A Construção Social da Cor - capítulo 1

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A Construção Social da Cor 17 José D’Assunção Barros 16 * O ensaio em questão foi publicado no número 175 da revista portuguesa Análise Social (BARROS, 2005: 345-366) e em versão ampliada em outra obra do autor, com o título Desigualdade e Diferença (BARROS, 2007). Uma comunicação sobre o tema foi proferida no XII Encontro Regional de História da ANPUH, em 14.08.2006. A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA COR – Diferença Negra e Desigualdade Escrava na formação histórica da sociedade brasileira – 1. Igualdade, Desigualdade e Diferença: três conceitos em interação Na História e nas Ciências Humanas, quanto mais precisos se tornam os conceitos, mais responsabilidade social eles carregam. Há certas palavras que, dotadas de um conteúdo apropriado, podem ajudar a mudar o mundo, e outras que parecem ameaçar perdê-lo. Igualdade, Desigualdade e Diferença são destas noções complexas que interagem entre si de diversas maneiras, e já tivemos a oportunidade de discutir em um ensaio anterior * a idéia fundamental de que a confusão ou conversão de certas Diferenças em Desigualdades, e vice-versa, pode gerar problemas sociais específicos de maior ou menor gravidade. Antes de avançar na questão que conduzirá este ensaio – a da aplicação daquele referencial conceitual ao desenvolvimento da temática da Desigualdade Escrava e da Diferença Negra na formação histórica da sociedade brasileira – será oportuno recolocar alguns desenvolvimentos teóricos importantes . Partiremos de algumas exemplificações, de modo a favorecer uma maior compreensão sobre o que são, efetivamente, “diferenças” e “desigualdades”. Negro e Branco, Homem e Mulher, Brasileiro e Americano, Idoso e Jovem, Cristão e Muçulmano, Operário e Camponês ... todos estes são exemplos bastante claros de “diferenças”. Quando se considera o par ‘Igualdade x Diferença’ (ou ‘igual’ x ‘diferente’), tem-se em vista algo da ordem das essências 1 , ou das modalidades de ser: uma coisa ou é igual a outra (pelo menos em um 1 Estaremos aqui muito longe das teorias essencialistas. Por ‘essências’ estaremos entendendo modalidades de ser construídas e em construção, como logo ficará claro.

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O livro "A Construção Social da Cor" foi publicado em 2009 (Editora Vozes). Neste primeiro capítulo do livro, José D'Assunção Barros elabora uma introdução teórica sobre os conceitos de "igualdade", "desigualdade" e "diferença".

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* O ensaio em questão foi publicado no número 175 da revista portuguesa AnáliseSocial (BARROS, 2005: 345-366) e em versão ampliada em outra obra do autor, como título Desigualdade e Diferença (BARROS, 2007). Uma comunicação sobre otema foi proferida no XII Encontro Regional de História da ANPUH, em 14.08.2006.

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA COR– Diferença Negra e Desigualdade Escrava

na formação histórica da sociedade brasileira –

1. Igualdade, Desigualdade e Diferença: três conceitos em interação

Na História e nas Ciências Humanas, quanto mais precisos setornam os conceitos, mais responsabilidade social eles carregam. Hácertas palavras que, dotadas de um conteúdo apropriado, podem ajudara mudar o mundo, e outras que parecem ameaçar perdê-lo. Igualdade,Desigualdade e Diferença são destas noções complexas queinteragem entre si de diversas maneiras, e já tivemos a oportunidadede discutir em um ensaio anterior* a idéia fundamental de que aconfusão ou conversão de certas Diferenças em Desigualdades, evice-versa, pode gerar problemas sociais específicos de maior oumenor gravidade. Antes de avançar na questão que conduzirá esteensaio – a da aplicação daquele referencial conceitual aodesenvolvimento da temática da Desigualdade Escrava e daDiferença Negra na formação histórica da sociedade brasileira – seráoportuno recolocar alguns desenvolvimentos teóricos importantes .

Partiremos de algumas exemplificações, de modo a favoreceruma maior compreensão sobre o que são, efetivamente, “diferenças”e “desigualdades”. Negro e Branco, Homem e Mulher, Brasileiro eAmericano, Idoso e Jovem, Cristão e Muçulmano, Operário eCamponês ... todos estes são exemplos bastante claros de “diferenças”.Quando se considera o par ‘Igualdade x Diferença’ (ou ‘igual’ x‘diferente’), tem-se em vista algo da ordem das essências1, ou dasmodalidades de ser: uma coisa ou é igual a outra (pelo menos em um

1 Estaremos aqui muito longe das teorias essencialistas. Por ‘essências’ estaremosentendendo modalidades de ser construídas e em construção, como logo ficará claro.

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determinado aspecto) ou então dela difere. Por exemplo, relativamenteao aspecto da nacionalidade, “ser brasileiro” ou “ser americano” sãodiferenças muito bem delineadas. Um indivíduo, em alguns casosextremamente excepcionais, pode até ser as duas coisas – sepensarmos nos casos de “dupla nacionalidade” – mas não pode ser“meio brasileiro” e “meio americano”, a não ser que estejamosutilizando uma figura de retórica, e tampouco é possível encontraruma situação intermediária entre “ser brasileiro” e “ser americano”.No universo de inúmeras nacionalidades possíveis, “ser brasileiro” e“ser americano”, enfim, não são realidades ou pólos que se opõem,mas sim diferenças que se confrontam, cada uma conservando seupróprio espaço de delimitação com referência a uma certa unidadegeopolítica, a uma determinada identidade histórico-cultural, a umacidadania legalmente aceita, e, sobretudo, a um certo local denascimento ou relações de filiação.

Já para aventar exemplos relativos às Desigualdades, podemosopor adjetivos como “Forte” e “Fraco”, “Instruído” e “Analfabeto”,“Rico” e “Pobre”, ou mesmo substantivos como “Liberdade” e“Escravidão”, de modo a evidenciar mais claramente que o contrasteentre Igualdade e Desigualdade refere-se quase sempre não a umaspecto ‘essencial’, mas sim a uma ‘circunstância’. Distintamente daoposição por ‘contrariedade’ que se estabelece entre Igualdade eDiferença, a oposição entre Igualdade e Desigualdade é da ordemdas ‘contradições’. Não se considera um homem pobre ou rico, etampouco muito instruído ou pouco instruído, senão por comparaçãocom um outro homem. E entre o homem mais instruído e o menosinstruído, ou entre o homem mais forte e o mais fraco, se forhipoteticamente possível imaginá-los, existem inúmeros graus (e nãodegraus) que podem ser percorridos. De igual maneira, o homemmais prestigiado pode passar rapidamente a ser socialmente execrado,e a Riqueza pode ser revertida em Pobreza de uma para outra hora.Todos estes pares que tomamos como exemplos remontam a âmbitosrelacionados às desigualdades: são aspectos circunstanciais econtraditórios, mutuamente reversíveis, somente compreensíveis doponto de vista relativizador. As desigualdades, reforçaremos esta idéia,presidem em todos os casos possíveis a relações contraditórias, e nãoa meras oposições por contrariedade.

As contradições, este é o núcleo da questão, são semprecircunstanciais, enquanto os contrários necessariamente se opõem aonível das modalidades de ser. Vale dizer, as contradições são geradasno interior de um processo, aparecem ou se explicitam em umdeterminado momento ou situação, e, de resto, pode-se dizer que ospares contraditórios integram-se dialeticamente dentro dos processosque os fizeram surgir. Por seu turno, os contrários não se misturam(amor e ódio, verdade e mentira, igual e diferente), e desta formafixam muito claramente o abismo de sua contrariedade. Esta distinçãoentre ‘contrários’ e ‘contradições’ traz importantes implicações, e distodependerá toda a argumentação que desenvolveremos neste ensaio.

A implicação mais importante da radical circunstancialidadedas desigualdades, por contraste em relação ao que ocorre com asdiferenças que se afirmam como modalidades de ser, refere-se à altareversibilidade que afeta ou pode afetar estas desigualdades.

Para melhor entendermos isto, será preciso considerar antesde mais nada que as diferenças são inerentes ao mundo humano –para não falar do mundo natural. De modo geral, a ocorrência dediferenças de toda a ordem não pode ser evitada através da açãohumana. Vale ainda dizer que a ocorrência de Diferenças no mundosocial está atrelada à própria diversidade inerente ao conjunto dosseres humanos, seja no que se refere a características pessoais (sexo,etnia, idade) seja no que se refere a questões externas (pertencimentopor nascimento a esta ou àquela localidade, adesão a certa religião,ou então a cidadania vinculada a este ou àquele país, por exemplo).

O reconhecimento da inevitabilidade da ocorrência dediferenças reflete-se no fato de que são bem raros os projetos políti-cos que se proponham a lutar para eliminar certos tipos de diferençascomo as sexuais, etárias ou profissionais (não estamos falando aindada possibilidade de eliminar ou reduzir as desigualdades sexuais,etárias ou profissionais, o que seria uma questão de outra ordem).Com relação às diferenças étnicas, existem no limite os projetos deextermínio, que seguem no entanto sendo excepcionais. Neste extremopode-se exemplificar com o projeto de eugenia proposto por dirigentesdo Nazismo alemão, que preconizava abolir diferenças seja atravésdo extermínio (de judeus, negros, ciganos, eslavos) ou mesmo atravésde experiências genéticas para atingir o tipo “ariano puro”, além de

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2 ARENDT, 1989: 71.

programas de esterilização de indivíduos com características nãodesejáveis. No Brasil da primeira metade do século XX, ideaiseugênicos chegaram a encontrar abrigo no discurso médico através daliderança de Renato Kehl (1923). De todo o modo, a despeito dasdistopias e projetos de extermínio gerados por pesadelos totalitários,pode-se prever que sempre existirão homens e mulheres, diversasvariações étnicas ou identitárias, indivíduos de variadas faixas etárias,bem como profissões as mais diversas. Mas pode-se sonhar que umdia estas diferenças serão tratadas socialmente com menos desigual-dade. Por isto, as lutas sociais não se orientam em geral para eliminaras diferenças, mas sim para abolir ou minimizar as desigualdades.

Enquanto pensar Diferenças significa se render à própriadiversidade humana, já abordar a questão da Desigualdade implicaem considerar a multiplicidade de espaços em que esta pode seravaliada. Avalia-se a Desigualdade no âmbito de determinadoscritérios ou de certos espaços de critérios: rendas, riquezas, liberdades,acesso a serviços ou a bens primários, capacidades. Indagar sobre aDesigualdade significa sempre recolocar uma nova pergunta:Desigualdade de quê? Em relação a quê? Conforme foi ressaltado, aDesigualdade é sempre circunstancial, seja porque esta estaránecessariamente localizada social e historicamente dentro de umprocesso, seja porque estará obrigatoriamente situada dentro de umdeterminado espaço de reflexão ou de interpretação que a especificará(um determinado espaço teórico definidor de critérios, por assimdizer). Falar sobre Desigualdade implica em nos colocarmos em umponto de vista, em um certo patamar ou espaço de reflexão(econômico, político, jurídico, social, e assim por diante). Mais ainda,implica em arbitrarmos ou estabelecermos critérios mais ou menosclaros dentro de cada espaço potencial de reflexão.

Deve-se acrescentar, também, que qualquer noção deDesigualdade não pode ser senão circunstancial em parte porque estãosempre sujeitos a um incessante devir histórico os próprios critériosdiante dos quais a Desigualdade poderia ser pressentida ou avaliada.As noções que afetam o mundo das hierarquias sociais e políticastransfiguram-se, entrelaçam-se e desentrelaçam-se de acordo comos processos históricos e sociais.Um exemplo será particularmenteelucidativo. Nos tempos modernos, os três grandes âmbitos em que

se pode estabelecer uma hierarquia social de qualquer tipo – portanto,os três âmbitos que regem o mundo da desigualdade humana – são aRiqueza, o Poder e o Prestígio (pode-se discutir, ainda, a Cultura, nosentido institucionalizado). Mas o que é falar hoje de Riqueza? É porcerto falar também de Propriedade. Estas noções estão entrelaçadasna modernidade capitalista: a Riqueza encobre a Propriedade, abran-gendo-a, mesmo que não se reduzindo a ela. Vale dizer, se toda aRiqueza, no mundo moderno, não se expressa necessariamente sob aforma de Propriedade ... não há como negar, por outro lado, que aPropriedade é na atualidade uma das formas mais poderosas de ex-pressão da Riqueza (dito de outra forma, a Riqueza compra a Propri-edade; é a forma de acesso, por excelência, à Propriedade).

Nem sempre foi assim. Na Antigüidade Helênica, por exemplo,Riqueza e Propriedade eram noções perfeitamente desentrelaçadas.Portanto, os critérios para a avaliação da Desigualdade deveriam con-siderar cada uma destas noções em separado (como espaços diferentesque integrariam a Desigualdade no sentido complexo). Na GréciaAntiga, a Propriedade significava que o indivíduo possuía concreta-mente um lugar no mundo (na polis), e que portanto pertencia aomundo político com os conseqüentes direitos à Cidadania2 . Por isto,a riqueza de um estrangeiro, ou mesmo de um escravo, não substi-tuía esta propriedade que era exclusiva dos cidadãos, e não lhe con-feria obviamente um acesso ao mundo político.

Percebe-se aqui que o Poder entrelaçava-se então com aPropriedade, e ambos situavam-se em um espaço de conexões emseparado da Riqueza. Além de Poder, Propriedade e Riqueza, havia umquarto critério gerador de espaços de desigualdade, que era o daLiberdade. No mundo da Escravidão Antiga, como no mundo daEscravidão Moderna (o Brasil ou a América Colonial, por exemplo), aLiberdade ou a Escravidão seriam noções óbvias para serem consideradasem uma avaliação mais sistemática da desigualdade humana.

Hoje a Liberdade de todos os indivíduos, como valor ideal e nosentido lato, é fundo comum para qualquer sociedade moderna quese declare democrática. Deixa, portanto, de ser um critério a partirdo qual se possa pensar a desigualdade (mas é claro que podemos

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pensar na ‘liberdade de expressão’ ou na ‘liberdade de ir e vir’, conformeveremos depois). Por outro lado, não é preciso pontuar a Propriedadecomo critério hierárquico (como faziam os antigos gregos) já que namodernidade capitalista a Riqueza abrange a Propriedade. Estecontraste entre o mundo antigo e o mundo moderno será suficiente,por ora, para registrar a circunstancialidade dos próprios critérios apartir dos quais se pode pensar a questão da desigualdade social.

De resto, o que obriga a falar em circunstâncias para as questõesrelacionadas à Desigualdade é o fato de que qualquer desigualdadeque esteja sendo imposta a um grupo ou a um indivíduo está sujeitaela mesma à já mencionada circunstancialidade histórica, sendo emprimeira ou última instância reversível. O grupo humano que estáprivado de determinados direitos pode reverter a sua situação atravésda ação social – sua e de outros. Pelo menos em tese, não existemdesigualdades imobilizadas no mundo social. Enquanto isto, no mundodas diferenças teríamos situações mais francamente estáveis, oumesmo, em alguns casos, parâmetros praticamente permanentes.Assim, na oposição biológica entre homem e mulher tem-se umarealidade contundente, ainda que esta possa se mostrar mais complexaatravés da ocorrência de outros diferenciais sexuais que não poderãoser discutidos nos limites deste ensaio. Da mesma forma, os sereshumanos mostram-se todos sujeitos a atravessarem diferentes faixasetárias sem reversibilidade possível, e não há como lutar contra isto,mesmo que seja possível minimizar ou adiar os graduais efeitos dapassagem do tempo sobre o corpo humano individual.

Enfim, para resumir esta primeira aproximação, pode-sedizer que em geral a Diferença se coloca no âmbito do “Ser”,enquanto a Desigualdade pertence ao mundo do “Estar” ou dasCircunstâncias. Vermelho é diferente do Azul, mas um pintor podedispensar um tratamento desigual ao uso destas duas cores em umapintura, conforme enfatize mais uma ou outra. Para este exemplo,acabamos de falar em Desigualdade relativamente a um espaço decritérios específico, que é o da utilização quantitativa de coresdiferentes pelo artista. Mas poderíamos falar de uma desigualdadeentre duas cores no que se refere ao espaço simbólico que o artistaatribuiu-lhe em uma determinada obra (mesmo que a cor valorizadanão seja aquela que é mais utilizada conforme o critério quantitativo).

A metáfora das cores pode ajudar a compreender o universosocial. Uma etnia pode marcar suas diferenças (físicas ou culturais)em relação a uma outra, mas ao mesmo tempo ocorre que umadeterminada sociedade pode produzir igualdade ou desigualdadeconforme se atribua a cada uma destas etnias maior ou menor espaçosocial ou político. As colisões também podem ocorrer aqui: é possíveltratar um determinado grupo social com igualdade política, masocorrendo por outro lado uma nítida desigualdade econômica. Detodo modo, é preciso ainda acrescentar que no mundo humano o objetoque reflete a diferença ou a desigualdade não é simplesmente comouma cor na paleta de um artista, mas sim um ser pensante, capaz derefletir sobre a diferença que o caracteriza ou sobre a desigualdadeque o atinge. Esse aspecto é fundamental porque torna as Diferençase Desigualdades no mundo humano muito mais complexas, já quesujeitas a auto-referências: as diferenças podem ser afirmadas ourejeitadas (como traços de identidade individual ou coletiva), e asdesigualdades podem ser contestadas ou sofridas passivamente.

Com vistas a explorarmos mais profundamente as implicaçõesdo fato de que a relação Igualdade x Desigualdade é da ordem dascontradições, utilizaremos como exemplo significativo a oposiçãoentre Pobreza e Riqueza. “Ser pobre” ou “ser rico” – desigualdadesrelacionadas ao plano econômico – são polarizações que trazemalgumas implicações imediatas. Para começar, rigorosamente falandoninguém “é pobre” ou “é rico”; na verdade, o que seria mais adequadodizer é alguém “está pobre” ou “está rico”, pois a riqueza ou a pobrezasão circunstâncias reversíveis, como já foi dito anteriormente. Alémdisso, “ser pobre” ou “ser rico” implica em uma relatividade. “É-sepobre” em relação a certo patamar de comparação: um indivíduopode ser mais pobre em relação a outro indivíduo, e ao mesmo tempomais rico em relação a um terceiro (contrariamente ao que ocorremais habitualmente no plano das diferenças, já que um indivíduo nãopode ser mais brasileiro do que outro, mais cristão, ou mais mulher).De resto, entre a “riqueza absoluta” e a “pobreza absoluta” – sequisermos postular hipoteticamente estas posições extremas relativasà desigualdade econômica – poderemos encontrar inúmeras nuances.Assim, se não há nuances intermediárias possíveis entre o brasileiro eo americano, entre o russo e o chinês, ou entre o mexicano e o indiano

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Igualdade

Desigualdade

Diferença

(Triângulo Semiótico da Igualdade)

3 OLSEN, 2001: 48; TEMPLETON, 1999. As evidências da origem única e africanado homem moderno afirmaram-se nas últimas décadas. Desde os trabalhos pioneirosde pesquisadores da Universidade da Califórnia liderados por Allan Wilson (CANN,1987), até os recentes resultados obtidos por uma confluência de pesquisadoresamericanos e franceses coordenados por Jun Li, da Universidade Stanford (LI, 2008),os meticulosos estudos baseados no DNA mitocondrial começaram a chegar aárvores filogenéticas que mostram invariavelmente uma primeira bifurcaçãoseparando as populações africanas das demais. Do mesmo modo, árvores construídasa partir de conjuntos de marcadores localizados nos cromossomos sexuais X e Yapresentam tipologias muito semelhantes. Tudo aponta para uma filiação africanade todos os grupos humanos conhecidos, e só vem a confirmar outra evidência quejá aponta o continente africano como o provável berço da humanidade moderna: ofato de que os maiores níveis de diversidade genética do planeta são precisamenteencontrados na África (quanto mais antiga uma população, mais tempo esta tevepara o acúmulo de mutações em suas estruturas genéticas; deste modo, as populaçõescom maior variabilidade devem ser as mais antigas, sendo este o caso da África).4 As inúmeras variações e oscilações nos sistemas classificadores de raças sãobastante eloqüentes. No Brasil, os censos de 1872 e 1890 propunham 4 divisões:os brancos, os negros, os caboclos (ameríndios puros e seus fenótipos), e por fimos mulatos – categoria para a qual empurravam todos os que “pela pigmentaçãoda pele, não podendo incorporar-se a nenhuma das raças originárias, formavamum grupo à parte”. Para o Censo de 1872, ver Recenseamento da população doBrazil a que se procedeu no dia 1° de agosto de 1872 (1873-1876).

– todos diferenças referentes ao campo das nacionalidades – já entreo miserável e o milionário, marcadores tipicamente relacionados àdesigualdade econômica, encontraremos todas as nuances possíveis.

Construiremos em seguida um esquema visual, de modo amelhor explicitar a distinção entre as desigualdades e diferenças. Trata-se de um quadrado semiótico no qual a noção de “Igualdade”relaciona-se horizontalmente com a “Diferença” (em uma coordenadados contrários que se refere ao plano das essências), ao mesmo tempoem que se relaciona diagonalmente com a “Desigualdade” (em umeixo das contradições que se refere ao plano das circunstâncias). Aindicação de bilateralidade no eixo contraditório da relação entreIgualdade e Desigualdade (uma linha com duas setas) indica, comojá foi dito, que esses pólos são auto-reversíveis, e também que épossível um deslocamento em uma e outra direções ao longo do eixoda desigualdade. Já para a coordenada de contrariedade relacionadacom os pólos Igualdade e Diferença não há de modo geralreversibilidade possível. Trocando em miúdos, as Desigualdades sãoreversíveis no sentido de que se referem a mudanças de estado; asDiferenças, de um modo geral, não.

Uma questão bastante complexa, e que nos interessará maisespecificamente neste ensaio, refere-se às chamadas “diferençasraciais”, ou melhor, às “diferenças de cor”. Quando se buscaestabelecer por exemplo uma dicotomia entre Brancos e Negros, éfixado imediatamente um contraste entre duas essências. Isto serásempre um problema, pois do ponto de vista científico as raças nãoexistem enquanto realidades biológicas bem definidas Por um lado adiversidade humana é tão múltipla e aberta a misturas e superposiçõesque não sustenta a noção da existência de “raças”, e por outro lado aspesquisas do Projeto Genoma já demonstraram que todos os homensmodernos descendem de uma matriz comum oriunda de certa região

da Etiópia pré-histórica – ou seja, existe apenas uma única “raçahumana”3 . Mas o que mais particularmente interessa para a nossapresente discussão é que existem inúmeras e indefinidas tonalidadesde pele (e não três ou quatro), e que estas se somam a inúmeros tiposde cabelo e constituições labiais, a diversificados padrões cranianose tendências de estrutura óssea, e a tantas e tantas outras distinçõesbiológicas que a bem da verdade não nos permitiriam falar em absolutoem um tipo unificado de Negro ou de Branco.

Assim mesmo, quando é construída culturalmente umadicotomia entre negros e brancos, são de imediato constituídas duasessências, sem mediações. Se quisermos interpor um tipointermediário – o pardo ou mulato – ele será uma nova essência (naverdade uma essência tão “construída” como a dos negros ou brancos,se assim pudermos nos expressar). Mas essas essências serão sempreambíguas, e contra esta realidade empírica terão de se defrontar ossistemas de classificação que tentarem estabelecer uma tipologiafundada predominantemente na cor da pele4 .

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5 Esse foi o caso da classificação proposta em 1890 por Nina Rodrigues, na obra“Os mestiços brasileiros”, onde se tenta um enquadramento da população brasi-leira. A obra prevê a tripartição da categoria dos mulatos: os de primeiro sangue,os que puxavam mais para o negro, e os que puxavam mais para o branco(RODRIGUES, 1890). As categorias propostas, além do Mulato, eram: Branco,Negro, Mameluco (caboclo), Cafuso (negro + índio) e Pardos – últimos referidosa mestiços complexos que associam os caracteres das três raças. Portanto, NinaRodrigues cria uma distinção entre os Mulatos (Branco + Negro) e os Pardos.

Para além da tipificação em Branco, Mulato ou Negro, poderemostentar desdobrar novas tentativas de classificações, e criar os conceitosde Mulato Escuro e Mulato Claro. Mas em todos estes casos estaremosapenas criando novas categorias essenciais5 . No plano essencial dasDiferenças não existem gradações (ou estados), mas sim categoriasdiferenciadas umas das outras. E aqui temos uma das já mencionadasdistinções básicas entre as Diferenças e as Desigualdades. Enquantoo homem mais rico é o outro pólo do mais miserável, ou o homemplenamente livre é o outro pólo do escravo mais privado de liberdades– sempre considerando o espectro de gradações que existe nestesdois casos – o Negro não é o outro pólo do Branco, nem o Inglês é ooutro pólo do Indiano, e nem sequer o Homem é o outro pólo da Mulher.Aqui se deve falar respectivamente em “diferenças de cor”, “diferençasde nacionalidade” e “diferenças de sexo”.

A compreensão das distinções fundamentais entre Diferençae Desigualdade, que buscamos desenvolver mais sistematicamenteaté aqui, é de fato imprescindível para que se possa perceber comoestas noções têm se relacionado entre si no âmbito social, e deque modo cada uma delas se relaciona com a noção de Igualdade.Somente a partir disso poderemos iniciar um maior esforço para acompreensão de certos aspectos relacionados à Escravidão e àsDiferenças de Cor. Desde já, contudo, pontuaremos acomplexidade do tema da Escravidão, uma vez que esta noçãotem sido alternativamente postulada como pertencente ao âmbitoda Desigualdade ou Diferença conforme os interesses sociaisenvolvidos e os desenvolvimentos históricos que podem serexaminados.