A CONSTRUÇÃO VISUAL DA IDENTIDADE LATINO-AMERICANA …€¦ · Os membros iniciais do Grupo...
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A CONSTRUÇÃO VISUAL DA IDENTIDADE LATINO-AMERICANA NO
CENÁRIO ARTÍSTICO DE BUENOS AIRES A PARTIR DO MURALISMO DO
MOVIMENTO ESPARTACO
Michele Teresinha Philomena Bohnenberger
Doutoranda em História – Cultura e Etnicidade/PUCRS
Resumo:
O texto reflete sobre os desdobramentos do Muralismo na América Latina, em especial
na região de Buenos Aires, no final dos anos 50 e início dos 60, com ênfase na
consolidação da pintura do Movimiento Espartaco, frente ao segundo governo de Perón
e a abertura ao capital estrangeiro, que geraram problemas quanto as condições
trabalhistas, as migrações familiares e o desamparo do camponês proveniente da
industrialização. A partir da análise de imagens, são realizadas comparações entre as obras que inspiraram o movimento, considerações acerca das temáticas exaltadas nas
mesmas, o contexto político e social em que foram elaboradas, bem como a argumentação
de que para os integrantes do movimento, o nacional representava a unidade latino-
americana. Los Espartacos apareceram como expoentes de uma classe média que havia
sido contra o Movimento Nacional e que percebeu as falsas propostas da oligarquia
liberal. Suas representações estavam centradas na síntese da forma, no caráter humano
dos personagens ressaltado através de suas expressões e cenários, que mesclavam
influências surrealistas, expressionistas e cubistas. O grande número de obras e a atuação
dos integrantes, contribuiu para a definição de uma nova visualidade plástica na arte
argentina.
Palavras-chave: Muralismo Argentino; Movimento Espartaco; Muralismo Latino-
americano; Carlos Sessano; Cândido Portinari.
O chamado Movimiento Espartaco, ou Los Espartacos foi um grupo surgido em
Buenos Aires no final dos anos 50, formado por artistas reunidos com intuito de continuar
a busca pela identidade americanista iniciada com o Muralismo Mexicano. Fazem parte
da segunda geração de artistas argentinos que seguem o projeto de difusão da linguagem
muralista na América Latina, que já havia ganho força alguns anos antes com os pintores
do Taller de Arte Mural. Foram seus membros Ricardo Carpani, Mario Mollari (1930 –
2010), Júan Manuel Sánchez (1930 –2017), Juana Elena Diz (1925 – paradeiro
desconhecido), Esperílio Bute (1931 – 2003) e Pascual Di Bianco (1930 – 1978), Raúl
Lara Torres (1940 – 2011) e Carlos Sessano (1935 -) e Franco Venturi (1937 – detido e
desaparecido em 1976).
Los Espartacos apareceram como expoentes de uma classe média que havia sido
contra o Movimento Nacional e que percebeu as falsas propostas da oligarquia liberal.
Suas representações estavam centradas na síntese da forma, no caráter humano dos
personagens ressaltado através de suas expressões e cenários, que mesclavam influências
surrealistas, expressionistas e cubistas. O grande número de obras e a atuação dos
integrantes, contribuiu para a definição de uma nova visualidade plástica na arte
argentina.
O grupo se consolida após o segundo governo de Perón, que distinto do primeiro,
propiciou o investimento do mercado externo, sendo em 1955 derrotado pela oligarquia
e pelo capital estrangeiro com o apoio do exército. Havia artistas que eram a favor da
oligarquia e que estavam voltados para as influências da arte europeia e havia outros,
comprometidos com as questões sociais do país, lutando e criando consciência com
imagens que representavam o sofrimento operário e das classes marginalizadas. A
América Latina passava por uma crescente industrialização que necessitou da abertura
para o capital estrangeiro e para a implantação de filiais norte-americanas, pois o
progresso precisava de equipamentos de ponta, os quais não se possuía tecnologia
suficiente para produzir, o que acabou gerando desemprego e grandes migrações do
campo pra cidade e más condições de trabalho. As problemáticas surgidas nesse
contexto, foram expostas na arte dos Espartacos.
A necessidade de “associação” da indústria nacional
com as corporações imperialistas se tornava peremptória na
medida em que eram queimadas etapas na substituição de
manufaturas importadas e as novas fábricas requeriam níveis
mais altos de técnica e organização (GALEANO, 2010,
p.298).
O que os diferencia esteticamente dos artistas do Taller de Arte Mural é a
representação centrada na síntese da forma, no caráter humano dos personagens
ressaltado através de suas expressões e cenários, que mesclavam influências surrealistas,
expressionistas e cubistas.
As influências cubistas apareceram, por exemplo, na obra de Carlos Sessano. Em
Muerte de un campesino (1962), (Fig. 1), notam-se similaridades a pintura Guernica
(fig.2), em que Picasso retratou situações em meio ao horror do bombardeio nazista à
cidade espanhola.
Elaboradas em torno de um equino, ambas pinturas apresentam uma figura
antropomórfica masculina sendo pisoteada. No extremo direito do grande painel, Picasso
representou outra figura antropomórfica que levanta os membros superiores em uma
espécie de edificação em chamas. Outros personagens com aparência desesperada
completam a cena marcada por uma atmosfera fragmentada, complexa e de múltiplos
pontos de vista.
Figura 1 - Carlos Sessano, Muerte de un campesino, 1962. Óleo sobre tela, 120 x 160 cm
Coleção Particular.
Figura 2 - Pablo Picasso, Guernica, 1937.
Óleo sobre tela, 349,3 x 776,6 cm.
Museu Reina Sofia, Madrid, Espanha.
A obra Êxodo (1965), (Fig. 3) mostra uma família de aspecto debilitado, num
cenário árido, tal como ocorre na pintura Os Retirantes (1944), (Fig.4) do brasileiro
Candido Portinari (1903 – 1962). Devido às paridades, é possível que Sessano tenha se
inspirado em Portinari, que foi o principal representante do muralismo no Brasil e
utilizou uma linguagem próxima do Cubismo, Surrealismo e dos pintores muralistas
mexicanos. Tanto Sessano quanto Portinari demonstram nas cenas a fragilidade das
crianças, enfatizada pelos volumes abdominais característicos das infecções como a
esquistossomose, a popular “barriga d’água”. Também há uma figura antropomórfica
masculina portando um chapéu e outra feminina carregando um bebê. Na pintura de
Sessano, as crianças em primeiro plano encontram-se nuas, enquanto na de Portinari, os
menores vestem roupas precárias. Em ambas, os indivíduos estão com os pés descalços,
atestando a pobreza.
Figura 3 - Carlos Sessano, Exôdo, 1965
Acrílico sobre tela, 83 x 68 cm
Figura 4 - Candido Portinari, Retirantes, 1944.
Óleo sobre tela, 190 x 1180 cm.
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, São Paulo, Brasil.
A página com que Orientación – Órgão oficial do
partido comunista - celebrou Portinari durante sua exposição
e sua residência em Buenos Aires, não deixou espaço para
nenhuma dúvida a respeito do valor de sua obra, do acerto de
sua proposta estética e do caminho que esta assinalava para a
arte moderna: quer dizer, para arte moderna que não se
propunha a ser somente arte. A questão social não se
estabelecia como um tema de discussão, mas sim de
afirmação. (GIUNTA, 2005, p. 229. Tradução nossa).
A condição política que gerava mazelas sociais na Argentina, associada a simpatia
de Sessano pelo comunismo, fez com que o artista lançasse mão das formas
representacionais utilizada pelos artistas que compartilhavam interesses afins. Enquanto
Portinari apresentou a seca nordestina, a fome, o aspecto esquelético das figuras com sua
paisagem árida e mortal, com os urubus que sobrevoam o grupo, Sessano explorou o
abandono do campo. Seus personagens possuem definição muscular que caracteriza um
trabalhador em plena forma física, mas deslocado do novo sistema produtivo,
necessitando se mudar em busca de oportunidades para o sustento dos familiares. O
contexto das pinturas retrata os aspectos de descaso com a população humilde que os dois
países estavam submetidos.
No entanto, nem todos integrantes do grupo estavam inclinados a aliar a produção
de murais aos ideais comunistas, conforme pregava David Alfaro Siqueiros (1896 –
1974), muralista mexicano que difundiu o Muralismo e a ideia de arte pública em suas
palestras em 1933 na Argentina, aproximando-se mais das qualidades estéticas de pintura
de outro dos grandes muralistas: Diego Rivera (1886 – 1957).
Enquanto os artistas do grupo anterior demostravam, tanto em
sua linguagem plástica quanto em suas inserções políticas,
simpatia com a ideologia comunista de Siqueiros, os artistas
do Movimiento Espartaco aproximaram-se do estilo pictórico
de Diego Rivera e, alguns de seus integrantes, da corrente
trotskista, delegando à poliangularidade um papel secundário,
mas mantendo nos murais a preocupação com a integração
arquitetônica e a adequação dos materiais. Não obstante, suas
pinturas, incluindo as de cavalete, possuem
monumentalidade, grandes proporções e a temática pública.
(BOHNENBERGER, 2018, p.139)
Os membros iniciais do Grupo Espartaco, Mollari (fig. 5), Sánchez, Carpani, Bute
e Diz, escreveram o manifesto, em 1958, intitulado Manifesto por un Arte Revolucionário
en América Latina (que replicava parte do título de um manifesto escrito em 1938 por
Leon Trotsky (1879 – 1940) e André Breton (1896 – 1966) e assinado por Diego Rivera:
Manifiesto por un Arte Revolucionário Independiente1), clamando pela arte com
personalidade argentina e criticando as fórmulas empregadas que, segundo eles, não
passavam de plágios dos colonizadores culturais:
Uma economia alienada ao capital imperialista
estrangeiro não pode originar outra coisa além do
colonialismo cultural e artístico que padecemos. A oligarquia,
agente e aliada do imperialismo, controla direta ou
indiretamente as principais engrenagens de nossa cultura e,
através delas, enaltece o sumo do esquecimento aos artistas,
selecionando unicamente aqueles que a servem. [...] em
virtude dos interesses que representa, se caracteriza no plano
cultural por uma mentalidade estrangeirizante, depreciativa
de tudo o que é genuinamente nacional e, portanto, popular.
(BUTE et al, 1958, p.10).
1 1 O Manifesto está disponível em: http://sergiomansilla.com/revista/aula/lecturas/imagen/manifiesto_por_un_arte_re.pdf. Acesso em 01 de novembro de 2018.
Figura 51 - Mario Mollari, La Espera (Detalhe), 1966.
Pintura Mural.
Faculdade de Ciências Exatas e Naturais (Universidade de Buenos Aires), Buenos Aires
Hoyos, (2013, p.116 - 117), descreve como os artistas do período precedente,
pertencentes ao Taller de Arte Mural, influenciaram a estética dos Espartacos: Urruchúa
(1902 – 1978) com “o gigantismo das mãos e pés, o esquematismo das figuras, o
expressionismo e a temática de combate”; Berni (1905 – 1981) com as séries de
“desocupados” tem o tema retomado por Ricardo Carpani e “ambos criam uma espécie
de ponto de fuga, colocando as figuras em um plano decrescente, acompanhado por uma
arquitetura relativamente rasa que lembra as arquiteturas metafísicas”; quanto a
Castagnino (1908 – 1972), além de ser professor de Di Bianco (1930 – 1978), “sabia
como entender os novos tempos e mostra uma série de trabalhos que prefiguram a
nomeação pós-moderna e o interesse em olhar a história da arte como um lugar a partir
do qual avançar”; Raquel Forner (1902-1988) serviu de referência para Elena Diz com
sua temática de gênero feminino, abordando a posição da mulher em funções de
tipificadas como de dignidade inferior, ou envolvida com a maternidade.
Mesmo com o esforço dos artistas anteriores em difundir a arte muralista, os
Espartacos perceberam que os muros cedidos para a produção das obras eram
normalmente controlados - como já ressaltava Antonio Berni - portanto, certas questões
não seriam expostas, por atacar aqueles que, justamente, eram os que liberavam os
espaços. Assim, a arte se tornaria decorativa, não podendo expressar para a sociedade as
verdadeiras intenções do artista.
O resultado de tudo isto é que os artistas não têm ouro
caminho para triunfar além de renunciar à liberdade criadora,
acomodando sua produção aos gostos e exigências daquela
classe, o que implica o divórcio das maiorias populares que
constituem o elemento fundamental da nossa realidade
nacional [...] Se limita então a um jogo com elementos
plásticos, virtuosismo inexpressivo, em alguns casos de
excelentes técnicas, mas de nenhuma maneira arte, já que essa
só é possível quando se produz uma total identificação do
artista com a realidade de seu meio. (BUTE et al, 1958, p.10).
A solução encontrada foi a grande produção de painéis móveis, grandes telas com
aparência de murais e a associação aos sindicatos, aos quais produziram murais sem fins
lucrativos, o que lhes permitia realizar obras com conteúdo mais livre.
Para o grupo, a arte mural surgia de uma necessidade identitária e público a que
se destinava não era o público elitizado, frequentador de galerias. Os sindicatos, portanto,
eram boas alternativas, embora os murais não tenham atingido um caráter totalmente
público, já que a circulação dentro dos sindicatos, não era a mesma dos murais externos.
Quanto aos temas, seus murais se distanciavam da crueldade e dramatização
trágica presente no Muralismo Mexicano. A identidade, no entanto, era latino-americana
e não propriamente nacionalista, como defendia o artista Ricardo Carpani, integrante que
atingiu maior destaque na produção muralista, mesmo tendo se afastado do grupo logo
nos primeiros anos e retomando contato somente anos depois. Segundo Hoyos, a fama
de Carpani deve-se ao fato de que os críticos que o projetaram partilhavam as mesmas
posições políticas que ele:
López Anaya decide não mencionar que Carpani
participou dois anos do grupo e foi expulso em 1961,
enquanto o grupo funcionou até 1968. As contradições não
terminam, já que continua analisando a obra de Carpani sob a
interpretação de Hernandes Arregui e aqui a política
mascarada se elucida, já que Hernández Arregui é
considerado um dos ideólogos da corrente da Esquerda
Nacional dentro do movimento peronista (HOYOS, p.638,
2012).
As divergências políticas entre Carpani, que acreditava na arte ligada a militância
e tinha atitudes anticomunista, e os demais integrantes que acreditavam que uma posição
tão radical não seria favorável e estavam mais preocupados em questões artísticas do que
políticas, gerou uma cisão. No entanto, mesmo separados, continuaram a manter aspectos
formais comuns. Para eles, o mural, ou painel, deveria ser figurativo, pois entendiam que
a forma sem conteúdo não seria arte, logo, os murais deveriam possuir plástica e
narrativa.
O grupo manteve-se ativo até 1968 com uma mostra na galeria Witcomb, em
Buenos Aires, onde Carpani se reintegrou. Em meio às opressões políticas da ditadura
argentina, os artistas tiveram suas atividades reprimidas. Seus objetivos, agora, já eram
os mesmos que os da maioria dos colegas, portanto seria natural que o grupo se integrasse
à grande massa artística.
Bibliografia
BOHNENBERGER, Michele T. P. Desdobramentos da pintura muralista em Buenos
Aires : de Siqueiros ao Contraluz Mural. Dissertação de Mestrado - instituto de
Artes da UFRGS. Porto Alegre, 2008.Disponível em:
https://lume.ufrgs.br/handle/10183/189879.
BUTE, Esperílio; DIZ, Elena; MOLARI, Mario; et al. Carta do Movimiento Espartaco a Ernesto
Sabato, 1961. Disponível em: <http://grupoespartaco.blogspot.com.br/2011/07/la-
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GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. 1ed. Rio de Janeiro: L&MP
Editores, 2010.
GIUNTA, Andrea. «"Buenos Aires y un bandoneón." Recepción en el escenario
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(comp.), 328. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina S. A., 2005.
GOENAGA, Malena S., e Ana C BURGOS. Movimiento Espartaco (documentário).
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Investigações Sobre o Patrimônio Cultural (TAREA), Coletivo Audiovisual
Espartaco, Instituto de Arte Cinematográfica de Avellaneda, 2018.
HOYOS, Eduardo B. S. “El Movimiento Espartaco: Vanguardia, arte, y Política. Tesis
Doctoral.” http://www.doctorado.us.es/. 27 de março de 2014.
http://www.doctorado.us.es/tesis-doctoral/repositorio-tesis/details/2/4346
(acesso em março de 2018).
TRABA, Marta. Arte de América Latina: 1900 – 1980. Washington: Banco
Interamericano de Desarrollo, 1994.