A Conversão Do Diabo

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7/24/2019 A Conversão Do Diabo http://slidepdf.com/reader/full/a-conversao-do-diabo 1/24 A CONVERSÃO DO DIABO - LEONID ANDREIEV - Quem não ama o bem ? Uma vez, um diabo, já entrado em anos e a quem tinham apelidado, no inferno, de Narigão, sentiu, inesperadamente, certa inclinaão ! virtude" #ntregara-se na sua mocidade, como todos os diabos, a insignificantes proezas diab$licas, mas, com a idade, já um tanto cansado do seu oficio,tornara-se comedido"" #mbora gozasse de $tima sa%de, os e&cessos juvenis quebraram-lhe um pouco as foras e ele não sentia entusiasmo algum pelas tolices da mocidade" 'ada vez sentia mais acentuada propensão para a ordem (virtude esta muito comum entre os diabos)* dotado de esp+rito firme e esclarecido, embora um tanto metaf+sico, gostava de filosofar"  cabou por perder a f na perfeião do inferno e nos costumes diab$licos" #nfadava-se principalmente nos dias festivos, quando não tinha nenhuma tarefa a desempenhar e não sabia como matar o tempo, tanto mais que era celibatário" .ara lutar contra essa situaão que tanto lhe perturbava o espirito, entregou-se ao trabalho, mudando várias vezes de of+cio" /e inicio, instalou-se como diabo tentador em uma igrejinha cat$lica de 0lorena"  li, segundo suas pr$prias palavras, saboreou pela primeira vez o repouso de espirito"  li, tambm principiou sua conversão"   igreja, era muito pequena, e ele tinha pouco trabalho" s m+seras velhacadas que tanto agradavam que diabos jovens - apagar as velas, fazer com que o sacristão tropeasse ou que as velhinhas, enquanto rogavam a /eus, pensassem coisas escabrosas - não o agradavam* ao contrário, chegavam a lhe causar engulhos" Quanto !s tataranhadas importantes, não se oferecia oportunidade para elas" 1odos os paroquianos eram pessoas modestas, que dificilmente se dei&avam tentar" Nem ouro, que nunca haviam visto* nem o amor passional, que jamais conheceram* nem os orgulhosos sonhos de ambião, completamente estranhos a sua natureza, podiam turvar a paz de suas almas superficiais, razão pela qual todos os esforos do diabo eram in%teis" Quanto aos pecados insignificantes, os fieis entregavam-se a eles de-per-si, sem necessidade de serem tentados pelo diabo, e este não precisava quebrar a cabea para inventar coisa alguma, mesmo porque o numero dos pequenos pecados era muito reduzido"   principio quis tentar o pároco em pessoa, mas todas suas tentativas fracassaram* o pároco era um velho já desdentado, um tanto volvido a inf2ncia novamente, e puro como uma donzela" 3omente conseguia faze-lo esquecer, algumas tardes, as palavras de sua oraão, substituindo-as por outras, ou comer carne nos dias de jejum, ou então dormir at muito tarde, faltando a missa da madrugada" 4as o diabo sentia muito bem que tudo isso não passava de pecadilhos e&teriores e que semelhantes meios não bastam para a perdião da alma de um crente" .ouco a pouco comeou a cansar-se do seu oficio, pondo no trabalho cada vez mais indiferena ou formalismo" .or descargo de consci5ncia, ocasionalmente contava, a alguma velha ajoelhada

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A CONVERSÃO DO DIABO - LEONID ANDREIEV

- Quem não ama o bem ?

Uma vez, um diabo, já entrado em anos e a quem tinham apelidado, no inferno, deNarigão, sentiu, inesperadamente, certa inclinaão ! virtude"#ntregara-se na sua mocidade, como todos os diabos, a insignificantes proezasdiab$licas, mas, com a idade, já um tanto cansado do seu oficio,tornara-se comedido""

#mbora gozasse de $tima sa%de, os e&cessos juvenis quebraram-lhe um pouco asforas e ele não sentia entusiasmo algum pelas tolices da mocidade" 'ada vez sentiamais acentuada propensão para a ordem (virtude esta muito comum entre os diabos)*dotado de esp+rito firme e esclarecido, embora um tanto metaf+sico, gostava defilosofar"

 cabou por perder a f na perfeião do inferno e nos costumes diab$licos"

#nfadava-se principalmente nos dias festivos, quando não tinha nenhuma tarefa adesempenhar e não sabia como matar o tempo, tanto mais que era celibatário"

.ara lutar contra essa situaão que tanto lhe perturbava o espirito, entregou-se aotrabalho, mudando várias vezes de of+cio"/e inicio, instalou-se como diabo tentador em uma igrejinha cat$lica de 0lorena" li, segundo suas pr$prias palavras, saboreou pela primeira vez o repouso de espirito" li, tambm principiou sua conversão"

  igreja, era muito pequena, e ele tinha pouco trabalho" s m+seras velhacadas quetanto agradavam que diabos jovens - apagar as velas, fazer com que o sacristão

tropeasse ou que as velhinhas, enquanto rogavam a /eus, pensassem coisasescabrosas - não o agradavam* ao contrário, chegavam a lhe causar engulhos"Quanto !s tataranhadas importantes, não se oferecia oportunidade para elas"

1odos os paroquianos eram pessoas modestas, que dificilmente se dei&avam tentar"Nem ouro, que nunca haviam visto* nem o amor passional, que jamais conheceram*nem os orgulhosos sonhos de ambião, completamente estranhos a sua natureza,podiam turvar a paz de suas almas superficiais, razão pela qual todos os esforos dodiabo eram in%teis"

Quanto aos pecados insignificantes, os fieis entregavam-se a eles de-per-si, semnecessidade de serem tentados pelo diabo, e este não precisava quebrar a cabea

para inventar coisa alguma, mesmo porque o numero dos pequenos pecados eramuito reduzido"

  principio quis tentar o pároco em pessoa, mas todas suas tentativas fracassaram* opároco era um velho já desdentado, um tanto volvido a inf2ncia novamente, e purocomo uma donzela" 3omente conseguia faze-lo esquecer, algumas tardes, as palavrasde sua oraão, substituindo-as por outras, ou comer carne nos dias de jejum, ou entãodormir at muito tarde, faltando a missa da madrugada" 4as o diabo sentia muito bemque tudo isso não passava de pecadilhos e&teriores e que semelhantes meios nãobastam para a perdião da alma de um crente"

.ouco a pouco comeou a cansar-se do seu oficio, pondo no trabalho cada vez maisindiferena ou formalismo" .or descargo de consci5ncia, ocasionalmente contava, aalguma velha ajoelhada

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diante da 6irgem, uma anedota escabrosa, cuspia duas ou tr5s vezes num canto daigreja, ou fazia com que o velho sacerdote confundisse as palavras da missa sempreno mesmo ponto" /epois de haver cumprido o seu dever, apressava-se a sentar no selugar favorito, a sombra de uma coluna, para acompanhar, devotadamente, numbreviário furtado, as palavras do santooficio" 4as esse passatempo, embora agradável, era contrario a natureza ativa dodiabo"

.ara não permanecer ocioso comeou paulatinamente a trabalhar" 1ornou- se, por vontade pr$pria, uma espcie de sacristão-ajudante, da igreja" 6arria-a de manha,limpava o metal dasportas, ativava os candeeiro durante a missa e, junto aos demais paroquianos,acompanhava o coro, cantando em voz de falsete o 78ra pro nobis"7

3e lhe acontecia entrar na igreja pela porta da rua, molhava suas garras na águabenta, benzendo-se com ela" Quando todos os crentes se acercavam do pároco paraque os benoasse, acompanhava a multidão, atropelando as pessoas, conforme seus

hábitos diab$licos"

/urante as raras visitas ao inferno, onde precisava apresentar informes acerca desuas atividades (os quais, por sua vez, eram arqui-falsos, como todos os informes dosdiabos de 3atanás), nosso diabo sentia aumentar cada vez mais seu asco peloinferno, e por seus costumes, sua barulheirainfernal, sua sujeira e desordem" s bru&as gritadeiras, que antigamente lhe pareciamtão cativantes e belas, não lhe inspiravam agora senão aversão* se divertiaprendendo-lhes as vassouras com a porta, observando depois o terror e as torturasdessas desventuradas, que procuravam inutilmente livrar suas vassouras de talaperto" No inferno todo o mundo mentia e re-mentia sem cessar* cada palavra era umembuste" 3atanás mentia mais do que todos juntos*

e o nosso diabo, que já havia perdidos hábitos do ambiente, sentia-se enfermo,ansioso por sair dali, para respirar um pouco"

 p$s uma de suas visitas ao inferno, voltou com particular satisfaão ! tranq9ilaigrejinha e durante dois dias e duas noites dormiu como um justo atrás da coluna"Quando despertou, disfarou-se de homem, dirigindo-se ao confessionário, onde seachava o"pároco, pois era hora das confiss:es"8 velho sacerdote ficou estupefato" quando este senhor desconhecido, já idoso, dee&pressão triste e aborrecida, nariz grande, lábios finos e enrugados, apresentou-secomo diabo" 4as este lhe jurou, e o sacerdote acabou por acreditá-lo" 'omcuriosidade perfeitamente infantil, p;s-s ainterroga-lo sobre as coisas do inferno"

8 diabo, porm, não mostrou desejo de querer falar nelas"

- i < meu padre" quilo não viver* um verdadeiro inferno " " "

- =em, mas onde estão os teus cornos e os teus cascos ? - perguntou o padre,curiosamente"

- # para que vieste aqui ? .ara, tentar-me, ou para arrepender-te ? 3e julgas que metentas, previno-te de que não o conseguiras" # com um sorriso levemente ir;nicoacrescentou>

- #u, meu caro senhor não me dei&o tentar <

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- .ois apesar de tudo", logrei faze-lo cair em tentaão muitas vezes" ecorda-se dacarne que comeu no ultimo dia de jejum ?

- Que carne ?

- 0az hoje quinze dias" - 8 sacerdote ficou inquieto"

- #ntão, foste tu quem me sugeriste essa idia pecadora ? i meu /eus < 6ai-te " " "vai-te " " " Não te quero ver mais < .:e teus cornos na cabea, vai-te " " " 3e nãofizeres, chamarei o sacristão"

- 6im para arrepender-me """ e o senhor me escorraa < @ e&clamou tristemente odiabo" - No entanto, esta escrito no #vangelho que se uma ovelha desgarrada " " "

- 4as, conheces tu o #vangelho ? - perguntou o assombrado sacerdote"

- 8 senhor pode e&aminar-me - respondeu orgulhosamente o diabo"

- Amposs+vel <

- Anterrogue-me e verá"

- #is uma surpresa < 6amos a minha casa* ali te e&aminarei" Não convm quecontinues neste santo lugar" " " Que coisa tão e&traordinária < Um diabo que conhece o#vangelho < " 6amos para casa < " " "

/urante toda a noite o pároco, em sua casa, e&aminou o"diabo e cada vez mais se

assombrava"

- 1u es um verdadeiro sábio em quest:es religiosas < ealmente < - .orventura asestudaste ?

- Um pouco - respondeu modestamente o diabo" pesar dessa modstia, conservavasua dignidade* não se humilhava* nem mostrava demasiada afetaão"

6ia-se logo que era um diabo srio, ponderado e judicioso" Não se orgulhava dos seusconhecimentos, e por isso agradava mais ainda ao velho sacerdote"

- final, - perguntou-lhe o padre - o que desejas ?

#ntão o diabo caiu de joelhos, e&clamando>

- #nsine-me, meu padre, a praticar a virtude" 3into grande desejo disso" #u não possoviver sem praticar a virtude, porem não sei como faze-lo" Quanto ao 3atanás e a todosos misteres diab$licos, renuncio a eles para sempre"

#, com o fito de confirmar suas palavras, o diabo cuspiu desdenhosamente tr5s vezesseguidas"

8 pároco, então, bateu amigavelmente no ombro do diabo* este afastou- se um pouco,

pois não lhe agradava que o tratassem com demasiada familiaridade e perguntouinsistentemente e com melanc$lica entonaão na voz>

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- 4eu padre, vai o 3enhor ensinar-me a praticar a virtude ?

- Bá o veremos < ntes de mais nada, preciso comear ler as obras dos 3antos" 1uconheces bem a =+blia, mas isso s$ não basta " " " 6ai passear um pouco " " "

#nquanto passeias, far-te-ei uma lista do que deves ler"- 8uve, meu amigo" "" #stas sempre assim ?

- Que diz o senhor ?

- 0alo da tua apar5ncia " " " 1ens um aspecto estranho " " " /ir-se- ia que comes poucoe te entregas sempre a tristes refle&:es " " " 8u talvez não estejas sempre assim < " " "3e podes tomar outra forma, mostra-me " " " embora seja eu velho, nunca vi outrosdiabos " " "

4as o diabo não lhe quis dizer a verdade"

- Não < #stou sempre assim - foi a resposta"

- 6erdade ? " " " 1anto melhor " " " .ois olha> vai dar uma voltazinha, enquanto eutrabalho para o teu bem " " " #mbora tivesse dito que es sábio, na realidade, meuamigo, ainda te falta muito " " " muito " " "

- 8 que mais me interessa e aprender a praticar a virtude" #nsinar-me-a o senhor ?

- 3im, sim " " " - disse o velho sacerdote, tranq9ilizando-o" @ Ceras muitos livros eaprenderas tudo " " " Não tenhas medo " " "

/urante dois anos o diabo estudou de cabo a rabo todos os livros que o sacerdote lhedera, esforando-se por encontrar neles resposta ! pergunta que o perturbava> No queconsiste bem e como faz5-lo para que não se transforme no mal?

Dá muito tempo que conhecia a l+ngua hebraica e agora estudou tambm o grego,para poder ler os livros religiosos não traduzidos, no pr$prio original" 'omparou oste&tos, procurando os erros que tinham escapado aos outros, fez váriosdescobrimentos e chegou mesmo a criar novos esquemas religiosos"

'om tudo isso a sa%de do nosso abnegado diabo comeou a ressentir-sesensivelmente" #magreceu e, apesar de tudo, não p;de encontrar resposta aoproblema que tanto o preocupava" cabou por desesperar-se"

 o fim de dois longos anos de sofrimento e trabalhos, apresentou-se em casa dosacerdote" /espertando-o em plena noite, gritou-lhe>

- 3alva-me, meu padre <

- 6amos vamos <" 8 que aconteceu ? - perguntou o sacerdote espantado" @ Que tesucede agora ?

- Ci todos os seus livros e continuo tão ignorante como antes a respeito de tudo que serefere ao bem" 3alva-me, meu padre < #u não posso viver assim <

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- #stá certo de que lestes todos os livros? 1ens tão pouca paci5ncia ?

- 1odos, meu padre < gora mesmo terminei o ultimo" /esgraadamente, paramim,tenho um esp+rito curioso, diab$lico e incapaz de suportar contradi:es, e os seus

livros estão cheios delas " " "8 sacerdote, moveu a cabea num gesto de reprovaão"

- Asso mau < " " " muito mau " " " #m vez de crer, não fazes outra coisa senão criticar eprocurar contradi:es" 3atanás te incita a isso"

- Que posso fazer ? Não posso ser de outra maneira" Não encontro nesses livrossenão contradi:es" /e um lado, tudo proibido de outro, tudo permitido* o que bom segundo um livro, torna-se mau noutro" .or e&emplo> para comear dignamenteuma nova vida, tinha a intenão de me casar com uma mulher honrada, afim depraticar o bem ao seu lado" 4as depois de ter lido todos esses livros, já não sei se o

matrimonio um bem ou um mal"

- quele que se sente capaz " " "

- Não se trata disso" 8 senhor, por e&emplo, celibatário, como todos os sacerdotescat$licos, que consideram o matrimonio como um pecado mortal" No entanto, osantigos patriarcas, que eram tão santos como os senhores, possu+ram mulher, e atemuitas mulheres cada um" 3e 3ão Boaquim não se tivesse casado, não teria aquelafilha, que era uma santa tambm " " "

- 'ala-te, pecador < " " " E realmente perigoso falar contigo" 8briga-nos a incorrer em

heresias " " " 3e te parece bem, casa-te"

- Não isto que espero do senhor"

- Que esperas então ?

- .reciso de uma resposta que me possa servir sempre, para todos os casos da vida,que encerre em si nenhuma contradião, e que me indique como devo proceder paranão cometer erros" Asso e o que necessito" Quanto ao matrimonio, como não tenhopressa, esperarei um pouco" #ntretanto, meu padre, reflita" 'oncedo-lhe o prazo desete dias" 3e, transcorrido este prazo, osenhor não me puder dar uma resposta clara e decisiva, voltarei ao inferno, e o senhor 

não me vera nunca mais"

#stava furioso o pobre diabo < 'omo se apai&onara pela causa do bem <

8 velho sacerdote, compreendendo seu estado de alma, não se zangou ao ouvir suasgrosseiras palavras e comeou a refletir" efletiu seis dias seguidos"

No stimo, chamou o diabo, dizendo-lhe>

-#s um diabo inteligente e, no entanto, ao leres os livros, escapou-te uma coisa muitoimportante" 8lha aqui> v5 o que esta escrito> 7ma a teu pr$&imo como a ti mesmo7"

=em v5s que não pode ser mais claro" ma" isto se reduz tudo"

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8 sacerdote tinha um ar triunfal"

4as o diabo não parecia nem um pouco entusiasmado, e respondeu>

- Não < Asso não está claro" .ara provar o amor do pr$&imo, preciso fazer-lhe algum

bem* mas como ignoro em que consiste o bem, posso fazer-lhe algum mal, algumgrande mal, at mesmo arremessa-lo ao inferno" lm disso, não nada dif+cil isso dedizer que devemos amar ao pr$&imo como a n$s mesmos " " "

- 'omo s e&igente < .ois bem> ama o teu pr$&imo simplesmente, e não como a timesmo" #ntão compreenderás tudo, principiarás a praticar o bem, sem nenhumesforo de tua parte"

- mar ? 'omo se isto fosse tão fácil < E precisamente o que não posso fazer" /e quemaneira quer o senhor que um diabo ame ? 'ompreenda-me padre, que sendo diabopor natureza, não posso me sentir como um anjo* mas ao mesmo tempo não querofazer mal, antes, ao contrário, pretendo somente fazer o bem" Asto o que desejo que

o senhor me ensine"

8 sacerdote respondeu-lhe tristemente>

- .or desgraa, por causa da tua natureza, tu possues uma alma abominável"

- 'laro < - confirmou o diabo" - .or isso quero lutar contra minhas inclina:es naturais"Não quero ser condenado ao inferno para toda a eternidade, pois aspiro ao cu, comoos anjos" #spero que os anjos não sejam os %nicos candidatos ao cu, não verdade ? " " " .reciso que o senhor meajude" 'oncedo-lhe, novamente, um prazo de sete dias" 3e não encontrar o senhor 

nenhum meio de salvar-me, acabou-se" Arei para o inferno <.assaram-se outra vez os sete dias"

8 sacerdote chamou novamente o diabo e lhe disse>

- /epois de largas refle&:es, encontrei para ti dois preceitos muito práticos" #speroque não tenhas nenhuma dificuldade em adota-los" #stá escrito no #vangelho> 73e tepedem a camisa, dá-a, embora não tenhas outra"78utro preceito ordena> 73e te dão uma bofetada na face direita, oferece igualmente aesquerda"73egue estes mandamentos" 3erá a tua primeira prova" Cogo veremos o resultado"

Dás de convir que muito simples <

8 diabo refletiu um pouco, sorrindo, depois, alegremente>

- Asto sim < gora já sei o que o bem" Não sei como lhe agradecer " " "

1ranscorreram outras duas semanas"

8 velho sacerdote estava certo de que havia encontrado o meio de salvar a alma dodiabo" 4as logo este voltou a sua casa" 4ostrava-se mais triste do que nunca> estavacom o rosto cheio de manchas de sangue e de cicatrizes"

=rilhava no seu corpo escuro uma camisa complemente nova"

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- Asto não dá resultado < - declarou com voz pesarosa <

- Que dizes ? Que te aconteceu ? - perguntou assustado o sacerdote - de seacreditar que brigaste com algum" 8lha teu nariz " " " # teus olhos ? " " " i < meu /eus< 1inhas a intenão de praticar o bem e, ao invs, te entregaste a brigas " " " 8u seráque algum te feriu ?

- Não < 8 caso que eu briguei"

- 4as, como ? Não te havia dito> 73e algum te dá uma bofetada na face direita,oferece igualmente a esquerda ?7 Não te recordas ?

- 3im, recordo-mo perfeitamente" #stive durante quinze dias, passeando pela cidade, !procura de algum que me esbofeteasse, mas como ningum o fez, me vi naimpossibilidade de cumprir o santo preceito"

- 4as não disseste que andaste a brigar ?

- Asto outro caso" 1ive uma disputa com certo senhor* ele me deu uma bengala nacabea" Naturalmente eu lhe devolvi a pancada" discussão acabou numa verdadeirabatalha" 3em me ufanar disso, devo informar ao senhor que ele não foi sem umalembrana minha> quebrei-lhe duas costelas"

8 velho sacerdote fez um gesto de desesperaão>

- 4as, homem < #u te havia dito 73e te esbofeteiam a face direita " " " 4as o diabo ointerrompeu, gritando>

- #u digo ao senhor que não me deram na cara, mas na cabea" 3e se tratasse dorosto, teria sabido como fazer " " "

8 pobre sacerdote ficou completamente desnorteado" final, depois de um largosil5ncio, disse ao diabo>

- i meu /eus < 'omo s est%pido < Feralmente mostras grande habilidade, e atmesmo regular erudião, mas no que se refere ao conceito do bem, qualquer um oentende melhor" 'omo não compreendeste que as palavras do #vangelho devem ser interpretadas num sentido mais amplo ?

- No entanto, o senhor mesmo disse que não se deve interpretar os santos preceitos, e

sim cumpri-los ao p da letra <""

- 1u s um desgraado < Que vou fazer agora contigo ? Não posso seguir-te por toda aparte, para acautelar-te sobre os erros " " " E prefer+vel que não saias ! rua " " " # quequer dizer esta camisa nova ? Fanhas-te-a, de presente ?

- Qual < 'omprei-a para dar ao primeiro que ma pedisse" /urante quinze dias estivepasseando pela cidade, entre os pobres" .ediram-me tudo que o senhor possaimaginar, menos a camisa" .rovavelmente ignoram o caminho do bem "" "

- /esgraado < 4il vezes desgraado < - e&clamou furioso o sacerdote" @ 4as nãoacabaste de dizer que te pediram muitas coisas ?

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- 3im"

- .ediram-te, por e&emplo, pão ? - 3im"

- # não lhes deste ?

- Não" #sperava que me pedissem a camisa " " " 6eja, meu padre, que não fao senãoasneiras" Não me repreenda o senhor, se me engano ao procurar o caminho do bem"Quero encontra-lo, custe o que custar" .or algum motivo renunciei ao inferno, como atodos os seus prazeres" .or algum motivo passei, durante dois anos, os dias e asnoites sobre os livros, devorando-os" gora vejo que não e&iste salvaão para mim " " "

- #spera " " " e não te desesperes" 6ou ensinar-te ainda umas tantas coisas " " " /iz-me, porm* por que deu aquele homem uma bengalada na tua cabea ? 1alvez sejasuma vitima inocente e, nesse caso, uma parte dos teus pecados poderá ser perdoada"

8 diabo fez um ar de d%vida"

- Nem eu mesmo o sei" ntes, tambm acreditava ser uma v+tima inocente, mas agora já não sei mais nada" coisa ocorreu da seguinte forma> depois de longos passeiospela cidade, cansado e desesperado, mas ainda cheio do mais ardente desejo defazer o bem, sentei-me margem do rio rno, para descansar um pouco e restaurar asforas" /e repente vi que um homem se afogavano rio" Nos seus esforos desesperados para se salvar, chegou muitas vezes perto demim"

- # tu, infeliz ?

- #u ? 'ontemplei-o, perguntando a mim mesmo como era poss+vel que ele semantivesse ! tona da água quando, segundo todas as leis da f+sica, ele já devia ter-seafogado" #nquanto assim refletia, acudiu uma porão de gente, atra+da pelos seusgritos" 3e o senhor quer saber a verdade, não foi um s$ que me bateu, mas in%meros "" "

1riste e abatido, cheio de feridas e cicatrizes, o diabo permaneceu de p ante osacerdote"

#ste contemplava-o atentamente, com ar pensativo"

/epois suspirou e, apro&imando-se dele, atraiu-o para perto de si, beijando-lhe afronte" o fazer isso, percebeu que a cabea do diabo estava coberta de sangue seco"

G diabo, depois de haver recebido o beijo, disse com voz assustada*

- 1enho medo, meu padre" 6i no inferno horrores sem nome, mas jamais me senti tãoperturbado e inquieto como agora" Não há nada mais terr+vel do que aspirar apai&onadamente o bem e não saber como ele " Não consigo compreender comopodem viver as pessoas na terra, ignorando o que o bem" 'om todo o meu coraão,tenho piedade delas <

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- 6ivem, apesar de tudo, respondeu o sacerdote" - Uns, como animais, sem sepreocuparem com estes graves problemas* outros procuram, como tu, o caminho dobem e da virtude, e sofrem porque não conseguem encontra-lo" 8utros, ainda, crendohaverem encontrado o bom caminho, inventam preceitos saudáveis e vivemperfeitamente com eles"

- # essa gente se salva ? - perguntou o diabo, desconfiado"

- 3$ /eus o sabe < Asto vai alem dos nossos conhecimentos " " " Quanto a ti, não tedesesperes" #u não te abandonarei, e te ensinarei ainda algumas coisas mais"Não mefaltara tempo nem paci5ncia para tanto" 1u es um diabo muito impulsivo, mas não sedeve perder a esperana" gora, vai lavar as feridas da cabea"

 ssim terminou a conversa entre o diabo e o sacerdote"

 mbos ignoravam que, precisamente no momento de beijar o sacerdote a fronteabominável do diabo, ao mesmo tempo que este, por sua vez, se compadecia dos que

desconheciam o bem, se realiza esse mesmo bem, que eles inutilmente buscavam"

3epararam-se" 8 sacerdote foi a procura de novos caminhos que conduzissem aobem" 8 diabo encerrou-se na igreja, atras das empoeiradas colunas, para ali serestabelecer dos ferimentos, e esforar-se por compreender os grandes e misteriososproblemas do bem e do mal"

8 sacerdote comeou, novamente, a ensinar o bem ao d$cil diabo" Asto, porem, foi acausa de uma nova srie de aborrecimentos para ambos" /ava o bom padre a seudisc+pulo ensinamentos pormenorizados para as diferentes circunstancias da vida, e

tudo caminhava bem enquanto estas se apresentavam justamente sob o mesmoaspecto, e na mesma ordem prevista pelo professor"

8 diabo e&ecutava, não s$ zelosamente, mas com abnegaão, tudo quanto lhe eraordenado, dando provas de uma vontade de ferro" Não obstante, o dbil engenhohumano não podia prever todas as complica:es da vida, e ele se enganava a cadainstante, procedendo bem num caso e portando-se mal noutro"

3e um pobre lhe pedia alguma coisa de forma não prevista pelo sacerdote, negava-o"#ram tão freq9entes estes casos, que o pr$prio sacerdote principiava a desanimar-se"Não suspeitava que a vida tivesse tantos e tão variados aspectos, nem queescondesse em si tantos e tão obscuros

mistrios, e tantos e tão inesperados problemas"

7/e onde provem tudo isto ?7 - pensava quebrando a cabea, enquanto o diabo,sentado atras de uma coluna da igreja, curava as feridas, soltando suspiros dolorosos,e sem nada compreender"

Não s$ o diabo, mas tambm o servo de /eus não conseguia compreender nadadaquilo"

# o velho padre continuava pensando> 7não haverá mais remdio a não ser que lhepermita comentar os preceitos, embora seja um tanto perigoso"#nsinar-lhe-ei as leis gerais, e ele que as comente depois tratando de adapta-las ascircunstancias"7

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'om suma docilidade o diabo se aveio com este novo sistema"

3entia-se alquebrado, quase sem energias, mas estava pronto a todos os sacrif+cios" t então todos os seus sacrif+cios não lhe haviam servido para nada"=atiam-lhe tanto, que s$ isto bastaria para fazer dele um mártir* mas em vez deacontecer isso, as pancadas não faziam mais do que sobrecarrega-lo de novospecados, pois os que lhe batiam tinham sobradas razoes para se enfurecerem contraele"

 lias, ele mesmo o reconhecia, assim como o sacerdote que o protegia"8 pobre diabo, que jamais vira uma s$ lagrima, aprendeu at a chorar" 'horava tanto,que somente por suas lagrimas e por seu fervoroso desejo de encontrar o caminho dobem merecia ser inscrito no numero dos santos"

Quando o sacerdote anunciou ao diabo que daquela data em diante lhe seria dadocomentar os preceitos e adapta-los a vida real, tal como os compreendia, ele sentiu-secheio de alegria e foi com certo orgulho que declarou >

- gora, meu padre, o senhor pode ficar tranq9ilo a meu respeito" Bá que o senhor permite que eu comente os preceitos, não farei mais tolices"1enho espirito firme e idias positivas* há muito tempo que não bebo álcool, e estoucerto de não mais me enganar" 3omente lhe peo que não me oculte nada" /iga-mequal a lei mais importante e mais grave da vida" .rincipiaremos por esta e depois osenhor me ensinara as outras"

8 velho sacerdote p;s-se a procurar na sua mem$ria e a consultar tudo quanto havialido e aprendido durante a sua vida" /epois soltou um suspiro de consolo e disse>

- #&iste uma lei como a que tu queres, mas tenho medo de revela-la, pois perigosa"1enho, porem, confiana na ajuda de /eus" .resta atenão para não cometeresnenhum erro" 8lha < " " " # abrindo um livro sagrado, o sacerdote mostrou ao diaboestas palavras, grandes e misteriosas> H H H NI8 1# 8.8ND3 8 4C H H H

 o ver estas terr+veis palavras, o diabo ficou assustadissimo, perdendo todo o seuhabitual orgulho>

- 1enho medo, meu padre disse ele" #stou quase certo de cometer erros com isto"

8 sacerdote tambm estava assustado" # ambos, o servo de /eus e o de 3atã, cheiosde terror, se contemplavam reciprocamente"

- pesar de tudo, e&perimenta < - disse, por fim, o padre" - G que há de bom nesta lei que tu mesmo não deverás fazer nada* tem que dei&ar os demais fazerem contigo oque bem quiserem" .ermita-lhes procederem a vontade e submete-te repetindosempre esta frase> 7.erdoai-os, /eus 8nipotente, porque não sabem o que fazem"7 -#stas palavras são important+ssimas" Não asesquea <

G diabo se foi, novamente, a procura do caminho do bem"

.assaram-se dois meses sem que aparecesse"

/urante esse tempo o velho cura esperava o ansiosamente, a todo momento"0inalmente ele regressou"

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Davia emagrecido horrivelmente e todo ele era apenas ossos" #stava faminto esedento" 1udo quanto possu+a lhe havia sido arrebatado" #stava todo coberto decicatrizes"

8 velho sacerdote sentiu certa alegria> tudo testemunhava que seu disc+pulo não sehavia oposto ao mal" No entanto, impressionava-o dolorosamente a e&pressão detemor e de angustia que se lia nos olhos do diabo"#ste, respirando com dificuldade eescarrando sangue, olhou para ovelhinho, a quem amava com todo o corarão e a velha igreja, onde encontrara umrefugiosossegado e desandou a chorar, perdidamente"8 sacerdote p;s-se a chorar tambm adivinhando que sucedera qualquer coisa demuito grave"

- 6amos < 'onta-me os erros que acaso cometeste"

- Não cometi nenhum - respondeu tristemente o diabo" - .rocedi de acordo com a leique o senhor me ensinou sem me opor ao mal"

- #ntão, por que choras, fazendo-me tambm chorar ?

- h <, meu padre < ntigamente não sofria, mas agora sofro infinitamente"1alvez o quefiz, seguindo suas indica:es, seja verdadeiramente o bem, mas por que não mecausa ele nenhuma alegria ? E imposs+vel que aquele que pratique o bem, não sintaalegria de espcie alguma" 3e o senhor soubesse quanto eu sofro < 3ente-se, e lhecontarei tudo"

8 senhor mesmo verá onde está o bem e o que tenho feito"# o diabo contou minuciosamente como o haviam perseguido, batido, saqueado emaltratado" #is aqui o que lhe acontecera por ultimo >

- chava-me deitado, meu padre, atras de uma grande pedra a beira da estrada e vi apro&imaão de dois bandidos" /o outro lado da estrada e na mesma direão, vinhauma mulher com um embrulho nos braos que parecia de valor"

8s bandidos correram para ela e gritaram> 7/a-nos isso <7 4as a mulher negou-se"#ntão um dos bandidos tirou sua espada " " "

- # o que fez ? - e&clamou, com voz comovida, o sacerdote"

- 0eriu com ela a infeliz mulher, partindo-lhe a cabea" #la caiu, juntamente com oprecioso fardo que levava nos braos" Quando os bandidos o abriram viram que" otesouro da assassinada era uma criana" 8s bandidos puseram-se a rir e um deles, oque estava com a espada, segurou a criana por uma das perninha, alou-a no ar e " " "

- 'omo? - perguntou, tr5mulo, o sacerdote"

- " " " atirou-a contra as pedras " " "

8 sacerdote se p;s a gritar>

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- 4as tu, tu ? " " " Não fizeste nada para defender a mãe e o filho ? /#3FJ/8 <'848 NI8 1'31# 83 =N/A/83 ??

- 'om o que ? ntes do acontecido me haviam roubado at meu bastão, %nica arma

que possu+a"- 6amos ver < " " " Uma vez que tu s diabo, deves ter cornos""" /evia ataca-los com osteus cornos < Na tua qualidade de diabo, podias haver encontrado um meio de lutar contra eles"

- G senhor se esquece, meu padre, que está escrito> NI8 1# 8.8ND3 8 4C ?

einou um demorado sil5ncio" /epois o sacerdote pálido como um cadáver, caiu de joelhos, e disse cheio de remisão>

- culpa minha < Não foste tu, nem foram os bandidos quem assassinou a mãe e o

filho" 8 assassino fui eu " " " #spera um pouco meu amigo> vou rogar a /eus queperdoe nossos pecados"

  oraão durou muito tempo, tanto, que o diabo dormiu" 8 sacerdote o despertoudizendo-lhe>

- #stas grandes palavras não são para n$s" #m geral, não se necessitam palavras,nem leis" 6ejo bem claro, que alguma vezes preciso odiar" #m algumas ocasi:esconvm dei&ar-se bater, mas há circunst2ncias em que se torna necessário maltratar os demais" #ste o verdadeiro sentido dobem <

- Nesse caso estou perdido - disse resolutamente o diabo, com uma triste entonaãona voz" - 8 senhor pode fazer por seu lado o que lhe agrade* a mim, porm, d5-me leispara seguir"

- Nada mais posso fazer < .ara que te enganes outra vez e me faas pecar ? Não,meu amigo* basta" cabaram-se as regras < Bá não e&istem mais regras que valham <

8 diabo ficou furioso"

- 4as se não e&istem regras que tampouco e&iste o bem?

- 'omo ? Não e&iste o bem ? #ntão, não o bem isto de ocupar-me de ti há tantotempo ?" 6ai-te< Es um ingrato <

4as o diabo, que parecia sumir-se no mais profundo desespero, replicou>

- 8 que o senhor me ensinou bem pouca coisa" Não tem do que se ufanar"

- E dif+cil ensinar o diabo"

- 3e o senhor não possui foras para ensinar o diabo, porqu5 o seu bem vale muitopouco"

- 'ala-te, desgraado, ou te porei na rua"

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- 0aa-o" Não me restará outro remdio senão voltar ao inferno"

einou novamente o sil5ncio"

/epois o diabo disse>

- Dei de regressar, por fora, ao inferno, meu padre?

3ua voz era tão triste e comovida, que o sacerdote se condoeu e, com um gesto deamizade, lhe falou>

- .erdoa-me que te haja ofendido, meu amigo" Quanto ao problema do bem, voufazer-te uma pergunta> tu s um diabo curioso de saber tudo* provavelmente visitastein%meros templos e museus e viste muitas obras de arte"

/ize-me> agradaram-te?

8 diabo refletiu um pouco, e respondeu>

- Umas sim, outras não"

- 4as o que apreciaste foi por sua beleza, não verdade?

- Naturalmente"

- # ouviste falar que e&istem leis para a beleza ?

- 3im, muito já se escreveu sobre isso"

- 4uito bem" 3uponhamos, agora, que aprendeste essas leis" .oderias criar algo debelo ?

- Não basta conhecer as leis* necessita-se tambm ter talento e isso me falta"

- #is a+ < 4as então, por que, $ animal, pretendes praticar o bem, sem talento paraele ? equer-se mais talento para o bem do que para a beleza" 8 bem e&ige umenorme talento"

8 diabo contemplava, com grande assombro, o sacerdote"

- Ktima sa+da < - disse" - 8 senhor e&agera, meu padre" 3e eu pinto um mau quadro,não me mandarão, por esse crime, ao inferno, ao passo que se quebro a cabea ameu pr$&imo, já não será a mesma coisa" lem disso, ningum me obriga a pintar quadros" No entanto, e&iste a obrigaão moral de fazer o bem" 4andam faze-lo e nãoindicam de que maneira " " " # se algum se engana, ainda o castigam"

- Não te dizia eu que para fazer o bem preciso talento ?

- # no caso de não o possuir, devo sofrer eternamente as penas infernais, não isso ?

8 sacerdote fez um gesto desesperado dizendo>

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- Não sei, meu amigo" .erdi a cabea, falando contigo"

- .ois não me fale mais do talento" /e-me regras ou leis" /esejo fazer o bem e o seudever ensinar-me como devo faze-lo" /o contrario" " "

#stava tão enfurecido, que ameaou ir a casa de outro sacerdote"8 velho pároco sentiu-se ofendido, e disse num tom de censura>

- .ortas-te mal, muito mal comigo" 3ofri em tua companhia, esperei trazer-te ao bomcaminho como a ovelha desgarrada, principiei a querer-te como a um filho e tupretendes agora me atraioar" #u tambm tenho amor pr$prio e não justo que ofiras" 3e não te parece mal, em lugar dessas regras gerais, perigosas não somentepara um diabo mas tambm para um homem, vou traar-te uma linha, deprocedimento, a que deves te submeter-te-ter todos os dias" 1enho muito tempo desobra, e comearei a trabalhar imediatamente" 0arei, para ti, uma espcie de agendapara todo o ano* nela encontraras tudo quanto deves fazer diariamente " " " 4as não

deveras te afastar um mil+metro sequer do que estiver escrito nela" 'aso contrario,cometerás novos erros" 3e esqueceres alguma coisa, ou tiveres duvida a prop$sito dequalquer detalhe, melhor será que nada faas, a e&por-te a novas desventuras" 0echaos olhos, tapa os ouvidos, Não te movas e fica sossegado, pois assim, pelo menos,estarás livre de dar mau passo"Doje mesmo principiarei a trabalhar e tu subirás no alto da igreja e permanecerás ali,quietinho"

3e te aborreceres, au&ilia um pouco o sineiro" 8 coitado já está velho e se esquece detocar os sinos, muitas vezes"1oca-o, pois, para a gl$ria de /eus <

8 velho sacerdote entregou-se ao trabalho com afinco, enquanto o diabo principiou anão fazer nada" Anstalara-se num pequeno desvão situado na torre da igreja, entre ossinos, as cordas e os trastes velhos" Uma das paredes da torre tinha na sua partesuperior uma janelinha cheia de teias de aranha"

'ada dois ou tr5s dias"o velho sacerdote levava ao diabo um pouco de comida,sentando-se um instante ao seu lado, a fim de conversar com ele" 8 resto do tempo odiabo não via ningum e não fazia outra coisa senão refletir"

8 sacerdote temia essas refle&:es, vendo nelas - e razão tinha ele @ uma espcie deaão, impelindo-o a cerrar hermeticamente o espirito do diabo, não dei&ando que elepensasse em nada" #ste prometia obedecer-lhe, porm isso era mais forte do que a

sua vontade" 1ornava-se dific+limo não pensar no que havia visto e ouvido, no queconsistia sua idia fi&a, isto e, nobem" 8 bem possui tantas formas " " " 8 pr$prio /eus diz tão depressa uma coisacomo"outra < Dá inumeráveis verdades que se cruzam, entrechocam-se, batem-seumas contra as outras" .arece que se contradizem, mas na realidade não assim"

Qual pois a 7verdade verdadeira7 ?

8u, se todas são verdades, como distingui-las e encontrar a que possa servir melhor ?

1ais pensamentos quase enlouqueciam o diabo inspirando-lhe mesmo certo terror".ermanecia, durante horas inteiras, im$vel no seu canto empoeirado, sem se mover,sem respirar sequer"

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- Que há, meu amigo ? borreceste ? perguntava-lhe o velho sacerdote ao trazer-lhe acomida" .aci5ncia < Não deves fazer nada < prosseguia ele" =reve terminarei meutrabalho, e então comearás a viver" E verdade que a minha sa%de me traz cada vezmais apreensivo, mas farei todo o esforo poss+vel para concluir o trabalho antes deminha morte" Não te posso dei&ar dessa maneira " " "

8 diabo ouviu-o" No entanto, pareceu não perceber coisa alguma, tão absorto estavaem suas refle&:es"

- 'ontradi:es por toda a parte < murmurou com os olhos cheios de espanto"

- 'omo ? e&clamou alarmado o sacerdote" 8nde encontras tantas contradi:es ?scontradi:es não e&istem senão no espirito, que, sempre descontente, procura al$gica em tudo" 8 principal não o espirito, mas a consci5ncia" Asto, porm, se se vivecom a consci5ncia tranq9ila <

- 4as, por acaso a consci5ncia não guiada pelo espirito ? 8 senhor, meu padre, secontradiz"

- 8h < santo /eus < 'omo es dif+cil de te contentares < 'ada conversa contigo mefatiga enormemente e acabo com dor de cabea" /evo, no entanto, conserva-laserena, pois, do contrario, não poderei acabar o trabalho que estou fazendo" .aradizer a verdade, s um diabo muito desagradável l 'onfessa-me, com franqueza seobedeces e&atamente as minhas ordens "

- #m que ?

- 0icas im$vel ? Não fazes nada, absolutamente nada ?- 3im" 8ntem matei uma mosca, tão somente porque me aborrecia demasiado <""" nãosei se ou não permitido matar moscas"""

- 4oscas ?"" Naturalmente < " " " Asto, espera um pouco" " " " #stas vendo ? gora, eumesmo ignoro se pode ou não matar moscas" Frande acontecimento < ntes que mefizesses tal pergunta, jamais havia pensado nisso e, tambm eu, matava moscas " " " gora " " "

- mosca um ser vivo - disse o diabo com triste acento"

- Quem o duvida ? - respondeu comovido o sacerdote" - #ntão, tambm eu mateiseres vivos < Quão pecador sou < " " "

8 diabo, que procurava solu:es claras e precisas, perguntou-lhe>

- #m resumo, licito ou não licito matar moscas ?

- 4oscas ? " " "

1ais palestras perturbavam os dois" mbos acabavam confusos e, mirando-sereciprocamente, com olhares est%pidos, não sabiam de que maneira prosseguir"

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8 sacerdote não levava muito a srio essas contradi:es* de regresso ! sua casa,esquecia-se delas e punha-se, tranq9ilamente, a trabalhar" 4as para o diabo elasconstitu+am verdadeiro mart+rio" 'heio de foras diab$licas, capaz de mover montanhas, permanecia indeciso ante as moscas que o picavam e - como uma criana- não sabia de que modo portar-se com elas" 'omose as moscas compreendessem seu estado de alma pareciam zombar e caoar dele>zumbiam insolentemente ao redor de sua cabea, metiam-se-lhe nas suas peludasorelhas, faziam cocegazinhas nos seus lábios cerrados, assumiam posturasprovocadoras, desafiavam-no " " "

8 diabo havia odiado muito em sua vida, mas todos estes $dios não era nadacomparados ao $dio feroz que nutria pelas dbeis e insignificantes moscas " ""

8 sacerdote estava cada vez mais fraco> a sa%de declinava e as poucas forasdiminu+ram cada vez mais " " " 3entia-se a todo o instante tão cansado, que eraobrigado a se deitar um pouco"

Dá tr5s anos que o diabo estava encerrado no canto da torre da igreja, condenado auma magoa absoluta, esperando pacientemente o programa do bem, que o sacerdotelhe havia prometido" Não atormentava mais o professor com as suas contradi:es*suplicava-lhes somente, que conclu+sse quanto antes o seu trabalho"

- presse-se, meu padre <

- Não tenhas medo, amigo < Não morrerei sem concluir minha obra"3egundo os meus cálculos, ainda me restam seis meses de vida, pouco mais oumenos" 3im,"seis meses < 4eu trabalho está quase terminado" 'ontinua tranq9ilo, e não percas o2nimo" 6im precisamente para te anunciar uma boa not+cia> hoje vão queimar vivo umherege" 6em comigo para assistir o espetáculo" Asto nos agradará, e nos divertirá umpouco"

- Não obstante, está escrito nas 3antas #scrituras> 7Não matarás7 - pensou o diaboporm, não disse uma palavra ao sacerdote e aceitou gostosamente a proposta,sobretudo porque se aborrecia terrivelmente na solidão"

Dá muito tempo já que estavam queimando o herege e o povo se divertia a valer"8 diabo e&perimentava, tambm, certa alegria, porque aquilo lhe recordava o inferno"4as lembrou-se, repentinamente, da mosca, a qual não se atreveu a matar, e as

contradi:es comearam, a desassossega-lo outra vez

8lhou o velho sacerdote e viu que este, mantendo-se de p a custa de grandessacrif+cios, por causa de sua debilidade, estava pálido de emoão* tremiam-lhe asmãos, nos seus olhos brilhavam lágrimas de felicidade, e todo o seu semblanteparecia" iluminado por uma divina alegria"

No inferno, os diabos queimavam, com freq95ncia, os pecadores, mas durante essaoperaão seus rostos jamais e&primiram tão grande felicidade"

0icou estonteado, sem nada compreender" 8 sacerdote estava louco de alegria"egozijou-se tanto com o espetáculo que, de regresso ! casa, foi obrigado a se meter no leito, tal era a sua emoão"

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8 diabo não se p;de conter e entabulou conversa>

- Quisera saber, meu padre, por que se regozija o senhor desse modo"

- .ois muito natural> acabam de queimar um herege - respondeu o padre com doce

acento na voz"- #squece o senhor que está escrito nas 3antas" #scrituras> 7Não matarás ?7"Noentanto, mataram um" homem, e o senhor se alegra <

- Ningum o matou"

- 4as se o queimaram <

- 'laro, meu amigo < Queimaram-no, graas a /eus" evirou os olhos, deliciado, e seurosto e&pressou" uma beatitude tão c2ndido e inocente, como a de uma criana"

8 diabo esfregava a fronte enrugada, com sua ampla e peluda garra, e quebrava acabea para e&plicar-se esta nova contradião" 7Não entendo nada pensava" -.rovavelmente tudo dependerá de como se faa o bem"7 #, com o coraão opresso,resolveu ter paci5ncia e esperar que o sacerdote conclu+sse o trabalho" 4as nãovoltou ao seu cantinho* permaneceu junto ao padre, como criado"

3ervia-lhe a comida, arranjava-lhe o aposento, limpava-lhe a roupa e varria o solo"

- #m tudo isto - dizia - não pode haver o menor pecado"

Quando o sacerdote, vencendo sua crescente debilidade, se assentava ! mesa para

escrever, o diabo esticava o busto largo e musculoso, seguindo o trabalho com o olhar,temeroso de que seu professor cometesse o menor erro"

 quele trabalho era a sua %nica e ultima esperana"

 final, o manuscrito ficou pronto" vida de seu autor parecia acabar-se com ele" 8sacerdote já não podia se levantar da cama* nela foi obrigado a escrever, deitado, asultimas linhas" #ram irregulares e pouco leg+veis, mas tornaram-se as mais queridaspara o diabo, precisamente por serem as ultimas"

 joelhado ante o sacerdote moribundo, o diabo recebeu de suas mãos aquelapreciosa dádiva, e beijou com verdadeiro amor a mão esqueltica que a entregara"

- #stás contente ? - perguntou-lhe o sacerdote" - .ois eu tambm estou" 4as temcuidado, para não praticares nenhuma tolice <

- gora estou seguro de mim - respondeu alegremente o diabo" @ 6ou cumprir, palavrapor palavra e letra por letra, tudo o que esta escrito aqui" menos que o senhor hajacometido algum erro " " "

- 3im* eu sei que porás muito zelo nisso" 4as, pelo amor de /eus < não percas omanuscrito, porque não encontrarias outro " " " 8nde pensas ir ? 3e não te distanciaresmuito, vem ver-me de vez em quando" 3entirei falta de ti" costumei-me tanto a ver-

te < ntes, teu nariz parecia-me muito feio* agora me agrada " " " 8 que o hábito < " " "8nde pensas ir ? " " "

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- 6ou percorrer o mundo < - respondeu o diabo"

- .ena que o senhor morra logo" 8 senhor devia viver ainda seis meses, pelo menos" ssim poderia lhe contar muitas e boas coisas" h < se o senhor soubesse como estou

ansioso para fazer o bem < Que lástima que o senhor não possa ver-me trabalhar <

8 diabo partiu, mas eis aqui o que lhe aconteceu>

#m lugar de comear sua obra com ju+zo, conforme o programa elaborado pelo velhosacerdote, apresentou-se no inferno, para nele propagar o bem"

.or que o fez ?

Não se sabe" 1alvez tenha perdido a razão, de alegria, talvez movido pelo orgulho epela vaidade e quisesse e&ibir-se perante os demais diabos, ou talvez tivesse sentido

a imperiosa necessidade de visitar o lugar de seu nascimento"

8 caso foi que mal abandonou a casa do sacerdote, encaminhou-se diretamente aoinferno, sem a m+nima hesitaão"

Qual foi o resultado da visita ?

 penas abriu a boca para pregar um sermão e os demais diabos plantaram-se diantedele e comearam tambm a pronunciar serm:es acerca da necessidade do bem, atcom mais energia e eloqu5ncia do que ele" 1odos eram especialistas na arte de mentir"

Num instante toda a verdade se transformou numa mentira e as mais santas palavras,gritadas por aqueles lábios impuros e desavergonhados, tornaram-se em abomináveisopr$brios" 1odo o inferno se encheu de predicadores e de santos" # 3atanás, alegrecom esta nova diversão, se p;s diante de todos e, morrendo de rir, entoava c2nticosreligiosos com voz fanhosa"

 lgumas bru&as, velhas e repelentes, representavam comdias cujos assuntos eram a6erdade, o =em e a 6irtude" Nunca, at então, nem nos dias de maiores festivais, teveo inferno umaspecto tão infernal" 6ieram depois cenas de obscenidade, cheias de gestosimpudicos e, por ultimo, acabaram brigando uns com os outros"

Nosso diabo, que há muito tempo havia perdido o costume da vida infernal, assimcomo a fora f+sica e a habilidade, era maltratado e batido como nenhum outro" 8 maistriste de tudo, porem, foi que, no curso da luta, lhe rasgaram o manuscrito" Quando,depois de conseguir livrar-se das mãos de um grupo de bru&as brias, deitou sobre opobre manuscrito um olhar e o viu completamente roto, ficou quase louco de dor, esoltou longos e quei&osos gemidos"

No seu desespero chegou a insultar o pr$prio 3atanás" #ste deu tais mostras dec$lera, que o infeliz disc+pulo do velho sacerdote se apressou a fugir" 'orria com todaa velocidade que lhe permitiam suas pernas cansadas, apertando ao peito omanuscrito despedaado" 'orria a casa do velho professor, para que este lhe desse

outro"

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4as o velho sacerdote estava moribundo"

- #spere o senhor um momento < - suplicava-lhe o diabo, ajoelhando-se diante de suacama" - #spera < cabam de rasgar o meu manuscrito <

/urante dez minutos pelo menos, o diabo gritou, gemeu e implorou, rogando que lhetrocassem por outro o manuscrito rasgado"

/epois, esforou-se por tranq9ilizar-se e dei&ando de lado o manuscrito, apro&imou-seainda mais da cama do velho sacerdote" p$s um prolongado silencio, este abriu,penosamente, os lábios ressequidos, perguntando com voz dbil>

- 0izeste alguma nova tolice ?

8 diabo lanou um olhar triste ao manuscrito esfacelado, mas, para não afligir omoribundo, ocultou-lhe a verdade"

- Não nada, meu padre, senão que v5-lo assim me enche de pesar" E verdade que osenhor vai morrer ? 8u o senhor viverá ainda um pouco ?

- Nem um s$ dia mais, meu amigo" 8ntem fiz os meus preparativos para a grandeviagem* decidi, porm, esperar mais um dia, com a ilusão de tornar a ver-te" # aquiestás < " " " Fraas, meu amigo < " " " 0aa o favor de levantar a cortininha da janela*quero olhar os arredores pela %ltima vez"

4as pela janela somente se via um cantinho de telhado vermelho e um pedacinho decu, onde pairava uma nuvem vagarosa" 8 sacerdote se p;s a contempla-la comalegria, enquanto o diabo pensava> 78 que olha ele ? Não há nada a ver> o telhado e

um pedacinho do cu " " " 3erá porventura a nuvem que lhe causa tantafelicidade ? " " " 7

# teve uma idia" 76ou leva-lo ao alto do campanário> dali verá todas as nuvens quepassam no cu e todos os telhados de sua 0lorena " " " # assim o fez"

3em nada perguntar ao sacerdote, segurou em seus braos musculosos o corpo frágile e&tenuado deste e levou-o, com muitas precau:es, ao campanário, sobre umapequena plataforma, da qual se descortinava o admirável panorama da cidade e doscampos circunvizinhos"

- gora olhe, meu padre" Asto melhor do que olhar pela janela" qui se aprecia uma

vista mais ampla e mais bela"

.useram-se, ambos, a olhar, cheios de admiraão"

8 sol já estava quase escondido" Na margem oposta do rio rno, sobre uma elevadacolina, distinguiam-se alguns ciprestes negros, que pareciam prontos a perfurar o solmortio com suas copas agudas" Na outra margem do rio, os confins do horizonte,estendiam-se as montanhas que, aos suaves refle&os azulados do entardecer,pareciam diáfanas e fantásticas" 1oda a formosacidade estava como que rodeada de gigantescas grinaldas de flores perfumadas" 8spovoados long+nquos, situados nas encostas da montanha, pareciam florezinhas

rosadas, espalhadas aqui e ali" s sombras crepusculares perdiam-se entre asmontanhas " " "

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- #u nasci atras dessas montanhas, meu amigo < li esta minha aldeia natal" li ameiuma linda criaturinha, mas renunciei ao amor para servir a /eus" /urante in%merosanos não pude me esquecer dela, nem da aldeia e muitas vezes olhei na direão dasmontanhas, suspirando saudosamente" 8 sacerdote moribundo olhava cheio dealegria a seu redor e se entregava a suasrecorda:es" 8 sol desaparecia pouco a pouco"

- mo tambm 0lorena, esta formosa cidade, em que vivi tanto tempo - continuou osacerdote" - gradava-me sentir sob meus ps as pedras tpidas de suas caladas" h<, meu amigo, quando se anda pela terra setenta anos, esta se torna em alguma coisaassim como nossa mãe e at suas pedras perdem a dureza " " " # isto que estoudizendo será ainda mais certo ali, onde vouagora " " "

8 diabo soltou um suspiro* o sacerdote, que continuava em seus braos, sentiu-o,compreendeu a dor do diabo e lhe disse com moribunda entonaão>

- Não suspires" "" Não te desesperes" "" E muito poss+vel meu amigo, que tambm vásao .ara+so" " " porque s " " " um diabo " " " muito bom " " "

8 sol verteu manchas sangrentas pelo cu, empurrando o horizonte e&tinguindo-se" 8velho sacerdote e&tinguiu-se com o sol" 4orreu, abandonando sua querida 0lorena etodas aquelas terras, que tanto amava"

/esesperado, o diabo esforava-se por desperta-lo, falando-lhe com voz rude eáspera>

- # as estrelas, meu padre ? G senhor não admirou ainda as estrelas <8 senhor não viu ainda a lua, que esta quase a surgir no horizonte, e vai projetar,neste instante, sua pálida luz sobre as lajes da sua amada 0lorena" bra os olhos,meu padre, e olhe < 3uplico-lhe " " "

Quando compreendeu que tudo estava findo, e que seu amigo e protetor estava bemmorto, transportou-o para bai&o, para sua alcova" #nquanto o levava em seus braos,pensava> 73ubi com ele vivo ao campanário e o deso morto < " " " 7

Uma dor profunda apoderou-se da alma do diabo"

 gitava-se, chorava, gemia, uivava como um animal feroz, repelando os cabelos> nãoestava acostumado dor humana, e manifestava-a de forma rid+cula" 1ão grande era

seu desespero, que apanhando seu %nico tesouro @ o manuscrito despedaado - oatirou a um canto"

No entanto, ao fazer isto, não compreendia que, precisamente naquele mesmoinstante, se realizava o bem, esse bem intang+vel e misterioso, que ele procurara comtanto afã e a custa de tantos e tão grandes sofrimentos"

# não o compreendeu em toda a sua vida" quele precioso manuscrito tinha um aspecto muito desagradável"asgado, maltratado, com as folhas engorduradas pelas garras dos dem;nios que otocaram, achava-se ante os tristes olhos do nosso diabo, que envelhecera muitos anosnum s$ dia" briu-o com mão tremula, na primeira pagina, e mergulhou largo tempo noestudo das linhas cuidadosamente escritas"

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 L medida que ia lendo, seus olhos e&primiam espanto e incompreensão" o terminar, estava fora de si, de tão surpreso e assustado" te então, nunca, nem nosmomentos mais dif+ceis de sua vida, teve o diabo um ar tão est%pido e assombrado"

8 manuscrito inteiro lhe parecia uma pilhria de mau gosto" /ir-se-ia que o velhosacerdote zombava do bem e do pobre diabo que tão ansiosamente aspirava pelavirtude"

1ambm, o sacerdote havia, com certeza, perdido o ju+zo nos seus %ltimos dias,porque, agora se recordava o diabo, balbuciava, com a gravidade de uma criana quediz c2ndida simplicidade, coisas nscias, atribuindo grande import2ncia as coisas maisinsignificantes"

/e qualquer forma ele via, claramente, que o haviam enganado" .erdeu sua ultimaesperana e sentiu-se furioso" 1odo o manuscrito, da primeira ! ultima pagina, estavacomposto de curtas prescri:es, que diziam, semana por semana, dia por dia, horapor hora, o que o diabo teria de fazer"

Não havia nele uma s$ lei geral, nem uma s$ regra, nem um s$ principio" palavra7=em7, tampouco, era mencionada, uma %nica vez" Nele figurava simplesmente adescrião minuciosa do que se devia fazer em tal dia e a tal hora" 8 manuscritoparecia-se, portanto mais do que qualquer outra coisa, com um livro de receitas"

8 que mais dolorosamente impressionou o diabo foi não ver em todo o manuscritonem uma s$ das formosas verdades que a humanidade recolheu durante milhares deanos e que estão destinadas a embelezar o bem" #le mesmo conhecia in%merasdelas* esperava, com razão, que o velho sacerdote que tanto estudara, colocassegrande quantidade destas verdades em suaobra" 4as não pusera uma que fosse"

3ubitamente um raio de esperana iluminou seu coraão" Davia-o feitocalculadamente o velho sacerdote, para que o diabo deduzisse por si mesmo asconclus:es gerais ? 8 velho sacerdote era muito malicioso" " " "

8 diabo p;s-se a trabalhar" #&aminou palavra por palavra, letra por letra comminucioso cuidado" 'opiava, comprovava comparando os te&tos, esforando-se por seapoderar do fio sutil e apenas percept+vel, que conduzia ao bem" 3e o fio se quebrava,esforava-se por juntar as e&tremidades"

Não se cansava nem se irritava, esperando sempre chegar a conclus:es necessárias,as regras do bem, regras que iriam servir para todos os povos e a todas as pocas"Não era ambicioso, mas as vezes dizia consigo com certo orgulho, talvez trabalhassepara a humanidade" Bulgar-se-ia sua obra* reconheceriam o muito do seu trabalho eseria erigido um templo novo e magnifico em sua homenagem <""

Amposs+vel descrever o seu desespero e o seu horror, quando, depois de terminado otrabalho, nada encontrou absolutamente nada" Nem uma idia geral, nem umaverdade concludente, clara, indiscut+vel >

7 Não matarás* porm, se for necessário mata" 7

7 Não mentirás* porm, se for preciso, mente" 7

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7 /á tudo que tens ao pr$&imo* porm, algumas vezes, tira-lhe o que possua"7

7 Não cometas adultrio, ainda que, a rigor, possas comete-lo 7

7 Não cobices a mulher do teu pr$&imo* porm, se não há outro remdio, podes tirar-

lhe sua mulher, seu escravo e seu boi"7# assim por diante, em tudo o mais"

Quase não havia uma s$ prescrião do manuscrito, que não fosse desmentida páginasadiante" #m seus esforos para chegar a conclus:es gerais e claras, o diaboencontrava a cada passo mil contradi:es"

8 mais terr+vel era que o sacerdote admitia, prescrevendo mesmo em alguns casos,os assass+nios e as mentiras, com uma serenidade desconcertante"

- Quer dizer que sempre esteve a me enganar < e&clamou o diabo pesaroso"

Anstintivamente uma idia medonha passou por sua cabea" Amaginou que o sacerdotefora um grande pecador" .orventura fora 3atanás em pessoa que havia queridoachincalhar o diabo ? < "

#ncolhido num canto, dizia para si, cheio de terror>

- 3im " " " sim " " " ele " " " 3atanás < " " " 3abendo de que eu procurava o bem comtodo o meu coraão, disfarou-se em sacerdote, como eu me disfarcei em homem, eme perdeu para sempre" Não conhecerei jamais a verdade, jamais compreenderei oque o bem" 3erei desgraado para todo o sempre" /esgraado e maldito < " "

#sperou que a porta se abrisse e que 3atanás nela se mostrasse com a bocaescancarada no seu riso alegre e ruidoso" 3atanás o perdoaria e o convidaria a voltar com ele para o inferno"

4as 3atanás não apareceu e a porta continuou silenciosa"

/epois de haver refletido, o diabo disse com seus bot:es>

- 6iverei no desespero fazendo o que ordena este manuscrito, sem saber jamais o que o bem < #stou maldito para todo o sempre < " " "

0oi envelhecendo cada vez mais"

Quando, de acordo com o manuscrito, precisava salvar algum, salvava* quando erapreciso matar, matava" .ouco a pouco se habituou a isso, tranq9ilizando-se"

'umprindo ao p da letra tudo o que ordenava o manuscrito, chegou at a sentir certaalegria" pesar da certeza de estar maldito para todos os sculos, mal se desgostavacom isso" /ei&ou, mesmo, de pensar no bem"

.assava, no entanto, algumas vezes, por situa:es dif+ceis" Asso acontecia quando omanuscrito, meio destru+do, interrompia-se e o diabo ficava sem saber o que havia de

fazer em tal ou qual dia"

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3ubia, então, ao campanário e ali permanecia horas e horas, dias inteiros, sem fazer nada, em plena vagabundagem" 8s olhos fechados para não ver, os ouvidos tapadospara não ouvir, permanecia im$vel como uma estátua" 3uas mãos, capazes dederrubar montanhas, estavam cruzadas sobre o peito, condenadas ! impot5ncia" 3uaabundante cabeleira tornara-se completamente branca"

 o v5-lo quieto e inerte, na velha igreja de 0lorena, ningum diria ser aquele mesmodiabo um ser vivo, condenado ao sofrimento* acreditar-se- ia, mais facilmente, tratar-se de qualquer vetusta coluna, ! qual ningum at esse momento, tivesse prestadoatenão"

1ranscorriam assim as horas e os dias, sem que ele fizesse o m+nimo movimento,numa inrcia absoluta" s moscas passeavam no seu rosto e metiam-se-lhe pelosouvidos e pela boca* um p$ cinzento cobria-lhe todo o corpo* as aranhas teciam suasteias sobre sua cabea " " "

# ali continuava, sempre im$vel, aquele pobre diabo velho, tão amante do bem"

MMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMM

8 autor >-

C#8NA/ N/#A#6 nasceu em 8rel, %ssia, de origem muito humilde" t os trintaanos de idade curtiu misria sem conta, a ponto de passar dias e dias sem ter comque se alimentar" 'hegou mesmo a atentar contra a pr$pria e&ist5ncia"

 inda no hospital, percebeu o engano que cometera" 'ompreendeu que o sofrimento,

no fundo, o fortalecera e que o homem poderia vencer tudo, menos o destino" pesar de todos os reveses, prosseguiu, nos estudos e formou-se em direito"

Não possuindo vocaão para, a carreira, dedica-se inteiramente ! literatura e ao jornalismo" 3uas primeiras novelas alcanam relativo sucesso"

1olstoi -- em plena gl$ria -- sa%da-o com entusiasmo" 8s editores mostram-se ainteressados em seu livros - que ele publica continuamente at OPP, quando faleceem condi:es misteriosas, na 0inl2ndia, onde se e&ilara de cinco anos antes"

Ningum o l5 sem sentir uma grande compai&ão pelos infelizes que povoam a suaobra literária" .orque as imagens de tragdia e de amargura desse estranho pintor de

vencidos são desenhadas com matizes novos, inesperados e comple&os de um estilorevoltado, impetuoso e torturantemente pessoal"#m geral, os trabalhos de ndreievrefletem a vida sombria e atormentada dos que já perderam todas as esperanas,todas as ilus:es"

 t mesmo o humor com que tenta, por vezes, impregnar esta ou aquela hist$ria, --embora com ironia -- provocam, as vezes, arrepios de terror"

3empre chama nossa atenão para o lado profundamente trágico e cruel da vida,fustigando o ego+smo e a impiedade, a covardia e a brutalidade humanas, mas sem am+nima esperana, desiludido do efeito de suas pr$prios palavras"

'olocado entre os grandes pessimistas, ndreiev desce ao 2mago das misrias que orodeiam, não hesitando nem mesmo diante do m$rbido, tudo e&pondo com uma

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crueza quase selvagem" d%vida sempre o atormenta e por isso mesmo, da suanumerosa bagagem literária (contos, novelas, romances, dramas, comdias) poucostrabalhos refletirão tão nitidamente a sua personalidade como 7 'onversão do/iabo7" marga ironia, completo fracasso diante dasconting5ncias da vida, inutilidade de um destino, e&peri5ncias e sofrimentos para, nofim de tudo, resultar em nada, absolutamente nada"