A Construção Das Diferenças Entre Os Economistas

download A Construção Das Diferenças Entre Os Economistas

of 14

description

A Construção Das Diferenças Entre Os Economistas

Transcript of A Construção Das Diferenças Entre Os Economistas

  • 1A CONSTRUO DAS DIFERENAS ENTRE OSECONOMISTAS

    Eleutrio F. S. Prado1

    IntroduoEntre os economistas, um doutor de Chicago vale mais do que um doutor de Illinis

    e, principalmente, do que uma doutora da New School. Um economista ortodoxo vale maisdo que um economista heterodoxo. Um simples doutor formado nos Estados Unidos valemais do que um doutor criativo formado no Brasil. Por que se pensa nesses termos na"comunidade" dos economistas? Por que, ao contrrio, nessa "comunidade", os intelectuaisno so valorados apenas por suas contribuies cincia, reflexes e argumentosracionais?

    Ser que aqui se aplica a mesma lgica da modernidade segundo a qual a fora detrabalho de um indivduo branco vale sempre mais, por exemplo, do que a de um indivduonegro, seja nos EUA, na Europa ou no Brasil? Essa uma questo para a Economia2 oupara a Teoria Crtica?

    Examinamos esse tema nas prximas sees do artigo. Na primeira caracterizamoso problema da lgica da discriminao entre os economistas, relacionando-a ao emprego damatemtica e ao advento do neoliberalismo (assim como da teoria econmica autista e ps-moderna). Na segunda, discutimos as teses de McCloskey e Katzner sobre a matematizaoda Economia, as quais sero consideradas reveladoras, ainda que meramente culturalistas.Na terceira, discutimos a metafsica da formalizao empregada pela teoria econmicaortodoxa, apresentando-a como resultado de um percurso histrico degenerativo. Em umaseo final de concluso, mostramos as fraquezas dessa teoria, relacionando-as s prticasdiscriminatrias. A tese central do artigo estabelece uma conexo entre o modo como soconstrudas as diferenas entre os economistas e a fase atual, dita ps-moderna, do modo deproduo capitalista.

    Origem das DiferenasQuanto vale um economista? Um economista que se define como competente

    argumentaria, cremos, assim: "Quem decide isto o mercado. Um pesquisador, umprofessor de Economia, hoje, tem um valor que dado no mercado internacional. Se umPhd de Chicago vale mais do que, por exemplo, um Phd de Amherst porque em Chicagoensina-se aquilo que mais valorizado no mercado... ao contrrio do que acontece emAmherst".1 Professor da USP. e-mail: [email protected]. Agradecemos os Professores Antnio Maria da Silveira, Jorge E.de C. Soromenho, Paulo de Tarso Soares, Pedro C. D. Fonseca, Leda Maria Paulani, assim como doispareceristas annimos dessa revista, que comentaram o artigo com esprito crtico, sem ter necessariamenteconcordado com todas as teses nele expostas. Verso revisada em 04/09/2001.2 Empregaremos neste texto o termo Economia, pois o termo Economia Poltica soaria falso. Na verdade,deveramos escrever Economia Anti-Poltica para ressaltar o fato de ela se define pela negao de que possuium carter poltico.

  • 2Diferentemente dessa espcie de economista, acreditamos que essa explicao bem insuficiente. Para encontrar uma resposta melhor para a questo, julgamos queprecisamos seguir as observaes de Hardt e Negri (2000) sobre a construo do racismo naps-modernidade (estgio do capitalismo em que a produo informatizada e a sociedadecomo um todo se transforma numa fbrica de servios). Segundo eles, na passagem dahistria para o fim da histria (termo que Fukuyama empregou para designar a ps-modernidade), o racismo muda de figura e deixa de se basear em diferenas biolgicas3para se fundar em diferenas culturais, educacionais em grande parte.

    Para eles, na modernidade "o racismo e as prticas concomitantes de segregaoestavam fundadas nas diferenas biolgicas entre as raas. Sangue e genes estavam por trsdas diferenas de cor de pele e eram, portanto, as substncias reais das diferenas raciais.As pessoas subordinadas eram ento concebidas (pelos menos implicitamente) comoalteridade no humana, como seres de uma natureza inferior" (Hardt e Negri, 2000, p. 191).

    O racismo na ps-modernidade, entretanto, para Hardt e Negri um racismo semraa, que no se baseia mais em diferenas biolgicas. "... a cultura, agora, vem preencher opapel que a biologia havia desempenhado... Da perspectiva do novo racismo, h rgidoslimites para a flexibilidade e a compatibilidade das culturas. As diferenas so insuperveis.Tal racismo antes uma prtica cultural de segregao, no de hierarquia. A hierarquia determinada somente a posteriori e est baseada em desempenho. De acordo com o novoracismo, a supremacia e a subordinao... surgem da livre competio, como uma espciede meritocracia cultural e educacional " (Hardt e Negri, 2000, p. 191). Ele se funda, pois,no funcionamento do mercado.

    Hardt e Negri esto se referindo, obviamente, ao novo racismo que se alastra pelospases desenvolvidos, em particular, pela Europa e que recai sobre os imigrantes africanos,rabes, latino-americanos, russos etc. que a buscam emprego. Ele a base, como se sabe,da poltica da ultra-direita na ustria, na Frana, etc. Apesar disso ou melhor, justamentepor isso , julgamos que eles apresentam um esquema de compreenso das prticasdiscriminatrias que pode iluminar a questo que motiva o presente artigo.

    Como se forma o valor de um doutor em Economia? Como se constrem asdiferenas na "comunidade" dos economistas? Antes de responder explicitamente a essasperguntas, necessrio entender que a noo de mercado aqui no pode ser entendida comose ela se referisse a algo meramente "natural" e espontneo como, por exemplo, uma feiramedieval de produtos de alimentao. Nesse tipo de mercado, os produtos vendidosatendem determinadas necessidades humanas e sociais, as quais se originaram fora dele.

    Eis que essa espcie de mercado quase no existe mais, j que as prpriasnecessidades so cada vez mais criadas artificialmente pela indstria cultural, por meio dapropaganda e do marketing. Tambm os mercados, em conseqncia, passam a serproduzidos de acordo com as necessidades da expanso do capital. Alis, odesenvolvimento histrico das relaes de produo capitalistas mostrou que o sistemaeconmico tende a se tornar onipresente, passando a englobar, pouco a pouco, todas asesferas da vida. As reaes a tudo isto, em conseqncia, tambm tendem a aparecer e aaumentar.

    3 O racismo tradicional est ancorado, evidentemente, no fato de a Europa e a Amrica do Norte teremcentralizado a acumulao de capital, dominando o resto do mundo nos ltimos sculos. Isto no significaque o racismo possa ser explicado inteiramente por sua base econmica.

  • 3De qualquer modo, por isso que muitos economistas enxergam o meio em queatuam como um mercado, e no como uma esfera de gerao de saberes situada fora dosistema econmico. Ora, preciso examinar isto mais profundamente, j que esse mercado auto-referente. Pois, o produto gerado pelos economistas algo imaterial que visa atendernecessidades que foram, elas prprias, em boa medida, criadas inclusive pelos prprioseconomistas.

    certo que a existncia objetiva do sistema econmico requer a anlise econmicae a funo de economista. certo que a acumulao de capital em escala global tem umalgica prpria que se impe teoria econmica, como uma determinao quase sempre noreconhecida ou mesmo encoberta. Sob essa determinao de fundo, entretanto, ascompetncias e as qualidades requeridas daqueles que vo cumprir a funo de economista assim como das teorias que empregam so produzidas no prprio colgio doseconomistas que se situa, agora sabemos, no interior do prprio sistema econmico. evidente a preparao do economista nunca meramente tcnica, mas envolve tambm ofornecimento de uma viso do mundo e modos determinados de se apropriarintelectualmente da realidade, os quais visam, sobretudo, compreend-la (e mistific-la).

    A hegemonia americana na ordem capitalista, como sabemos, consolida-se aps ofim da II Guerra Mundial. Segundo Arrighi4, o perodo que vai de 1945 a 1970 caracteriza-se pela enorme expanso do capital produtivo e das grandes empresas coorporativas etransnacionais, principalmente norte-americanas. No mbito interno das naes capitalistas,a poltica econmica segue ento, predominantemente, o keynesianismo, enquanto que, noplano internacional, ela se torna orientada pela busca do desenvolvimento. Com a crisedessa hegemonia a partir de 1971, em face da emergncia da liderana japonesa naorganizao em rede das empresas, inicia-se um perodo de predomnio do capitalfinanceiro. Com a expanso acelerada do mercado internacional de emprstimos, ocorreuma progressiva limitao da soberania os estados nacionais que passa, em parte, para osorganismos reguladores transnacionais. O neoliberalismo torna-se, assim, a ideologia domundo do capital nas duas ltimas dcadas do sculo XX.

    A expanso do capital financeiro gerou internacionalmente uma euforia liberal, querecebeu um reforo com a vitria das potncias capitalistas ocidentais (em 1989 ocorre,finalmente, a queda do muro de Berlim), que haviam adotado uma combinao deeconomia de mercado com democracia eleitoral, frente ao chamado "comunismo histrico",que sempre foi mais centralizador na promoo do processo de acumulao e maisautoritrio na garantia das condies polticas necessrias a esse processo. Ademais, com oefetivo enfraquecimento das foras sociais que costumam resistir dominao do capital j que os sindicatos, por exemplo, perderam poder diante das mudanas nos processos detrabalhos e na composio da fora de trabalho passou-se a celebrar o triunfo da viso demundo do capital sobre a viso de mundo do trabalho. Tudo isto levou ao surgimento deum empenho generalizado para desmantelar o estado de bem-estar social assim comopara privatizar certos segmentos da produo que estavam nas mos do Estado , o queinstitucionalizava certo compromisso de classe entre o capital e o trabalho.

    Com o "fim da histria" ou seja, com o suposto trmino da possibilidade dequalquer transformao radical da sociedade , uma nuvem espessa de conformismo epragmatismo veio cobrir todo o horizonte social e cultural do capitalismo5. A globalizao4 Ver Arrighi (Arrighi, 1966).5 Para uma crtica poltica do chamado pensamento nico, ver Herrera (Herrera, 2001).

  • 4dos mercados de capitais, a expanso das relaes mercantis para todas as esferas da vidasocial e a aceitao sem vergonha do dinheiro como valor supremo, com todas as suasduras conseqncias, passaram a ser vistas como aspectos de um processo inexorvel aoqual todos deveriam se submeter. Difundiu-se, assim, mais e mais, a crena de que omundo no pode mais ser mudado pelas lutas polticas, pela vontade de liberdade, pelabusca de autonomia e emancipao, pela renovao da subjetividade e da cultura, etc.

    a partir do entendimento dessas transformaes que podemos compreender aconstruo da discriminao entre os economistas, assim como perceber que a sua fonte de natureza educacional e cultural. assim que podemos perceber o estreito vnculo entre aestrutura de discriminao a existente e a sua forma de expresso em termos de valormercantil.

    Ao longo desse processo de mudana, a teoria econmica abandona o modo depensar keynesianismo que, historicamente, representou o reconhecimento da classetrabalhadora como ator social com certa fora prpria e alguma autonomia e, portanto, comaspiraes e direitos que tinham de ser considerados pela poltica econmica. Eis que essaera uma perspectiva que enfatizava a necessidade da interveno estatal para moderar e"sublimar" os conflitos sociais (os quais se manifestam como desemprego, inflao, etc.),com o objetivo de garantir um melhor desempenho do sistema econmico ao longo dotempo. Sob a gide de uma nova suposta confiana na capacidade de auto-regulao e naespontaneidade dos mecanismos de mercado, ocorreu ento uma mudana na teoriaeconmica, especialmente na teoria macroeconmica, que passou a ser dominada pelochamado novo-classicismo (o qual foi desafiado at certo ponto, em seu prprio terreno,pelo novo-keynesianismo).

    Assim, o ensino de Economia tambm se transforma, inclusive porque se passa aenfatizar, de modo cada vez mais cnico, a necessidade de promover a preparao de mo-de-obra (vista como capital humano6) para o mercado, em detrimento do fornecimento deuma formao social e cultural ampla e enriquecedora (que visa os estudantes comosujeitos morais, cidados, alm de profissionais competentes). O ensino em geral visto,ento, de um modo ps-moderno, como um servio que produz uma matria prima, mais oumenos qualificada, que est destinada a se auto-oferecer, um dia, como fonte de servios,nos mercados de fora de trabalho. O ensino de Economia, em particular, adota comoobjetivo a preparao de jovens numa viso de mundo e numa prtica da polticaeconmica que, em ltima anlise, celebram a suposta vitria definitiva do mundo docapital.

    por isso que a trama da discriminao entre os economistas tecida no sistemainternacional de ps-graduao em Economia, cujo centro se encontra nos Estados Unidose tem bases importantes na Europa, principalmente na Inglaterra. a que se geram asfontes dessa segregao que se espalha pelo resto do mundo e, inclusive, para um pascomo o Brasil. O mecanismo que estrutura a conseqente hierarquizao em termos devalores mercantis a chamada competncia em matemtica econmica e em mensuraoeconmica (ou econometria). Eis que estamos diante de um uso obscurantista damatemtica, o qual se aproveita de seu prestgio, de suas realizaes e de suas conquistasno desenvolvimento da cincia moderna.6 De modo intervertido e, por isso, mistificador, esse termo diz que no capitalismo ps-moderno aquilo quetem caracterizado o humano por sculos, a saber, o conhecimento, a inteligncia, etc. est subordinado aocapital.

  • 5Sobre a FormalizaoA questo da formalizao em Economia tem sido discutida entre os economistas.

    Muitas opinies tm sido emitidas, j que h um sentimento difuso de insatisfao quantoao modo de emprego da matemtica na teoria econmica atual. As anlises feitas porMcCloskey (1991) e Katzner (1991) sobre esse problema so esclarecedoras7.

    McCloskey defendeu enfaticamente a tese de que a formalizao em Economiadeixou de ser razovel. O seu argumento tem os seguintes contornos: os economistas dehoje costumam dizer que se inspiram nos fsicos, mas no se comportam como eles na suaatividade cientfica. Os fsicos sabem e usam muita matemtica, muito mais do que oseconomistas, sem que se possa dizer que a Fsica uma cincia to matematizada quanto aEconomia. Pois, os fsicos continuam interessados nos problemas do mundo fsico,enquanto que os economistas os economistas ortodoxos, obviamente esto muitopouco preocupados com as questes prticas que afetam o mundo econmico. Eles seinteressam pelos modelos em si mesmos, ou seja, pelos mundos ideais que nos modelos seafiguram como possveis.

    Na verdade, segundo ele, atualmente "nos departamentos de economia reina oesprito dos departamentos de matemtica". Ao invs de imitarem os fsicos, "oseconomistas... adotaram os valores intelectuais dos matemticos". Por isso, passaram amimetizar estes ltimos em seu interesse por teoremas e provas e em seu desprezo pelarelevncia emprica e prtica dos resultados. Em conseqncia, no mundo acadmico "top"em Economia, microeconomia matemtica e macroeconomia microeconomia. E quemno sabe muita matemtica, ou seja, quem no capaz de participar dessas "viagensexploratrias no hiperespao dos mundos possveis", simplesmente desprezado comoincompetente. "A coalizo dominante dos formalizadores" diz McCloskey "no cientificamente tolerante" (McCloskey, 1991, p. 7).

    McCloskey encontrou uma explicao para este fato no campo da retrica8. Oseconomistas acadmicos, segundo ele, caram numa armadilha quando procuraram seafirmar no mundo da competio acadmica especializando-se cada vez mais no uso dosargumentos exatos. "O problema" diz ele " retrico. O prestgio do argumentomatemtico levou os economistas a acreditarem... que se pode provar ou contraditargrandes verdades sociais escrevendo frmulas num quadro negro" (McCloskey, 1991, p.9). Desse modo, os novos economistas acadmicos abdicaram da cultura universal dosvelhos grandes economistas, para elevar bem alto a retrica da exatido e da consistnciacomo nica virtude digna de crdito. O resultado desta opo, segundo ele, foi a estetizaodo conhecimento econmico. A Economia como cincia prtica, em conseqncia, ao invsde progredir, passou a caminhar em crculo.

    Katzner, por outro lado, argumentou em favor da formalizao, sem secomprometer, porm, com os caminhos trilhados pela teoria econmica ortodoxa nasltimas dcadas. "Hoje" diz "muitas pessoas esto insatisfeitas com boa parte da7 Em dezembro de 1991, numa seo da American Economic Association, promovida pela InternationalNetwork for Economic Method, foi discutido o problema da formalizao em Economia. Participaram dasdiscusses Donald McCloskey e Donald Katzner, como apresentadores, Edward Leamer, Bruce Caldwell eRobert Solow, como comentadores.8 Trata-se de uma tese culturalista e ps-modernista. Em nossa opinio, o problema antes estrutural do queretrico.

  • 6anlise econmica". Para ele, entretanto, no se pode criticar a formalizao, mas somenteos contedos formalizados: "a formalizao per se no o problema; a dificuldade real" aponta "reside na natureza das questes que os economistas levantam" (Katzner,1991, p. 17). Segundo ele, a formalizao em si mesma merece respeito, pois um meiopoderoso e apropriado de exposio de idias em Economia.

    Mas, o que vem a ser formalizao? Conforme Katzner, o objetivo da anliseeconmica em geral explanar e clarificar os fenmenos do mundo. Para tanto, vrios tiposde anlise esto disponveis e podem ser usados em combinao: a descrio, a narrativahistrica, o estudo de casos, a construo de modelos etc. Os modelos, muito empregadospelos economistas, so construes abstratas que representam, de modo simplificado,comportamentos do mundo econmico e que fornecem, por isso, "insights" sobre estaregio da realidade social. "Com estas idias em mente" diz, ento , "pode-se definirformalizao como o arranjo funcional das relaes entre variveis que constituem parte(ou todo) de um modelo econmico".

    esta definio de formalizao, segundo Katzner, quatro observaes devem seragregadas: primeiro, uma formalizao vem a ser relevante se representa adequadamente,de algum modo, os fenmenos visados; segundo, ela no exige que as variveisconsideradas sejam passveis de mensurao; terceiro, apesar de pretender explicar arealidade econmica, a formalizao sempre abstrata ela nunca pretende construirmapas perfeitos desta realidade; e quatro, as formalizaes so analogias ou metforas. Poristo, so "construes que servem tanto como instrumentos de pensamento quanto comomeios inteligveis de comunicao" (Katzner, 1991, p. 21)9.

    Se no se pode acusar a formalizao em si mesma, por que ento pergunta ele h tanta insatisfao com a anlise econmica. Katzner, ento, aponta duas dificuldades.A primeira delas, chama de "crise da abstrao": muitos modelos seriam construdos sobsupostos simplificados demais, tornando-se, por isso, irrelevantes na prtica. Comoexemplo, ele cita aqueles que se baseiam no postulado do conhecimento completo eperfeito. A segunda dificuldade poderia ser chamada de "crise da aplicao": muitasquestes postas levam respostas inadequadas para enfrentar os desafios do mundo real.Como exemplo, ele cita a crtica de Marshall ao emprego acrtico da noo do equilbrio:"os problemas econmicos so apresentados imperfeitamente quando tratados comoproblemas de equilbrio e no como de crescimento orgnico...".

    Apesar de sua defesa da formalizao, Katzner concorda que parte da "anliseeconmica tornou-se um 'belo jogo' em que a busca de 'divertimento' matemtico prioritria em relao ao esforo de lanar luz nos fenmenos econmicos" (Katzner,1991, p. 21). Isto, porm, segundo ele, explica-se pela sociologia e pela psicologia daprofisso10. Os padres de cientificidade estabelecidos nos departamentos de economiaesto premiando a formalizao e no, antes de tudo, a relevncia terica. Ser bom em"economia pura" ajuda muito a obter reconhecimento, promoes, melhor remunerao,9 Posto isto, ele apresenta, seguindo Suppes, sete razes para a formalizao. Esta necessria para: 1)clarificar os problemas conceituais; 2) construir os fundamentos lgicos das teorias; 3) padronizarterminologias e mtodos; 4) permitir o desenvolvimento de uma viso geral que no se perde nos detalhes; 5)possibilitar a obteno de grande objetividade; 6) estabelecer as condies analticas do problema; 7)encontrar os supostos mnimos necessrios anlise.10 Esta tese de Katzner tambm culturalista, j que localiza o problema na esfera dos comportamentosculturais.

  • 7publicaes etc. Envolver-se com os problemas do mundo real, por outro lado, pode serencarado como fraqueza e incapacidade para competir entre os melhores.

    Algumas idias presentes nas anlises de McCloskey e Katzner merecem atenoespecial, j que traam um mapa do problema: a) A formalizao tem se tornado umaprtica muito difundida nos departamentos de economia ditos de excelncia; b) A adooda capacidade de formalizao como critrio primordial de competncia manifesta-se comoum preconceito excludente e autoritrio; c) O emprego de matemtica tem se tornadosufocante j que ele no tem permitido que outras formas de discurso possam respirar emEconomia Poltica; d) A obsesso com a economia formalizada tem impedido que oseconomistas alarguem a sua viso e adquiram uma cultura econmica slida.

    Nenhuma das duas explicaes apresentadas para a sndrome da formalizao emEconomia, entretanto, parece ir raiz do problema. Elas apontam para o fato dadiscriminao, mas no vem que sua fonte se encontra na prpria emergncia docapitalismo ps-moderno. O mercado auto-referente dos economistas apenas uma dasfaces das prticas correntes nos mercados da sociedade global. Ademais, elas no mostramonde se encontra a raiz da m formalizao da teoria neoclssica.

    Metafsica do EquilbrioPara poder esclarecer esse ltimo ponto preciso examinar a metafsica subjacente

    ao uso da matemtica empregada pela teoria ortodoxa. Um bom ponto de partida fornecido por Arrow quando pergunta sobre quem fixa os preos no modelo neowalrasiano:"... cada participante da economia toma os preos como dados... diz ele .... no h a,pois, um algum que toma decises e cuja funo seja decidir sobre os preos." (Arrow,1959, p. 43). A pergunta crucial. Arrow que teve a coragem de faz-la, no pode fornecerqualquer resposta.

    A tradio metafsica ocidental, como ensinam Hardt e Negri, tem horror falta demedida e ausncia de ordem, as quais identifica (Hardt e Negri, 2000, p. 356). Naexplicao do principal fenmeno da esfera econmica, qual seja, a formao dos preos, aEconomia Poltica do sculo XIX buscou fundar a ordem em uma medida objetiva (valor,preo natural), por meio de uma noo de equilbrio que o funcionamento do mercadotendia ou podia alcanar. Entretanto, no correr do sculo XX, especialmente em suasegunda metade, a economia ortodoxa passa a adotar um conceito formal de equilbrio,assentando depois a ordem na plena racionalidade do agente econmico, de um modocircular.

    Na Idade Mdia, o conceito de equilbrio estava ligado, como sabemos, noo depreo justo que estava associado a um princpio de moderao: para que a desordem no seestabelecesse no mundo era preciso tornar moral o interesse pessoal. O trabalho e autilidade eram reconhecidos como elementos a serem considerados no preo justo. Amedida que regulava esses preos, entretanto, assentava-se na justia que, como sabemos,tinha ento uma fonte divina. Na verdade, a regulao existia e ela era obra institucionaldas autoridades eclesisticas e nobilirquicas que dominavam no perodo histrico (Hugon,1972).

    Na fase clssica do pensamento econmico da poca moderna, com os escritos deAdam Smith especialmente, a noo de equilbrio passou a ser associada de moinvisvel. A ordem do sistema econmico deixou de ser atribuda a uma origem divina,passando a ser explicada de um modo terreno, como resultado de seu funcionamento, dito

  • 8ou visto como natural. Ainda assim, porm, como esse funcionamento no podia serconcebido como algo que estava sob o controle consciente dos agentes econmicos, anoo de equilbrio empregada continuava assentada num princpio de cartertranscendental (a mo invisvel).

    Os preos de mercado eram entendidos como grandezas fixadas pelos prpriosagentes econmicos no processo da concorrncia; j os preos naturais ou de produo, aoredor dos quais como dizia Adam Smith os primeiros gravitavam, foram concebidoscomo magnitudes fixadas cegamente pelo processo econmico. De qualquer modo, a noode equilbrio est a ligada ao movimento real dos capitais que procuravam o lucropenetrando no processo de produo e circulao de mercadorias. Os preos naturais eramassim regulados, de um modo direto ou indireto, pelas quantidades de trabalho necessrias produo das mercadorias11.

    J na fase neoclssica do pensamento econmico, o equilbrio tornou-se umprincpio a priori12 da anlise econmica, ou seja, algo que necessrio assumir para poderpensar o sistema econmico como existncia de fenmenos que tem uma ordem racional13. importante notar aqui que a noo de equilbrio passou, ento, a estar associada a umclculo de otimizao.

    Como foi que a teoria econmica chegou noo de equilbrio ou de coordenaobem sucedida como resultado de um exerccio de otimizao? Ningum melhor do queMirowski desnudou esse fato ao mostr-lo como uma apropriao do formalismo da fsicado campo de fora conservador desenvolvida nos anos intermedirios do sculo XIX(Mirowski, 1984, 1989). "A expanso dessa nova teoria na Fsica" que Mirowskichamou de "energetics" "suscitou a inveno da teoria neoclssica, provendo-lhe asmetforas, as tcnicas matemticas e novas atitudes em relao construo terica"(Mirowski, 1984, p. 366). Algumas das substituies metafricas foram as seguintes:conjunto de escolha por campo conservador, utilidade por energia potencial, dispndio totalpor energia cintica, preo por componente da fora, etc. As tcnicas de maximizao comrestries no n , por exemplo, tornaram possvel a concepo da "escolha" como"procura" de equilbrio. Entre as novas atitudes devemos mencionar uma abertura aoemprego irrestrito e acrtico do clculo diferencial, com a conseqente possibilidade deafirmar que a Economia torna-se, assim constituda, uma cincia "hard".

    A interao entre preos naturais e de mercado foi mantida pela teoria neoclssicatradicional de Marshall, Walras, etc14, que procurava se desembaraar, entretanto, do podercriador do trabalho social por meio da adoo do conceito de fator de produo. Entretanto,

    11 A teoria do valor de Marx, cremos, pode ser entendida como uma crtica do transcendentalismo inerente aofuncionamento da economia mercantil capitalista. por isso que o trabalho abstrato est no centro dasociabilidade engendrada pelo capital. No temos dvidas, pois, sobre a realidade da explorao e daalienao mercantil. Entretanto, no vemos como seja possvel pensar o valor trabalho como algo positivo queregula efetivamente os preos de mercado e que faz com que o sistema econmico tenda eventualmente para oequilbrio. O equilbrio em Marx, cremos, apenas momento da anlise, no tem um carter explanatrio.12 No estamos afirmando que houve uma influncia neokantiana na teoria neoclssica; estamos dizendo, istosim, que a noo de equilbrio na teoria neoclssica assim como, de modo mais amplo, o carter sintticoatribudo matemtica nessa teoria tem o estatuto de um a priori. o que procuramos mostrar em outroartigo (Prado, 1999).13 No Brasil, Ganem refletiu sobre o tema da ordem e de sua relao com o conceito de equilbrio (Ganem,1996).14 Conforme Milgate (Milgate, 1979).

  • 9esse fulcro interno do sistema econmico foi inteiramente abandonado pela teorianeowalrasiana cuja forma cannica o modelo de Arrow e Debreu a qual, em busca damxima exatido e coerncia formal, adotou o conceito de equilbrio intertemporal. Nessaltima forma, tudo se passa como se a economia de referncia estivesse j sempre emequilbrio15, de tal modo que este assume um carter formal e circular. Foi assim que ateoria econmica tornou-se escrava, implcita ou explicitamente, da escola formalista dematemtica de Hilbert e Bourbaki16, e de seu amor pela topologia.

    Obviamente, um autor como Friedman procurou conciliar a inteno prtica (nosentido utilitrio do termo) da teoria econmica ortodoxa com esse conceito de equilbrioobtido por otimizao, por meio do ardiloso "as if". Eis que essa noo de equilbrio apenas compatvel com o suposto de que os agentes so dotados de plena racionalidade,podendo estar associada, em conseqncia, apenas a uma dinmica "nocional" ou "virtual".Ora, a toro de Friedman admite que o processo dinmico real do mercado (ditoevolucionrio) elimina os comportamentos no timos para assim justificar um tipo deanlise essencialmente esttica. Nessa anlise, o processo dinmico , pois, suprimidocomo tal. sabido, entretanto, que exerccios elementares de dinmica evolucionriapodem mostrar que este nem sempre o caso, e que a economia mercantil pode ser incapazde superar por si mesma os seus problemas de coordenao (Prado, 2000).

    Na dcada dos anos 30, com a Grande Depresso, desenvolveu-se a macroeconomiade Keynes que veio contrariar algumas das premissas mais importantes da teorianeoclssica: conhecimento pleno, coordenao perfeita e racionalidade otimizadora.Keynes, como sabemos, pensou o sistema econmico como um conjunto de relaes entreagregados e como um processo, permanentemente perturbado por choques internos eexternos, capaz de chegar a estados de repouso com desemprego involuntrio. Para ele, noexistiam mecanismos automticos de ajustamento, a deficincia de demanda efetiva erapossvel e a incerteza dominava as expectativas de longo prazo. Para Keynes, ao processoeconmico faltava ordem e medida, requerendo um controle externo e interveno estatal.

    A macroeconomia de Keynes, entretanto, foi logo domesticada pela chamadasntese neoclssica que pretendeu restringir a possibilidade de coordenao ineficiente aocurto prazo, mostrando, por meio de uma anlise de equilbrio, que no longo prazo, quandotodos os preos so flexveis, o desemprego involuntrio no pode existir (contrariando,assim, no terreno abstrato da teoria, mais uma vez, uma das evidncias histricas maisincontestveis da histria do capitalismo). Assim se pretendeu reconciliar Keynes com atradio neoclssica e de grande parte do pensamento liberal num contexto histricocaracterizado pela hegemonia do capital produtivo americano e pela poltica econmica15 A discusso da estabilidade na teoria do equilbrio geral no envolve a pressuposio de que o sistemaeconmico possa estar, efetivamente, fora do equilbrio, j que, como sabemos, assumido a implcita ouexplicitamente que nenhuma transao pode ocorrer quando vigoram preos de desequilbrio (Arrow, 1976, p.386). Soromenho, no Brasil, discutiu a questo do leiloeiro e do ttonnement walrasiano (Soromenho, 2000).Uma posio otimista e apologtica em relao teoria neoclssica foi desenvolvida por Lisboa (Lisboa, 1997e 1998).16 A seguinte citao de David Hilbert bem esclarecedora: "O mtodo axiomtico na verdade e assim temse mantido como a nica ajuda conveniente e indispensvel ao esprito em qualquer investigao exata, noimporta o seu domnio. Ele logicamente inatacvel e, ao mesmo tempo, frutfero; ele garante, portanto,completa liberdade de investigao. Trabalhar axiomaticamente no significa, nesse sentido, nada mais doque pensar com conhecimento do assunto... sem o mtodo axiomtico procedemos ingenuamente acreditandoem certas relaes como dogmas.... a abordagem axiomtica remove essa ingenuidade e torna possveis ascrenas seguras" (apud Mirowski, 1992)

  • 10

    orientada pelo crescimento tranqilo. A questo central nesse momento era enfrentar osconflitos polticos e econmicos de um modo neutro, como se eles se resumissem aproblemas tcnicos de coordenao macroeconmica17.

    O keynesianismo hidrulico, entretanto, conservou a possibilidade do desequilbriopor meio dos conceitos de situaes ex-ante e ex-post. Se a sociedade real o conflito deinteresses e a luta de classes so j evanescentes na sntese neoclssica, tudo issodesaparece em sua sucessora, a macroeconomia novo-clssica18. Esta ltima adota oconceito de equilbrio da teoria neowalrasiana, supondo que ocorre um perfeitobalanceamento dos mercados, em todos os momentos do tempo. De um modo metafrico,por meio da economia do agente representativo, reafirma o carter auto-equilibrador dosmercados e a racionalidade coletiva das decises dos agentes econmicos, dotados de auto-interesse e orientados pela racionalidade instrumental.

    Fragilidade e Dogmatismo irnico que as duas melhores crticas internas teoria neowalrasiana tenham

    partido de dois economistas conservadores: Hayek (1948, 1978) e Georgescu-Roegen(1971).

    O primeiro desses autores apontou o carter tautolgico dessa teoria: ela assume apriori que todos os agentes econmicos detm o conhecimento necessrio uma provadedutiva, feita pelo economista terico, de que o equilbrio geral existe. A teoria assumeque todos os agentes esto plenamente informados e que fazem previses perfeitas, quandodeveria explicar como eles adquirem as informaes que utilizam para tomar decises, numprocesso descentralizado e sem centro de compensao. Ao invs de compreender aeconomia real como um sistema j sempre equilibrado em que a busca de informao jest concluda e a competio j cessou , a teoria econmica deveria ser capaz de pens-la, segundo Hayek, como um processo de auto-organizao. Nesse caso, entretanto, a teoriaeconmica deveria ser capaz de suportar estoicamente uma certa ausncia de ordem nomundo real, renunciando possuir, assim, a competncia necessria para administr-lo.

    Georgescu-Roegen, um dos principais inspiradores de Mirowski, mostrou que ateoria neoclssica, ao se circunscrever ao modelo da Fsica do sculo XX que ainda noconhecia a segunda lei da termodinmica (lei da entropia), havia adotado implicitamenteum princpio de conservao que a levara a presumir que os fenmenos econmicos soreversveis e que, portanto, o equilbrio independente da temporalidade. Emconseqncia, ele fora capaz de apontar em The entropy law... (1971) a razo pela qual ateoria econmica ortodoxa perdera qualquer conexo com a historicidade, a economia demercado passara a ser apreendida como uma economia de troca que pode funcionar semmoeda, e, dado que o equilbrio encontrado um ponto de timo, tornara-se fcil demaisprovar que a economia de mercado eficiente19, etc. A teoria neoclssica conseguira,assim, inventar uma esttica de preo sem uma dinmica efetiva de formao de preo (o

    17 Ver sobre isso, Arrighi e Silver, p. 202-211 (Arrighi e Silver, 1999)18 O novo-classicismo funda-se em robinsonadas. S mesmo muita matemtica sofisticada pode fornecercredibilidade a tal pobreza de elementos tericos que tem por referncia inelutvel o capitalismo realmenteexistente.19 Uma apresentao dessa mesma crtica a partir de um ngulo diferente - ngulo este fornecido por umartigo de Foley (1983) pode ser encontrada em Prado (1999).

  • 11

    que ela apresenta como dinmica apenas, como sugerimos acima, um processo imaginrioque foi chamado de "nocional" ou de "virtual").

    Tais crticas so demolidoras. Assim como so demolidoras as concluses negativasque vieram com os chamados teoremas de Debreu, Sonnenschein e Mantel sobre apossibilidade de se obter unicidade e estabilidade nos modelos de equilbrio geral20. Elasno tornaram, porm, os economistas que se pensam como neoclssicos mais modestos emenos arrogantes o contrrio ocorre. Eis que agora, entretanto, sabemos o porqu. H,pois, nessa histria algo morto que no quer morrer. Esta tradio sustenta um discurso queidealiza o mundo econmico realmente existente e o apresenta por meio de uma lgica desituao que trivial e que, justamente por isso, pode ser aplicada em um sem nmero decasos, verdadeiramente sem possibilidade de falseamento (Caldwell, 2000).

    preciso ver neste momento que, j nos anos 70 do sculo XX, tornara-se evidenteque a promessa segundo a qual a teoria econmica ortodoxa ficaria solidamentefundamentada na teoria do equilbrio geral no poderia ser cumprida. Era claro queproblemas da unicidade e da estabilidade no poderiam ser resolvidos dentro da axiomticade Arrow-Debreu. Desde ento, a viso de mundo que representa, a qual fora construdanas ltimas dcadas do sculo XIX, entrou em processo de dissoluo. Colander, por isso,achou recentemente que deveria proclamar a "morte da teoria neoclssica", datando-a nessadcada21.

    Em conseqncia, passa a coexistir no campo ortodoxo um conjunto mais ou menosamplo de programas de pesquisa, baseados em expectativas racionais, assimetria deinformao, mercados incompletos, retornos crescentes, teoria dos jogos etc. Essesprogramas, no necessariamente coerentes entre si, caracterizam-se por adotarem hiptesesditas ad hoc, seja porque elas no podem ser derivadas de uma axiomtica seja porque soaceitas para produzir um resultado preestabelecido. A modelagem como tal se tornou oelemento central da teoria econmica. A preocupao que move os tericos no vem a ser acompreenso do sistema econmico, ou mesmo a explanao de seu funcionamento combase numa viso de mundo unificadora, mas consiste apenas em enfrentar os problemas depoltica econmica.

    Assim, dando um passo final na aceitao da reificao, aps a supresso dasociabilidade e da historicidade, a teoria econmica ortodoxa passa a se sustentar na formamatemtica de suas proposies e na possibilidade de apresentar evidncias economtricaspara elas. A teoria dita neoclssica vai desaparecendo como viso do mundo, subsistindoapenas como tcnica de modelagem ou fonte de elementos para a modelagem. Ainda queisto no esteja garantido para o futuro, o que passou a unificar a teoria econmica ortodoxafoi a aderncia ao mtodo de obteno de resultados que parte de um problema deotimizao. medida que a formalizao e a econometria vieram para o primeiro plano, ateoria econmica tornou-se autista. assim que a economia ortodoxa parece no querabandonar o utilssimo formalismo construdo durante dcadas, ao qual confessa faltarrealismo, mas que une equilbrio a priori, racionalidade plena e otimizao.

    O pensamento dominante enxerga naquilo que sobrou da teoria neoclssica uminstrumento valioso de anlise e de prescrio econmica, sem o nus ontolgico dasteorizaes de Keynes ou de Hayek. Eis que a viso do capitalismo como gerao virtuosa(Hayek) impotente, e a viso do capitalismo como crise (Keynes) desconfortvel.20 Ver Ingrao e Israel sobre isso (Ingrao e Israel, 1990).21 Ver Colander (Colander, 2000).

  • 12

    Ademais, esses dois autores colocam a discusso dos temas econmicos no plano daeconomia poltica, escolhendo, assim, um terreno que legitima de certo modo o estilo dopensamento crtico. Parece ser bem mais fcil para o pensamento do sistema se retrair namatemtica, no naturalismo e no objetivismo.

    Ora, frente a isto tudo fica fcil perceber que muito do que se faz hoje em teoriaeconmica ortodoxa estril do ponto de vista de uma melhor compreenso da realidadeeconmica. Em parte, ela ainda movida por um interesse ideolgico e apologtico. Emparte maior, orientada por um interesse tecnocrtico e profissionalizante. Devido scircunstncias histricas antes mencionadas, a teoria econmica ortodoxa tem seapresentado como atividade intelectual que estrutura diferenas. Afirma-se, ademais, comomercadoria cultural do capitalismo ps-moderno que adota retoricamente certos valoresilustrados, como o rigor matemtico, o respeito experincia, mas que opera em ltimaanlise de um modo obscurantista.

    A cincia em geral no teme o difcil; mas o difcil no o esotrico. Se no se podequestionar certa importncia da matemtica e da estatstica mesmo em Economia Poltica, preciso perguntar em que consiste, em ltima anlise, a fraqueza do formalismo dasconcepes ortodoxas. O que esto produzindo os novos tericos que se dedicam a essasteorias cada vez mais hermticas?

    A resposta surge quando se percebe que, sob a aparncia de um esmero com aexatido formal e um zelo com as provas de teoremas, esconde-se a supresso da sociedadeviva assim como as suas contradies e os seus conflitos da anlise econmica.Comparem-se, por exemplo, as obras caudalosas de Smith, Marx, Marshall ou Keynes coma secura da Teoria do Valor de Debreu. Como conseqncia dessa manobra purificadora, ateoria econmica sofre um empobrecimento semntico e comunicativo, assumindo, ento, aforma de uma linguagem tipicamente matemtica que s pode ser aprendida por meio deexerccios, com um mnimo ou nenhuma reflexo. justamente por isso, entretanto, quevem a ser mais adequada para a administrao autoritria das contradies e dos conflitosda sociedade atual.

    Como os economistas ortodoxos esto construindo uma homogeneidade interna emarcando diferenas em relao ao meio externo, no se importam ademais em parecerautistas. Eles esto estruturando um colgio invisvel de iniciados, cuja segregao internase d em termos da competncia nessas prticas de formalizao matemtica eeconomtrica. Eles esto criando, ao mesmo tempo, um sistema de controle em que osmecanismos disciplinares de discriminao e de excluso esto sendo mentalmenteinternalizados por todos os seus iniciados e iniciantes (Foucault).

    Quanto vale mesmo um desses iniciados que capaz de representar a complexidadede uma economia real por meio de uma construo idealizada habitada por um agenterepresentativo? Ora, isto depende principalmente da escola em que obteve o seu ttulo, donmero de suas publicaes e das revistas em que foram publicados. O valor, pois, de umdoutor nesse mercado auto-referente depende de seu desempenho competitivo emseminrios, congressos, revistas, prmios e posies no sistema internacional de ps-graduao em Economia. Nesse sistema, tudo hierarquizado. H, por exemplo, escolas detopo, de segundo nvel, terceiro nvel, etc. H, tambm, revistas de primeira, segunda,terceira linhas. Tudo isto um exagero que denota apenas o que tem sido chamado deprodutivismo universitrio.

  • 13

    Dada essa base de indicadores e a sua multiplicidade, claro que a expresso emvalor mercantil dos economistas do sistema universitrio s pode ser obtida por meio deuma reduo monstruosa. De qualquer modo, a valorao cientfica autntica, baseada emdescobertas, busca da verdade, argumentos e reflexes originais, perde, assim, todo o seubom sentido. Eis que tudo isto so manifestaes no plano cultural das dificuldadesestruturais de um modo de produo que caminha para o seu ocaso.

    Referncias BibliogrficasArrighi, G., O Longo Sculo XX Dinheiro, Poder e as Origens de Nosso Sculo. So

    Paulo: Editora da UNSP, 1996.Arrighi, G. e B. J.Silver, Chaos and Governance in the Modern World System.

    Minneapolis: University of Minneapolis Press, 1999.Arrow, K. S., Toward a theory of price adjustment. In: Abramouwitz, I. M. (ed.), The

    allocation of economic resources. Califrnia: Stanford University Press, 1959.Arrow, K. J., Economic equilibrium. In: International Encyclopedia of the Social Sciences.

    1976, vol. 4, p. 376-389.Caldwell, B., Hayek: Right for the Wrong Reasons? Presidencial Address: History of

    Economics Society, julho de 2000.Colander, D., The death of neoclassical theory. In: Journal of the History of Economic

    Thought, n 22 (2), p. 127-143.Foley, D., A statistical equilibrium theory of markets. In: Journal of Economic Theory,

    1994, p. 321-345.Foley, D., Ideology and Methodology, Mimeo, 1998.Ganem, A., Demonstrar a ordem racional do mercado: reflexes em torno de um projeto

    impossvel. In: Revista de Economia Poltica, vol. 16 (2), abr.-jun. 1996, pp. 105-122.

    Georgescu-Roegen, N., The entropy law and the economic process. Cambridge: HarvardUniversity Press, 1971.

    Hardt, M. e A. Negri, Empire. Cambridge: Harvard University Press, 2000.Hayek, F. A., Economics and knowledge. In: Individualism and economic order.

    SouthBend: Gateway, 1948, p. 33-56.Hayek, F. A., Competition as a discovery procedure. In: New studies in Philosophy,

    Politics, Economics and the History of Ideas. Londres: Routledge & Kegan Paul,1978, p. 179-190.

    Herrera, Rmy, Existe um pensamento nico em Economia Poltica? In: Revista daSociedade Brasileira de Economia Poltica, n 8, junho de 2001, p. 7-25.

    Hugon, P., Histria das doutrinas econmicas. So Paulo, Atlas, 1972.Ingrao, B e G. Israel, The Invisible Hand Economic Equilibrium in the History of Science.

    Londres: The MIT Press, 1990.Katzner, D. W., In defense of formalization in Economics. In: Methodus, 1991, vol. 3, n 1,

    p. 17-23.Lisboa, M. B., Misria da crtica heterodoxa primeira parte: sobre as crticas. In: Revista

    de Economia Contempornea, vol. 2, jan.-jun. 1997, p. 5-66.

  • 14

    Lisboa, M. B., Misria da crtica heterodoxa segunda parte: mtodo e equilbrio natradio neoclssica. In: Revista de Economia Contempornea, vol. 3, jan.-jun1998, p. 113-151.

    McCloskey, D. N., Economics science: a search through the hyperspace of assumptions?In: Methodus, 1991, vol. 3, n 1, p. 6-16.

    Milgate, M., On the Origin of the Notion of Intertemporal Equilibrium. In: Economica,1979, vol. 46, p. 1-10.

    Mirowski, P., Physics and the marginalist revolution`. In: Cambridge Journal ofEconomics, 1984, vol. 8, p. 361-379.

    Mirowski, P., What were Von Neumann and Morgenstern trying to Accomplish? In:Towards a History of Game Theory, Annual Supplement to History of PoliticalEconomy, vol. 24, 1992.

    Mirowski, P., More heat than light Economics as social physics; physics as nature'seconomics. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.

    Prado, E. F. S., Equilbrio e entropia: crtica da teoria neoclssica. In: Econmica,dezembro de 1999, vol.1(2), p. 9-34.

    Prado, E. F. S., Falha de Coordenao em Economia de Troca, 2000, mimeo.Potts, J., The new evolutionary microeconomics - complexity, competence and adaptive

    behaviour. Cheltenham, Edward Elgar, 2000,Silveira, A. M., A sedio da escolha pblica: variaes sobre o tema das revolues

    cientficas. In: Revista de Economia Poltica, vol. 16 (1), jan-mar. 1996, p. 37-56.Soromenho, J. E. C., Microfundamentos e sociabilidade. In: Economia, vol. 1 (2), jul.-dez.

    2000, p. 186-219.