A construção de edições de textos teatrais censurados … · noções de autoria, de...

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259 A construção de edições de textos teatrais censurados em meio digital: Delineando uma proposta 1. Considerações Iniciais Testemunhos de um tempo em que o veto à palavra e à cena era institucionalizado, os textos teatrais encenados e produzidos na Bahia (Brasil), durante a ditadura mili- tar (1964-1985), trazem informações acerca da cultura e da sociedade de uma época e se mostram relevantes para a compreensão de tal período, constituindo-se parte significativa da Literatura Baiana, em sua forma dramática. Tais textos estão localizados em arquivos e acervos 1 , a ampla maioria está dis- ponível em cópias datiloscritas, sendo alguns manuscritos e poucos impressos, disto resulta a necessidade de um trabalho de edição crítica, a fim de preparar estes tex- tos para a publicação e circulação na sociedade contemporânea, contribuindo para a constituição do corpus e divulgação da literatura dramática baiana. Este trabalho de edição crítica permite, também, verificar como se dava o processo de escrita e circu- lação do texto teatral baiano no período da ditadura militar, quais eram as práticas de escrita, qual o estatuto do texto teatral e das artes dramáticas para a sociedade baiana. Estes argumentos reunidos foram os principais motivadores para que O Grupo de Edição e Estudo de Textos - Equipe Textos Teatrais Censurados (GEET-ETTC) 2 tomassem os textos teatrais como objeto de edição e de estudos segundo a perspec- tiva filológica. Os pesquisadores deste grupo desenvolvem estudos sobre os textos tetrais censurados baianos na perspectiva da Crítica Textual, resultando em sete dis- sertações de mestrado, e quatro teses de doutorado, ainda em andamento, além de diversas outras publicações. Dessa forma, os textos teatrais censurados se configuram como uma textualidade complexa na qual é possível ler o texto do autor, o texto do diretor, o texto do ator, 1 Dos acervos que detêm esta documentação, destacam-se o Espaço Xisto Bahia, da Biblio- teca Pública do Estado da Bahia, Nós por exemplo, Centro de Documentação e Memória do Teatro Vila Velha, além do Banco de Textos da Escola de Teatro/UFBA e do Setor de Documentação e Pesquisa do Teatro Castro Alves. 2 Esta equipe, liderada pela Profa. Dra. Rosa Borges, é composta por estudantes de graduação e de pós-graduação e atualmente de outros professores, e está vinculada à UFBA. Mais informações em: ‹http://www.textoecensura.ufba.br/›.

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A construção de edições de textos teatrais censurados em meio

digital: Delineando uma proposta

1. Considerações Iniciais

Testemunhos de um tempo em que o veto à palavra e à cena era institucionalizado,

os textos teatrais encenados e produzidos na Bahia (Brasil), durante a ditadura mili-

tar (1964-1985), trazem informações acerca da cultura e da sociedade de uma época

e se mostram relevantes para a compreensão de tal período, constituindo-se parte

signifi cativa da Literatura Baiana, em sua forma dramática.

Tais textos estão localizados em arquivos e acervos1, a ampla maioria está dis-

ponível em cópias datiloscritas, sendo alguns manuscritos e poucos impressos, disto

resulta a necessidade de um trabalho de edição crítica, a fi m de preparar estes tex-

tos para a publicação e circulação na sociedade contemporânea, contribuindo para a

constituição do corpus e divulgação da literatura dramática baiana. Este trabalho de

edição crítica permite, também, verifi car como se dava o processo de escrita e circu-

lação do texto teatral baiano no período da ditadura militar, quais eram as práticas

de escrita, qual o estatuto do texto teatral e das artes dramáticas para a sociedade

baiana.

Estes argumentos reunidos foram os principais motivadores para que O Grupo

de Edição e Estudo de Textos - Equipe Textos Teatrais Censurados (GEET-ETTC)2

tomassem os textos teatrais como objeto de edição e de estudos segundo a perspec-

tiva fi lológica. Os pesquisadores deste grupo desenvolvem estudos sobre os textos

tetrais censurados baianos na perspectiva da Crítica Textual, resultando em sete dis-

sertações de mestrado, e quatro teses de doutorado, ainda em andamento, além de

diversas outras publicações.

Dessa forma, os textos teatrais censurados se confi guram como uma textualidade

complexa na qual é possível ler o texto do autor, o texto do diretor, o texto do ator,

1 Dos acervos que detêm esta documentação, destacam-se o Espaço Xisto Bahia, da Biblio-teca Pública do Estado da Bahia, Nós por exemplo, Centro de Documentação e Memória do Teatro Vila Velha, além do Banco de Textos da Escola de Teatro/UFBA e do Setor de Documentação e Pesquisa do Teatro Castro Alves.

2 Esta equipe, liderada pela Profa. Dra. Rosa Borges, é composta por estudantes de graduação e de pós-graduação e atualmente de outros professores, e está vinculada à UFBA. Mais informações em: ‹http://www.textoecensura.ufba.br/›.

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o texto da censura etc., que se subsumidos a uma edição crítica, representativa do

ânimo autoral, incorreria na perda inestimável de elementos do levantamento da

cena, da repercussão da obra, do processo de escritura coletiva e do referencial cultu-

ral com que a obra dialoga. Ademais, o uso do suporte papel para o desenvolvimento

de uma edição que contemplasse essa diversidade de elementos resultaria em uma

edição limitada pela linearidade e rigidez do suporte.

Nesses termos, o uso do suporte digital permite a disponibilização dos diversos

textos de maneira inter-relacionada e dinâmica. O texto, assim, não mais se consti-

tuiria como o centro do processo editorial, mas atuaria como ponto de partida que

impelirá o editor a adentrar os meandros da sua construção e circulação e sua relação

com a produção literária de um tempo. Propõe-se, para este trabalho, apresentar o

esboço de uma proposta de edição em meio digital para os textos teatrais censurados

da dramaturga baiana Jurema Penna.

2. La Nouvelle Philologie: revisões teoricas para as novas propostas de

edições

Em que pese ser uma disciplina cujas origens remontam à Antiguidade Clássica,

ao longo da história da Filologia é possível perceber uma relativa permeabilidade

em relação às teorias vigentes de cada período histórico, uma vez que toda ciência se

inscreve em um contexto sócio-histórico, estando diretamente infl uenciada por ele.

Incursionar por esta seara resulta em um relevante movimento interpretativo para

propor uma revisão acerca dos estudos fi lológicos. No contexto acadêmico contem-

porâneo, a Crítica Textual encontra-se atravessada por revisões teóricas, que impli-

caram deslocamentos de alguns conceitos basilares para esta disciplina, tais como as

noções de autoria, de estabelecimento do texto, papel do editor etc.

Partindo desses deslocamentos, Cerquiglini (2000) sistematiza dois paradigmas

teóricos na história da Filologia, enquanto Crítica Textual, o primeiro, denominando

‘l’ancienne philologie’, refere-se à perspectiva teórica que estuda e prepara os textos

a fi m de estabelecer um texto único e fi nal, a partir da comparação e intervenção nos

testemunhos. Em diferença a essa orientação teórico-metodológico, nomeia como ‘la

nouvelle philologie’ aquela que se baseia na comparação, buscando ressaltar as modi-

fi cações em uma obra, ao longo do tempo, e reconhecer a historicidade presente no

conceito de texto.

O paradigma da ‘l’ancienne philologie’ poderia ser relacionado à atividade fi lo-

lógica desenvolvida durante os séculos XVIII ao início do século XX, cujo principal

objetivo era a reconstrução de um texto que se aproximasse do original (arquétipo)

a partir da comparação entre os testemunhos. De acordo com Cerquiglini (2000), a

mudança para o paradigma de ‘la nouvelle philologie’ está vinculada, sobretudo, à

mudança na concepção de texto e de autoria promovida pelos avanços dos estudos

literários, destacando-se os estudos de Roland Barthes, Michel Foucault e Jacques

Derrida. Vale pontuar também a noção de hipertexto como possibilidade de leitura e

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de escrita que coloca em evidência a textualidade eletrônica e o suporte digital como

ferramentas para o editor. O texto editado, resultante desse último paradigma, se

presta a explorar a construção, circulação, recepção e o signifi cado que uma obra pos-

sui em seu contexto sócio-histórico, valendo-se das possibilidades de apresentação de

texto dadas pelas tecnologias digitais.

Para o primeiro paradigma, a opção crítica reside na autoridade textual, o editor

se exime de exercer seu papel interpretativo e propor uma leitura para a situação

textual em função de obedecer à vontade do autor, ideia que, segundo Cerquiglini

(2000), é resultado do romantismo literário. Neste caso, o autor não é somente o res-

ponsável intelectual pela obra, mas materializa certo saber canônico, ao qual se deve

obediência e respeito. Sua palavra deve ser reconstruída, resguardada e salva das

corruptelas impostas pela circulação dos textos em uma sociedade. O meio impresso,

sua principal forma de circulação, é a materialização da unicidade almejada, visto

que mostra um texto fi xo, estático e aparentemente imutável.

O objetivo do trabalho fi lológico é, nesse caso, encontrar a unicidade de um texto

a partir do exame minucioso entre as diversas cópias adulteradas e contaminadas.

Como toda a intervenção do copista era considerada uma degradação do texto que o

afastava do original perdido, cabia ao fi lólogo estabelecer a relação de fi liação entre

os manuscritos, em forma de árvore genealógica, apontando os caminhos percorridos

por este, a fi m de chegar a sua origem. Assim,

[L]’éditeur ne s’interdit jamais de changer la lettre d’un texte qui lui paraît intrinsèque-

ment fautif; l’honnêteté, voire une certaine humilité parfois devant le manuscrit s’expriment

alors par un affi chage explicite des interventions. Mais, pour un tel acte de probité, combien

de corrections subreptices! L’éditeur, au fond, se persuade qu’il connaît, comprend et respec-

te beaucoup mieux l’original et sa langue, que le copiste. Croyant reconstruire le travail du

premier scribe, il n’est que le plus récent copiste du texte. (CERQUIGLINI, 2000, 2)

No processo da reconstituição do texto, estabelecia-se uma comparação entre as

versões legadas pelos testemunhos, o que ocasionava uma descontextualização do

texto em relação a sua materialidade, incorrendo em perdas de informações relevan-

tes sobre o suporte e necessárias a análise editorial. O resultado fi nal desse trabalho

é disponibilizado em página impressa, contendo o texto editado, acompanhado do

aparato de variantes, normalmente ao pé da página ou à margem do texto, em fonte

menor, muitas vezes ilegíveis. Essa mise-en-page é representativa do valor que se

dá a cada um dos elementos presentes na edição: o texto editado ocupa o centro do

processo editorial, enquanto as variantes aparecem em um lugar restrito, de menor

importância, que nem sempre resultava legível.

Suplantando este paradigma, ‘la nouvelle philologie’ entende o texto como frag-

mento e não como unidade. Essa perspectiva descentrada coaduna com a noção con-

temporânea de hipertexto, texto maleável, capaz de presentifi car outros textos no

momento da leitura e estabelecer enlaces, uma mola de propulsão que leva o leitor

a construir um percurso próprio na leitura do texto. Além disso, a popularização da

informática permitiu o desenvolvimento de diversas ferramentas de edição que possi-

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bilitaram o uso do meio digital para solucionar problemas decorrentes da rigidez do

suporte escrito. Com o suporte digital, o acúmulo e a distribuição do conhecimento

no mundo ocidental já não permanecem restritos aos livros impressos, inauguram-se,

dessa forma, outros movimentos na cultura escrita.

Ao se abandonar a perspectiva hierárquica em relação ao valor dado aos testemu-

nhos e a busca pelo texto mais próximo possível do original (perdido ou presente),

o editor de textos interessa-se pela história do texto numa perspectiva que engloba

tanto a história de sua gênese, quanto a história de sua circulação na sociedade, dos

mediadores envolvidos nesse processo e as marcas que estes deixam nos textos, um

registro da recepção de uma época. As práticas da cultura letrada também são de

fundamental importância para a proposição de uma edição. O editor necessita, dessa

forma, conhecer a materialidade do texto e considerá-la na sua proposta editorial,

haja vista que o suporte, os materiais de escritas, a cultura escrita do período e o seu

processo de produção são decisivos para a leitura fi lológica dos textos.

Nesta perspectiva, é objetivo do editor é fazer falar todos os indícios apresentados

no texto a fi m de construir, em sua edição, uma rede de possibilidades interpretativas.

O suporte digital apresenta-se como principal meio para a veiculação de um grande

volume de informações, de maneira legível, maleável e fl exível, o editor fornece o

resultado do seu trabalho, auxiliado pelo computador na construção das etapas mais

mecânicas do processo editorial, bem como na apresentação do texto, permitindo

assim o estabelecimento de links entre os mais diversos elementos da edição: texto

editado, os fac-símiles, os comentários, o paratexto, etc.

As situações textuais encontradas nos textos teatrais censurados, e em particular

os textos de Jurema Penna3, caracterizam-se por:

- um autor que desenvolve outros papéis na cena teatral, como o de diretor ou de ator.

Jurema Penna, além de escrever os textos teatrais, também os dirigia e atuava. Assim,

seus textos aparecem marcados pelas experiências advindas da direção do espetáculo.

- um processo de escrita que tem como base a criação coletiva e/ou intertextualidade, que

inserem o texto na rede de produções literárias da sua cultura;

- a materialidade do texto que atesta a cena da escritura: textos feitos com o fi m de serem

encenados e sem pretensões explícitas de publicação, que trazem as marcas da encenação

e as intervenções da censura militar;

- uma rica documentação paratextual que dá a conhecer o percurso que a obra trilhou na

sociedade.

Nestes termos, é necessário desenvolver uma proposta editorial que contemple

as características deste objeto. Acredita-se, pois, que o suporte digital seja o mais

adequado para tal propósito, visto que permite a construção de um texto maleável,

que coloca lado a lado, na tela, informações dos mais variados tipos, inclusive de

diferentes linguagens.

3 Jurema Penna (1927-2001) era atriz, diretora, produtora e dramaturga baiana, com expressiva produção teatral durante as décadas de 1970 e 1980. A principal temática explorada em sua obra refere-se a cultura e o cotidiano do povo soteropolitano, em suas difi culdades e deleites.

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3. Uma proposta de edição em meio digital para O Bonequeiro Vitalino,

de Jurema Penna

Apresenta-se, nesta seção, a proposta de edição para uma das peças de Jurema

Penna, denominada O Bonequeiro Vitalino, ou nada é impossível aos olhos de Deus ou das crianças (1977). Trata-se de um espetáculo infantil que, no entanto, se dirige

«a todos aqueles que ainda são crianças». A peça é um auto de natal que retrata a

vida de pessoas simples do nordeste que se unem para comemorar a data de maneira

que representasse o espírito nordestino, valorizando suas referências culturais, nas

palavras da autora:

No nascer do Menino Deus, todos nós procuramos reencontrar a criança que existe em

todos nós o que [sic], infelizmente, a todo instante nos esquecemos dela. Nossa infância é

uma infância, antes de mais nada, de criança brasileira, dentro da nossa realidade cultural,

com as nossas cantigas das velhas avós e os presépios encantados cada vez mais substituídos

por pinheiros importados que para nós crianças nordestinas, nunca foi árvore de quintal de

ninguém (CADA DIA, 1977)

Nesse intuito, os personagens decidem-se pela construção de um presépio com os

bonecos do Mestre Vitalino, o cronista do barro4. Esses bonecos, com o badalar da

meia noite, tomam vida e desenvolvem a ação. A proposta da peça é também realizar

um dos sonhos do Mestre Vitalino: a construção de um presépio, retratando uma lapa

nordestina com os seus bonecos de barro. O ambiente da peça é repleto de elementos

desta cultura, como a música da zabumba e a linguagem poética do cordel. A peça

foi celebrada com três importantes prêmios: Troféu Martim Gonçalves – Conferido

pela TV Aratu: Melhor Figurino; Troféu Martim Gonçalves – Prêmio Especial do

Júri pelo trabalho de pesquisa; Melhor Espetáculo Infantil – Serviço Nacional de

Teatro. Além desses, foi premiada com a publicação pelo Departamento de Assuntos

Culturais da Secretaria Municipal de Educação e Cultura da Prefeitura da Cidade do

Salvador, em 1978.

O espetáculo foi encenado em diversos locais da cidade de Salvador-BA, desde

grandes teatros, como o Teatro Castro Alves até a Igreja do Rio Vermelho, Igreja

de São Caetano, Solar do Unhão, Largo da Lapinha, Parque da Cidade e Largo do

Pelourinho. Em 1980, foi adaptado por Aderbal Jr. para a televisão e veiculado pela

TV Educadora em todo território nacional.

A fi m de perceber as funções e papéis desse texto na sociedade baiana em tempos

de ditadura militar, passa-se a analisar os testemunhos da peça que legaram o texto d’

O Bonequeiro Vitalino…, não somente como suporte material, mas entendidos aqui

conforme Pérez Priego (1997, 36), citando G. Pasquali (1974 [1934]):

[l]os testimonios son efectivamente individuos históricos, con una fi sionomía propia, por-

tadores en su seno muchas veces de elocuentes huellas y datos respecto de dónde se compu-

4 Mestre Vitalino (1909-1963) reconhecido internacionalmente pela riqueza de suas artes cerâmicas que retratavam o cotidiano do sertanejo, moldando no barro as formas de famílias de retirantes, casamentos, vaquejadas, cangaceiro etc.

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sieron, quién los encargó o poseyó, quiénes fueron los copistas, los impresores, los lectores,

qué tipo de papel y de letra fue utilizado, qué taller tipográfi co, etc. Todo ello nos propor-

ciona una información muy interesante, por supuesto, para la historia cultural, pero también

muy rica y aprovechable desde la pura critica textual. [...]5

O texto da peça apresenta-se em seis testemunhos, sendo cinco datiloscritos e

um impresso. Os cinco datiloscritos, como testemunhos materiais, dão a conhecer os

diferentes caminhos percorridos pelo texto da peça em seu processo de circulação na

sociedade. A partir da leitura de suas marcas, intervenções, carimbos e outros, depre-

endem-se não somente os caminhos desse texto na sociedade baiana, mas também, as

funções e os usos que este suporte material possuía em seu contexto.

O primeiro datiloscrito (TD1) trata-se de uma fotocópia, cujo original encontra-

-se depositado no Arquivo Nacional do Distrito Federal. Composto por 27 folhas,

acompanhado de cópia do ofício da Superintendência Regional da Bahia (SR-BA)

encaminhado ao Departamento de Censura às Diversões Públicas (DCDP). Consta

ainda de cópia do ofício de solicitação de censura, cópia do certifi cado de censura

com data de Nov-77, válido até Nov-82. Há também um parecer de Censor, uma fi cha

de acompanhamento. Há correções manuscritas às páginas, feitas antes da reprodu-

ção. Datado de 1977 e assinado, ao fi nal por Jurema Penna.

Há dois datiloscritos que coincidem em sua totalidade, sendo possível desconsi-

derar um destes, restando um, denominado, TD2. Trata-se de uma cópia datiloscrita

mimeografada a óleo, datada de 1977 e assinada ao fi nal por Jurema Penna, depo-

sitada no Espaço Xisto Bahia. Composto por 27 folhas, acompanhado de ofício de

solicitação de censura, certifi cado de censura (Nov-77 a Nov-82) e cordel de divulga-

ção do espetáculo (1988). Consta de carimbos da FCEBA, da Cia Bahiana de Teatro,

do Departamento de Polícia Federal (DPF) e da Sociedade Brasileira de Autores

Teatrais (SBAT). Não há anotações manuscritas. Intervenção manuscrita à folha 9,

a caneta de tinta verde, entre as linhas 13 e 14 e 28 e 29. A presença dos carimbos da

FCEBA-Banco de textos e da Cia Bahiana de Teatro indicam que esta cópia per-

tenceu ao banco de textos destas instituições antes de serem depositadas no Espaço

Xisto Bahia.

Tratam-se das três vias encaminhadas pela dramaturga para que se estabelecesse

o processo de censura. Destas, duas retornavam ao remetente, acompanhadas pelo

certifi cado de censura e suas folhas recebiam o carimbo do DPF e rubrica.

O terceiro testemunho datiloscrito (TD3) é também composto por 27 folhas e pos-

sui correções manuscritas acréscimos manuscritos ao texto e anotações de cena em

todas as folhas, feitas a tinta azul e preta. Estas anotações dizem repeito a marcações

5 Tradução nossa: «os testemunhos são efetivamente indivíduos históricos, com uma fi sionomia própria, portadores, em seu cerne, de eloquentes pistas e dados sobre onde foram compostos, quem os encomendou ou possuiu, quem foram os copistas, os impressores, os leitores, que tipo de papel e de letra foi utilizado, em que tipografi a etc. Tudo isso nos proporciona, seguramente, uma informação muito interessante para a história cultural, mas também muito rica e aproveitável sob a perspectiva da pura crítica textual.»

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de cena («Maria toma as ventoinhas de S. Mané» f. 4), nesse caso, nota-se o uso que o

ator faz do suporte material durante o levantamento da cena, convertendo o script da

peça em um ponto de apoio mnemônico, tornando-o um lugar para registrar a cena.

Nesse sentido, se a didascália tem como função antever o movimento na cena teatral

no momento da leitura do texto, as anotações realizadas durante a construção da cena

registram um movimento de cena que efetivamente ocorreu e que deve ser repetida

nos próximos espetáculos, pelo menos em tese.

Há também marcas no texto da peça que dão conta de atualizá-lo, corrigir even-

tuais erros de datilografi a, ou ainda marcações de pausas com o ritmo da peça. Estas

intervenções bem como a dispensa da encadernação confi rmam a fl uidez que carac-

teriza o texto teatral, objeto de trabalho do ator, a ser marcado, riscado, rasurado,

corrigido, reformulado, manuseado. Não há distância ou reverência a esse texto, e

durante a passagem do plano escrito ao oral, mediada pela cognição do ator, as pala-

vras ganham vida, que deixa vestígios no texto, como se pode observar nas fi guras

abaixo:

Figura 1 – Marcas cênicas no texto datiloscrito de O bonequeiro Vitalino.

Fonte: Folha 1, TD3, datiloscrito depositados no Espaço Xisto Bahia.

O script da peça pode também tornar-se suporte para o registro de outros ele-

mentos que não o texto. O quarto testemunho (TD4) traz no verso das suas folhas

diversos desenhos que variam de ilustrações de adultos a ilustrações infantis. Até o

presente momento, não foi possível defi nir quem realizou os desenhos nem seu propó-

sito, no entanto pode-se conjecturar que seriam eles representativos dos personagens

da peça, ou ainda, que simplesmente apenas dialogam com os desenhos infantis, na

tentativa de entreter crianças.

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Figura 2 – Desenhos no verso das folhas do texto datiloscrito de O bonequeiro Vitalino.

Fonte: TD4, verso das folhas 3, 16 e 12, datiloscrito depositado no Espaço Xisto Bahia.

O testemunho impresso (T IMP) é composto por 15 lâminas dobradas em for-

mato de fólio, medindo 250 mm x 205 mm não encadernadas, acondicionadas em uma

pasta de papel de alta gramatura em tom ocre, que, dobrada em quatro partes, fun-

ciona como capa, contra-capa e orelha, onde há o prefácio para o livro. A capa traz o

título e subtítulo à margem superior, uma fotografi a da cerâmica de Mestre Vitalino,

ao centro, à margem inferior o nome da autora. As lâminas são impressas em recto

e apresentam na primeira página uma fotografi a das cerâmicas de Mestre Vitalino,

seguidas da página com o texto, excetuando-se a primeira em que há a descrição do

cenário. Não há numeração de página. Publicação realizada pelo departamento de

Assuntos Culturais da Prefeitura Municipal de Salvador, datada de 29 de março 1978,

na ocasião das comemorações pelo aniversário da cidade de Salvador.

Durante as décadas de 1960-1980, as publicações de textos teatrais em formato de

livro eram escassas, um dos maiores veículos de divulgação impressa dos textos tea-

trais era a Revista de Teatro, a maioria dos textos circulava por meio de cópias dati-

loscritas. Nesse contexto, vale refl etir acerca do projeto editorial de O Bonequeiro Vitalino... no qual Jurema Penna abre mão da encadernação e publica um texto de

teatro em folhas não encadernadas. Este gesto, de alguma forma, faz permanecer

no impresso o caráter móvel do texto teatral em sua forma datiloscrita, composto de

folhas soltas.

Dentre os testemunhos localizados, observam-se duas versões diferentes do texto,

com exceção de T4, todos os testemunhos apresentam a versão do texto impresso.

As modifi cações entre as duas versões dizem respeito à subdivisão de réplicas, aos

acréscimos e às supressões.

O Bonequeiro Vitalino… conta ainda com uma ampla documentação paratextual

que inclui diversas matérias de jornais e fotografi a dos espetáculos. A fi m de ilustrar

a importância dessa documentação na suplementação da leitura do texto teatral, veja-

-se a descrição apresentada por Vieira Neto no início do espetáculo, confrontada ao

texto:

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O som da zabumba, com seu ritmo quente contagiante, se faz presente logo no início do

espetáculo, quando os atores surgem na plateia, travestidos de vendedores de feira, apregoan-

do com muito humor, as suas mercadorias. Todos saltitantes e alegres [...] (VIEIRA NETO,

1978). 

A descrição de Vieira Neto confere outra tônica à leitura do texto, suplementando

a descrição do cenário: «O espetáculo se inicia com os atores chegando ao espaço

cênico (rua, praça, adro, ou interior de igreja, o palco, etc.) trazendo seus apetrechos,

suas mercadorias, mercando, cantando seus pregões» (PENNA, 1978, 2).

Mediante esse contexto, acredita-se que a edição para a referida peça deve apre-

sentar a diversidade textual que fora brevemente relatada acima, de maneira a dar a

conhecer a história da circulação desse texto na sociedade baiana, bem como o papel

do texto teatral como documento material e suporte de registro não somente do texto,

mas também do cotidiano e das práticas que envolviam o teatro baiano nas décadas

de 1970 e 1980.

Passa-se a apresentar esquematicamente a proposta de edição para a peça O Bonequeiro Vitalino..., de Jurema Penna6. Pode-se acessar a edição por meio de um

navegador de internet, na página inicial (Cf. fi gura 3) haverá um menu de onde se

pode ir às orientações para a navegação e um texto explicativo acerca da estrutura da

edição. Serão apresentadas três possibilidades de edição: a edição crítica, o confronto

sinóptico, e os fac-símiles, ao clicar em cada um desses links, o leitor será levado a

uma página em que escolherá qual texto irá ler (Cf. fi gura 4).

6 A edição de O bonequeiro Vitalino se insere no contexto do projeto de Doutorado intitulado Edição em meio digital e estudo da obra dramática de Jurema Penna, desenvolvido por esta pesquisadora, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura/UFBA. O projeto prevê a edição de outros quatro textos, a saber, Bahia Livre Exportação, Yemanjá, a rainha de Ayocá, Negro amor de rendas brancas, Dona Clara Clareou.

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Figura 3 – Esquema da página inicial da edição

Figura 4 – Esquema de acesso à edição crítica

Fonte: Autoria própria.

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Na edição crítica de O bonequeiro Vitalino…, apresenta-se o texto crítico, acom-

panhado de um aparato de notas com características diversas, marcadas à margem do

texto e sinalizadas com cores diferentes (LOPES; FERREIRA, 2011). Conforme se

observa na fi gura 5, as notas que se referem a um paratexto estão sinalizadas na cor

salmão, ao se passar o mouse sobre a palavra que contém a nota, haverá um destaque

na mesma cor, ao clicar sobre a palavra, outra janela se abrirá com o paratexto a que

ela se refere. Vale ressaltar que a documentação paratextual reúne textos de jornal,

fotografi as, canções etc., estas são importantes por suplementar a leitura do texto.

Figura 5 – Texto editado e aparato de notas (paratexto)

Fonte: Autoria própria.

A marcação em roxo é utilizada para apresentar as intervenções editoriais no

texto, assim, ao se passar o mouse sobre a palavra corrigida, esta aparecerá em uma

pequena caixa, sobre o ponteiro do mouse (Cf. fi gura 6).

Figura 6 – Texto editado e aparato de notas (correções do editor)

Fonte: Autoria própria.

Como só há duas versões do texto, o confronto sinóptico será realizado com os

textos trazidos pelo testemunho impresso e pelo testemunho TD4. Conforme a fi gura

7, à esquerda têm-se o testemunho TD4 e, à direita, T IMP, abaixo deles há os comen-

tários do editor e um link para a aplicação Google Drive, de posse de uma conta no

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Google, o leitor pode realizar o login e fazer suas próprias anotações durante a leitura

do confronto sinóptico (RESIDE; LORD, 2012), trata-se de uma tentativa de trazer a

presença do leitor para a tela, uma ferramenta que coaduna com a característica ativa

que constitui o leitor.

Nesta tela, as transcrições dos testemunhos estão segmentadas por folhas, o lei-

tor deve utilizar as setas para avançar ou retroceder no texto. Note-se que cada um

dos quadros possui um par de setas para avançar ou retroceder, visto que as páginas

dos testemunhos podem não apresentar textos coincidentes. Por sua vez, os comen-

tários do editor também se apresentam por página, trata-se de uma tentativa de dar

a conhecer a leitura crítica que orientou o editor na construção da edição. Estes tam-

bém se encontram segmentados por folha, acredita-se, que esta segmentação torna a

leitura em aparelhos eletrônicos menos cansativa.

Figura 7 – Confronto sinóptico

Fonte: Autoria própria.

No confronto sinóptico também é possível acessar os fac-símiles dos testemunhos

clicando na indicação das folhas/páginas, em cada uma das divisões da tela. Abre-se

então uma janela com a imagem do fac-símile, que pode ser ampliada para facilitar

a leitura. Os fac-símiles, nesse contexto, tornam-se importantes, pois trazem para o

confronto sinóptico a dimensão material de cada um dos testemunhos.

Quanto à apresentação dos fac-símiles, opta-se por acompanhá-los de notas edi-

toriais concernentes à materialidade do texto. É nesse espaço que o editor poderá

SANTOS DE ALMEIDA / BORGES DOS SANTOS

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sinalizar para o leitor alguns indícios sobre a composição desse texto neste suporte

material, seus usos e funções, que atores sociais e instituições deixaram suas marcas.

Figura 8 – Fac-símiles acompanhados de notas editoriais

Fonte: Autoria própria.

4. Considerações fi nais

Como afi rma De las Heras (1991, 2) em sua metáfora para o leitor-navegador,

El barco es el interfaz situado entre dos medios. De la misma manera, el nuevo navegante

debe crear unos interfaces que permitan, a través de una pantalla, mover se por la informa-

ción, llegar a un determinado punto, trazar una singladura y un recorrido más o menos largo

por la información contenida, y todo sin perder la orientación ni naufragar. Sin estos interfa-

ces, que exigen para su construcción mucho ingenio y originalidad por estar ante problemas

nuevos, nos veríamos condenados a quedarnos a la orilla de unos soportes de muy alta densi-

dad de información, sin poder navegar por ella.

Nesse sentido, faz-se necessário que os fi lólogos se empenhem em conceber novas

ferramentas e interfaces de maneira a explorar o hipertexto e o seu caráter múltiplo,

multimodal e alinear, a fi m de divulgar e dar a conhecer os textos legados por uma

dada sociedade, como forma de conhecer sua língua, sua cultura e suas ideologias.

A proposta aqui apresentada constitui-se como uma primeira tentativa de tes-

tar a plasticidade do meio digital na construção de uma edição para o texto teatral

censurado de Jurema Penna. Acredita-se que esta proposta coaduna com o objetivo

CILPR 2013 – SECTION 13

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principal de um estudo fi lológico, qual seja, ler, interpretar, editar e dar a conhecer a

produção literária de uma sociedade. Ao se coordenar as possibilidades engendradas

pelo hipertexto com as necessidades de apresentação do texto editado, acredita-se ser

possível representar a diversidade de elementos que constitui a rede de sentidos na

qual um texto se insere. Além disso, a apresentação da materialidade do texto e dos

meandros de sua constituição e circulação são fundamentais para localizar o leitor no

conjunto de práticas que envolviam o teatro baiano em tempos de ditadura militar.

Universidade Federal da Bahia Isabela SANTOS DE ALMEIDA

Universidade Federal da Bahia Rosa BORGES DOS SANTOS

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