A CORRESPONDÊNCIA DE FRADIQUE, DE EÇA DE QUEIRÓS...
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X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
A CORRESPONDÊNCIA DE FRADIQUE, DE EÇA DE QUEIRÓS E O ENIGMA DAS CARTAS
INÉDITAS DE EÇA DE QUEIRÓS, DE JOSÉ ANTONIO MARCOS: UMA LEITURA
INTERTEXTUAL
Inês Cardin Bressan (Doutoranda – UNESP/Assis/SP)
RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar uma análise intertextual entre as obras A correspondência de Fradique, de Eça de Queirós (1952) e O Enigma das Cartas Inéditas de Eça de Queirós (1996), de José Antonio Marcos. Um levantamento preliminar demonstra que há pouca fortuna crítica referente à terceira fase de Eça, mais especificamente à obra supracitada. Há que se considerar também, que a obra de José Antonio Marcos tem a intertextualidade como foco principal, e a busca destes intertextos justificam e motivam uma pesquisa neste sentido. De caráter bibliográfico, e fundamentado em Bakhtin e Genette, este estudo abrirá espaço para alguns debates, enriquecerá o percurso dos atuais pesquisadores, servindo-lhes de motivação para novos caminhos, e também colaborará para o conhecimento do universo da personagem Fradique Mendes. PALAVRAS-CHAVE: Eça de Queirós; Fradique Mendes; intertextualidade; José Antonio Marcos.
1. Introdução
A busca incessante pelo conhecimento faz o homem atingir objetivos jamais
imaginados. Porém, todo conhecimento novo parte de um anterior. Com a literatura não é
diferente. Uma escola literária ou um texto literário não desaparece se outro o suplanta. O que
ocorre é um processo, pelo qual, os textos e as obras se transformam. A reescritura da palavra
dos outros é um dos modos de se caminhar neste universo que é a produção de textos literários.
Neste segmento, alguns estudiosos debruçaram-se sobre a intertextualidade, ora convergindo
para as mesmas ideias, ora opondo-se a elas.
Julia Kristeva (1974, p. 64) reportando-se a Bakhtin, cita a teoria literária de que “todo o
texto se constrói como um mosaico de citações, todo o texto é absorção e transformação de um
outro texto”. Tal pressuposto sugere um olhar reflexivo sobre as referências textuais presentes
nas produções literárias. Em razão disto, neste artigo pretende-se estabelecer uma análise
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intertextual entre as obras A correspondência de Fradique Mendes (1952), de Eça de Queirós,
escritor do Realismo-Naturalismo português, e O Enigma das Cartas Inéditas de Eça de Queirós
(1996), de José Antonio Marcos, livro cujo foco principal é a intertextualidade.
Embora A correspondência de Fradique Mendes tenha sido retomada em publicações
literárias nos títulos contemporâneos, um levantamento preliminar demonstra que há poucos
estudos críticos referentes à terceira fase de Eça, justificando assim a escolha e a motivação
pelo tema.
2. BAKHTIN: dialogismo
No final dos anos de 1920, Bakhtin (1988) identifica, sobretudo no romance, a
modalidade expressiva da dialogia. Segundo ele, no texto dialógico estão presentes vozes de
outros e a riqueza do texto está justamente no número delas contidas nele. Este diálogo entre os
diferentes pontos de vista tem como efeito a polifonia. Para ele:
Qualquer conversa é repleta de transmissões e interpretações das palavras dos outros. A todo instante se encontra nas conversas ‘uma citação’ ou ‘uma referência’ àquilo que disse uma determinada pessoa, ao que ‘se diz’ ou àquilo que ‘todos dizem’, às palavras de um interlocutor, às nossas próprias palavras anteriormente ditas, a um jornal, a um decreto, a um documento, a um livro, etc. (BAKHTIN, 1988, p.140).
O autor afirma ainda que tudo o que se é pronunciado no cotidiano provém de outros
discursos. A discussão de uma obra literária pelos críticos, ou por quaisquer outros grupos
acadêmicos se efetiva sobre a relação, a interpretação, a apreciação do que está escrito nela, a
maneira como foi criada, a sua estrutura formal, a intenção do autor, enfim, toda a discussão terá
como foco um texto já produzido. Se publicada, esta reflexão gerará outras mais, e neste
processo, leva-se a efeito a teoria bakhtiniana de que todo texto se faz de outros já elaborados.
A correspondência de Fradique Mendes (1900) de Eça de Queirós é um exemplo de obra, que
por muitas vezes foi retomada por outros autores na contemporaneidade. Neste trabalho, no
entanto, será utilizada a teoria de Gérard Genette sobre as relações transtextuais entre as
publicações literárias.
Na visão de Genette (2006, p. 8), há cinco tipos de relações transtextuais. A primeira é
a intertextualidade, “que é a relação de co-presença entre dois ou vários textos, isto é,
essencialmente, e o mais frequentemente, como presença efetiva de um texto em outro” através
da citação, com aspas, ou sem referência precisa; o plágio, um empréstimo não declarado,
literal; a alusão, (GENETTE, 2006, p. 8) “um enunciado cuja compreensão supõe a percepção de
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uma relação entre ele e um outro, ao qual necessariamente uma de suas inflexões remete” e que
seriam impossíveis de outro modo. O segundo tipo é a paratextualidade, que possui uma relação
menos explícita com a obra literária. São exemplos de paratextualidade “títulos, subtítulos,
intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim
de texto, epígrafes, ilustrações, errata, orelha, capa e tantos outros tipos de sinais acessórios
[...]” (GENETTE, 2006, p. 9).
Ainda segundo o mesmo autor, o terceiro tipo é a metatextualidade, que é “a relação,
chamada mais correntemente de ‘comentário’, que une um texto a outro texto do qual ele fala,
sem necessariamente citá-lo (convocá-lo), até mesmo, em último caso, sem nomeá-lo. É uma
relação crítica por excelência (GENETTE, 2006, p. 11). O quarto tipo é a arquitextualidade, que
para Genette (1996), é o mais abstrato e o mais implícito. “Trata-se aqui de uma relação
completamente silenciosa, que, no máximo, articula apenas uma menção paratextual”
(GENETTE, 2006, p. 11). E, finalmente, o quinto tipo, que é a hipertextualidade, que é “toda
relação que une um texto B (que chamarei de hipertexto) a um texto anterior A (que,
naturalmente, chamarei de hipotexto) do qual ele brota, de uma forma que não é a do
comentário” (GENETTE, 2006, p. 12). É o texto derivado de um outro preexistente. Genette
(2006, p.16) chama de “hipertexto qualquer texto derivado de um texto anterior, por
transformação simples ou por transformação indireta”.
3. A presença de Fradique Mendes em diferentes épocas
Tanto ontem como hoje, cem anos após a morte de Eça de Queirós, ele é lido, relido e
estudado por muitos brasileiros e portugueses. Tamanha permanência na memória cultural é
sinal irrefutável de seu valor artístico literário. Para Isabel Pires de Lima (2000):
A actualidade e a perenidade de um escritor decorrem, sobretudo da capacidade de os seus textos gerarem sempre novos leitores, produzirem ao longo do tempo novas interpretações, convidarem à constante revisitação. Quando essa revisitação se manifesta através de incorporação do texto ou do universo imaginário do autor por parte de um par, quando uma obra do autor invade um século depois a de um outro criador, quando um jogo intertextual deste tipo se estabelece não apenas como um outro criador, mas com uma série de outros criadores de diversas épocas e até de diversas nacionalidades, como é o caso de Eça de Queirós, então estamos perante um escritor que, decididamente ultrapassou o tempo e é ele mesmo disseminador de arte (LIMA, 2000, p. 69).
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Eça tem sido constantemente retomado por autores contemporâneos, é o que se
confirma em Lima (2000):
Restringindo-me ao campo restrito da Literatura Portuguesa e centrando-me apenas na literatura das três últimas décadas, são muito diferentes os escritores que de maneira diversa, e com eficácia revisitaram a obra de Eça de Queirós em processo de reficcionalização intertextual. Pode-se referir desde o brasileiro Gilberto Freire, em O outro amor do Dr. Paulo (1977), ao angolano José Eduardo Agualusa em Nação Crioula (1997) passando pelos portugueses Mário Cláudio, em As Batalhas do Caia (1995), José António Marcos em O Enigma das Cartas Inéditas de Eça de Queirós (1996), Norberto Ávila, em No mais profundo das águas (1998), Fernando Venâncio em Os esquemas de Fradique (1999), Maria Velho da Costa, em Madame (1999), Nuno Júdice , em “Agonia” (A árvore dos milagres, 2000), para além dos autores de inúmeras adaptações teatrais e cinematográficas a que as obras de Eça de Queirós tem dado origem (LIMA, 2000, p. 70).
Porém, o que se faz objeto deste artigo é a presença de intertextos queirosianos na
obra O enigma das cartas inéditas de Eça de Queirós, de José António Marcos.
3. 1. A correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queirós
A correspondência de Fradique Mendes trata de uma obra escrita por Eça de Queirós,
na sua terceira fase: 1889-1890. Nela, o autor cria um personagem com nuanças de perfeição
para oferecer ao leitor todas as possibilidades de idealização.
O livro é dividido em duas partes: na primeira, “Memórias e Notas”, há a apresentação
da personagem pelo narrador homodiegético que não menciona, em momento algum, dados
sobre sua identidade. Tal apresentação funciona como uma introdução às “Cartas”, que foram o
que restou de uma personagem viajada e sofisticada, apresentada ao leitor como se realmente
tivesse existido. Eça de Queirós, entre o real e o ficcional, utiliza-se na diegese, de personagens
autênticas, de pessoas que realmente existiram e que são apresentadas com os seus reais
nomes. J. Teixeira de Azevedo (Batalha Reis), Antero de Quental, Oliveira Martins e Ramalho
Ortigão são usados no texto como se tivessem convivido com a personagem Fradique Mendes,
o que dá um tom de veracidade à obra, levando o leitor a crer que Fradique é real.
No capítulo primeiro e nos seguintes, há a apresentação do personagem, Fradique
Mendes que é uma pessoa bem sucedida, sofisticada e bem relacionada, também são
mostradas as suas características e seus relacionamentos, crendices e muitos outros dados.
No capítulo quatro, há a menção de Notícias e Comentários que o narrador recebe de
Fradique. Eles trocam cartas, e a idealização da personagem encontra o seu ápice. Há ainda a
menção de uma mulher, possivelmente Clara? Objeto de amor das correspondências.
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O capítulo cinco, ao ser comparado com os outros, é extremamente longo, e nele
ocorrem vários momentos, viagens, opiniões e política. No capítulo seis, há menção às mulheres.
A rotina do personagem principal remete à Cidade e as Serras, pois é parecida com a rotina de
Jacinto, protagonista da narrativa. Fradique morre. Por conta da troca de um casaco, e por pura
teimosia, não admite ter que usar uma peça de outra pessoa, sai no frio desagasalhado e contrai
uma gripe. Morre sutilmente, a ponto de Smith (o mordomo) pensá-lo dormindo. No funeral, há
presença de altas personalidades e seu jazigo ficou próximo ao de Balzac. Nos capítulos sete e
oito, há indicações de que Fradique Mendes tenha deixado alguns manuscritos em uma arca.
Propaga-se um boato de que ele tenha tido um affair, na Rússia, com Madame Lobrinska,
confirmando a tese de que ele esteve em muitos lugares. Em seguida, o narrador mostra seu
propósito de compilar as cartas, o que levou um ano para a realização. Embora seja português,
Fradique Mendes, ainda que ideologicamente perfeito, desejava estar pouco em Portugal.
Na segunda parte do livro, “As Cartas”, são apresentadas as cartas escritas por
Fradique Mendes. Ao todo são nove cartas a senhoras e sete dirigidas aos homens.
Esquematizando, fica desta forma: cartas cujos destinatários são femininos: Madame de Jouarre,
Clara, Madame S.; Cartas cujos destinatários são masculinos: Visconde de A. T, Oliveira Martins,
Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão, Sr. E. Mollinet, Mr. Bertrand B., Bento de S., Eduardo Prado.
No livro há ainda uma parte chamada “Mais duas cartas de Fradique Mendes”, e os
editores, em “uma observação”, apontam que tiveram conhecimento pelo jornal A Gazeta de
Notícias, de 27 de novembro de 1882, de mais duas cartas de Fradique Mendes a Clara e a
Eduardo Prado. Na de número XVII, ele escreve a Clara que viajará e acredita ser até um
desaparecimento. Então, finaliza seu relacionamento com ela, permeando o texto de linguagem
poética. Na última escrita a Eduardo Prado, ele tece críticas ao Brasil.
3.2 O enigma das cartas inéditas de Eça de Queirós, de José Antonio Marcos
O livro em questão trata de uma narrativa com características de romance policial, pois
há um suicídio e um assassinato. O narrador é heterodiegético, ou seja, em terceira pessoa, e
oferece informações sobre o panorama do crime, porém, em um clima morno de mistério,
diferente dos romances policiais. A narrativa inicia-se com o suicídio de um personagem, que era
portador de umas cartas, cuja autoria era atribuída a Eça de Queirós. A viúva recolhe-as e as
entrega ao melhor amigo do marido, acreditando ser esta a melhor opção, visto que para ela não
havia valor nas cartas.
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Dr. Ladeiro, de posse das correspondências, mostra-as a um outro personagem, que
possui autoridade para dizer se elas são autênticas ou não. Ao que ele alega não serem de
autoria de Eça de Queirós. No entanto, o avaliador das cartas não consegue crédito pelo Dr.
Ladeiro. Nesse ínterim, o mesmo doutor pede a mão de Cecília (a viúva do suicida) e marca uma
festa de aniversário para que se reúnam, em uma chácara, da qual ele era dono, a fim de
comemorar os anos idos, anunciar seu noivado e fazerem a leitura das cartas. Na primeira noite,
Dr. Ladeiro é assassinado, e os escritos de Eça também desaparecem e surgem queimados,
destruídos. A polícia encontra o assassino, que era um pretendente de Cecília e amigo próximo
do Dr. Ladeiro. Em suma, as cartas desapareceram e não é esclarecida a autoria autêntica delas.
Cecília ainda encontra mais duas cartas, que estavam com os papéis do falecido marido e as
entrega ao Dr. Pintado. Em número de duas, uma assinada por Eça e a outra por Fradique. Ele
as guarda e resolve não falar delas, pelo menos por enquanto.
O narrador deixa também um Post scriptum, no qual afirma serem as cartas de autoria
de Eça de Queirós, porém a opinião dele, pouco vale, então ficam as coisas como já estavam
anteriormente.
Os intertextos presentes no romance intrigam desde a primeira leitura. Como Eça de
Queirós, José António Marcos também mistura pessoas que existiram realmente aos
personagens ficcionais dando um tom de veracidade à obra.
4. De mãos dadas com Eça de Queirós
O paratexto “Cristo deu-nos o amor, Robespierre a liberdade; Malheiros deu-nos três
pintos; Qual deles deu a verdade?” (MARCOS, 1996, p. 3) que abre o romance de José António
Marcos estabelece uma intertextualidade explícita com Prosas Bárbaras, de Eça de Queirós, no
sentido de que foi justamente para demonstrar o clima lúgubre e macabro que serão
encontrados diante do suicídio do personagem João Abel, o assassinato do Dr. Ladeira e o
desaparecimento das Cartas de Eça de Queirós. Embora em Prosas Bárbaras a temática seja a
presença do macabro, do sinistro, da morte e do satanismo, no livro de O enigma das cartas
Inéditas de Eça de Queirós, essa lugubridade é apontada de forma mais sutil. São poucos os
trechos em que há sua presença:
Procurava e adormecer já sentia o sono aproximar-se quando, ritmados e imperiosos, sentiu na escada passos quase imperceptíveis, inexplicáveis àquela hora. O seu quarto ficava mesmo em frente do último patamar. Olhou o relógio: três e meia da madrugada. Toda a gente dormia – excepto o dr. Ladeiro e a pessoa que subia inexoravelmente as
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escadas. A menos que se tratasse daquele estado intermédio de sonolência em que o sonho se confunde com a realidade, freqüente quando se tomam comprimidos soníferos. Curiosamente veio-lhe à ideia o tremendo Hitchcok e os seus habituais truques cinematográficos de suspense. Mas ali não havia cinema, nem truques, nem sonhos. Era a realidade pura e simples – e isto, pelo que tinha de inexplicável e fantasmagórico, fez-lhe saltar no peito o coração já demasiado acelerado (MARCOS, 1996, p. 134).
Em Prosas Bárbaras (1912), há também a presença constante do destino, é ele quem
rege os personagens, assim como na obra de José António Marcos, porém nela o percurso
desta temática não é tão frequentemente retomado, como é visto em Prosas Bárbaras:
Outro instou para que se forrasse o quarto com as folhas dos compêndios; eu opus-me asperamente a isso, dando as mesmas dolorosas razões que daria um preso, se lhe quisessem forrar as paredes da enxovia com um tecido feito dos seus próprios remorsos! Tirou-se à sorte. Destinou a sorte que se forrassem as paredes com pele humana. Dispersámo-nos, lentos e tristes, para ir assassinar gente!
Reunia-se ali um concílio formidável (QUEIRÓS, 1912, p. 186).
N’O enigma das Cartas Inéditas de Eça de Queirós, a responsabilidade ao Destino
pelos acontecimentos é mostrada ao ser atribuído a ela os fatos da vida da personagem viúva,
deixando entrever que ela está fadada a ficar sempre sozinha; o tom místico e supersticioso
evidencia-se:
__ Eu não sou supersticiosa, mas neste caso acredito mesmo no mau-olhado! – disse, por fim, Dona Mercedes. – então a rapariga casa com um rapaz que primeiro endoidece e depois se mata; e quando se prepara para casar outra vez, mata-lhe o futuro marido! E, ainda por cima, quem mata o futuro marido é o melhor amigo da rapariga, o general. Nem uma fita americana, senhor professor! Eu acredito piamente no mau-olhado e a Cecília, coitadita, acredita tanto ou mais que eu. Quando, pouco depois da tragédia, fomos visitá-la e à mãe, eu disse-lhe, para animar, que melhores tempos viriam, que ela era ainda muito nova para refazer sua vida e coisas assim. Ela respondeu, com um sorriso triste, que o Destino não queria vê-la casada e que ela iria fazer a vontade ao Destino. O Destino ou o Demônio, digo eu (MARCOS, 1996, p.188).
Há que se marcar a alusão ao estilo vista em Prosas Bárbaras, quando o comandante
Cerqueira, n’O enigma das Cartas, discute sobre o enterro do João Abel, com um arquiteto,
mostra certo cinismo ao tratar dos protocolos do funeral:
__ E a sua capacidade em se iludirem, em se distraírem, em fugirem à insuportável realidade da morte. Utilizar um caixão bonito, todo coberto de flores e organizar um cortejo com rituais solenes, equivale a deitar fora a dita embalagem vazia, cuidadosamente embrulhada num papel colorido de fantasia, apertado por um laçarote encarnado. Reconheçam que é uma forma grotesca de alguém se desembaraçar do lixo [...] (MARCOS, 1996, p. 186).
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Trata-se aqui de uma relação silenciosa, como apregoa Genette, pois não há nada
expresso claramente, no entanto a temática se aproxima. Assim como em Prosas Bárbaras,
ocorre uma reflexão sobre a morte, na enfermeira e no paciente há um certo respeito quanto ao
passamento dele. Entretanto, além do pouco caso dos quatro homens que riam e bebiam e
cantavam más cantigas, percebe-se na voz do narrador certa carga irônica, pois o corpo tem o
destino dos pobres.
Quando sentiu a enfermeira, voltou-se e disse-lhe, quase a chorar: “Deixo o meu corpo aos rios, às árvores, às abelhas, aos montes, às searas, a toda a mãe-natureza”. Depois curvou-se, beijou a orla do vestido da enfermeira, e ficou-se enroscado no chão, frio e inerte. A enfermeira pousou a luz do retábulo junto do corpo, tirou a toalha da virgem, e estendeu-a sobre a face pálida e triste, transfigurada pela beleza sagrada e espiritual da morte. Ao outro dia de madrugada, quatro homens que riam de farsas da taberna, e cantavam más cantigas, levaram aquele branco corpo à vala dos pobres (QUEIRÓS, 1912, p. 97).
Logo de início, na obra O enigma das cartas inéditas de Eça de Queirós, é marcado o
tom intertextual do livro, pois, ocorre uma intertextualidade explícita, que ao longo da leitura será
frequentemente retomada.
O personagem João Abel, ao optar pelo suicídio, busca antes fazer uma leitura
prazerosa e tem às mãos, um volume d’A correspondência de Fradique Mendes, pois acreditava
ser ela uma leitura ideal para um ritual de despedida, há que se observar também, uma grande
aproximação ao estilo de Eça, na presença de muitos adjetivos:
Levantou-se e foi buscar a Correspondência de Fradique Mendes. Como ritual de despedida não estava mal a leitura de algumas linhas saídas da pena insuperável do Eça de Queirós, o criador daquela espécie de heterônimo tão fascinante. Fradique era, com efeito, o homem mais culto, mais inteligente, mais educado, mais viajado, mais forte, mais elegante, mas bem vestido, mais saudável, mais requintado e mais irreal da criação (MARCOS, 1996, p.10)
N’A correspondência, o estilo de Eça de Queirós perfaz-se no decorrer da narrativa,
que embora sendo cartas, apresentam descrições minuciosas e a presença de adjetivos, tão
peculiar do autor, que pode ser observado:
Depois escurece, já há pirilampos nas sebes. Vénus, pequenina, cintila no alto. A sala, em cima, está cheia de livros, dos livros fechados no tempo dos Crúzios – porque só desde que não pertence a uma ordem espiritual, é que esta casa se espiritualizou. E o dia na quinta finda com uma lenta e quieta palestra sobre idéias e letras, enquanto a guitarra al lado geme algum dos fados de Portugal, longo em saudades e em ais, e a Lua, ao fundo da varanda, uma lua vermelha e cheia, surge como a escutar, por detrás dos negros montes (QUEIRÓS, 1952, p. 194).
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O narrador imprime sua admiração e seu respeito pelo escritor Eça de Queirós em
quase todos os momentos do livro. Tanto ao apresentar o personagem como um Eçólatra, como
também ao fazer referência ao estilo do autor e pontuar sua fortuna crítica:
Condições estas mais do que propícias para, entre outras coisas, dar largas à antiga obsessão de coleccionar tudo aquilo, que directa ou indirectamente, dissesse respeito ao idolatrado autor de Os Maias, desde as primeiras edições das suas obras, desde as traduções publicadas no estrangeiro até às biografias, ensaios, artigos de jornais desde que tivessem por objecto a vida e a obra de Eça de Queirós (MARCOS, 1996, p. 29).
Além de fazer referências ao estilo de Eça de Queirós, justifica alguns dos defeitos
gráficos, que algumas vezes apresentam nas suas obras, remindo o escritor, alvo de seu
discurso laudatório, de qualquer transgressão ou mácula:
Você sabe como foi implacável a sua luta contra a imperfeição, em que cada período saído da sua pena era trabalhado, torturado, filtrado mil vezes, chegando a transformar num inferno a vida dos pobres tipógrafos, que viam as suas provas sucessivamente inutilizadas [...] Por isso é que, de um modo geral, toda a sua obra póstuma apresenta defeitos notórios, desequilíbrios formais evidentes, ideias e situações meramente esboçadas e até falsificações, pois há especialistas que afirmam terem sido introduzidas, nas obras póstumas do Eça, palavras ou até frases que não foram escritas por ele (MARCOS, 1996, p. 31)
Em seguida, ao descrever um trecho de uma carta que Fradique enviou à Madame
Jouarre, evidencia-se a iminência da tragédia. Há que se considerar, que o personagem quando
da última briga com a esposa Cecília, ela lhe havia declarado tê-lo traído. Ao retomar a carta,
justamente, ele o faz do fragmento em que são citados Petrarca e Laura; Romeu e Julieta. Num
ritual macabro, a morte lhe aguarda após a ingestão dos barbitúricos.
A intertextualidade dá o tom desta obra. É difícil um capítulo em que não haja várias
referências ao escritor Eça de Queirós, porém esta é feita de maneira a edificar o texto primeiro.
Ou como requer Genette (2006), o hipertexto A, A correspondência de Fradique Mendes é
revisitado frequentemente por José António Marcos, o que gerou/brotou o hipotexto B O enigma
das Cartas de Eça de Queirós.
O ponto forte do livro de Marcos, levando em consideração da intertextualidade com as
obras de Eça, é que o romance se pauta em um enigma, que mal chega ao final, com a
incineração das cartas pelo assassino, desperta outra possibilidade de nova escritura de outro
livro, pois restaram duas cartas, que a viúva encontrou nos papéis do falecido: “Iria, pois, guardar
aquelas cartas dactilografadas, pensaria nos problemas que elas suscitavam – mas não falaria a
ninguém pelos tempos mais próximos” (MARCOS, 1996, p.184).
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No decorrer da leitura é possível perceber um tom elogioso ao escritor Eça, retomado a
cada capítulo, e por várias vezes. Em alguns momentos, há também referência ao legado
deixado por Eça de Queirós:
Costumava dizer que era jornalista ‘por desfastio’, pois tinha de sobra com que viver. Grande admirador de Eça de Queirós, sem ser fanático como seu companheiro de mesa, costumava também afirmar, sobretudo nos meios em que tal afirmação provocava escândalo ou irritação, que fora o Eça quem ensinara a escrever, com simplicidade, elegância e propriedade, os milhares de jornalistas, políticos, directores-gerais, diplomatas, advogados, juízes e, enfim, a generalidade dos intelectuais portugueses de todo o século XX (MARCOS, 1996, p. 32).
Desta forma podemos perceber que o narrador não descreve os fatos sem querer
imputar certo juízo de valor aos escritos de Eça de Queirós. Portanto, a principal característica
do romance, centra-se no seu caráter dialógico (comunicação com outros discursos) e
intertextual (referências/alusão a outras obras), pois o tempo todo ele dialoga com outros textos
literários.
O enigma das cartas inéditas de Eça de Queirós não surgiu somente a partir d’A
correspondência de Fradique Mendes, embora abundem referências a ela, no interior do texto. O
que ocorreu foi que, o estilo de Eça de Queirós assim como algumas de suas obras, foram
utilizados como hipotexto e revisitadas para a produção de José António Marcos. Porém, que lhe
seja atribuído o devido valor, pois sua obra além de ser cunhada pela intertextualidade, foi
construída com extremo cuidado de revisitação por tantos intertextos presentes nela.
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