo, quantos de nós até acredita que o negro é umgrande amigo, é um grande companheiro, mas quanto ao fato de ser juiz, prefeitoou prefeita, ocupar realmente um cargo já é demais? Quantos de nós crê serfavorável ao homossexualismo, mas quanto ao fato de se aproximar e dar umabraço numa mulher que convive com outra do mesmo sexo ou sentar à mesa debar com um homem que vive com outro do sexo masculino aí já estão pedindodemais? Essa manifestação do Dr. Rui Portanova nos motiva a analisarmos asdificuldades que temos. Atualmente, com a reestruturação positiva, buscamos

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resultados, quer dizer, cada vez mais um processo permanente de aumentar oslucros não importando os meios. Quais os resultados disso no nosso dia-a-dia?

Vou trazer aqui uma questão a mais do Movimento de Mulheres, do qualtambém faço parte: com a reestruturação produtiva temos um violento aumento doassédio sexual, que não está aparecendo. Recentemente estivemos participando deuma assembléia nacional sobre essa questão, na CUT, e percebemos o quanto ossindicatos estão preocupados com tal questão. O fato de não termos mais empregoformal, uma carteira de trabalho, faz com que cada vez mais as mulheres precisemse submeter a essas questões para permanecer no emprego.

Além do aumento do assédio sexual, temos o crescimento do assédiomental – na Europa já é conhecido como Mowik –, que é quando os trabalhadorestem de ficar quietos para se segurarem no emprego. Eles têm que, cada vez mais,fazerem-se de surdos, de mudos, têm que agüentar no tranco. Mesmo comproblemas, não falam, para mostrar que estão bem e assim manter-se no emprego.Essas questões estão vindo à tona.

Temos que saber, quanto aos movimentos, que não é somente uma questãode quem é favorável ao projeto capitalista e quem faz uma defesa de um projetosocialista, mas de que nós, no nosso movimento, temos muitos preconceitos emuitas dificuldades. Quando fazemos o debate do empoderamento da mulher,temos de lembrar que ela está, inclusive, votando nos movimentos sindicais. Opróprio movimento de esquerda tem resistência a essa questão, porque ainda seentende que o trabalhador é aquele que está direto no serviço. A companheira dele,que está num outro trabalho, não deveria se envolver, logo, sem direito a voto nasassembléias sindicais, congressos etc.

As questões da reestruturação produtiva, da ideologia dominante, sãomuito forte no nosso meio. Precisamos estar a todo momento repensando o nossofazer e as nossas ações.

Fiquei um pouco preocupada e gostaria de entender melhor o assunto que oDeputado Roque Grazziotin expôs a respeito do voluntariado qualificado. Pensoque o compromisso com as políticas públicas são necessárias, assim como são asONGs que os nossos colegas dos movimentos estão trazendo com clareza.Presidente Roque Grazziotin – Quando discorro a respeito de voluntariadoqualificado falo de militantes sociais que se engajam dentro de um processo. Ovoluntário, ao meu ver, é um militante social que pode estar muito bem empregadoou desempregado, mas é alguém que desperta para a construção de um novo tipode sociedade. O que é divulgado na mídia é um voluntariado que faz parceria comempresas que visam somente o marketing através de propagandas. Creio que háuma distorção muito grande, por isso citei sem explicitar.

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Sr. Marcelo Ferrão – Meu nome é Marcelo Ferrão e faço parte dos MovimentosSociais de Base. Não sei se é um comentário, ou se é uma pergunta, ou se é paraesclarecer a minha grande confusão, mas quanto mais falamos em DireitosHumanos, mais confuso fico. Ouvi o Dr. Rui Portanova dizer que somente a leinão basta e ouvi outro representante do Movimento Nacional de Direitos Humanosdizer que é importante a participação da sociedade civil.

Vou falar do Movimento Nacional de Luta pela Moradia, da qual façoparte na executiva municipal de Porto Alegre. Quanto às questões de ética e delegalidade, existem vários tratados que falam da habitação, do Direito Humanosocial à moradia adequada. Podemos nos basear nas diretrizes de Mastrid, na nossaConstituição Federal e na Declaração Universal de Direitos Humanos, massabemos que, atualmente, não existe na esfera federal nenhuma políticahabitacional entrando em funcionamento – isso constou do nosso encontroestadual, há algum tempo, em Esteio. No campo estadual, essa iniciativa também étímida. Quanto ao município de Porto Alegre, é desastroso dentro do campo doDemhab, que hoje se resume tão-somente a apagar incêndios, assim como osbombeiros. Posso falar isso tranqüilamente, assim como criticar, porque fui umdos que construiu tanto o Governo Estadual quanto o Municipal.

Quando o representante do Movimento Nacional de Direitos Humanosquestionou a questão do Plano Nacional de Direitos Humanos, disse ele que foicriado somente abrangendo aspectos de direitos civis e políticos e ficaram de foraos DESC – Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Fui um dos relatores doPlano Nacional de Direitos Humanos na área de moradia adequada para o RioGrande do Sul e não faria uma crítica tão contundente desta porque nãoprecisamos ir muito longe para censurar, podemos fazê-lo dentro da nossa casatambém.

De acordo com a I Conferência Nacional de Direitos Humanos, de cujaorganização fiz parte, a II Conferência Municipal, a I e a II Conferência Estadual,podemos verificar que não foi implementado nem 20% do que estava na IConferência Municipal e nem 20%, talvez, do que vai ser implementado da IIConferência Municipal, nem 20% da Conferência Estadual e assim por diante,porque a nossa luta dos Direitos Humanos se assemelha a Dom Quixote e a umaformiguinha. Talvez por acreditarmos que a nossa Cidade seja muito grande é queo processo está vagaroso.

Não é necessário nos encaminharmos até o Governo Federal, que é o nossogrande inimigo, enquanto temos problemas aqui dentro, não resta dúvida quanto aisso, mas também não podemos colocar peso em cima da Prefeitura e muito menosem cima do Governo do Estado, porque penso que a implementação das leis

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depende das pessoas. Acredito que essa crítica é válida, mas penso que já deveestar pronta a reformulação do plano. Temos, então, que ir devagar com o andor,porque o santo é de barro. Estamos avançando lentamente.

Quanto à moradia, entramos na questão da lei e da jurisprudência. O Dr.Rui Portanova falou que somente a lei não basta, mas complementou dizendo quedevemos infernizar por intermédio do Judiciário, com o qual concordo.

Existe uma Lei, prevista em vários códigos, que nos garante direito àmoradia adequada. Vimos, no entanto, que não é praticada, conseqüentemente, nãotemos direito à moradia.

O que é legal e o que é ético? É legal promovermos ocupaçõesrequisitando o uso social da terra frente à nossa necessidade de moradia? É éticopessoas morando embaixo da ponte, enquanto temos direitos que nos asseguram amoradia?

Quanto ao movimento nacional, não temos política habitacional no campofederal, nem estadual e nem municipal, então, vamos ocupar. Essa é a nossadeterminação. A partir de 3 de junho vamos deflagrar ocupações no Estado e noMunicípio, articulados com o Brasil inteiro. Isso causou-nos um profundoquestionamento. Há pouco tempo eu estava dando instrução na Secretaria deEstado da Justiça e da Segurança, na parte de movimentos sociais, para a PolíciaCivil, Brigada Militar etc., e eles me questionaram alarmados o fato de eu ser umdefensor dos Direitos Humanos e da Lei e agora estar querendo fazer ocupação.Como fica isso? Qual é o conflito?

Dr. Rui Portanova, o que podemos fazer? Ou continuamos aceitando odescumprimento da Lei que nos garante moradia ou ocupamos, correndo o risco desermos taxados de invasores ou contraventores, enquanto que o Estado é ocontraventor maior? Ocupamos ou esperamos a Lei? Requisitamos o nosso direitoà moradia adequada no Judiciário tentando forçar uma jurisprudência? Acreditomuito nisso. Por exemplo, quanto à questão da sexualidade, pode estudar o casotanto um juiz preconceituoso quanto à homossexualidade como podem ser o Dr.Roger Rios e a Dra. Berenice. Será que o caminho não seria o exercício dajurisprudência, o exercício da Lei? Como resolvemos esta questão: ocupamos ounão?Sr. Rui Portanova – Ocupamos e rezamos. O Senhor fez a pergunta para a pessoaerrada. Em Esteio, eu e o Prefeito estivemos no local onde houve uma ocupação,parece-me que de moradia, e após uma negociação as pessoas foram desocupandoo local devagar. Houve uma ocupação de moradia também em São Leopoldo, quetinha tudo para dar certo. A reivindicação não era do pessoal do Movimento SemTerra, era do pessoal da moradia e tinha tudo para dar certo, mas infelizmente

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fizeram um acordo de desocupação. De qualquer maneira, solicitei para a juíza quecontinuasse investigando a função social. Dois processos de ocupação rural –Movimento Sem Terra – acabaram em minhas mãos, e nessas duas oportunidadesentendi que os ocupantes deveriam permanecer na terra.

Quando o Estado tirou o monopólio da violência das pessoas com o intuitode resolver a questão, também achou por bem esclarecer que entrariam noJudiciário e dentro dele teriam que se submeter a um determinado tipo deprocesso. O que está acontecendo, atualmente, nessas questões coletivas? O queestá bem claro é esse embate de ordem política e ideológica, que está sendotrazido para dentro do Judiciário.

Sinceramente, não acredito que algum juiz vai te deixar morando o resto davida ali. Não acredito, é difícil, mas ali é um degrau da luta. Não sei se vais ganharo processo, mas se as pessoas do movimento estão entendo que o momento é defazer ocupação e de ir ao Judiciário recorrer, ou seja, correr riscos, penso que éisso que deve-se fazer.

Agora, sejamos bem claros. Não pode ser o Judiciário que irá fazer isso.Não podemos contar com o Judiciário para essa finalidade, nem com o Direito. Éaquela questão de que só a lei não basta.

Não tenho dúvida de que esse tipo de movimento é formado pelas pessoasque até agora têm sofrido opressão, e digo bem claramente, não me referindo apobres, porque nem todos os devedores de bancos são pobres, às vezes, sãograndes empresas. Nessa altura, a gente começa a fazer a defesa do empresário,porque a luta, apesar de não ser por moradia, também acaba sendo uma luta portrabalho. Eles terminam sendo explorados por alguém que é maior do que eles.Isso resulta em envolvimento do empresariado brasileiro. Sem dúvida, sou a favordessa posição do movimento. Não conta com o Judiciário, mas não deixa depressioná-lo.

Acredito que devem ingressar com as ações, reunir os companheiros nafrente do Tribunal. São atitudes importantes. O Poder Judiciário, principalmente odo Rio Grande do Sul, precisa sofrer esse espraiamento democrático que se originados movimentos e que neste Estado é bastante desenvolvido. Desde que mais tardenão venham me cobrar, dizendo que fizeram tudo o que eu tinha recomendado eperderam a ação, do ponto de vista da legitimidade, podem ter a certeza de que atêm. Vocês dispõem da lei, existe a Constituição, garantindo o direito à moradia.Há todas as possibilidades, mas vai entrar em questão a perspectiva ideológica e,corre-se esse risco. Porém essa luta é bem maior do que simplesmente obter umganho de causa dentro do Poder Judiciário.Sr. Valdevir Both – Quero fazer um rápida manifestação com relação aos

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questionamentos que o companheiro mencionou.Em minha avaliação, penso que necessitamos ser duros com o nosso plano

nacional em relação àquilo que se propôs a fazer, até porque, repito, ele peca nasua essência, ou seja, no início, foi elaborado por um grupo dentro dauniversidade. Na nossa avaliação isso é muito complicado. Claro que no anopassado, tivemos uma má avaliação no plano nacional que o ministro assumiu emfazer. Inclusive, em Porto Alegre, tivemos um fórum de discussão, quando foramincluídos direitos econômicos, sociais e culturais. Agora, não podemos admitir quetenhamos um plano simplesmente para ter um status internacional. Por exemplo,se formos observar as ações a que o Governo se propôs na área dos DireitosHumanos, para resolver de uma melhor forma a questão dos presídios, muitopouco daquilo foi realizado.

Então, não podemos ter um plano simplesmente para desfrutar de umstatus internacional. Agora, esse relatório paralelo denunciou isso para fora doPaís. Antes disso a questão dos Direitos Humanos tinha um status muito grande.

Em relação à questão local, estadual, penso que nós, como movimento, nãopodemos perder nossa essência. Concordo com o Senhor quando diz que apromoção, conquista e implementação dos Direitos Humanos constitui-se de umprocesso, ou seja, não se sai de um estado hoje e se passa para outro amanhã. Digoisso para qualquer dos governos. Não podemos perder a nossa essência de fazerpressão para a garantia dos Direitos Humanos. Acredito que esse é um pontofundamental, por isso repito que é importante que participemos e façamos o nossoPlano Estadual de Direitos Humanos, assim como planos municipais, queconstituem a base de que disporemos depois para uma política de DireitosHumanos.

Em hipótese alguma, nós, como movimento social, não podemos perder anoção de que essa grande luta pelos Direitos Humanos é um processo.Sra. Ana Elusa Rech – Mudei de profissão há 12 anos, em função daConstituição Federal. Investi concretamente na consolidação de movimentossociais.

Tenho hoje uma preocupação muito grande, porque no Rio Grande do Sul,salvo melhor juízo, contamos aproximadamente onze conselhos estaduais.Algumas das pessoas que fazem parte desses conselhos, desde o primeiro, são asmesmas. Temo que, nessa nossa capacidade de organização e no avanço que aglobalização e as privatizações têm obtido neste País, acabemos entrando em umprocesso autofágico de descrédito da mobilização, da consolidação de planos quese efetivem. Digo isso com um fundamento muito concreto em minha experiênciabastante sofrida e vivenciada.

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Nessa semana participei de um evento, que era a assinatura de umprotocolo de intenções de um sonho que conta pelo menos seis anos. Fiquei felizcom a assinatura do protocolo. Refere-se à construção de repúblicas para osmeninos de 16 a 21 anos em situação de vulnerabilidade social, ou seja, sem casa,sem família, sem condições de se auto-sustentarem. Sabemos que precisaremosesperar por, pelo menos, mais seis meses. Alguns desses meninos que entrarão narepública nem estavam na rua, quando iniciamos a sonhar. Vejo que asemergências sociais são muito grandes e que as dificuldades de organização doserviço são maiores ainda.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que consolidamos a burocraciaorganizacional do movimento, por meio dos conselhos, assistimos placidamente,de mãos amarradas, a perda de direitos civis, como o trabalho, que ostrabalhadores têm sofrido. É nesse sentido que gostaria de ver de que forma, alémda mobilização, podemos de fato concretizar alguns sonhos.Sr. Mozart Artur Dietrich – Acredito muito na mobilização dos movimentossociais. Vemos essa força na história. Hoje, pela manhã, foi relatado um pouco doshistóricos. É uma força crescente que tem evidentemente em todos os seusmomentos de quedas, de perdas de energia, mas logo adiante percebemos que osmovimentos retomam.

Cito dois exemplos que estão ocorrendo agora no Estado e que nos estãodeixando bastante contentes. Um é o Conselho de Participação e Desenvolvimentoda Comunidade Negra no Estado – CODENE. Penso que ele se encontrava nessasituação mencionada. Foi institucionalizado um conselho antigo, que talvez atédevido ao tempo e ao fato de as pessoas serem sempre as mesmas, estava perdendoa força. Mas, houve uma reação substancial em grande parte do Estado do RioGrande do Sul que decidiu tomar o poder para si. Houve uma organização devários municípios. O CODENE era muito centrado na Região Metropolitana. Emnovembro do ano passado, aconteceu a eleição para o novo CODENE. Agora esseconselho possui nove representantes de nove regiões do Estado, somente um dePorto Alegre.

O pessoal se encontra bastante motivado. Estão bastante ativos dentro doConselho. Isso reflete talvez um refluxo da força da comunidade durante algumperíodo, mas que agora está retomando. É importante que o Estado não seja aqueleque vai inibir isso, ou tentar conter essa força. A própria comunidade negraconquistou esse espaço.

Outro exemplo que podemos mencionar refere-se à comunidade indígena.Quando reestruturamos o Conselho da Comunidade Indígena, em 1999, oConselho anterior contava nove representantes indígenas e nove do Estado.

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Atualmente, esse conselho possui 20 representantes indígenas e dez do Estado. Osíndios não aceitaram a imposição de um conselho paritário, a qual defendíamos,pois o Governo precisaria do mesmo número de votos. Não houve aceitação desseargumento. O Governo terminou por aceitar até para não obstaculizar ou impediressa força do movimento indígena e estamos convivendo muito bem com essasituação. Os índios atualmente são a absoluta maioria dentro do Conselho que estáfuncionando muito bem, com bastante participação.

Penso que, de modo geral, percebemos que essa renovação está ocorrendoem outros conselhos também. Considero que isso é da natureza dos movimentossociais. Historicamente eles possuem essa característica. Às vezes, sofremmomentos de desarticulação, como o que ocorreu no início do Governo FernandoHenrique contra o Movimento Sindical Brasileiro, quando praticamentearrebentou com os petroleiros. Todos lembramos disso. No entanto, não extinguiuo movimento. Estes sempre se articulam e fortalecem e retornam.Sra. Tereza Polleto Porto – Desejo formular uma pergunta. O DesembargadorPortanova disse que no Ministério Público, o difícil não era entrar e, sim, sair.Penso que tudo é muito difícil, principalmente no nosso Estado.

Sou Tereza Polleto Porto. Luto pela libertação da minha família e, lutareisempre. Quero perguntar se o magistério público enquadra-se naquele ditadogaúcho que diz que tem que pagar uma carrada de gado para entrar, ou para nãosair? Muito obrigada.Presidente Roque Grazziotin – Dona Tereza, penso que a luta continua. Com apalavra o Sr. Dorvalino Fillipini.Sr. Dorvalino Fillipini – Meu nome é Dorvalino. Existe algo que venhoobservando há muito tempo. Não sei se a culpa cabe à mídia, ou à escola, ou àsociedade, porque toda pessoa, quando busca atendimento em qualquer lugar, sejapúblico seja privado, que versa sobre o direito do ser humano, só é respeitada, namaioria das vezes, se está sabendo como funciona a legislação. Se não sabe sobreo que versa a lei que a protege, é pisada. Teria que se inverter isso. Não sei se éculpa da sociedade ou de quem.

Conheço vários casos como, por exemplo, o de uma menina portadora dedeficiência, lá de Nova Prata que, quando ia conversar com um vereador disse que,se ela continuasse incomodando-o, ela iria parar na cadeia. O vereador tratou-abem assim. Então ela ligou para mim que a orientei para que, na próxima vez queele dissesse aquilo, ela perguntasse a ele se conhecia o art. 8º da Lei nº 8.753.Orientei-a para que só falasse isso, e não dissesse mais nada. Na próxima vez, elaseguiu a minha orientação, e ele nunca mais a xingou e hoje a atende com todo orespeito. Por quê? É porque viu que ela conhece a lei.

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Então, não sei se se começaria o esclarecimento pela escola ou pelafaculdade, ou pelos meios de comunicação, pelos jornais ou não sei por onde.Teríamos de ter um começo para esclarecer a população para saber onde estámexendo, e não precisar sempre buscar um advogado, um professor, sei lá paraesclarecer para chegar no ponto comum para defender o seu direito como cidadão,como pessoa, como ser humano. Muito obrigado.Presidente Roque Grazziotin – Vamos, a partir de agora, conceder um minutinhopara cada painelista apresentar, não a sua conclusão porque este tema não conclui,pois é o início de um processo que nunca termina.Sr. Valdevir Both – O companheiro levanta mais uma vez essa problemática que,na minha avaliação e na avaliação do Movimento Nacional de Direitos Humanos,que inclusive foi tratado pela manhã, é fundamental e temos de enfrentá-la. Ouseja, hoje enfrentamos uma grande mídia que simplesmente detona os direitoshumanos.

Na verdade, temos programas que simplesmente não dá para assistir. Daíentramos num problema muito grande que é o da censura. Somos logo acusados deque queremos implantar novamente a censura, pois lutamos por esse direitodurante muito tempo. Então essa é uma problemática que foi levantada duas vezeshoje. Pela manhã, já discutimos esse tema com o pessoal da Assessoria Jurídica eEstudos de Gênero – Themis. Temos de enfrentá-lo de qualquer maneira, ou seja,nós nos sentimos pequenos em frente de um programa que, por exemplo, fica, ànoite, durante duas horas, catequizando milhões de pessoas do Brasil.

A problemática que temos de começar a enfrentar é como vamos trabalharmídia e Direitos Humanos, para que, em primeiro lugar, não se deteriorem osDireitos Humanos e, em segundo lugar, que ela promova os Direitos Humanos.Com isso quero dizer que temos muito a fazer. Agradeço a participação e até umapróxima oportunidade.Sr. Rui Portanova – Quero dizer uma palavrinha à Dona Tereza: não é só noJudiciário que se dá um boi para não entrar numa briga e uma boiada para nãosair dela. A vida é assim e no Judiciário é assim também. Isso também vale para ocompanheiro que trouxe a problemática da moradia. Temos de ser eternosinconformados e eternos revoltados. Essa é a lógica que tem de ser mudada noDireito, que sempre trabalhou muito com a ordem e com o medo do caos. Noentanto, sabe-se que essa é a ordem burguesa, e o caos que o Direito teme não é ocaos que nos legaram. Temos de viver, pois é essa a situação que se tem.

Em relação à mídia que não é a minha especialidade, há algo que gostariade falar para podermos repartir algumas idéias. A mídia, principalmente o pessoalde rádio, tem uma expressão que chamam de virar o fio, que quando se bate muito

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no mesmo tema vira o fio. Não sei se os Senhores têm o mesmo sentimento queeu. Por exemplo, na RBS, há determinadas pessoas que são de tal forma ranzinzase rancorosas que viraram o fio. Ninguém acredita mais neles. Quanto mais elesfalarem é até melhor. Então, nessa idéia de mídia, pode-se ter esse pensamento,enquanto nós, como movimento, sabemos bem como minar essas estruturas.

Volto a agradecer ao Deputado Roque Grazziotin pelo convite. Estou àdisposição para debates. Confesso, sinceramente, que estou muito cansado de lerlivros de Direito. Já os li e reli e, infelizmente, não aprendi nada. Os Senhoresviram aqui como não aprendi nada de Direito. Falo tudo ao contrário do que oDireito afirma. Os locais de aprendizagem mesmo são os movimentos populares. Écom os Senhores que quero aprender. Por favor, me convidem para as reuniõesque estarei à disposição. Muito obrigado.Sr. Mozar Artur Dietrich – Também quero agradecer mais uma vez o conviteque a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos e Movimento Nacional deDireitos Humanos fez ao Governo do Estado. Para nós foi uma satisfação estarmosaqui, trazendo o nosso ponto de vista sobre essa temática tão importante. Estamosà disposição. Como já disse, vou encaminhar ao Governo as questões que foramlevantadas aqui, principalmente com relação ao plano e ao Conselho de DireitosHumanos.

Finalmente, como cidadão, quero dizer que me senti de alma lavada aoescutar o Dr. Rui Portanova. É bom muito escutar palavras de quem sabe bastante,de quem já tem uma história. Sobre tudo que ele falou, temos vontade de falartambém, mas não se consegue. Muito obrigado, Dr. Rui Portanova, por ter podidoouvi-lo nesta tarde.Presidente Roque Grazziotin – Queremos agradecer a participação de todos e, demodo especial, aqueles que ajudaram a organizar este Seminário: todos os técnicosda equipe da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos aqui da AssembléiaLegislativa, assim como os participantes do Movimento Nacional de DireitosHumanos. O nosso agradecimento especial também aos painelistas: Dra. FláviaPiovesan e Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho. Neste painel da tarde sobre aDimensão Humana na Consolidação de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,agradecemos ao Dr. Rui Portanova, ao Dr. Cláudio Barros e Silva, representando oExecutivo, ao Mozar Artur Dietrich e ao Professor Valdevir Both, do MovimentoNacional de Direitos Humanos.

Gostaria de concluir, recordando uma pequena frase de Brecht que, desdeque a ouvi pela primeira vez, animou-me muito. Ele diz que nesta luta pelosDireitos Humanos, pela caminhada por este processo, há gente que luta um dia e éboa, há gente que luta uma semana e é melhor e há gente que luta um ano e é

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muito boa, mas são necessários aqueles que lutam toda a vida e sãoimprescindíveis. Por isso há um processo permanente e um processo dosimprescindíveis. Todos nós somos convocados e reconvocados para nosaperfeiçoar principalmente neste novo milênio. Nas funções que cada um vaiexercendo, muito temos a contribuir. Portanto, obrigado pela contribuição detodos que participaram deste Seminário no dia de hoje.

Muito obrigado.