A Construção de Um Aparelho Vocal Em Um Adolescente Psicótico

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 405  A construção de um apar elho vocal em um adolescente psicótico: resultado terapêutico da Apresentação de Pacientes 1  Ana Lydia Santiago Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação – Conhecimento e Inclusão Social/FaE/UFMG. End.: Rua Windsor, 60, Vila Castela. Nova Lima, MG. CEP: 34000-000. E-mail: [email protected]  Ana Maria Costa da Sil va Lopes Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia – Estudos Psicanalíticos/Fach/UFMG. End.: Av . Contorno, 5 351/1403. Belo Horizonte, MG. CEP: 30110-100. E-mail: [email protected] , [email protected] Resumo O presente trabalho apresenta os resultados terapêuticos da  Apresent ação de pacient es em um adolesce nte psicóti co, atendid o em um Serviço de Saúde Mental. A Apresentação de Pacientes  praticad a neste Serviço inscreve -se como metodolo gia de pesquis a  para a análise diagnóstica e intervenção terapêutica de casos de crianças e adolescentes considerados “criança-problema” em REVISTA M  AL-ESTAR E SUBJETIVIDADE – FORTALEZA – V OL. VII – Nº 2 – P . 405-416 – SET  /2007

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Estutura psicótica

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    A construo de um aparelho vocal em um adolescente psictico: resultado

    teraputico da Apresentao de Pacientes1

    Ana Lydia Santiago

    Professora do Programa de Ps-Graduao em Educao Conhecimento e Incluso Social/FaE/UFMG.

    End.: Rua Windsor, 60, Vila Castela. Nova Lima, MG. CEP: 34000-000.

    E-mail: [email protected]

    Ana Maria Costa da Silva Lopes

    Mestre em Psicologia pelo Programa de Ps-Graduao em Psicologia Estudos Psicanalticos/Fafich/UFMG.

    End.: Av. Contorno, 5351/1403. Belo Horizonte, MG. CEP: 30110-100.

    E-mail: [email protected], [email protected]

    ResumoO presente trabalho apresenta os resultados teraputicos da Apresentao de pacientes em um adolescente psictico, atendido em um Servio de Sade Mental. A Apresentao de Pacientes praticada neste Servio inscreve-se como metodologia de pesquisa para a anlise diagnstica e interveno teraputica de casos de crianas e adolescentes considerados criana-problema em

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    funo das dificuldades manifestadas para a educao e para o tratamento clnico. Trata-se de um Projeto de Pesquisa, Ensino e Extenso da Universidade Federal de Minas Gerais em parceria com a Secretaria de Sade da cidade de Belo Horizonte e o Instituto de Psicanlise e Sade Mental de Minas Gerais. A proposio desse espao clnico surge como um recurso diante da emergncia de uma dificuldade prpria instalao da transferncia na psicose, que a manifestao de fenmenos de carter persecutrio na relao com o analista. O valor clnico da entrevista atestado pelo surgimento de algo inusitado na busca da emergncia do sujeito. A voz fona do sujeito convocada para representar o seu eu e isola-se, ento, um elemento inicial a partir do qual o paciente constri uma fico sintomtica para aparelhar o gozo e mobilizar o real do gozo do Outro. O que constitui o efeito teraputico da Apresentao de Pacientes, nesse caso, a possibilidade de este sujeito poder se representar por meio da construo de um aparelho vocal mediador, que lhe torna possvel a relao com o semelhante.

    Palavras-chave: psicose, adolescncia, resultados teraputicos, Apresentao de Pacientes, psicopatologia psicanaltica.

    AbstractThis work presents the therapeutic results of Patient Introduction to a psychotic adolescent taken care of in a Mental Health service. The proposal of this clinical case appears as a resource for the emergency of a proper difficulty to the installation of the transference in the psychosis, which is a manifestation of persecutory character phenomena in the relation with the analyst. The clinical value of the interview is certified by the appearance of something unusual in the subjects search for emergency. The subjects aphonic voice is evoked to represent himself and then it is isolated, so, an initial element from which the patient constructs a symptomatic fiction in order to construct the joy and to mobilize the true joy of the Other. What constitutes the therapeutic effect of the patient introduction, in this case, is the possibility of the subjects presentation by means of a vocal mediating device that allows the relation with others.

    Keys words: psychosis, adolescent, therapeutic results, Patient Introduction, psychopathology psychoanalytical.

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    IntroduoA Apresentao de Pacientes pode ser pensada como um

    espao clnico prprio, marcado pelo ato analtico e seus efeitos. Sua diretriz tica consiste em fazer surgir o efeito sujeito, sus-tentado por um rigor que no questiona as referncias clnicas que fundamentam o trabalho dos tcnicos em Sade Mental. Na Apresentao de Pacientes promovida por Lacan, o paciente quem ensina por meio de seu discurso e espera-se, da investiga-o que se abre no curso restrito da entrevista, que algo inusitado se manifeste na relao do paciente entrevistado com aquele que o entrevista. No entanto, para que algo possa surgir, preciso, antes de qualquer coisa, que o entrevistador esteja despojado do saber prvio sobre o que advm ao paciente. O valor clnico da entrevista atestado apenas pelo surgimento desse algo inusitado, ou seja, pela produo em ato, no curso do prprio exerccio da entrevis-ta, de um efeito de surpresa, que permite uma interveno direta sobre a situao do paciente ou fornece elementos para nortear in-tervenes no caso. O efeito de surpresa, segundo Jacques Lacan, pode surgir do lado do paciente, do lado do analista ou do pbli-co de analistas e no-analistas, que nada sabem sobre o caso, e que se torna testemunha dos possveis efeitos que decorrem do encontro do analista com o paciente (Santiago, J., 2000)2. A expe-rincia tem demonstrado que o que ocorre um momento clnico singular e os efeitos sero construdos pelo prprio sujeito, como resultado de um encontro pontual com um analista.

    O casoFausto segundo filho e nasceu de um romance da me

    com um homem casado. Ele tem uma irm mais velha, fruto do re-lacionamento de sua me com o primeiro namorado dela. Aps a concepo de cada uma dessas crianas, essa mulher foi abando-nada pelo companheiro, encontrando-se, segundo suas palavras, inteiramente s a cada vez que engravidava. Sua irm foi regis-trada como filha de me solteira, mas Fausto carrega o nome de seu pai, pois a me conseguiu convencer a escriturria do cart-rio de que se tratava no de um sobrenome, mas do nome prprio de um irmo, j falecido. Seu nome no registro de nascimento Fausto Alberon da Silva, sendo o Alberon o sobrenome do geni-

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    tor e o da Silva, o sobrenome paterno da me. Ela sabia que seu segundo filho seria um menino e tinha certeza de que esse meni-no no seria normal. Conforme esclarece a me, todos os filhos de seu prprio pai geraram uma criana com problema.

    Ao tentar enumerar os 19 irmos e seus respectivos filhos, ela nem sempre consegue informar a anomalia caracterstica de cada um deles. Pouco importa. A anormalidade , pois, o que inscreve Fausto na linhagem paterna da me e pode ser um fato como se verifica no relato da mulher , mas, certamente, uma fico, ou seja, um meio de tratamento do real. Os mdicos no en-contraram nada de errado em Fausto. Nas tomografias tampouco. Sade normal, desenvolvimento normal, indicou-se, conseqente-mente, pr-escola normal.

    Contudo, para sua me, a sonoridade de seu primeiro choro, seu reflexo de suco, quando veio ao seio pela primeira vez, e, mais tarde, a aquisio do andar com 14 meses, bem como seu jeito de brincar, eram sinais evidentes de algum tipo de paralisia. Tudo em Fausto falava de uma deficincia. Durante 19 anos, sua me se ocupa dele, sempre reafirmando a anormalidade da crian-a. Carrega-o para cima e para baixo, determina o que ele quer comer, fazer e dizer. Certo dia, durante um trajeto de nibus, ela entrega-se a devaneios e, distrada, perde o ponto em que plane-java descer. Quando se d conta disso, levanta em sobressalto, gritando e puxando Fausto pela mo. Este responde aos gritos assustados de sua me apertando-lhe o pescoo. Ela tem dificul-dade de control-lo e, s ento, percebe que ele j um homem grande. Sente medo e inquieta-se com a atitude dele. Finalmente, no entanto, procura uma escola especializada para o filho, que o encaminha, em poucos meses, para um centro de tratamento mdico-psicolgico.

    Assim, Fausto chega ao Centro de Referncia da Infncia e da Adolescncia CRIA3. A presena dele e de sua me no sa-guo de espera desse Centro, causa impacto a todos os tcnicos presentes: um rapaz, de 1,90m de altura, deitado em posio fetal em um banco da sala, tendo a cabea apoiada no colo de sua me. Esta, uma mulher de pouco mais de 1,50 de altura, alm de pe-quena sobretudo em comparao ao filho , era muito franzina. Ao ouvirem o chamado, Fausto e a me levantam-se e, pela proxi-

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    midade fsica, mais parecem um bloco monoltico adentrando na sala de consulta. Sentam-se lado a lado e ele curva-se lentamente, buscando apoio para sua cabea no colo da me. No responde s perguntas que lhe so endereadas, no dirige o olhar a quem per-gunta. Ouve-se apenas a evocao de um murmrio muito baixo, sem significado comunicativo, como se falasse para si mesmo. As sesses transcorrem na presena da me, que fala o tempo todo. Mesmo diante desse quadro, o analista no deixa de manifestar seu interesse em escutar Fausto, interrompendo, de tempos em tempos, o discurso incessante da me, para convid-lo a se mani-festar. Com isso, observa-se uma passagem da mucitao inicial a uma atitude de pararresposta, que, como explicita Henry Ey, um distrbio da linguagem caracterstico dos esquizofrnicos, no qual se capta concretamente a discordncia, as respostas absurdas, desconcertantes, sem relao com a pergunta (Henry Ey, 1981). Assim, quando interrogado, Fausto responde algo com a inflexo verbal de uma resposta, porm o contedo do que diz dispara-tado em relao ao que lhe perguntado. Outras vezes, adota a repetio montona de palavras ou frases faladas pela me: T, No sei, No sei de nada, Seu burro, Seu nada.

    Com o transcorrer do tratamento, Fausto comea a imitar a entonao das vozes de homens eminentes da vida poltica e dos programas de televiso. Essa atitude comea a ser adotada, tambm, na escola, onde ele caminha pelos corredores tentan-do comunicar-se com os colegas por meio da reproduo dessas vozes, sem encontrar, porm, um receptor. No tratamento, esse endereamento seguido da introduo de uma outra frase da me: Pai t morto e enterrado. Essa era a explicao dada, por ela, para o desaparecimento do pai dele. Fausto insiste nessa pa-rarresposta, a ponto de sua me queixar-se ao analista do fato de ele comear a repetir essa frase a partir do momento em que dei-xava sua casa em direo ao Centro de tratamento. Sempre que interrogado a esse respeito, repetia a mesma frase: Pai t morto e enterrado. Na transferncia, interroga essa prerrogativa materna, manifestando, ao mesmo tempo, a misria relativa a esse direi-to especial de ter um pai morto e enterrado. Assim, passa a dizer que no tem nada, que foi roubado e a pedir, insistentemente, um vale-transporte, um dinheirinho ou mesmo um pouquinho de Haldol. Permanece nessa demanda por um tempo, at que, em

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    uma sesso, invadido por uma alucinao visual, com uma per-cepo delirante. Mostra-se assustado, repentinamente, fazendo meno a uma santa que o estaria perseguindo e queria devo-r-lo. Essa santa seria, tambm, a assassina de seu pai e, para defender-se dela, Fausto planeja a construo de uma espada. Ele a faria engolir a espada e, assim, aniquilaria, de um s golpe, a santa e o mal que o devorava. Desde esse dia, instala-se o car-ter persecutrio da transferncia na psicose. Voc me chamou? Lana a pergunta do nada. Voc t me olhando, afirma. Voc t gozando de mim; acha que sou palhao. O analista passa a en-carnar o outro perseguidor, que tambm trama a morte de seu pai e a dele prprio.

    At este momento do tratamento, Fausto manifesta uma al-terao da estruturao do pensamento e a m coerncia de seu contedo psquico se revela em sua expresso verbal. Inicialmente, a interlocuo, para ele, impossvel; ele apresenta um mutismo interrompido por impulsos verbais e pararrespostas e uma conver-sao singular, na forma de um monlogo, inadequado situao (Henry, Ey, 1981). O tratamento analtico permite a Fausto realizar uma passagem do mutismo e das parrespostas repetio do dis-curso de homens eminentes. Este caminho o conduz ao fenmeno de alucinao auditiva. Fausto percebe uma voz que no existe percepo do objeto inexistente, que a alucinao propriamente dita , e a interpreta como sendo a voz do analista chamando-o, querendo gozar dele, achando que ele um palhao. Fausto loca-liza, ento, a voz no outro e constri uma interpretao delirante de contedo persecutrio. Concomitantemente, instala-se a ero-tomania4, tal como descrita por Freud, no aquela em que se trata da afirmao da paixo do indivduo (ele me ama, eu o amo), mas a que o leva, inconscientemente, a se colocar contra o objeto (eu no o amo, eu o odeio) (Freud, 1913).

    preciso, diante da emergncia dos primeiros indcios da erotomania de Fausto que a forma caracterstica de manifesta-o da transferncia na psicose , reduzir o nmero e a durao das sesses e evitar o silncio prolongado, para no facilitar a projeo do perseguidor sobre a pessoa do analista. Providencia-se, ainda, o encaminhamento do paciente para outros espaos teraputicos institucionais como o Centro de Convivncia e as

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    Oficinas. Desde o momento em que a relao de transferncia precipita o desencadeamento do delrio e revela, no analista, a perturbao da relao do psictico com o outro, torna-se neces-srio minimizar esse efeito, e a estratgia adotada, para isso, tem sido o recurso prtica feita por vrios (Miller, 1997). Esta estrat-gia, que consiste em permitir ao paciente psictico ter, ao mesmo tempo, vrios profissionais dedicados a seu caso, cada um se-guindo a orientao que prpria sua especialidade, visa, em ltima instncia, pluralizao da transferncia. Ao manter conta-to com vrios profissionais, o sujeito v-se em um intervalo quanto ao saber consistente que edifica sua certeza subjetiva. Cada um dos diversos tcnicos fica situado em uma posio de saber-no-saber, favorvel ao quadro do paciente (Baio,1999). Por outro lado, impe-se uma questo: frente a essa dificuldade caracterstica do tratamento da psicose, como no ceder ao desejo de apostar na existncia do sujeito e de garantir o prosseguimento do processo de cura iniciado? Com o espaamento das sesses, Fausto retor-na ao estado em que enderea aos outros a entonao das vozes. Sua permanncia decidida nesse estado e a dificuldade que a transferncia tinha revelado levam proposio da Apresentao de Pacientes, que se caracteriza, portanto, como um recurso para intervir no impasse, na direo do tratamento. Fausto aceita, com entusiasmo, participar dessa atividade, em que seria entrevistado por um analista vindo de outra instituio, exclusivamente, para en-contr-lo. No se ope presena de um pblico nessa ocasio. Ao contrrio, aguarda ansioso por esse dia.

    Ressalta-se, neste caso, a demonstrao clnica da afirma-o de Lacan de que o psictico tem o objeto sua disposio, no real, e por isso no o demanda, pois ele o prprio objeto a ser go-zado pelo outro. Um gozo explcito, no interditado, em relao ao qual no deixa de existir uma relao com a linguagem que convm escutar. A significao do que se diz depende e est concentrada na voz alucinada da esquizofrenia ou da esquizofrenia paranide ou da idia delirante da parania. Nesse sentido, a alucinao ou o fenmeno elementar o mais caracterstico do sujeito, que nos fala do lugar da linguagem. A alucinao uma resposta que apa-rece no real, no lugar de uma pergunta impossvel de formular: o que sou? O psictico sujeito de uma certeza, no h equivoco

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    na alucinao, no h a diviso pelo inconsciente (Miller, 1985). No caso de Fausto, no momento da alucinao, ele tomado pelo sig-nificante T gozando de mim?, Acha que sou palhao? , que no remete a um outro significante, mais a um real, surgindo como certeza para o sujeito, que se apresenta, ento, como viti-ma de um gozo sem mediao. A resposta sobre seu ser Sou palhao? para ele insuportvel, pois revela sua designao como objeto de gozo. nesta circunstncia que o gozo proje-tado no campo do Outro, realizando a formula da transferncia. Em outros termos, na psicose o Outro julgado gozar. Ao analis-ta oferecido o lugar de suplente, de competidor com as vozes. O lugar de perseguidor, o que sabe e ao mesmo tempo goza do sujeito psictico. Se o analista a se instala o que advm a ero-tomania mortfera. Nesse sentido, o espaamento das sesses uma forma do analista dizer no a esse lugar de Outro do gozo. Ao propor a Apresentao de Enfermos5, o que se visa introduzir, novamente, a dimenso do no saber, da no compreenso, o que conseqentemente retira o analista da posio do outro gozador, reabrindo o espao para a continuidade do tratamento e a possi-bilidade de estabilizao da psicose (Kaufmanner, 1999).

    A entrevistaEntra na sala conduzido pelo entrevistador e toma assento

    diante do pblico. Em seguida lhe informado, a ttulo de intro-duo, o que se pretende com a atividade, ao que ele responde, fazendo sinal afirmativo com a cabea.

    Voc pode dizer seu nome completo? Fausto Alberon da Silva. (Fala de forma pouco

    compreensvel).

    Voc poderia dizer-nos por que veio tratar-se, aqui, no CRIA?

    Eu? (Ele se interroga, batendo os dedos no prprio peito). . Voc. Eu? . Voc. Estamos querendo saber o que lhe acontece. Eu?

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    Segue-se a reproduo da entonao da voz do Presidente da Repblica, at ser interrompido, depois de alguns minutos, por outra pergunta.

    Voc sempre responde s perguntas que lhe so fei-tas com a voz do Presidente?

    Eu? . Voc. Eu?

    A essa segunda pergunta segue-se a reproduo da ento-nao da voz de um conhecido apresentador de programas de auditrio para a televiso, at ser interrompido por uma terceira questo.

    Durante toda a atividade, Fausto responde s perguntas do entrevistador sempre da mesma maneira: primeiro, certificando-se de que se queria saber algo sobre ele mesmo com a interrogao Eu? e, em seguida, evocando vozes de pessoas de destaque so-cial ou poltico. No dizia palavras nem frases com sentido, apenas reproduzia a entonao das vozes dessas pessoas. A entrevista dura pouco tempo e, ao sair, ele agradece sinceramente ao pbli-co presente, como se tivesse sido aclamado. Abraa sua analista, beija-a na face, dos dois lados, inclina-se diante do pblico por duas vezes e, finalmente, deixa a sala com um sorriso enigmtico estampado no rosto.

    Inicialmente, pensa-se que a atividade tinha sido malograda. Entretanto os resultados teraputicos que se produzem a partir da entrevista revelam um efeito de surpresa que se manifesta por parte do paciente. Na sesso seguinte, entrando com sua me, como de costume, logo que esta comea a falar, ele a interrompe dizen-do: Alto l. Agora, eu tenho a minha voz. Desse dia em diante, o sujeito comea a falar, aparelhado de voz prpria. Pouco tempo depois, comea a interessar-se por aparelhos celulares de brin-quedo, com os quais ir mediar sua relao com os semelhantes. Anda pelos corredores do Centro de atendimento conversando, a torto e a direito, pelo celular e demonstrando, assim, ter cria-do interlocutores de verdade. Na seqncia, passa a freqentar a Oficina de Rdio da instituio com bastante entusiasmo. Depois disso, a cada dia, no se direciona mais para o seu atendimento,

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    sem, antes, passar pela Oficina de Rdio, para reproduzir sua voz ao pblico dessa Oficina.

    Evidencia-se, portanto, a funo da voz, que, no incio, re-tornava metonimicamente como alucinao auditiva perturbando o sujeito como um imperativo. Em um segundo momento, a voz loca-liza-se no outro semelhante, na forma de uma alucinao auditiva associada a uma interpretao delirante, para, finalmente, adquirir um valor de estabilizao, na medida em que h uma circunscrio do gozo, ou seja, sua ordenao por meio de um aparelho cons-trudo pelo sujeito que denominamos aparelho vocal atravs do qual ele intermedia a relao com os outros, sem ser invadido pelos fenmenos prprios estrutura psictica. Na entrevista, ve-rifica-se que a voz fona do sujeito convocada para representar seu prprio eu. Surge, ento, a tentativa onomatopica de se re-presentar representar o homem grande que ele para a me , imitando, fielmente, os sons do mundo, os sons da voz de homens importantes com seu aparelho fonador, sem, necessariamente, ar-ticular a emisso vocal da maneira como usualmente utilizada na lngua. Essa representao do eu indita, promovida pela situao da entrevista, que coloca em cena um pblico receptor da voz e o prprio registro da voz na fita gravada, isola, para Fausto, um elemento inicial, a partir do qual ele constri uma fico sintomtica para aparelhar o gozo e para mobilizar o real do gozo do Outro.

    Pode-se supor, neste caso, que as prprias condies de realizao da atividade de apresentao de Pacientes uma en-trevista com o paciente, diante do pblico do servio, em que o paciente tem a oportunidade de fazer um testemunho sobre aquilo que lhe sobrevm, a um terceiro, externo instituio interessa-do em seu caso , operam um distanciamento entre o sujeito e a invaso que ele experimenta em relao ao outro. Na entrevista com Fausto, no passou desapercebido seu interesse pelo pe-queno aparelho gravador, com o qual se registrava sua voz. A voz que, anteriormente, se apresentava como alucinao auditiva e re-tornava no real do corpo, ao ser destacada do sujeito, isolada por meio do aparelho gravador, sofre uma operao que consiste na ordenao da emisso sonora at o smbolo e a inscrio da voz, no mais como rgo invasor, mas como aparelho vocal, capaz de intermediar a relao do sujeito com o outro. Deste modo, o

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    sujeito constri um nova fico Alto l, eu tenho a minha voz que intervm sobre a relao dual do sujeito com a sua me, que o situa distncia do objeto obscuro que ele representa na fan-tasia materna.

    Em relao s psicoses, considera-se, portanto, que a fic-o uma construo fundamental, na medida em que permite conjugar o gozo como real. O sujeito no se encontra aparelhado da significao flica que se deduz da estrutura simblica da me-tfora patena. Ao contrrio do neurtico, que pode produzir uma fico apoiando-se na estrutura simblica, aparelhado pela signi-ficao flica, o psictico dever inventar uma maneira para tratar o real (Santiago, A.L., 2001). O caso de Fausto demonstrativo da fico, na psicose, como um tecido produzido pelo sujeito, para ele dar conta do lugar em que apreendido no Outro. Portanto, o efeito teraputico da Apresentao de Pacientes, neste caso, con-siste na possibilidade de o sujeito poder se representar por meio da construo de um aparelho vocal mediador, que lhe torna pos-svel a relao com o semelhante.

    Notas1. Trabalho apresentado no II Encontro Americano, sob o tema

    Os resultados teraputicos da Psicanlise. Buenos Aires, Argentina, julho 2005.

    2. Santiago, J. (2000). Notas sobre o fundamento clnico da apresentao de enfermos. Curinga, 14, 80-83.

    3. rgo da Secretaria Municipal de Sade de Belo Horizonte.

    4. A erotomania foi descrita por Clrambault como a iluso delirante de ser amado, colocou em evidncia, nesta estrutura tpica do delrio passional sistematizado, os postulados fundamentais da paixo amorosa e os temas derivados que definem as trs fases da evoluo da psicose: estado de esperana, estado de despeito,estado de rancor. Os sentimentos gerados do postulado fundamental so: o orgulho, o desejo e a esperana.

    5. A prtica da Apresentao tem sido utilizada mensalmente no CRIA, h 8 anos, para fins de diagnstico e orientao clnica dos casos examinados.

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    Recebido em 14 de novembro de 2006Aceito em 1 de fevereiro de 2007Revisado em 29 de maio de 2007