A correspondência jesuítica e a vivência religiosa dos ... · 1 Ao mencionarmos práticas...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL RAFAEL CESAR SCABIN A correspondência jesuítica e a vivência religiosa dos colonos do planalto paulista (1549-1588) (VERSÃO CORRIGIDA) São Paulo 2012

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

RAFAEL CESAR SCABIN

A correspondência jesuítica e a vivência religiosa dos

colonos do planalto paulista (1549-1588)

(VERSÃO CORRIGIDA)

São Paulo

2012

RAFAEL CESAR SCABIN

A correspondência jesuítica e a vivência religiosa dos

colonos do planalto paulista (1549-1588)

(VERSÃO CORRIGIDA)

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em História da Faculdade

de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo, para a obtenção

do título de Mestre em História Social.

Área de Concentração: História Social.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Roberto

Figueiredo Nogueira.

São Paulo

2012

AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE

TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA

FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

Scabin, Rafael Cesar

A correspondência jesuítica e a vivência religiosa dos colonos do planalto paulista

(1549-1588). / Rafael Cesar Scabin; Orientador: Professor Doutor Carlos Roberto

Figueiredo Nogueira – São Paulo, 2012.

121 fl: fig

Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em História, Área de

Concentração: História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo, 2012.

Nome: SCABIN, Rafael Cesar

Título: “A correspondência jesuítica e a vivência religiosa dos colonos do planalto paulista

(1549-1588)”

Dissertação apresentada à Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo para obtenção do

título de Mestre em História Social.

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. ___________________________ Instituição:________________________

Julgamento:_________________________ Assinatura:________________________

Prof. Dr. ___________________________ Instituição:________________________

Julgamento:_________________________ Assinatura:________________________

Prof. Dr. ___________________________ Instituição:________________________

Julgamento:_________________________ Assinatura:________________________

AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, ao Professor Carlos Roberto Figueiredo Nogueira pela

confiança e interesse com que aceitou e levou adiante a orientação da presente pesquisa.

Mestre com quem compartilho o interesse pelos aspectos mais concretos e cotidianos das

religiões e com quem aprendi a importante lição de que a seriedade não precisa de cara feia.

Agradeço também ao Professor Adone Agnolin pela gentileza e disposição com que

atendeu às minhas impertinentes solicitações. Às professoras Raquel Glezer e Sara Albieri,

integrantes da banca de qualificação, que deram sugestões indispensáveis para a estruturação

dos capítulos e subitens, além de importantes indicações conceituais e bibliográficas. As

disciplinas lecionadas pelas professoras Julieta Araújo, Ana Paula Megiani e Antonella

Romano abriram caminhos e corrigiram deslizes. Agradeço ainda aos professores José Carlos

Vilardaga, que gentilmente enviou-me uma cópia de sua tese, Carlos Alberto Zeron e Rafael

Ruiz Gonzalez.

Devo, aos membros do Grupo de Estudos Medievais Portugueses (GEMPO),

valiosas sugestões à pesquisa e os benefícios de um rico ambiente de debate historiográfico.

Agradeço especialmente à Candice Quinelato, pela cuidadosa revisão do texto, e ao Bruno

Miranda, pelo acolhimento em sua casa durante as consultas ao acervo da Biblioteca

Nacional.

Em relação ao suporte pessoal, sou profundamente grato ao incentivo e auxílio dos

meus pais, Luiz e Cristina Scabin, aos quais nunca poderei retribuir à altura. Agradeço a todos

os amigos e parentes que estiveram presentes nesse período, principalmente Igor Koga, Lívia

Sena, Leandro Aiosa e minha companheira Marília Mangueira. Finalmente, agradeço à

Camila Bernardino, pela amizade e ajuda com os aspectos burocráticos da dissertação, e ao

Glaumer Alves, que fez por mim nesse período mais do que se poderia esperar de um amigo.

Aqueles que aceitam a noção da Igreja como uma

instituição divina que é diferente de outras instituições

devem enfrentar a dificuldade de que a história da Igreja

revela de forma bastante óbvia uma mistura contínua de

aspectos políticos e religiosos. [...] Em contraste, os

historiadores da Igreja que a vêem como uma instituição do

mundo têm de lidar com a dificuldade de descrever sem a

ajuda da crença o que existiu apenas com a ajuda de uma

crença.

Arnaldo Momigliano, “As origens

da historiografia eclesiástica”.

RESUMO

SCABIN, Rafael Cesar. A correspondência jesuítica e a vivência religiosa dos colonos do

planalto paulista (1549-1588). 2012. 121 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-

Graduação em História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,

Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

Grande parte do que sabemos a respeito do planalto paulista no século XVI provém das cartas

jesuíticas, fontes documentais de extraordinária riqueza, produzidas por meio de uma prática

textual regida por parâmetros bastante específicos e parte fundamental da atividade

missionária da Companhia de Jesus. Uma tradição historiográfica longa e influente buscou na

correspondência jesuítica elementos que ajudaram a compor certas imagens tradicionais

acerca da vida no planalto paulista colonial e das características de seus moradores, discutidas

e problematizadas nas pesquisas mais recentes. Dentre estas imagens tradicionais, a ideia de

que os moradores das vilas de Santo André da Borda do Campo e São Paulo de Piratininga

davam pouca atenção à Igreja ou à vida cristã em geral ecoa ainda em estudos recentes. Esta

ideia baseia-se na articulação entre as narrativas epistolares quinhentistas, algumas referências

documentais do século posterior e o paradigma historiográfico da especificidade paulista.

Entretanto, por meio de uma análise sistemática das cartas jesuíticas do século XVI, centrada

na consideração de sua estrutura retórica e formal, é possível decompor estas camadas

interpretativas e problematizar a prática discursiva da comunicação epistolar da Companhia

de Jesus, no que se refere à vivência religiosa dos colonos do planalto paulista. Dessa forma,

recupera-se a dimensão política de acusações como “indianização” dos costumes, desrespeito

às autoridades ou vida pecaminosa.

Palavras-chave: São Paulo colonial, Companhia de Jesus, Epistolografia, Igreja,

Interculturalidade

ABSTRACT

SCABIN, Rafael Cesar. The Jesuit letters and religious experience of the colonists of the

Paulista Plateau (1549-1588). 2012. 121 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-

Graduação em História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,

Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

Much of what we know about the Paulista Plateau in the sixteenth century stems from Jesuitic

letters, documentary sources of extraordinary wealth, produced through a textual practice

governed by very specific parameters and fundamental part of the missionary activity of the

Society of Jesus. A long and influential historiographical tradition searched elements in the

Jesuitic correspondence that have helped to compose some traditional images about life in the

colonial Paulista Plateau and the characteristics of its residents, which have been discussed

and problematized in the latest researches. Among these traditional images, the idea that the

villagers of Santo André da Borda do Campo and São Paulo de Piratininga paid little attention

to the Church or the Christian life in general still echoes in recent studies. This idea is based

on the articulation between the epistolary narratives of the sixteenth century, some

documentary references from the subsequent century and the historiographical paradigm of

paulista specificity. However, by means of a systematic analysis of the Jesuitic letters from

the sixteenth-century, focused in the consideration of its formal and rhetorical structure, it is

possible to decompose these interpretative layers and problematize the discursive practice of

the epistolary communication of the Society of Jesus, in relation to the religious experience of

the settlers of the Paulista Plateau. Thus, it is recovered the political dimension of accusations

as "Indianization" of manners, disrespect for authority or sinful life.

Keywords: Colonial São Paulo, Society of Jesus, Epistolography, Church, Interculturality

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Mapa 1 - Povoamento do Território Paulista no século XVI............................................... 17

Figura 1 - Assinatura de João Ramalho presente em ata da Câmara de Santo André........... 58

LISTA DE SIGLAS

ACVSP

ARSI

IHGB

IHGSP

MB

RIHGB

RIHGSP

Atas da Câmara da vila de São Paulo

Archivum Romanum Societatis Iesu

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo

Monumenta Brasiliae

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO __________________________________________________________ 11

CAPÍTULO 1: COLONOS, JESUÍTAS E ATIVIDADE EPISTOLOGRÁFICA _____ 22

1.1. Escrita e circulação das cartas jesuíticas ___________________________________ 23

1.2. O lugar dos colonos do planalto paulista nas cartas jesuíticas___________________ 37

1.3. O Caso de João Ramalho _______________________________________________ 53

CAPÍTULO 2: A VIVÊNCIA RELIGIOSA DOS COLONOS:

INTERCULTURALIDADE E DIMENSÃO POLÍTICA _________________________ 76

2.1. Os “costumes gentílicos” _______________________________________________ 77

2.2. A mancebia _________________________________________________________ 90

2.3. Administração de sacramentos __________________________________________ 99

CONSIDERAÇÕES FINAIS _______________________________________________ 104

BIBLIOGRAFIA ________________________________________________________ 113

11

INTRODUÇÃO

12

A presente pesquisa teve como estímulo inicial a seguinte questão: como se dava a

vivência religiosa cotidiana dos colonos paulistas durante o período inicial de ocupação

portuguesa no planalto, em meio à escassa presença institucional da Igreja? Esta questão,

neste formato amplo e ainda pouco desenvolvido, era animada por um interesse nas relações

entre práticas religiosas populares e a ortodoxia católica1. As potencialidades do contexto

paulista do século XVI para atender a esses interesses foram sugeridas, principalmente, pela

leitura das obras de Sérgio Buarque de Holanda, Richard Morse e John Monteiro2.

Durante a consulta bibliográfica que se seguiu, ficou imediatamente claro o papel

central que a correspondência jesuítica cumpria em relação àquilo que sabemos sobre as

práticas religiosas cotidianas no planalto paulista quinhentista. Esse material já foi

exaustivamente lido e relido, submetido a revisões metodológicas diversas, e é quase

onipresente na historiografia que trata do período colonial brasileiro. Mesmo parecendo não

haver muito mais a ser dito a respeito das cartas jesuíticas, sua análise, no que se refere ao

nosso tema, não parece ter acompanhado a profunda e longa revisão metodológica que se

desenvolveu na abordagem de outros temas, como a escravidão indígena, a vida material no

planalto paulista, os aldeamentos jesuítas ou o processo de evangelização dos nativos. Como

consequência, é possível perceber na historiografia sobre o primeiro século paulista a

persistência de imagens tradicionais de São Paulo e seus povoadores, ligadas a uma leitura

fragmentária e pouco crítica dessas fontes.

A correspondência dos missionários jesuítas do Brasil é utilizada como fonte para a

descrição da realidade americana desde a própria época de sua escrita. Giovanni Botero, no

final do século XVI, valia-se desse material para descrever essa região em suas Relazioni

Universali, tratado de geografia política universal3. A utilização das narrativas epistolares na

composição de outros textos era corriqueira na Companhia de Jesus desde o século XVI,

1 Ao mencionarmos práticas religiosas populares não partimos de uma pretensa religiosidade popular em um

sentido orgânico e monolítico, como é muitas vezes assumido, mas de práticas concretas vivenciadas por um

segmento social em determinado contexto, a partir de complexas relações culturais com os outros segmentos, a

maior ou menor presença da Igreja constituída, entre outros fatores. Da mesma forma, consideramos a ortodoxia

em seu sentido dinâmico e processual, determinada nas situações concretas da vivência religiosa e política. 2 HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Capelas antigas de São Paulo”. Revista do Serviço de Patrimônio Histórico

Nacional, vol. 5, Rio de Janeiro, 1941, pp.105-120; ______. Caminhos e fronteiras. 3. ed. São Paulo:

Companhia das Letras, 1994 [1956]; ______. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995

[1936]; MORSE, Richard M. Formação histórica de São Paulo (de comunidade à metrópole). São Paulo:

Difusão Européia do Livro, 1970 [1954]; MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: Índios e bandeirantes

nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994; ______. Tupis, Tapuias e historiadores:

Estudos de História indígena e do indigenismo. 2001. 233 f. Tese (Livre Docência em Etnologia) – Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, Campinas, 2001. 3 Cf. SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-XVIII. São Paulo:

Companhia das Letras, 1993, capítulo 3, “Por fora do Império: Giovanni Botero e o Brasil”, pp. 58-88.

13

como parte da rede de leitura e circulação dessas cartas que analisaremos adiante, como

acontece na obra seiscentista do jesuíta Simão de Vasconcelos. A influência também ocorria

de forma indireta, como mostra o exemplo do cronista setecentista Frei Gaspar da Madre de

Deus4, que não cita diretamente as cartas, mas vale-se largamente da obra de Simão de

Vasconcelos.

A partir da segunda metade do século XIX, esse uso se difundiu de maneira mais

intensa, com as publicações esparsas dessa documentação pela Academia Brasileira de Letras,

revistas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Instituto Histórico e Geográfico de

São Paulo e, posteriormente, com as compilações mais sistemáticas do jesuíta Serafim Leite.

A leitura realizada dessas cartas foi predominantemente narrativa, utilizando os relatos dos

missionários como uma descrição relativamente objetiva do que ocorria no momento de sua

redação. É a partir desse posicionamento que Serafim Leite organiza sua compilação dessa

correspondência, a Monumenta Brasiliae, e suas análises históricas correspondentes. O

desenvolvimento historiográfico desse critério fazia já parte da grandiosa História da

Companhia de Jesus no Brasil5, na qual o autor apresenta um quadro descritivo da presença

jesuítica no Brasil baseado principalmente nos relatos das cartas. Vitorino Nemésio sintetiza

emblematicamente essa metodologia de leitura das cartas ao prefaciar seu próprio estudo

dessa documentação:

[...] procurei trabalhar o mais possível directamente sobre o epistolário dos

Padres e Irmãos, preferindo fazê-los falar a eles mesmos dos seres e das

coisas da sua formidável experiência a narrá-la eu por minha conta. [...] a

ponto de que, nas duas partes finais deste livro, mais pareço um notário de

públicas-formas do que um historiador narrativo. Mas o tom da palavra de

tais homens é tão forte e sincero que nos convida ao silêncio6.

A partir de meados do século XX, essa leitura factual-narrativa das cartas perdeu

espaço na historiografia, que passou a privilegiar a retirada tópica de informações relativas a

vida material, ocupação do espaço, conflitos entre colonos e indígenas e a análise das

características da atuação missionária. Para o caso de São Paulo colonial, que aqui nos

interessa, os trabalhos de John Monteiro, Sérgio Buarque de Holanda e Richard Morse7 são

4 MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da. Memórias para a história da Capitania de S. Vicente, hoje chamada de S.

Paulo, do Estado do Brazil. Lisboa: Tipographia da Academia, 1797. 5 LEITE, Serafim, S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil, tomos I e II. Lisboa: Livraria Portugália; Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938. 6 NEMÉSIO, Vitorino. O campo de São Paulo: A Companhia de Jesus e o plano português do Brasil. 3ª ed.

Lisboa: Secretaria de Estado da Informação e Turismo, 1971 [1954], p. XIII. 7 MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1994; ______. Tupis, Tapuias e historiadores: Estudos de História indígena e do

indigenismo. 2001. 233 f. Tese (Livre Docência em Etnologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,

14

exemplos representativos desse tipo de leitura documental. Ainda que essa utilização das

cartas nem sempre dispensasse atenção suficiente aos seus condicionantes formais e

institucionais, a retirada de informações era realizada em conjunto com uma série documental

muito mais extensa e de diversa natureza, o que permitia uma avaliação bastante mais crítica.

Não pretendemos em nossa pesquisa questionar essa leitura documental das cartas, que nos

parece pertinente, nem tampouco desconsiderar que haja um aspecto objetivo nas informações

nelas presentes. Apenas buscamos mostrar, por meio da metodologia que propomos,

apresentada mais à frente, que essa leitura fragmentária e relativamente objetiva não apresenta

sempre a mesma eficácia, podendo ser mais problemática quando utilizada para determinados

temas e sem levar em conta o tipo de carta de que se tratava e as relações envolvidas em sua

escrita.

Os estudos mais recentes apresentam ainda outras maneiras de utilizar a

correspondência jesuítica como fonte documental. Há a análise de sua estrutura formal e

retórica, como as desenvolvidas por João Adolfo Hansen8 e Alcir Pécora

9; das relações

intertextuais dessa epistolografia, como a realizada por Adriana Cerello10

; de seu conteúdo

teológico, como, por exemplo, o estudo de Laura de Mello e Souza sobre a relação desses

relatos missionários com a demonologia europeia11

; e de seus elementos simbólicos, como

Luis Augusto Bicalho Kehl desenvolve a respeito dos eventos que envolveram a fundação da

casa de São Paulo de Piratininga12

. A utilização pontual de trechos dessa correspondência é

constante na historiografia referente ao período colonial brasileiro, mas há trabalhos recentes

nos quais essas cartas são analisadas mais sistematicamente. José Eisenberg investiga nas

cartas a emergência de concepções políticas, na discussão da organização missionária, que

repercutem no desenvolvimento do pensamento político europeu13

. Em relação ao tema da

Unicamp, Campinas, 2001, especialmente o capítulo 2; HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Capelas antigas de São

Paulo”. Revista do Serviço de Patrimônio Histórico Nacional, vol. 5, Rio de Janeiro, 1941, pp.105-120;

MORSE, Richard M. Formação histórica de São Paulo (de comunidade à metrópole). São Paulo: Difusão

Européia do Livro, 1970 [1954]. 8 HANSEN, João Adolfo. “O nu e a Luz: Cartas jesuíticas do Brasil. Nóbrega, 1549-1558”, Revista do Instituto

de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 38, 1995, pp. 87-119. 9 PÉCORA, Alcir. “Arte das Cartas jesuíticas do Brasil”. In: ENCONTRO INTERNACIONAL NÓBREGA-

ANCHIETA, 1999, São Paulo. VOZ LUSÍADA. Anais do Encontro Internacional Nóbrega-Anchieta. São

Paulo: Green Forest do Brasil, 1999, v. 1, p. 31-78. 10

CERELLO, Adriana Gabriel. O livro nos textos jesuíticos do século XVI: edição, produção e circulação de

livros nas cartas dos jesuítas na América Portuguesa (1549-1563). 2007. 143 f. Dissertação (Mestrado em

Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São

Paulo, 2007. 11

SOUZA, Laura de Mello. Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-XVIII. São Paulo:

Companhia das Letras, 1993. 12

KEHL, Luis Augusto Bicalho. Simbolismo e profecia na fundação de São Paulo: A casa de Piratininga. São

Paulo: Editora Terceiro Nome, 2005. 13

EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: Encontros culturais, aventuras

15

escravidão, Carlos Alberto de M. R. Zeron realiza uma profunda revisão na maneira de se

abordar a documentação jesuítica14

. O autor problematiza o discurso institucional da ordem

que, principalmente por meio das cartas, dissemina a imagem da Companhia como defensora

da liberdade indígena. Desta forma, realiza por intermédio de uma leitura crítica e sistemática

dessa correspondência, além do cotejamento com outras fontes, uma ampla análise da relação

concreta e cotidiana dos jesuítas com a escravidão, para além do discurso institucional,

longamente reafirmado pela historiografia por meio da utilização acrítica da documentação

jesuítica.

Uma série de trabalhos recentes tem contribuído de forma capital para uma utilização

crítica não apenas das cartas jesuíticas, mas da documentação missionária em geral. São

pesquisas, inseridas no diálogo entre a História e a Antropologia, que têm se dedicado a

analisar os mecanismos por meio dos quais se desenvolve uma cultura colonial com produção

de códigos compartilhados nos contatos entre jesuítas e indígenas15

. O foco desses trabalhos é

principalmente o encontro entre as civilizações americanas e a europeia, e o necessário

processo de mediação cultural que se estabelece na relação concreta de convivência (sem

excluir a violência nela presente); mediação que se dá preferencialmente por meio de uma

interpretação religiosa da diversidade cultural16

. Nesse sentido, as missões são um espaço

privilegiado de análise, no qual é possível identificar a “civilização cristã em ação” 17

. De

grande importância para nossa pesquisa é o desenvolvimento, nesses trabalhos, de uma

metodologia de leitura da documentação missionária que permite apreender não apenas a

subjetividade de quem a produz, mas também relações concretamente estabelecidas.

O objetivo de nossa pesquisa é reavaliar o que se pode afirmar sobre a vivência

religiosa dos primeiros paulistas a partir da correspondência jesuítica no período em que a

única presença institucional da Igreja no planalto era a da Companhia de Jesus, submetendo

essas cartas a uma leitura sistemática que considere seus aspectos retóricos e formais. Dessa

maneira, poderemos fornecer um enfoque diferenciado à investigação dessa temática, que

teóricas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. 14

ZERON, Carlos Alberto de M. R. Ligne de foi: La compagnie de Jésus et l’esclavage dans le processus de

formation de la société coloniale en Amérique portugaise (XVIe-XVIIe siècles). Paris: Honoré Champion

Éditeur, 2009. 15

MONTERO, Paula (org.). Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006;

AGNOLIN, Adone. Jesuítas e Selvagens: A negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (séc.

XVI – XVII). São Paulo: Humanitas Editorial, 2007; POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários,

Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial. Bauru: EDUSC, 2003. 16

Essa problemática é o cerne do fundamental trabalho de Cristina Pompa, op. cit. 17

GASBARRO, Nicola. “Missões: a civilização cristã em ação”. In: MONTERO, Paula (org.), op. cit.

16

consideramos ainda muito influenciada pelas construções historiográficas desenvolvidas entre

a segunda metade do século XIX e meados do século XX.

A opção pelo termo vivência religiosa, propiciador de não poucas dificuldades,

requer uma explicação mais detida. Ao longo da pesquisa, avaliamos a pertinência de aplicar

ao objeto em questão os termos práticas religiosas, observância religiosa, religiosidade, entre

outros. Ainda que o conceito de vivência religiosa não nos deixe plenamente satisfeitos, evita,

quando devidamente definido, os problemas conceituais presentes nos demais termos, como a

insuficiente historicização existente no conceito de religiosidade e a ligação do conceito de

observância religiosa com o pertencimento a uma ordem religiosa. Com o objetivo de

apreender a religião em sua historicidade18

, optamos pela utilização de vivência religiosa,

destacando o aspecto cotidiano, mas não exclusivamente litúrgico e ritual, da experiência

religiosa dos colonos do planalto paulista, perspectiva esta que poderia não ser alcançada

optando-se por práticas religiosas. No entanto, o termo vivência não se relaciona, em nossa

pesquisa, à subjetividade da experiência religiosa dos colonos. Em outras palavras, nosso

enfoque não se direciona ao entendimento que esses habitantes tinham do que seria ou não

religioso em práticas como a mancebia, a poligamia ou a adoção de costumes indígenas rituais

ou não. O nosso recorte temático parte do viés religioso com que a escrita jesuítica abordava

diversos aspectos da vida cotidiana dos colonos, para assim problematizar essa própria

perspectiva. Interessa-nos compreender sob quais critérios teológico-políticos e relações

concretas de convivência definiu-se o campo do religioso naquele contexto. Como veremos

adiante, a classificação religiosa de fenômenos como a mancebia e os costumes indígenas,

além de bastante flexível, respondia a conflitos políticos específicos.

O período de exclusividade pastoral da Companhia no planalto paulista estende-se

até 1588, data da criação da paróquia de São Paulo, que assinala o fim do período em que a

presença institucional do catolicismo na região resumia-se aos inacianos, únicos aptos a

administrar os sacramentos e celebrar missas, sendo a igreja do colégio jesuítico a única

existente19

. Partimos da data inicial de 1549, ano da chegada do primeiro grupo de jesuítas ao

Brasil e das primeiras comunicações epistolares; a primeira referência ao campo de

18

Para uma problematização da historicidade do conceito de religião, além dos trabalhos anteriormente citados

acerca da mediação cultural, cf. MASSENZIO, Marcello. A história das religiões na cultura moderna. São

Paulo: Hedra, 2005; BRELICH, A. “Prolegómenos a una historia de las religiones”. In: PUECH, Henri-Charles

(org.). Historia de las religiones, vol. 1: Las religiones antiguas I. 6ª ed. Madrid: Siglo XXI, 1986, pp. 30-97. 19

WERNET, Augustin. “Vida religiosa em São Paulo: do Colégio dos jesuítas à diversificação de cultos e

crenças (1554-1954)”. In: PORTA, Paula (org.). História da Cidade de São Paulo, v.1: a cidade colonial. São

Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 194; LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, tomo I. Lisboa:

Livraria Portugália; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938, pp. 312-3.

17

Piratininga nas cartas deu-se no ano seguinte. Dados o período e as problemáticas que nos

ocupam, abordamos conjuntamente as vilas de Santo André da Borda do Campo e de São

Paulo, resultado da transferência da primeira para o sítio do colégio jesuítico. Uma vez que

tratamos dos colonos, a data de fundação da casa de São Paulo pelos jesuítas é, no âmbito de

nossa pesquisa, menos relevante que o anterior estabelecimento da população branca no

planalto, primeiramente em Santo André e posteriormente transferida para junto do Colégio.

Valemo-nos do termo planalto paulista para designar a região compreendida pelas duas vilas

(não contemporâneas) e as escassas áreas ao seu redor ocupadas por roças e aldeamentos

jesuítas. Lembramos, nesse sentido, que a documentação jesuítica quinhentista é muitas vezes

imprecisa ao informar a localização de seus assentamentos na região20

.

Mapa 1 – Povoamento do Território Paulista no século XVI

Fonte: PETRONE, Pasquale. Aldeamentos paulistas. São Paulo: Edusp, 1995, p. 47.

20

PETRONE, Pasquale. Aldeamentos paulistas. São Paulo: Edusp, 1995, p. 107.

18

Os colonos ocupam na correspondência jesuítica um lugar marginal, restrito a alguns

aspectos específicos de sua presença na realidade colonial. Dessa forma, consideramos

problemático e temerário tentar recompor um quadro factual do cotidiano religioso dos

moradores das vilas do planalto a partir dessa documentação. Nossa abordagem consiste na

análise sistemática desses aspectos mais citados, como a prática da mancebia, a recepção de

sacramentos e a adoção de costumes indígenas, respeitando e delimitando melhor as lacunas

existentes nessas fontes. A análise, ainda que parcial, das práticas religiosas dos colonos passa

também pela melhor delimitação de tais lacunas, visto que as imagens construídas ao longo

dos séculos XIX e XX sobre a vida no planalto basearam-se, em certa medida, em

especulações e generalizações ocasionadas pela limitação documental. É a partir dessa

consideração que abordamos os temas fragmentariamente citados nas cartas, como a

realização de procissões e o presumido descaso dos mamelucos para com o Santo Ofício.

Nossa proposta de leitura da correspondência jesuítica baseia-se na recondução dos

trechos sobre os colonos à totalidade retórica e formal desses textos. Consideramos que as

passagens em questão somente podem ser compreendidas em sua historicidade se forem

contextualizadas no exercício retórico de sua escrita. Analisar o procedimento formal de

escrita das cartas não representa em nossa pesquisa um exercício de comparação estilística ou

um alargamento do tema para questões de gênero de escrita. Entender a estrutura retórica e

formal desse tipo de documento é essencial para considerar seu conteúdo. Como afirma João

Adolfo Hansen, “[as maneiras do discurso] não são mera técnica aplicada do exterior, mas

categorias de pensamento que modelam a forma mentis dos agentes da correspondência”21

.

Alcir Pécora também não considera a análise formal apenas um elemento dentre outros a ser

estudado nas cartas. Para ele, a abordagem formal tem uma implicação epistemológica:

[...] o de que elas [as cartas] não são absolutamente uma tábua em branco

impressionada por acontecimentos vividos pelos missionários – nem

objetivamente, como representação ou notícia da gente e terra do Brasil; nem

subjetivamente, como impacto sentimental ou expressivo dessa notícia em

certa mentalidade católica européia [...], devem ser vistas, antes de mais

nada, como um mapa retórico em progresso da própria conversão. [...]De tal

modo que as determinações convencionais da tradição epistolográfica,

revistas pela Companhia e aplicadas aos diversos casos vividos, mesmo os

mais inesperados, sedimentam sentidos adequados aos roteiros plausíveis

desse mapa22

.

21

HANSEN, João Adolfo. “O nu e a Luz: Cartas jesuíticas do Brasil. Nóbrega, 1549-1558”, Revista do Instituto

de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 38, 1995, p. 88. 22

PÉCORA, Alcir. “Arte das Cartas jesuíticas do Brasil”. In: ENCONTRO INTERNACIONAL NÓBREGA-

ANCHIETA, 1999, São Paulo. VOZ LUSÍADA. Anais do Encontro Internacional Nóbrega-Anchieta. São

Paulo: Green Forest do Brasil, 1999, v. 1, p. 31-32.

19

Na presente pesquisa, portanto, ao analisarmos a construção do discurso jesuítico

sobre as práticas religiosas dos colonos do planalto paulista, não pretendemos destacar apenas

o aspecto subjetivo dessa documentação. Como alerta Paula Montero, além do risco de ler

objetivamente as informações presentes na documentação missionária, há também o risco

oposto de assumir que desses textos não podemos tirar nada além do próprio discurso

jesuítico23

. A epistolografia jesuítica não é apenas uma descrição da ação missionária, é

também parte fundamental dessa ação24

e, como tal, cristaliza relações concretamente

estabelecidas25

, que só podem ser devidamente observadas se considerarmos os filtros

subjetivos que orientam a escrita. Um bom exemplo de aplicação desta premissa

epistemológica encontra-se, como já dissemos, na utilização da documentação jesuítica

efetuada por Cristina Pompa26

. Estas premissas metodológicas estão direcionadas para a

análise do encontro cultural entre missionários e indígenas, mas são também essenciais para

nosso tema. Primeiramente, porque a descrição dos colonos aparece nas cartas quase sempre

subordinada ao tema da evangelização do indígena e é no interior dessa relação concreta que

devemos considerá-la. Em segundo lugar, ainda que não devamos exagerar a oposição entre

missionários e colonos, como fez certa historiografia, as relações muitas vezes conflituosas

entre eles também se cristaliza na documentação, não nos permitindo reduzir as informações

apenas a um discurso jesuíta sobre o colono.

De acordo com nossa proposta, a dissertação divide-se em dois capítulos. Não é uma

divisão rígida, mas que se faz necessária para uma maior clareza expositiva. O primeiro

capítulo analisa a prática epistolográfica da Companhia em seus aspectos mais amplos,

identificando o papel que as narrativas sobre os colonos cumpriam nesse processo de escrita,

enquanto o segundo capítulo detém-se na análise pormenorizada dos aspectos mais

específicos da vivência religiosa dos colonos do planalto paulista de acordo com a maneira

como aparecem nas cartas. Uma vez que propomos analisar as descrições a respeito dos

moradores das vilas de Santo André da Borda do Campo e de São Paulo na totalidade de cada

carta, o primeiro capítulo não apenas dá sentido ao segundo, mas muitas vezes eles acabam

por se interpenetrar. Como exemplo dessa permeabilidade do texto, temos o item sobre o caso

23

MONTERO, Paula. “Introdução”. In: ______(org.). Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural.

São Paulo: Globo, 2006, pp. 12-13. 24

PÉCORA, Alcir. “Arte das Cartas jesuíticas do Brasil”. In: ENCONTRO INTERNACIONAL NÓBREGA-

ANCHIETA, 1999, São Paulo. VOZ LUSÍADA. Anais do Encontro Internacional Nóbrega-Anchieta. São

Paulo: Green Forest do Brasil, 1999, v. 1, p. 32; EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento

político moderno: Encontros culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, p. 49. 25

MONTERO, op. cit., p. 11 et seq. 26

POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial. Bauru: EDUSC,

2003.

20

de João Ramalho, que se situa no primeiro capítulo, ponto três, mas que poderia igualmente

localizar-se no segundo capítulo, já que inclui praticamente todas as problemáticas que fazem

parte do trabalho.

Para o desenvolvimento da presente pesquisa, optamos por utilizar a já citada

coletânea Monumenta Brasiliae, realizada pelo jesuíta Serafim Leite, entre os anos de 1956 e

1968. Trata-se do trabalho de compilação mais sistemático, pormenorizado e completo das

cartas jesuíticas do Brasil. A publicação é divida em cinco volumes, dos quais utilizamos os

quatro primeiros27

, que contêm documentação referente ao período de 1538 a 1568.

Prestando o devido reconhecimento ao extenso e cuidadoso trabalho realizado por

Serafim Leite, de fundamental importância para todos os pesquisadores que se lhe seguiram, é

preciso, no entanto, explicitar os critérios que orientaram sua compilação, uma vez que não

são os mesmos em que se fundamenta nossa leitura dessa documentação.

A coletânea Monumenta Brasiliae possui, como dissemos, um caráter

fundamentalmente narrativo, que influencia a seleção, a organização e a edição dos

documentos. A inclusão, nesta compilação, de documentação exterior à ordem, como as cartas

de D. João III ou da Câmara da vila de São Paulo, relaciona-se de forma complementar às

cartas da Companhia, fornecendo informações que preencheriam um quadro cronológico e

factual dos acontecimentos referentes à atuação dos jesuítas no processo de colonização.

Também a publicação parcial de algumas cartas da ordem, com a indicação “edita-se o que

toca ao Brasil”, repetida durante toda a compilação, bem como a natureza das notas

explicativas de Serafim Leite, indicam a prevalência do critério narrativo sobre o formal-

estrutural. O exemplo mais patente dessa interferência encontra-se na carta do bispo D. Pedro

Fernandes ao Padre Simão Rodrigues de julho de 1552 28

, na qual Serafim Leite responde

com numerosas notas aos questionamentos que o bispo levantou sobre o procedimento do

padre Manuel da Nóbrega e da Companhia, justificando tais procedimentos e apresentando

negativamente a atuação de D. Pedro Fernandes.

É importante salientar que o processo editorial realizado por Serafim Leite faz parte

da construção institucional de uma memória jesuítica, o que explica muitos dos critérios que

adota. A interferência do compilador dá-se em diversos níveis; nos critérios de seleção da

documentação, que atendem à tradição historiográfica da Companhia; na adequação da

ortografia e pontuação, que pode apresentar opções duvidosas; na parcialidade dos

27

LEITE, Serafim, S.J. Monumenta Brasiliae, v. I-IV. Roma, 1956-60. O quinto volume traz as cartas do Beato

Inácio de Azevedo, que não estão diretamente ligadas ao nosso tema. 28

MB I, pp. 357-366.

21

comentários etc.29

A utilização historiográfica dessa compilação deve estar ancorada em uma

problematização dos próprios critérios de sua organização, para evitar a reprodução acrítica da

voz institucional e dos pressupostos metodológicos do Padre Serafim Leite.

Também foram consultadas cartas que não fazem parte dessa coletânea, por serem

posteriores a 1568. Algumas estão em Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões

do Padre Joseph de Anchieta, S.J. (1554-1594)30

e em publicações esparsas, como os

apêndices da já citada História da Companhia de Jesus no Brasil. Foi-nos possível realizar

uma consulta de poucos dias no Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), por meio da qual

pudemos analisar algumas cartas referentes ao nosso tema. Em caráter complementar,

utilizamos documentação de outra natureza, como as atas da Câmara das vilas de Santo André

da Borda do Campo e de São Paulo, relatos cronísticos como os de Fernão Cardim31

, Simão

de Vasconcelos32

e Gabriel Soares de Sousa33

, além de alguma outra referência pontual.

Buscamos evitar o quanto possível que a análise sistemática das cartas tornasse o

texto exageradamente carregado de citações longas da documentação. Dessa forma, o caráter

fragmentário de muitas das referências documentais não são reflexo da nossa metodologia de

leitura, mas uma tentativa de melhorar a clareza expositiva da pesquisa. Ainda assim, a

necessidade de explicitar o contexto narrativo dos trechos analisados torna imperativo, em

alguns momentos, a reprodução de trechos mais longos das cartas. Mesmo que esse

procedimento prejudique um pouco a fluidez do texto, garante uma melhor exposição de

nosso procedimento metodológico. Mantivemos a grafia original das citações tanto no que

tange aos documentos quanto à bibliografia publicada anteriormente ao acordo ortográfico de

2009.

29

Adriana Gabriel Cerello faz uma boa síntese das questões que envolvem a edição das cartas jesuíticas pelo

Padre Serafim Leite no primeiro capítulo da dissertação O livro nos textos jesuíticos do século XVI: edição,

produção e circulação de livros nas cartas dos jesuítas na América Portuguesa (1549-1563). 2007. 143 f.

Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,

Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007, pp.15-30. 30

ANCHIETA, José de, S. J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de

Anchieta, S .J. (1554-1594). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933. 31

CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Introduções e notas de Baptista Caetano, Capistrano

de Abreu e Rodolpho Garcia. Rio de Janeiro: J. Leite & Cia., 1925. 32

VASCONCELOS, Simão de. Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, vol. I. 2ª ed. Lisboa: 1865

[1663]. 33

SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descriptivo do Brasil em 1587. Introdução e comentários de Francisco

Adolpho de Varnhagen. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da Silva, 1879.

22

CAPÍTULO 1

COLONOS, JESUÍTAS E ATIVIDADE EPISTOLOGRÁFICA

23

1.1. Escrita e circulação das cartas jesuíticas

Desde a chegada do primeiro grupo de jesuítas ao Brasil, em 1549, na armada do

governador-geral Tomé de Sousa, a comunicação epistolar cumpriu um papel fundamental

nas atividades da Companhia de Jesus aqui desenvolvidas. Poucos dias após chegar à Bahia, o

padre Manuel da Nóbrega, superior da nova Missão34

, já escrevia ao provincial de Portugal,

Simão Rodrigues, dando conta da chegada e do que se havia realizado até então35

. A partir

daí, a troca de cartas com Portugal e Roma seria constante, ainda que submetida a

contingências como a frequência de embarcações.

A mais evidente função dessa correspondência era de ordem administrativa. Por

intermédio das cartas, os irmãos e padres relatavam aos superiores a situação de determinada

região, os trabalhos realizados, as dificuldades enfrentadas e solicitavam auxílio. Os

superiores em Portugal e Roma, por sua vez, orientavam os missionários, assegurando que se

cumprissem as diretrizes da ordem nos trabalhos de evangelização do gentio e ajuda aos

portugueses36

. Esse caráter administrativo da epistolografia jesuítica levou muitos

historiadores a atribuir-lhe uma objetividade tal que lhes permitisse recompor factualmente a

história da Companhia de Jesus no Brasil37

. Dessa forma, outros aspectos formais e teológico-

políticos desses textos, de que trataremos adiante, acabaram pouco considerados pelos

pesquisadores até recentemente.

A grande distância e as dificuldades de comunicação – não apenas entre Europa e

América, mas também entre as diversas capitanias brasileiras – reservaram às cartas um papel

central na organização do trabalho missionário dos jesuítas no Brasil38

. A importância da

comunicação epistolar esteve presente na Companhia de Jesus desde os seus primeiros anos

de existência, com vistas à manutenção da unidade de uma ordem que crescia e se expandia

rapidamente. Havia outros procedimentos com o mesmo fim, como o envio de padres

34

Vieram com Nóbrega os padres Leonardo Nunes, Juan de Azpilcueta Navarro, Antônio Pires e os irmãos

Vicente Rodrigues e Diogo Jácome (MB I, Introdução geral, p. 7). 35

MB I, p. 108-15. 36

Essa função mais evidente da comunicação epistolar vem expressa nas Constituições da Companhia de Jesus,

no parágrafo 629: “[...] [o superior] por meio de um frequente contato epistolar e mediante informações, tanto

quanto possível, sobre o que acontece, do lugar onde reside, não deixará faltar, na medida em que as pessoas e os

afazeres demandem, o seu conselho e outras possíveis ajudas” (LOYOLA, Inácio de. Gli scritti, A cura dei

gesuiti della Provincia d’Italia. Roma: Edizioni Adp, 2007, p. 840, tradução nossa). 37

O mais emblemático nessa tendência é o próprio Serafim Leite, com a monumental História da Companhia de

Jesus no Brasil, 10 vols. Lisboa: Livraria Portugália; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938-1950. 38

Cristina Pompa afirma que “a atividade epistolar dos jesuítas foi a verdadeira chave de todo seu sistema

missionário” (Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial. Bauru: EDUSC, 2003,

p. 81).

24

visitadores. No entanto, as visitações, ainda que algumas vezes bastante prolongadas, não

seriam suficientes por si só para garantir o cumprimento das diretrizes provenientes da

administração central da ordem, sediada em Roma. Até o final do século XVI, apenas duas

visitações seriam realizadas no Brasil, a primeira pelo Padre Inácio de Azevedo, entre 1566 e

1568, e a segunda pelo Padre Cristóvão de Gouveia, entre 1583 e 1590.

A comunicação epistolar, devido à importância que lhe atribuía Inácio de Loyola, à

centralidade que adquiriu com o crescimento da ordem e ao seu papel na organização das

missões, foi minuciosamente regulamentada, com o objetivo de torná-la eficiente no

cumprimento das diversas funções que dela se esperava. As orientações para a escrita de

cartas, presentes nas Constituições da Companhia de Jesus, incorporam a experiência prática

da atividade epistolar que já vinha sendo desenvolvida na ordem anteriormente. Em alguns

momentos, a própria correspondência foi utilizada para a transmissão dessas diretrizes39

.

As Constituições40

, aprovadas pela primeira Congregação Geral da ordem em 1558,

mas já presentes no Brasil desde 1556, apresentavam orientações bastante específicas sobre o

desenvolvimento dessa atividade. Tais orientações seguiam o teor geral do documento, que

não regulamentava as atividades da Companhia de maneira inflexível, deixando bastante

espaço à prudência, ao discernimento espiritual e à obediência hierárquica. Em relação a essa

interpretação das diretrizes do documento, temos como exemplo o que escreve o Padre Luís

da Grã, em carta de 1556, enviada da casa de Piratininga a Inácio de Loyola. Grã dá notícia do

recebimento das Constituições e afirma que trabalhará “con la gracia divina de hazer con que

nos acomodemos quanto más possible fuere por la diversidad de tierra”41

.

O texto das Constituições, fruto de um longo processo de escrita e diversas revisões,

sob os cuidados de Loyola e do secretário Juan Alfonso de Polanco, apresenta um caráter de

síntese da experiência prática da Companhia até então, incorporando e sistematizando

documentações produzidas anteriormente e a própria maneira de proceder desenvolvida em

sua atividade ministerial desde a união dos primeiros companheiros42

. A comunicação

39

Para o caso dos missionários brasileiros, conferir, por exemplo, a carta de Inácio de Loyola de 18 de julho de

1553 (MB I, pp. 512-3) e a do secretário Polanco de agosto do mesmo ano, de que trataremos adiante (MB I, pp.

519-20). 40

Utilizamos aqui o sentido amplo de Constituições, que inclui também o Exame Geral e as Declarações sobre

as Constituições e Exame Geral. Esta versão mais ampla foi impressa pela primeira vez em 1570, sob o

generalato de Francisco de Borja. Na versão aprovada pela primeira Congregação Geral em 1558, estavam

reunidos somente as Constituições e o Exame Geral, sendo as correspondentes Declarações impressas à parte. 41

MB II, p. 288. 42

Sobre a História da escrita, revisões e diferentes versões e publicações das Constituições, conferir a detalhada

introdução de Maurizio Costa S. I. ao texto, In: LOYOLA, Inácio de. Gli scritti, A cura dei gesuiti della

Provincia d’Italia. Roma: Edizioni Adp, 2007, pp. 541-601.

25

epistolar é tratada mais detidamente na Parte Oitava43

, que se ocupa da união dos membros da

Companhia; união que não se limita a um aspecto administrativo ou prático, mas que se refere

também ao aspecto consolador, no sentido espiritual, da “união dos ânimos”. Esse caráter

consolador da epistolografia é fundamental para compreender sua circulação e leitura dentro e

fora da Companhia. O texto determina detalhadamente a frequência com que as cartas devem

ser escritas, ainda que segundo as circunstâncias, propondo a comunicação mensal com os

superiores para quem está em localidades distantes e estabelecendo a carta quadrimestral,

contendo somente as notícias edificantes e escrita na língua falada na região, acompanhada de

outra do mesmo teor em latim44

.

A epistolografia jesuítica configurou-se como um gênero misto, variando em seu

aspecto formal de acordo com a matéria tratada e a maior ou menor abertura da carta para fora

da Companhia. Nesse sentido, podemos identificar, até o final do século XVI, dois tipos

principais de cartas45

: as edificantes/noticiosas e as hijuelas46

. Estas últimas tratavam de

assuntos administrativos da Companhia e não deveriam circular fora da ordem. A hijuela foi

instituída pelo próprio Inácio de Loyola em 1541, com o objetivo de separar da carta

principal, que deveria ter um teor edificante, os assuntos referentes à vida interna da

Companhia. A necessidade de escrever separadamente sobre temas de edificação e demais

assuntos vem expressa em 1553 por Inácio, em uma carta a Manuel da Nóbrega, nos seguintes

termos:

[...] V.R. tenga forma de scrivir y hazer que los suyos scrivan a Roma (ultra

de lo que querrán scrivir a Portugal), no solamente de cosas de edificación,

pero lo demás también, que conviene que sepa el Prepósito General; y las

letras de edificación no contengan otros negocios. Vengan de por si47

.

A carta é ela mesma um claro exemplo de hijuela, bastante sucinta e direta, trata

pontualmente de questões práticas, orientando a atuação de Nóbrega. No trecho citado, as

diretrizes que Inácio transmite para a escrita de cartas fornecem-nos especularmente a

avaliação que o prepósito-geral fazia da prática epistolar dos missionários do Brasil até aquele

43

LOYOLA, Inácio de. Gli scritti, A cura dei gesuiti della Provincia d’Italia. Roma: Edizioni Adp, 2007, pp.

855-7. A própria estrutura do documento, dividido por situações a serem enfrentadas e não por temas, leva a um

tratamento fragmentado dessa atividade; assim, o benefício espiritual da leitura das cartas edificantes é abordado

na Parte Terceira, sobre os progressos dos que estão na fase de Provação; o aspecto administrativo é citado

rapidamente na Parte Sétima, sobre as relações no interior da ordem, e assim por diante. 44

LOYOLA, op. cit., p. 856. 45

Havia também as listas, com nomes e informações sobre os padres e irmãos, bem como sobre colégios e

residências. São regulamentadas no parágrafo 676 das Constituições (ibid., p. 857). 46

POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial. Bauru: EDUSC,

2003, p. 82. Segundo a autora, essa divisão iria tornar-se menos rígida no século XVII. 47

MB I, p.513.

26

momento. A indicação para que se escrevesse “no solamente de cosas de edificación” é uma

clara referência ao predomínio desse tipo de texto e à carência de informações mais concretas

sobre a atividade dos missionários, o que também explica a orientação de se escrever

diretamente a Roma, além do que se escrevesse a Portugal. A necessidade de se indicar que as

cartas de edificação não contenham “otros negocios” mostra que, no entender de Loyola, a

correspondência não estava até então seguindo essa divisão na medida desejada.

A separação entre cartas edificantes e hijuelas relacionava-se à maneira como os

jesuítas – Inácio de Loyola em particular – incorporaram as tradições epistolográficas

medieval e renascentista. O aspecto formal da epistolografia jesuítica liga-se intimamente à

tradição da ars dictaminis, que, apesar das contribuições anteriores, notadamente da retórica

clássica, configurava-se como uma invenção medieval, sistematizada no século XI48

. Os

dictatores consolidaram a epistolografia como um campo de estudos específico49

, com o qual

irão dialogar as posteriores propostas humanistas, erasmianas e inacianas de escrita

epistolográfica50

. A proposta humanista retomará a tradição clássica, que entendia a carta

como espaço para a conversação informal, acabando por acentuar a “oposição entre a carta

formal (contentio) pensada pelo dictator medieval e a carta familiar (sermo)”51

. O modelo

inaciano aproxima-se mais daquele formulado por Erasmo, que propõe uma adequação

flexível do gênero à matéria tratada52

. Na proposta jesuítica, os dois tipos principais de cartas

seguiam a oposição sermo/contentio. As cartas que tratam de assuntos internos à ordem –

hijuelas – seriam mais objetivas, amigáveis e, portanto, ligadas ao modelo da correspondência

clássica. As cartas edificantes/noticiosas circulariam também no exterior da Companhia e

atenderiam a objetivos mais amplos, adequando-se ao modelo sistemático da ars dictaminis53

.

Ainda que houvesse orientações bastante específicas para os diferentes tipos de

carta, nem sempre a distinção é simples de ser feita, como destaca Cristina Pompa54

. As cartas

ditas edificantes cumprem também o papel de informar a administração central da ordem a

respeito dos sucessos do trabalho missionário, mesmo que organize essas informações

48

MURPHY, James J. La retorica nel Medioevo: Una storia delle teorie retoriche da s. Agostino al

Rinascimento. Napoli: Liguore Editore, 1983, p. 223. 49

Ibid., pp. 223-33. 50

PÉCORA, Alcir. “Arte das Cartas jesuíticas do Brasil”. In: ENCONTRO INTERNACIONAL NÓBREGA-

ANCHIETA, 1999, São Paulo. VOZ LUSÍADA. Anais do Encontro Internacional Nóbrega-Anchieta. São

Paulo: Green Forest do Brasil, 1999, v. 1, p. 32-43. 51

Ibid., p. 36. 52

Ibid., p. 38. 53

EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: Encontros culturais, aventuras

teóricas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, p. 53-58. 54

POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial. Bauru, SP:

EDUSC, 2003, p. 83.

27

priorizando o aspecto edificante ou a descrição das populações nativas. A adequação ao

gênero, por sua vez, no que diz respeito ao conteúdo e ao estilo, não é uniforme para todo o

século XVI, nem para todos os missivistas. As diretrizes para a escrita das cartas edificantes

tornam-se mais específicas a partir da experiência dos primeiros anos, e mudam de acordo

com as necessidades apontadas pelas lideranças romanas da Companhia, como apontamos

anteriormente com as orientações de Loyola para Nóbrega. No decorrer da segunda metade

século XVI, o aspecto edificante vai progressivamente cedendo espaço ao informativo,

mesmo nas cartas edificantes/noticiosas55

.

Em carta de 1553, o padre Juan de Polanco, por comissão de Inácio de Loyola,

escreve a Nóbrega dando orientações para a comunicação epistolar. A carta é curta, em

linguagem bastante objetiva e clara, como deveriam ser as hijuelas56

. Nela predomina o tom

prescritivo, pelo qual se evidencia a relação hierárquica entre os interlocutores. Polanco

justifica as diretrizes apresentadas por ter, até o momento, “informaciones muy imperfectas de

las cosas de allá [Brasil]”57

. Para as cartas “mostrables” (edificantes/noticiosas), as

informações desejadas são bastante específicas:

[...] se dirá en quántas partes ay residentia de los de la Compañía, quántos ay

en cada una, y en qué entienden, tocando lo que haze a edificatión;

asimesmo cómo andan vestidos, de qué es su comer y beber, y las camas en

que duermen, y qué costa haze cada uno dellos. También, quanto a la región

dónde está, en qué clima, a quántos grados, qué vezindad tiene la tierra,

cómo andan vestidos, qué cómen, etc.; qué casas tienen, y quántas, según se

dize, y que costumbres; quántos christianos puede aver, quántos gentiles o

moros; y finalmente, como a otros por curiosidad se scriven muy particulares

informaciones, asi se scrivan a nuestro Padre, porque mejor sepa cómo se ha

de proveer [...]58

.

Podemos visualizar na carta quadrimestral escrita pelo ainda irmão José de Anchieta

em 1554, referente ao período entre maio e agosto daquele ano59

, uma adequação rigorosa a

esse formato, fornecendo pontualmente as informações apontadas como desejadas. As

quadrimestrais subsequentes, dele e do também irmão Antônio Blasquez, apresentam já

alguma flexibilização, dado que buscavam apenas atualizar o quanto se enviara

55

Fernando Torres-Londoño destaca a insistência maior de Inácio de Loyola no aspecto edificante da

correspondência durante a década de 1540, enquanto na década seguinte a insistência seria em seu aspecto

informativo. Esta mudança de ênfase reflete também uma já boa assimilação do modelo edificante por parte dos

missionários (“Escrevendo Cartas. Jesuítas, Escrita e Missão no Século XVI”, Revista Brasileira de História.

São Paulo, v. 22, nº 43, 2002, pp. 11-32). 56

MB I, pp. 519-20. 57

MB I, p. 519. 58

MB I, p. 520. 59

MB II, pp. 83-118.

28

anteriormente60

. Justamente por responderem ao que se considerou em Roma uma deficiência

nas cartas anteriores, diferenciam-se das edificantes precedentes tanto no conteúdo quanto na

maneira de organizá-los. Dessa forma, não é possível considerar as cartas

edificantes/noticiosas como um formato único e constante. As primeiras quadrimestrais

escritas por Anchieta são indicativas do momento de mais clara diferenciação entre as cartas

edificantes e hijuelas, que se verifica inclusive na divisão do encargo de sua produção. O

Padre Luís da Grã, também de Piratininga, escreve a Inácio de Loyola, em junho de 1556,

acerca de diversos problemas de ordem prática, tratando “solamente destas cosas que avían

menester consultadas, y las otras de edificación y nuevas de acá escrevirá el Hermano Joseph,

a quien el Provincial, tiene dado esse cargo”61

. Ainda que busquemos, em nossa pesquisa,

identificar suas características específicas, é necessário considerar como cada carta relaciona-

se com as determinações da epistolografia jesuítica, visto que não se trata de uma

normatização estanque.

Considerando-a de maneira geral, a técnica epistolográfica jesuítica para as cartas

edificantes utiliza, com alguma flexibilidade, a tradicional divisão em cinco partes, própria da

ars dictaminis medieval: salutatio, benevolentiae captatio, narratio, petitio e conclusio62

. As

cinco partes não aparecem sempre como uma divisão física do texto; a petitio e a

benevolentiae captatio estão frequentemente diluídas ao longo da narratio ou daquilo que

outras propostas de divisão classificam de exordium, que inclui, além da benevolentiae

captatio, algumas informações sobre a escrita da carta e resumo do que se escreveu antes.

A salutatio, parte mais discutida pelos teóricos medievais da ars dictaminis, assume,

na maioria das cartas da Companhia de Jesus, fórmulas que reforçam a união entre os

membros, como as variações do tema básico “A graça/paz/amor de Cristo seja sempre em

nosso favor e ajuda/em nossas almas”, podendo assumir até mesmo a forma resumida “A paz

e amor de Cristo etc”. Pode ou não ser precedia de uma reverência, como o respeitoso e

frequente “Muy Reverendo em Christo Padre”. O destaque à hierarquia é mais frequente nas

cartas dirigidas a autoridades exteriores à Companhia, como aparece em carta de Nóbrega ao

60

Cf., por exemplo, MB II, cartas 32, 43, 48 (trimestral), 52 e 65. 61

MB II, pp. 295-6. 62

A divisão em cinco partes não é a única utilizada pelos dictatores medievais, mas, segundo James J. Murphy, é

o modelo que se cristaliza como padrão no século XII e com o qual as outras propostas dialogam (La retorica nel

Medioevo: Una storia delle teorie retoriche da s. Agostino al Rinascimento. Napoli: Liguore Editore, 1983, p.

257). João A. Hansen propõe uma divisão na qual petitio e conclusio não aparecem como categorias destacadas:

“[...] a carta jesuítica apropria-se dos esquemas gerais da técnica epistolar da ars dictaminis, apresentando as três

ou quatro partes definidas nas doutrinas antigas e medievais da mesma – salutatio, exordium (captatio), narratio

(argumentatio), subscriptio” (“O nu e a Luz: Cartas jesuíticas do Brasil. Nóbrega, 1549-1558”, Revista do

Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 38, 1995, p 88).

29

governador-geral Tomé de Sousa, com a salutatio “A pax e amor de Christo N. Senhor seja

sempre em seu continuo favor e ajuda. Amen”63

.

A benevolentiae captatio, que visa a alcançar a boa disposição do leitor, aparece nas

cartas da Companhia por meio de fórmulas de humildade, desejo de martírio e obediência.

Frequentemente repete-se ao longo da narratio, mas é comum concentrar-se no exordium, que

funciona como uma preparação para a narratio. A utilização desse recurso, assim como das

outras divisões, não é rígida, o que torna possível encontrar diferenças em sua aplicação por

parte dos missivistas. A carta edificante que o Padre Juan de Azpilcueta Navarro escreve em

Porto Seguro, a 19 de setembro de 1553, apresenta um exemplo limite de utilização quase que

desmesurada desse recurso:

Quando mi flaco entendimiento se pone a pensar en vos, Charíssimos, recibe

tanto esfuerço y tanta consolación, quanta Dios sabe, y si aún tiene alguna

virtud o fortalesa, es con vuessa memoria que el Señor sustenta en las aguas

y peligros spirituales y corporales destas partes, donde andamos dispargidos

in eodem spiritu devaxo de la bandera de la santa obediciencia sembrando la

palabra de Christo Jesú nuestro Maestro, la qual en partes vay en

acrecentamiento, puesto que yo soy por mis peccados el que menos trabaja y

por quien el Señor menos obra, por mi poca abelidad [...] O Charíssimos,

quán differente es hablar de las virtudes y tenerlas, y platicar del martirio y

ponerla por obra! [...] Si mi ánima fuera clara y limpia, charíssimos

Hermanos, las lágrimas hallara por consolación, los trabajos dulces por Jesú

Christo, empero a este cuerpo malo y sensualidad lo bueno le parece malo, lo

dulce amargoso. Suppla pues el bendito Jesú mis flaquezas por su bondad y

misericordia y déme gracia en su Compañia64

.

A citação é longa, mas sua reprodução permite visualizar não somente alguns dos

elementos mais comuns da benevolentiae captatio nas cartas jesuíticas, como também a

grande importância que lhe era atribuída. Na carta em questão, essa benevolentiae captatio

inicial ocupa quase um quarto do espaço, além de haver algumas outras utilizações mais

discretas ao longo da narratio. No geral, a utilização era bastante mais contida e curta, mas

seguia esse mesmo direcionamento.

A narratio, nas cartas jesuíticas, trata principalmente dos temas da evangelização do

gentio; da condenação dos maus hábitos dos colonos, dentre os quais o cativeiro injusto de

indígenas cumpre papel central; da fundação de casas e colégios, bem como de outras

medidas administrativas da Companhia; da atividade ministerial com índios e colonos; e das

características da terra e das populações nativas. João Adolfo Hansen, tratando

especificamente das cartas de Manuel da Nóbrega, identifica “pelo menos 4 grandes recortes

63

MB III, p. 70, grifo nosso. 64

MB II, pp. 4-5.

30

temáticos”: o do índio, o do colono e da depravação de seus costumes, o das medidas

administrativas e militares de governadores e o do clero secular65

. Dados os aspectos

referentes à comunicação epistolar que discutimos até aqui, fica claro que a narratio não se

configura como um simples relato dos avanços da Missão. De fato, mesmo restringindo-se a

essa documentação, o cotejamento entre cartas de diferentes períodos mostra que os relatos

edificantes não retratavam o real avanço na evangelização do gentio, notadamente nas duas

primeiras décadas66

, nas quais, além do predomínio do modelo edificante, havia um otimismo

um tanto exagerado quanto à disposição do gentio para a fé. A descrição do trabalho

missionário com os indígenas, bem como dos demais temas, era organizada na narratio de

acordo com as diversas funções que as cartas cumpriam, como a consolação e união dos

membros da ordem, a construção de uma imagem da Companhia (internamente e

externamente), a divulgação dos resultados da missão, a devoção religiosa e, até mesmo, a de

suprir uma demanda leiga por informações relativas às populações americanas.

É importante destacar ainda que a narração da atividade missionária não era feita

apenas em relação aos resultados com o gentio, mas também se procurava apresentar o

cumprimento por parte do missionário do Instituto da Companhia, que tinha na atividade

ministerial sua própria identidade. Em relação a esse ponto, uma carta do visitador Cristóvão

de Gouveia, enviada da Bahia em 19 de agosto de 1585, constitui notável exemplo, ainda

mais interessante por não se tratar de uma carta mostrable, já que discorre objetivamente

sobre assuntos internos à ordem. Em trecho no qual relata a situação dos padres e irmãos na

capitania do Espírito Santo, destaca o impecável cumprimento do ministério pelo padre

Manuel de Paiva:

todos los padres y hermanos tenian salud, excepto el P. Manoel de Paiva que

por ser de 80 annos y tener mas de treinta de la conpª siendo delos primeros

que uenieron a esta prouincia, y en ella auia trabajado, predicando,

confessando, y ensennando alos indios, y portugueses con gran fruito y

edificacion, lleuole nuestro snor~ para si a 23 de deziembre de 83 fue su

muerte muy sentida de todos los de aquella uilla por ser muy amado de

todos67

.

Explicitar os critérios de organização dos temas na narratio não significa considerar

falsas as informações ali presentes. Seria anacrônico interpretar as cartas jesuíticas a partir de

modalidades de escrita alheias a esse contexto histórico. As categorias teológico-políticas e a

65

HANSEN, João Adolfo. “O nu e a Luz: Cartas jesuíticas do Brasil. Nóbrega, 1549-1558”, Revista do Instituto

de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 38, 1995, p. 91. 66

TORRES-LONDOÑO, Fernando. “Escrevendo Cartas. Jesuítas, Escrita e Missão no Século XVI”, Revista

Brasileira de História. São Paulo, v. 22, nº 43, 2002, p. 26. 67

ARSI, Lus. 69, f. 133.

31

disposição formal que organizam os relatos não estão ligadas apenas à operação de escrita,

mas à própria interpretação dessa realidade e à maneira de nela atuar. A veracidade de um

episódio narrado não é dada pela objetividade de um relato factual, mas pela sua capacidade

em exprimir um estado geral das coisas, interpretado a partir de categorias compartilhadas

pelo círculo mais amplo em que as cartas circulam. Dessa forma, é comum os temas serem

dispostos na narratio como uma sequência de cenas exemplares, capazes de transmitir à

pessoa ausente esse estado geral das coisas. Isso se dá de formas variadas e dependendo da

maior ou menor especificidade do tema tratado.

Insistimos, contudo, que esse procedimento analítico não visa a reduzir a

possibilidade documental da correspondência jesuítica à subjetividade do discurso da ordem,

mas pressupõe a problematização da estrutura retórica e formal do texto na análise da

realidade colonial, como discutimos em nossa introdução. Assim como Cristina Pompa,

consideramos que “a idéia não é a de extrair o quanto de ‘verdadeiro’ nelas [cartas jesuíticas]

existe, e distingui-lo do ‘retoricamente construído’”68

, mas a de lidar com as informações no

interior da prática discursiva que as compreende.

Nesse mesmo sentido, não é possível separar claramente, nas cartas

edificantes/noticiosas, o aspecto propriamente edificante do informativo (no sentido de um

relatório das atividades e das questões com que se devia lidar). Ainda que entre esta

modalidade de carta e a hijuela houvesse diferenças na maneira de selecionar e apresentar os

assuntos, ambas cumpriam a função de informar os interlocutores europeus da situação dos

membros e do estado da terra. Da mesma forma, não é possível afirmar que o aspecto

edificante estivesse de todo ausente nas hijuelas, mesmo com sua objetividade e circulação

mais restrita. A consciência dessa dupla função da correspondência aparece nas próprias

cartas, como podemos detectar em uma escrita pelo Padre Diego Mirón em Lisboa, no ano de

1554 e destinada ao prepósito-geral Inácio de Loyola. Nela, Mirón afirma que o cardeal D.

Henrique informa-se sobre a situação da Companhia no Brasil e Índia através das cartas, para

poder “ayudar e prover acerca dello todo lo que fuesse menester”. Indicava-lhe a leitura o

próprio padre Mirón, por lhe “parecer que se edificaría e alegraría mucho in Domino”69

.

Considerando o contexto mais amplo do trecho, percebemos que “edificar”, nesse caso, além

de se referir ao proveito espiritual do cardeal, era também uma maneira sutil de dizer que o

tornaria mais bem disposto a favorecer o trabalho missionário da Companhia.

68

POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial. Bauru: EDUSC,

2003, p. 81. 69

MB II, pp. 24-5.

32

A petitio presente nas cartas jesuíticas do Brasil diz respeito, na maioria das vezes, à

necessidade do envio de mais padres, a pedidos mais pontuais, como o envio de livros,

adornos para as Igrejas e dispensas papais, e ao recorrente pedido de orações. Frequentemente

vem localizado ao longo da narratio, no espaço dedicado ao assunto correspondente. Pode

também ser retomado ou reforçado na conclusio, que, algumas vezes, reapresenta

sumariamente o conteúdo ou os argumentos da carta. Em algumas, no entanto, o

encerramento é mais brusco, passando-se da narratio para uma saudação final.

O caminho mais comum dessas cartas era seguir primeiramente para Portugal, e

somente depois para Roma70

, o que tornava a comunicação e a tomada de medidas

administrativas relativamente lentas. Em relação às questões práticas, muito se provinha já em

Portugal, em um primeiro momento, o que levou à instrução já citada de que se escrevesse

também a Roma71

. As cartas eram copiadas e traduzidas, sendo depois enviadas às casas e

colégios da Companhia, em cópias impressas e manuscritas, para servirem de leitura

edificante e consoladora, além de instrução para os noviços72

. Para o nosso período, esse

processo de circulação foi bastante marcado pela atuação do secretário Juan Alfonso de

Polanco, que corrigia, censurava e emendava as cartas antes de sua difusão. A grande

flexibilidade com que se resumia, juntava ou cortava partes das cartas é bastante reveladora

do contexto de leitura no interior da Companhia. O próprio Serafim Leite, em seu trabalho

editorial, identifica diversas alterações e distorções referentes a datas, destinatários, locais de

origem etc., o que o leva a recomendar cuidado ao se utilizar as versões emendadas por

Polanco73

. Isso, que para nós parece uma menor atenção aos pormenores factuais das

narrativas edificantes, indica um maior interesse em outro aspecto dos relatos, seu papel mais

amplo de “reiteração do código”74

doutrinário, o que está em acordo com a maneira com que

os missivistas dispunham os temas na narratio. Não significa, contudo, que a leitura das

cartas como narrativa factual estivesse ausente. De fato, as cartas foram utilizadas

frequentemente na composição de crônicas mais amplas sobre a presença jesuítica nas

70

PROSPERI, Adriano. “As missões no Brasil, vistas de Roma”. Comunicação apresentada no Colóquio

internacional Contextos missionários: Religião e poder no Império português, realizado na Universidade de São

Paulo, 1-5 de outubro de 2007, p. 3. 71

MB I, p.513. 72

MB I, Introdução geral, pp. 53-6. 73

MB I, Introdução geral, p. 59. 74

Utilizamos aqui a expressão de João Adolfo Hansen (“O nu e a Luz: Cartas jesuíticas do Brasil. Nóbrega,

1549-1558”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 38, 1995, p. 94).

33

diversas províncias, das quais o exemplo mais emblemático é o Chronicon Societatis Jesu do

mesmo Juan Alfonso de Polanco75

.

A publicação de compilações das cartas jesuíticas não estava voltada apenas à

própria Companhia. Durante o século XVI, diversas compilações desta correspondência

foram publicadas em diferentes línguas76

. Ao serem compiladas e publicadas em forma de

livro, as cartas são “inseridas em novo meio material de circulação e em novos contextos de

leitura que lhes modificam a função”, perdendo o aspecto prático que baseava sua escrita,

como apontado por João Adolfo Hansen77

. As compilações circulavam também nos ambientes

externos à Companhia, funcionando como texto apologético ou respondendo à demanda leiga

por informações sobre as populações do Novo Mundo78

. Desta forma, o aspecto edificante

que orientava a escrita das cartas assim nomeadas assume um caráter devocional mais amplo,

adequado ao novo contexto de circulação. Esse novo meio de circulação representava

também, para a Companhia de Jesus, um espaço para construir uma autoimagem para fora da

ordem. Nas palavras de Adriano Prosperi:

[...] de facto, o que tinha sido impresso não era o texto real das cartas

enviadas pelos missionários, mas o fruto de um trabalho editorial complexo,

feito de selecção e de censura, destinado a fornecer uma determinada

imagem e a controlar rigorosamente as reacções dos leitores. Em suma, um

trabalho destinado à propaganda79

.

A partir das diversas problemáticas sinteticamente apresentadas, evidencia-se como

os missionários jesuítas escreviam suas cartas em uma situação institucionalmente

condicionada80

, à qual somente de maneira anacrônica pode-se atribuir o conceito de escrita

autoral, tal como a entendemos hoje. Além do fato, já destacado, de que as cartas eram

livremente cortadas e emendadas pelos superiores antes de serem inseridas em seu meio de

circulação, a atividade epistolográfica era regida por determinações formais e materiais, por

75

O’MALLEY, John W. Os primeiros jesuítas. Tradução Domingos Armando Donida. São Leopoldo, RS:

Editora UNISINOS; Bauru, SP: EDUSC, 2004, pp. 29-30. 76

Serafim Leite apresenta uma relação das edições das primeiras cartas do Brasil. Para o século XVI, indica

traduções em castelhano, italiano e latim, publicadas em Coimbra, Roma e Veneza (MB I, Introdução geral, pp.

69-73). 77

HANSEN, João Adolfo. “O nu e a Luz: Cartas jesuíticas do Brasil. Nóbrega, 1549-1558”, Revista do Instituto

de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 38, 1995, pp. 90-1. 78

Em relação à importância do gênero da carta para a época e seu aspecto “literário”, cf. AGNOLIN, Adone.

Jesuítas e Selvagens: A negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (séc. XVI – XVII). São

Paulo: Humanitas Editorial, 2007, pp. 454-8. 79

PROSPERI, Adriano. “O missionário”. In: VILLARI, Rosario (dir.). O homem barroco. Lisboa: Presença,

1995, p. 148. 80

Referimo-nos aqui à proposta analítica de João Adolfo Hansen para as letras coloniais (“Para uma história dos

conceitos das letras coloniais luso-brasileiras dos séculos XVI, XVII e XVIII”. In: FERES JÚNIOR, João;

JASMIN, Marcelo (orgs.). História dos conceitos: diálogos transatlânticos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio/

Edições Loyola/ IUPERJ, 2007, pp. 253-266).

34

códigos retóricos e teológico-políticos, bem como por uma seleção de temas influenciada

pelas expectativas de seu meio de circulação. A escrita, portanto, desenvolve-se pela

adequação aos parâmetros institucionais da Companhia de Jesus. Este processo pode ser

visualizado até nas próprias cartas, como podemos constatar em uma que o irmão Antônio

Blasquez escreve da Bahia, em janeiro de 1557:

Em a outra contey o que o Senhor se dignou de obrar antes da vinda de

nosso Padre, e creo que confusamente e não com tanta ordem como

convinha, porque não estava ainda destro em esta maneira de escrever; agora

com a enformação que do Padre tenho tomado proseguirey com mais clareza

que até qui81

.

O eixo temático da correspondência jesuítica do Brasil não é um reflexo dos

elementos presentes nas atividades cotidianas dos missionários. Há diversas particularidades

que só podemos entrever de forma bastante indireta e outras que podemos apenas supor. O

tema da escravidão indígena é o maior exemplo desta questão. Lembrando que a escrita de

cartas não é apenas uma narração da atuação jesuítica a respeito da sujeição do indígena, mas

parte fundamental desta atuação, não encontramos nestas cartas uma descrição da relação

cotidiana da Companhia com a escravidão, mas uma ativa interferência com sentido

prospectivo, contrária aos procedimentos adotados pelos colonos. Dessa forma, a utilização de

escravos nas casas e colégios jesuíticos do Brasil aparece discretamente na correspondência,

somente quando se torna necessário discuti-la internamente ou responder a questionamentos

exteriores à ordem, sem que figurasse nas cartas destinadas à circulação mais ampla.

Encontramos referências desse tipo, por exemplo, nas cartas em que se discute a sustentação

das casas e colégios, nas quais se contrapõem os posicionamentos de Manuel da Nóbrega e

Luís da Grã82

.

Diversos outros aspectos do cotidiano dos missionários jesuítas podem ser

visualizados somente quando referidos por algum questionamento exterior. É o caso dos

Capítulos que Gabriel Soares de Sousa escreveu contra os padres da Companhia, aos quais os

próprios responderam ponto a ponto83

. As diversas críticas dirigidas por Soares de Sousa à

Companhia de Jesus concentraram-se na condenação da atuação jesuítica em relação aos

índios, a fartura econômica das casas e colégios, os conflitos por terras, o desrespeito às

81

MB II, pp. 346-7. 82

Cf., por exemplo, a carta que Nóbrega escreve ao padre Diego Laines em junho de 1561 (MB III, carta 52, pp.

354-67). 83

SOUSA, Gabriel Soares de. “Capítulos que Gabriel Soares de Sousa deu em Madrid ao Sr. D. Cristovam de

Moura contra os padres da Companhia de Jesus que residem no Brasil, com umas breves respostas dos mesmos

padres que dêles foram avisados por um seu parente a quem os ele mostrou”, Anais da Biblioteca Nacional, 62,

1940 [1587], pp. 347-381.

35

autoridades monárquicas etc. Ainda que nos atenhamos às respostas dos jesuítas, a imagem de

um cotidiano pobre fornecido pelas cartas acaba por ser bastante relativizado, mesmo se

considerarmos aquelas em que se discute a sustentação econômica da atividade missionária.

Na década de 1580 a situação econômica da ordem é bastante diferente em relação aos anos

iniciais, mas não será tratada na correspondência com a clareza e os pormenores com que

aparece neste texto. As cartas tampouco abordam os temas da expulsão de padres e irmãos e

do uso de excomunhões com a objetividade e detalhes com que são debatidos nos Capítulos84

.

Uma situação semelhante ocorre com as respostas de Manuel da Nóbrega às críticas

levantadas pelo bispo D. Pedro Fernandes. Além das questões propriamente doutrinárias, de

que nos ocuparemos mais à frente, o bispo questiona, em carta para o padre Simão

Rodrigues85

, algumas práticas dos membros da ordem ligadas à disciplina e a mortificação,

bem como atividades econômicas86

. Nóbrega escreve, ao mesmo Simão Rodrigues, que de

“nossas mortificações entende [o bispo] pouco o spirito dellas e reprehende-o muito”87

. Que

estes temas não fossem ordinariamente abordados na correspondência é fácil de compreender.

Além de não corresponderem aos temas de interesse do meio de circulação das cartas,

referem-se a particularidades cotidianas da vida na ordem que, juntamente com outros

pormenores práticos, não teriam relevo algum para os próprios membros. O padre Baltasar

Fernandes fornece-nos alguns dos critérios que justificam a ausência de informações: “[...] as

particularidades não conto, por serem ellas comuns aos da Companhia, aonde quer que se

acham, e mays pera não enfandar e por não violar ou injuriar o sygillo da confissam”88

.

Outras questões internas, como desentendimentos entre membros, relaxamento na observância

do Instituto etc., podem ser visualizados apenas em algumas cartas de circulação restrita89

. A

clareza com que o visitador Cristóvão de Gouveia aponta as falhas de um padre de

Piratininga, por exemplo, difere em muito do tom presente nas cartas edificantes:

En piratininga el p.e Pantelaon gtz andaua muy inquieto en la uocacion,

pediome con instançia le diesse la licencia; es persona de muy poco spu’ , y

muy aparejado para desastres, mas como no alle del cosa muy notable,

84

SOUSA, Gabriel Soares de. “Capítulos que Gabriel Soares de Sousa deu em Madrid ao Sr. D. Cristovam de

Moura contra os padres da Companhia de Jesus que residem no Brasil, com umas breves respostas dos mesmos

padres que dêles foram avisados por um seu parente a quem os ele mostrou”, Anais da Biblioteca Nacional, 62,

1940 [1587], pp. 372-3. 85

MB I, carta 49, pp. 357-66. 86

MB I, pp. 362-3. 87

MB I, p. 374. 88

MB IV, pp. 459-60. 89

Cf., por exemplo, ARSI, Lus. 69, ff. 133-4 e ff. 53-4.

36

procure [l]e consolarle y animarle y ansi quedo, mas tengo pocas esperanças

de su perseuerancia90

Havia ainda a consciência de que nem todos os assuntos deveriam ser tratados por

carta ou, ao menos, não explicitamente. Assim se expressa Anchieta em carta de 1583 ao rei

Felipe II, na qual apresenta informações acerca da presença da armada de Diego Flores

Valdés no Brasil, mas omite algumas “que no son para carta”91

, que depois deveriam ser

apresentadas pessoalmente pelo próprio Valdés. O padre Miguel de Torres escreve a Nóbrega

de Lisboa, em maio de 1559, recomendando cautela na relação com as autoridades

monárquicas portuguesas. No que toca à comunicação epistolar, afirma:

Quanto más necessario es que V. R.ª nos dee los avisos y informe como haze

de las cosas universales y particulares dessas partes, tanto más importa el

secreto en ello, porque se viniesse a descubrirse no se podría tam bien hazer

y seguirse hian muchos inconvenientes y este medio para el servicio de Dios

que se pretende podrá perder su efficacia, por lo qual advierta V. R.ª de

escrivir siempre por las personas más fiadas que hallare. Acerca del modo

nos parecía que devría narrar el facto y las ponderaciones moderadas con

palabras escogidas, escusando quanto sea possible la intención agena [...] y

quando este modo no bastase para declarar lo necesario y importante de la

cosa, sería bueno escrivir en latín o en cifra lo que podía offenser si se viesse

de alguno92

.

Para o assunto de nossa pesquisa, a consideração desses critérios de seleção dos

temas é fundamental, já que uma parte considerável das atividades cotidianas dos jesuítas com

os portugueses inserem-se justamente no conjunto de temas que ordinariamente não são

abordados pelas cartas, ou o são de forma apenas marginal93

, como veremos no tópico a

seguir. Considerando ainda que os colonos são tratados no mais das vezes em função do tema

da evangelização do indígena, podemos compreender a predominância da imagem conflituosa

da relação entre jesuítas e colonos na correspondência.

As cartas que apresentam informações a respeito do planalto paulista provêm, em sua

maioria, das penas de Manuel da Nóbrega, José de Anchieta, Leonardo Nunes, Pero Correia e

Baltasar Fernandes. São elas enviadas tanto de Piratininga quanto de São Vicente, já que, na

maior parte das vezes, os assuntos tratados seguem o recorte da capitania como um todo. A

primeira carta proveniente da capitania de São Vicente foi escrita pelo padre Leonardo Nunes,

90

ARSI, Lus. 69, f. 133v, grifos presentes no manuscrito. 91

ARMAS, Antonio Rumeu de. “Una carta inédita del apostol del Brasil, beato José de Anchieta, al rey Felipe

II”, Anuário de estudos Atlânticos, 43. Madrid/Las Palmas, 1997, p. 11. 92

MB III, p. 28. 93

Janice Teodoro da Silva apontou, dentre os problemas em se utilizar as cartas jesuíticas no estudo dos

primórdios de São Paulo, o das omissões (São Paulo: 1554-1880: discurso ideológico e organização espacial.

São Paulo: Editora Moderna, 1984, p. 17).

37

a ela enviado por Nóbrega em fins de 1549 com dez ou doze meninos94

. Nesta carta, o padre

relata já a entrada que realiza ao sertão para tratar com os cristãos que estavam espalhados no

lugar e com os índios que tinham suas aldeias no Campo95

. Dentre os motivos apontados para

o estabelecimento de uma casa, posteriormente colégio, destacam-se: o objetivo de

estabelecer contato com as populações indígenas do interior, a melhor condição de

sustentação no planalto, a distância em relação aos portugueses e a própria distribuição

espacial dos índios na capitania, com as aldeias localizadas nesta região96

. Após a fundação da

casa de Piratininga em 25 de janeiro de 1554, ficou por superior o padre Manuel de Paiva e,

como professor de latim, o irmão José de Anchieta97

. Serafim Leite esforça-se em atribuir a

fundação de São Paulo ao padre Manuel da Nóbrega, recuando-a para o ano de 1553. Raquel

Glezer relaciona o debate quanto ao “verdadeiro” fundador ao que denomina “mito de

origem” (a leitura do passado da cidade em função de sua proeminência posterior,

característica fundamental de grande parte dos estudos a respeito do período colonial

paulista), como se o fundador tivesse impingido seus traços de caráter, atuação e

personalidade à cidade que se desenvolveu posteriormente98

.

1.2. O lugar dos colonos do planalto paulista nas cartas jesuíticas

Considerando-se os diversos condicionantes que organizam o tratamento dos temas

nas cartas jesuíticas do Brasil, como discutido no tópico anterior, resta agora situar mais

pormenorizadamente o colono no interior da estrutura formal, retórica e teológico-política

desses textos. O procedimento de isolar os trechos referentes aos colonos e neles buscar

informações não permitiria mais do que repetir a avaliação institucional da Companhia acerca

daquele processo histórico. Outro risco a ser evitado é o de tomar isoladamente as narrativas

sobre os colonos do planalto, dado que algumas problemáticas observáveis na

correspondência não são exclusividade da região. Esse recorte arbitrário, bastante comum nos

94

LEITE, Serafim, S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil, tomo I. Lisboa: Livraria Portugália; Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1938, p. 252. 95

MB I, pp. 200-10. 96

LEITE, op. cit., pp. 260-70. 97

Ibid. 273. 98

GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Alameda, 2007, pp. 42-4.

38

estudos referentes à vila de São Paulo, faz parte de uma influente tradição historiográfica, que

analisaremos mais adiante.

Primeiramente, é imprescindível considerar que as cartas, notadamente aquelas de

teor edificante, focavam-se no trabalho de evangelização do gentio, não sendo os colonos

muitas vezes sequer citados, o que não correspondia – ou pelo menos não sempre – à real

proporção da divisão cotidiana da atividade ministerial entre índios e população branca ou

mestiça. Na maioria das vezes em que o colono é citado, aparece relacionado a este tema

principal. Dentre as construções em que os colonos mais frequentemente aparecem nesses

textos, podemos destacar: a comparação com o indígena, no que se refere à boa disposição

para o entendimento da fé e para a vida cristã; a denúncia dos “danos” causados aos gentios,

centrada na questão do cativeiro injusto; o “mau exemplo” que seus costumes constituíam

para essas populações que se buscava evangelizar. Há, contudo, algumas vezes em que a

atividade ministerial com a população branca não é descrita em função do indígena. Nesses

casos, o mais comum é que se tratasse de um relato da atividade do padre ou irmão em

questão, apresentando-o como empenhado e obediente cumpridor do Instituto da Companhia,

ou de algum episódio de interesse particular ou piedoso. Algumas das cartas das décadas de

1570 e 1580, período em que o aspecto prático-administrativo predomina na correspondência

preservada, apresentam uma divisão bem menos desigual na abordagem do trabalho com os

indígenas e os portugueses. Estas cartas possibilitam-nos recuperar alguns pormenores

dificilmente presentes nas edificantes dos períodos anteriores, desde que consideremos as

mudanças pelos quais a estratégia de evangelização e a sustentação das casas e colégios

passaram durante o período. As “Informações” e relatos de viagem também apresentam

diferenças na maneira de abordar os colonos, como veremos.

Ao descreverem sua própria atuação no Brasil, os jesuítas ordinariamente elencam

lado a lado o trabalho com portugueses e indígenas. Nesse sentido há até mesmo uma espécie

de “fórmula” utilizada constantemente: “tanto índios como portugueses”, a qual indica o zelo

ministerial em todas as esferas possíveis. Todavia, essa constatação genérica raramente se

desenvolve em uma descrição circunstanciada das atividades com os portugueses e episódios

exemplificadores, como quando se aborda os “danos” que provocam aos índios. Há ocasiões

em que a evangelização do indígena vem expressa como a motivação principal da presença

jesuítica no Brasil, em detrimento do branco99

. É necessário, nas duas situações, analisar o

99 MEIHY, José Carlos Sebe Bom. A presença do Brasil na Companhia de Jesus (1549-1649). 1975. 255 f. Tese

(Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São

Paulo, São Paulo, 1975, p. 237.

39

contexto retórico em que se inserem as afirmações. O padre Manuel da Nóbrega apresenta um

exemplo bastante revelador deste procedimento. Em uma carta datada de setembro de 1551,

enviada de Pernambuco, o padre afirma: “Destes escravos e das pregações corre a fama às

Aldeas dos Negros, de maneira que vem a nós de muy longe a ouvir nossa pratica. Dizemos-

lhe que por seu respeito principalmente viemos a esta terra e não por os brancos”. Mais

abaixo, vale-se da “fórmula” apontada ao descrever suas atividades na vila e, ao final da carta,

admite não terem conseguido se dedicar muito aos índios:

Eu prego domingos e festas duas vezes a toda a gente da Villa, que hé

muyta, e às sextas-feiras tem pratica com disciplina com que se muyto

aproveitão todos. Vão-se confessando e juntamente fazendo penitencia; asi

em brancos como nos Indios há grande fervor e devação.

[...] Até agora pouco podemos conversar ho gentio, porque os christãos

estavão taes que nos occupão muyto suas confissões e negocios com elles100

.

Embora a Companhia tenha sido enviada ao Brasil para a conversão do gentio, sua

atuação é, em muitos sentidos, condicionada pela ocupação portuguesa e ligada ao aparato

institucional dessa realidade101

. Mesmo após a elevação do Brasil a província, passando a

responder diretamente à direção romana da ordem, a atuação dos jesuítas não se desenvolverá

independentemente das condições práticas proporcionadas pela ocupação portuguesa. Ainda

assim, o fundamento de sua presença estará sempre no horizonte dos missionários, e a

correspondência é profundamente marcada por tal fundamento. Os irmãos que aguardam

ansiosamente pelas cartas dos missionários, bem como o público mais amplo em que elas

circulam, não esperam ler a respeito do cotidiano das aulas, pregações e administração de

sacramento aos portugueses, mortificações dos irmãos etc., com a mesma intensidade com

que esperam informações a respeito do canibalismo, costumes alimentares e conjugais,

crenças e a maneira como Deus revela sua presença nos muitos episódios edificantes narrados

e nas muitas almas que se espera conquistarem para Cristo.

A descrição dos hábitos dos colonos, por sua vez, cumpre frequentemente uma

função retórica mais pontual. Quando a carta condena o cativeiro injusto dos indígenas pelos

colonos, as descrições destes últimos são bastante mais negativas, mesmo em relação a temas

tratados frequentemente, como a constante prática da mancebia. Da mesma forma, quando se

100

MB I, p. 288-9, grifo nosso. A palavra “negro” tem aqui a acepção de índio, o “negro da terra” e não o “negro

da Guiné”. 101

“No caso dos jesuítas, é necessário ter presente que a sua obra foi fortemente influenciada pela cultura e pelo

poder dominantes na sociedade portuguesa” (PROSPERI, Adriano. “As missões no Brasil, vistas de Roma”.

Comunicação apresentada no Colóquio internacional Contextos missionários: Religião e poder no Império

português, realizado na Universidade de São Paulo, 1-5 de outubro de 2007, p. 3).

40

defende e se solicita autorização para a entrada no sertão, acentuam a ineficácia do trabalho

ministerial entre os portugueses pela indisposição destes, o que tem a óbvia função retórica de

justificar a empreitada: “Ya cansamos de clamar, ya los que nos avían de oir, de los

christianos, nos tienen oydo, no nos queda más que la gentilidad, y si ésta nos impiden, no

haremos nada”102

. Sendo assim, é na comparação (e não na simples acumulação de trechos)

entre as diversas maneiras de se abordar um tema nas cartas que podemos estabelecer as

modalidades em que se dava a relação dos jesuítas com os colonos e o que elas podem revelar

em relação às práticas religiosas destes últimos.

Nas cartas jesuíticas de todas as capitanias do Brasil é bastante comum a utilização

de um tipo específico de comparação entre índios e colonos. Esta comparação apresentava o

índio como superior ao branco em sua devoção, entendimento ou costumes, a depender do

caso. Não se trata de uma comparação analítica, mas sim de um recurso retórico que acentua

com enorme capacidade expressiva a boa disposição dos indígenas para o cristianismo, o que

é possível visualizar na maneira genérica com que era utilizada. São muitas as cartas que

trazem esse tipo de argumentação, mas encontramos no famoso Diálogo sobre a conversão do

gentio do P. Manuel da Nóbrega sua utilização mais emblemática, uma vez que a obra discute

justamente a disposição do “gentio” para o cristianismo, fornecendo uma avaliação ampla da

situação da atividade missionária no Brasil. Quando Matheus Nugueira, um dos interlocutores

do diálogo, argumenta a favor da igual condição natural de entendimento a todas as

“gerações”, afirma que os padres “achão [os filhos dos indígenas] de tão boom entendimento

que muitos fazem avantagem aos filhos dos christãos”. Tal comparação é utilizada na

correspondência, nos mesmos moldes, para se referir à lealdade, fervor religioso, costumes

etc. Trata-se, portanto, de mais uma espécie de “fórnula” utilizada pelos jesuítas que, com

muita probabilidade, dialogava com a opinião corrente a respeito da pouca capacidade do

indígena. É contra essa opinião que se direciona toda a argumentação do Diálogo escrito por

Nóbrega.

A relação entre jesuítas e colonos foi profundamente marcada pelo conflito em torno

da assimilação da população indígena. A historiografia mais tradicional, notadamente aquela

ligada à própria Companhia de Jesus, esquematizou esse conflito contrapondo colonos

escravistas e jesuítas defensores da liberdade indígena, construção que foi baseada, no que

tange ao século XVI, principalmente na leitura das cartas jesuíticas. O problema da

escravização dos índios era, contudo, bastante mais complexo, como demonstrou a

102

Carta de Manuel da Nóbrega ao padre Luís Gonçalves da Câmara, datada de 15 junho de 1553 (MB I, p. 502).

41

fundamental pesquisa de Carlos A. Zeron sobre o papel da escravidão indígena na Companhia

de Jesus103

. Mesmo que o conflito entre colonos e jesuítas não possa ser reduzido ao dualismo

liberdade/escravidão, a diferença nas modalidades de assimilação dos nativos como mão de

obra levou, já no século XVI, a uma tensão entre essas duas esferas da presença colonial no

Brasil. Nesse sentido, a situação do planalto paulista, ainda que com suas particularidades,

não diferia em linhas gerais do que sucedia em outras capitanias, como se pode visualizar na

correspondência104

.

Todavia, este conflito, como afirma John Monteiro, “não se materializou

imediatamente, uma vez que antes se fazia necessária, para a permanência dos invasores em

solo indígena, a colaboração entre colonos e jesuítas perante a resistência dos índios”105

. Em

toda a capitania de São Vicente, as dificuldades geradas pela Guerra dos Tamoios, em meados

do século, tornaram essa colaboração uma questão de sobrevivência, ainda que as diferenças

de opinião em relação ao cativeiro indígena se fizessem presentes. O fim do século XVI, com

o fracasso da experiência jesuíta dos aldeamentos, assinala o início de uma nova fase nas

relações euro-indígenas, que representa também um novo delineamento para o conflito entre

jesuítas e colonos. É imprescindível estar atento, ao se buscar na correspondência jesuítica

informações sobre os colonos do planalto, às características desse cenário mais amplo.

A maneira como os colonos aparecem nas cartas apresenta, no caso de São Paulo

quinhentista, uma problemática peculiar. Essas referências documentais foram lidas

repetidamente sob o viés do persistente e influente paradigma historiográfico da

especificidade106

paulista no contexto colonial. Não seria possível refazer aqui o complexo

percurso da construção desse paradigma, hoje já um tanto envelhecido. Entretanto, por

encontrarmos ecos dessa leitura mesmo em trabalhos bastante recentes, é necessário destacar

sinteticamente alguns direcionamentos que essa ideia assumiu na historiografia. Para

compreender o papel dos paulistas nas narrativas epistolares jesuíticas do século XVI é

preciso decompor essas camadas interpretativas, construídas principalmente a partir de

situações referentes aos séculos posteriores.

103

ZERON, Carlos Alberto de M. R. Ligne de foi: La compagnie de Jésus et l’esclavage dans le processus de

formation de la société coloniale en Amérique portugaise (XVIe-XVIIe siècles). Paris: Honoré Champion

Éditeur, 2009. Na introdução (pp. 17-38), o autor faz uma síntese crítica da historiografia referente ao tema,

indicando a leitura enviesada dos autores ligados à própria Companhia de Jesus, bem como de outros que

também seguem esta leitura. 104

John M. Monteiro analisa a situação específica do planalto paulista no subitem “Jesuítas e Colonos na

ocupação do Planalto”, in: Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1994, pp. 36-42. 105

Ibid., p. 38. 106

Termo utilizado por Ilana Blaj no artigo “Mentalidade e Sociedade: revisitando a historiografia sobre São

Paulo colonial”. Revista de História da Universidade de São Paulo, n. 142-143, 1º sem. 2000, pp. 239-259.

42

A utilização da ideia de especificidade paulista pela historiografia não diz respeito,

na maioria das vezes, às peculiaridades que cada região obviamente possuía no interior de um

contexto colonial mais amplo. Um grande número de autores, de tendências variadas,

procurou apresentar o planalto paulista como uma região única na América portuguesa,

praticamente alheia ao que poderíamos tomar conjuntamente como Brasil colonial. Nesse

sentido, compartilham esse paradigma tanto os autores que buscam louvar a independência e

autossuficiência paulistas, quanto aqueles que destacam a pobreza material da região e sua

marginalidade na estrutura colonial. Com o objetivo de avaliar criticamente a ideia da

especificidade paulista, Ilana Blaj aponta essa convergência entre as tendências desenvolvidas

a partir da virada do século XX por autores ligados ao Instituto Histórico e Geográfico de São

Paulo (IHGSP) e as abordagens utilizadas a partir da década de 1950:

Seja enaltecendo a independência, altivez, rebeldia do paulista e a fartura de

sua lavoura auto-suficiente (visão do IHGSP), seja ressaltando a pobreza de

sua economia de subsistência e as dificuldades de enriquecimento de sua

população (abordagens a partir da década de cinqüenta), São Paulo colonial

tem sido apresentada como uma formação peculiar, atípica, diferenciada com

relação às áreas exportadoras escravistas107

.

A autora tem o objetivo de inserir São Paulo na estrutura senhorial-escravista que

entende como característica de toda a América portuguesa, baseada na propriedade,

escravidão e símbolos de honraria e prestígio. Aponta também as motivações políticas ligadas

à utilização historiográfica da especificidade paulista entre 1930 e 1945, notadamente pelos

escritos ligados ao IHGSP. A imagem do paulista altivo, desbravador e autossuficiente, tendo

como fundamento o bandeirante, ligou-se profundamente à situação econômica e às

pretensões políticas da São Paulo cafeeira no Estado Novo, e havia sido gestada no interior de

uma visão republicana da História da região que vinha sendo esboçada desde as últimas

décadas do século XIX108

. Teremos a ocasião de acompanhar mais detidamente no próximo

tópico, sobre o caso de João Ramalho, como essa abordagem – que podemos chamar mais

107

BLAJ, Ilana. “Mentalidade e Sociedade: revisitando a historiografia sobre São Paulo colonial”, Revista de

História da Universidade de São Paulo, n. 142-143, 1 sem. 2000, p. 242. 108

“Assim, o que predomina e permanece nos escritos do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, entre

1930 e 1945, é menos a imagem do isolamento do que a da auto-suficiência. São Paulo seria uma verdadeira

autarquia que não necessitava da Metrópole, vale dizer, do poder central em 1930; não necessitava, igualmente,

das outras regiões, logo dos outros Estados; em suma, São Paulo e os paulistas sobreviveram galhardamente no

período colonial como sobreviviam heroicamente durante o Estado Novo”. Ibid., p. 241. Sobre o

desenvolvimento inicial dessa autoimagem paulista a partir de fins do século XIX, conferir a detalhada pesquisa

de Danilo José Z. Ferretti. A construção da paulistanidade: identidade, historiografia e política em São Paulo

(1856-1930). 2004. 391 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004, principalmente a parte II, pp. 102-250.

43

genericamente de historiografia paulística, ainda que não fosse homogênea109

- enviesou a

leitura da correspondência jesuítica do século XVI.

A construção da ideia de especificidade paulista teve como um dos fundamentos as

constantes referências documentais à insubmissão dos colonos do planalto às autoridades e

legislação real, tendo como cerne a questão da utilização da mão de obra indígena e, como

principais propagadores dessa imagem, os jesuítas. Como afirma John Monteiro:

[...] desde meados do século XVII, diversos observadores sublinharam a

suposta autonomia e rebeldia dos colonos de São Paulo, sobretudo em

função da sua franca desobediência às leis do Reino referentes à liberdade

dos índios. Certamente esta tendência começou a ser fomentada pelos

jesuítas durante os conflitos em torno das missões de Guairá110

.

Nas cartas jesuíticas quinhentistas encontramos referências a conflitos entre

missionários da Companhia e colonos do planalto, mas em moldes diversos do que podemos

visualizar nas descrições posteriores. Segundo John Monteiro, a própria utilização do termo

paulista remonta ao século XVII, adquirindo contornos mais definidos nas narrativas

referentes ao conflito dos emboabas, durante o século XVIII, nos quais ora era possível

distinguir um habitante da vila de São Paulo de um habitante de Taubaté, ora essas diferenças

eram diluídas em um uso mais genérico do termo, que incluía todos os habitantes de Serra

Acima111

. Na defesa de uma especificidade paulista, seja pelo viés da rebeldia como da

autossuficiência, é frequente a extensão do conceito ao século XVI, tomando a documentação

de um e outro período como complementares, o que acaba por diminuir a importância das

modificações econômicas, populacionais e administrativas pelas quais a região do planalto

passou a partir da década de 1580112

.

109

Danilo Ferretti aponta a necessidade de evitar uma leitura focada apenas em um recorte social, como “elite

paulista”, uma vez que dilui as importantes clivagens políticas e subdimensiona a importância de autores que

contestam a vertente perrepista (A construção da paulistanidade: identidade, historiografia e política em São

Paulo (1856-1930). 2004. 391 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004, principalmente a parte II, p. 5). 110

MONTEIRO, John. Tupis, Tapuias e historiadores: Estudos de História indígena e do indigenismo. 2001. 233

f. Tese (Livre Docência em Etnologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, Campinas, 2001,

pp. 105-6. 111

MONTEIRO, Ibid., p. 109. 112

Em relação a esse tema, o trabalho fundamental é MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e

bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Cf. ainda a recente pesquisa de

José Carlos Vilardaga. São Paulo na órbita do Império dos Felipes: Conexões castelhanas de uma vila da

América portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640). 2010. 399 f. Tese (Doutorado em História Social) –

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

44

A imagem de uma vila autônoma politicamente e marginal economicamente esteve

profundamente ligada à ideia de isolamento geográfico113

. De fato, as dificuldades de acesso

ao planalto paulista pela Serra do Mar são bem conhecidas e são citadas inclusive pela

documentação jesuítica aqui analisada114

. Essa situação geográfica, associada às acusações de

insubmissão dos colonos da região, foi fundamental na elaboração do paradigma da

especificidade paulista. A leitura da História de São Paulo tendo como traço constitutivo o

isolamento foi bastante explorada por autores como Afonso Taunay, Alcântara Machado,

Washington Luiz e Alfredo Ellis Jr.115

. Atribuiu-se ainda ao isolamento a formação de uma

“raça paulista”, mestiça e tendo como uma das principais qualidades o sentimento de

independência116

. Para tratar de maneira pertinente dos reflexos dessa situação geográfica na

vida dos colonos do planalto, é preciso, em primeiro lugar, evitar a associação automática do

isolamento à imagem do paulista rebelde e autossuficiente, e, em segundo lugar, analisar mais

pormenorizadamente as ligações da vila de São Paulo com outras regiões, dimensionando

melhor o quanto a região seria ou não isolada.

Algumas pesquisas articularam a ideia de isolamento geográfico à questão da

pobreza do planalto no campo da vida material. Alcântara Machado debruçou-se sobre os

inventários e testamentos para apresentar um quadro dos objetos que faziam parte do

cotidiano dos desbravadores do sertão117

. Mais recentemente, Carlos A. C. Lemos leva

adiante essa proposta analítica118

. Estas pesquisas apontam, em relação aos séculos XVI e

XVII, para um cotidiano pobre, caracterizado por “um repertório de bens culturais, além de

modesto, calcado em repetições de soluções antigas”119

, gerando situações curiosas como o

caso do vestido de seda e de veludo preto lavrado de Isabel Ribeiro, avaliado como cinco

vezes mais valioso que sua casa assobradada na Rua Direita120

. Afonso Taunay havia já

tratado rapidamente da “desproporção” entre os valores de bens imóveis e manufaturados,

113

VILARDAGA, José Carlos. São Paulo na órbita do Império dos Felipes: Conexões castelhanas de uma vila

da América portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640). 2010. 399 f. Tese (Doutorado em História Social) –

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 190. 114

MB II, p. 159, 316. 115

VILARDAGA, loc. cit. 116

Ilana Blaj analisa como Paulo Prado desenvolve essa articulação (A trama das tensões: O processo de

mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP: Fapesp, 2002, pp. 44-

5). 117

MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,

2006 [1929]. 118

LEMOS, Carlos A. C. “Notas sobre a cultura material e o cotidiano em São Paulo nos tempos coloniais”. In:

PORTA, Paula (org.) História da Cidade de São Paulo, v.1: a cidade colonial. São Paulo: Paz e Terra, 2004, pp.

179-189. 119

Ibid., p. 180. 120

Ibid., p. 179.

45

apontando também a pobreza material da vila nos séculos XVI e XVII121

. Taunay e Alcântara

Machado apontam a dificuldade causada pelo transporte através da serra, bem como do

marítimo, mas destacam a falta de uma atividade econômica pulsante como fundamento dessa

carência de produtos europeus122

. No entanto, Taunay destaca ainda que, mesmo nas regiões

mais opulentas, não havia à época uma diversidade muito grande de utensílios123

. O

“isolamento de serra-acima” como fundamento dessa carência, sem que se desconsidere a

influência da pobreza, recebe maior destaque no texto de Carlos Lemos124

.

Decerto a vida em São Paulo era bastante modesta, como atestam os inventários e

testamentos, principalmente até a última década do século XVI, quando sobrevém um relativo

incremento econômico. A dificuldade em se transportar os produtos pelo caminho do mar, às

costas dos índios, certamente valorizava ainda mais os produtos europeus. No entanto, se a

carência de bens está fartamente documentada, o mesmo não se pode dizer de sua ligação com

o pretenso isolamento do planalto, para qual consideramos haver ainda uma influência da

tradição historiográfica da especificidade paulista. Os trabalhos indicados dedicam, por

exemplo, uma atenção marginal à explicação dada por Fernão Cardim de que havia uma

“grande falta de vestido” na vila de São Paulo “porque não vão os navios a S. Vicente senão

tarde e poucos”125

. Trata-se, evidentemente, de uma referência isolada, que não deve ser

sobrevalorizada, mas que permite conjecturar outras possibilidades explicativas.

José Carlos Vilardaga realizou uma análise mais detida das relações comerciais da

vila de São Paulo durante a União Ibérica (1580-1640). A quantidade de ligações comerciais e

empreendimentos em outras regiões, por parte de alguns moradores, coloca alguns

questionamentos ao binômio pobreza-isolamento. Um caso representativo é o de Afonso

Sardinha, residente em São Paulo desde 1565, tratado por Afonso Taunay como exceção em

meio ao contexto de pobreza126

. É sempre lembrado o episódio em que justifica sua ausência

em uma sessão da Câmara por não ter botas. Ainda assim, possuía negócios em Santos, Rio

de Janeiro e Buenos Aires, deslocando-se frequentemente “ao mar”. “Negociava escravos da

121

TAUNAY, Afonso de E. São Paulo nos primeiros anos (1554-1601): ensaio de reconstituição social; São

Paulo no Século XVI: história da vila piratiningana. Coordenação de Paula Porta. São Paulo: Paz e Terra, 2003

[1920, 1921], pp. 155-8. O autor recorre aos inventários e testamentos do século XVII por não ter restado quase

nenhum do século anterior, objeto do livro. 122

Ibid., p. 156 e 180; MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Imprensa Oficial do

Estado de São Paulo, 2006 [1929], p. 40. 123

TAUNAY, op. cit., p. 158. 124

LEMOS, Carlos A. C. “Notas sobre a cultura material e o cotidiano em São Paulo nos tempos coloniais”. In:

PORTA, Paula (org.) História da Cidade de São Paulo, v.1: a cidade colonial. São Paulo: Paz e Terra, 2004,

passim. 125

CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Introduções e notas de Baptista Caetano, Capistrano

de Abreu e Rodolpho Garcia. Rio de Janeiro: J. Leite & Cia., 1925, p. 357. 126

TAUNAY, op. cit., p. 157.

46

Guiné, tecidos, marmelada e gentios. Foi de sua propriedade um dos primeiros trapiches de

açúcar no planalto”127

. Para o nosso período, Vilardaga apresenta diversos exemplos da

utilização do caminho que ligava São Vicente ao Paraguai através de São Paulo, desde a

década de 1550128

. O tema do isolamento geográfico da vila de São Paulo, portanto, está

longe de ser esgotado, e o paradigma da especificidade paulista ainda pesa sobre muitas

análises.

Cabe aqui uma observação a respeito da utilização das referências epistolares

jesuíticas para justificar a ideia de isolamento. Recorre-se com frequência aos trechos

relativos à dificuldade de acesso ao planalto como indicação da falta de contato com a

metrópole, do que nos dá notável exemplo uma passagem de Ernani Silva Bruno:

De sua localização em planalto de acesso difícil resultou a falta de contacto

da capitania tôda com a Metrópole desde os tempos coloniais. Já em sua

Informação de 1585 escrevia Anchieta: “A quarta vila na capitania de São

Vicente é Piratininga, que está dez a doze léguas pelo sertão e terra a dentro.

Vão lá por umas serras tão altas que dificultosamente podem subir nenhuns

animais, e os homens sobem com trabalho e às vezes de gatinhas por não

despenharem-se, e por ser o caminho tão mau e ter ruim serventia padecem

os moradores e os nossos grandes trabalhos”129

.

A passagem de Anchieta acentua o quão dificultoso era o caminho até o planalto, o

que permite, por sua vez, valorizar o esforço dos missionários. Porém, longe de indicar o

isolamento de São Paulo, o texto alude justamente à efetiva utilização do caminho. Se tanto

“moradores” quanto jesuítas “padecem grandes trabalhos”, é porque de fato percorriam o

trajeto, ainda que não seja possível saber a frequência. Não é o caso de concluir daí que a

movimentação entre a costa e o planalto fosse corriqueira, mas o documento tampouco indica

que era rara. É possível entrever também nesta leitura que Silva Bruno faz da Informação uma

projeção das temáticas seiscentistas ligadas ao paulista, nas quais se relacionavam isolamento

e insubmissão. O autor efetivamente faz a ponte entre os temas já na página seguinte.

Uma indicação semelhante, com mais pormenores, está presente na narrativa

epistolar de Fernão Cardim acerca da visitação do padre Cristóvão de Gouveia às partes do

Brasil, realizada entre 1583 e 1590. Cardim também menciona que o caminho para Piratininga

127

VILARDAGA, José Carlos. São Paulo na órbita do Império dos Felipes: Conexões castelhanas de uma vila

da América portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640). 2010. 399 f. Tese (Doutorado em História Social) –

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 116. É o

autor que chama a atenção para a incongruência entre o episódio das botas e as extensas ligações comerciais de

Sardinha. Para as ligações da vila de São Paulo na América Meridional, conferir o capítulo 3, pp. 189-280. 128

Ibid., p. 222. 129

BRUNO, Ernani Silva. História e tradições da cidade de São Paulo, vol. I: Arraial de sertanistas (1554-

1828). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editôra, 1953, pp. 38-9.

47

era “tão íngreme que às vezes íamos pegando com as mãos”, “o peor que nunca vi”130

, repleto

de brejos, com subidas e descidas constantes. Como na Informação de Anchieta, não há

menção a isolamento, apenas à dificuldade do trajeto. O texto chega a fazer uma referência

sutil à existência de um contato não tão espaçado entre os jesuítas de São Vicente e

Piratininga. Escreve Cardim que a partida para São Paulo ocorreu porque “desejavam os

padres de Piratininga que o padre visitador se achasse naquella casa aos 25 de Janeiro, dia da

conversão de S. Paulo, por ser orago da nossa igreja”131

. Dado que a chegada de Gouveia e

Cardim a São Vicente deu-se já em meados de janeiro, a informação correu com relativa

rapidez. Em 1550, antes mesmo da fundação da casa de Piratininga e da vila de Santo André

da Borda do Campo, Leonardo Nunes narra um episódio semelhante. Dirigindo-se ao Campo,

por tomar conhecimento da “gente christiana derramada” ali, “en la postrera jornada topamos

un mancebo con unas cartas para mí, que me estavan esperando, porque ya tenían nuevas que

yo desseava de les yr a ver”132

. Insistimos, contudo, que casos pontuais como os citados não

permitem concluir a existência de um tráfego intenso de moradores entre o planalto e a costa.

São apenas indícios de que a ligação de Santo André e São Paulo com o litoral precisa ser

dimensionada sem uma adequação prévia à ideia de isolamento, que leva a enxergar nas

fontes mais do que elas efetivamente apresentam. A quantidade de vezes em que as atas da

Câmara mencionam a ida de alguém “ao mar”, mesmo com o espaçamento entre as reuniões,

indica que a frequência desse deslocamento poderia ser maior do que ordinariamente se

apresenta133

.

É importante considerar ainda que, se a situação geográfica do planalto paulista

tornava o acesso trabalhoso, também fazia da região uma passagem fundamental entre o

litoral vicentino e o interior do continente, como já indicara Caio Prado Júnior em estudo

clássico134

, uma vez que o obstáculo da Serra do Mar era ali mais facilmente ultrapassado.

Atingir o Paraguai a partir de São Vicente, através do planalto paulista, não era um caminho

pouco usual, mesmo que fosse proibido, e foi o trajeto escolhido até mesmo por Luis de

Céspedes e Xeria para assumir o governo do Paraguai em 1628, bem como por diversos

130

CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Introduções e notas de Baptista Caetano, Capistrano

de Abreu e Rodolpho Garcia. Rio de Janeiro: J. Leite & Cia., 1925, p. 353. 131

Ibid., p. 352. 132

MB I, p.209. 133

Cf., dentre outras: ACVSP (24/06/1575, 14/08/1575, 02/09/1581); e na Câmara de Santo André da Borda do

Campo, em 28/09/1555 (“Actas da Camara de Santo André da Borda do Campo”. In: TAUNAY, Afonso de E.

João Ramalho e Santo André da Borda do Campo. São Paulo: Publicação comemorativa do Quarto Centenário

da Fundação de Santo André da Borda do Campo, 1953, p. 273. 134

PRADO Jr., Caio. “O fator geográfico na formação e no desenvolvimento da cidade de São Paulo”. In:

______. Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1953, pp. 99-118.

48

“aventureiros e conquistadores”, ainda no século XVI135

. A listagem que José Carlos

Vilardaga apresenta de indivíduos que cruzaram o caminho ilegal de São Paulo ao Paraguai

durante a União Ibérica indica, por sua vez, que se tratava de uma ligação com alguma

constância136

.

Dessa forma, para se compreender o planalto paulista no século XVI é necessário,

além de problematizar o paradigma da especificidade, analisar detidamente a situação

concreta no que concerne aos respectivos temas. Ao se problematizar o viés ideológico da

utilização historiográfica da especificidade paulista, e a visão exageradamente homogênea que

apresenta em relação às outras regiões da colônia, as questões como o isolamento e a pobreza

material do planalto, a liberdade política e a economia de subsistência não estão

automaticamente resolvidas. Ainda que não se procure construir uma oposição entre São

Paulo e o restante do Brasil tomado em conjunto, entender as peculiaridades do processo

histórico da colonização do planalto é certamente fundamental para compreender o posterior

desenvolvimento histórico da região.

O enfoque das pesquisas de Sérgio Buarque de Holanda sobre São Paulo é

representativo dessa problemática. Em certa medida, ressoam em seus trabalhos algumas das

imagens tradicionais atribuídas aos paulistas, “que chegaram a aclamar um rei de sua casta e

dos quais dizia certo governador português que formavam uma república de per si,

desdenhosos das leis humanas e divinas”137

. Essa imagem é utilizada no interior de uma

argumentação que busca identificar o que a realidade interiorana tem de peculiar em relação

ao que seria o padrão mais difundido nas cidades costeiras138

. Tal interpretação guarda certa

semelhança com a contraposição entre o paulista rebelde e o habitante da costa que Ilana Blaj

critica na historiografia paulística, que peca por uma simplificação da realidade costeira e das

relações entre a sociedade paulista e as estruturas monárquicas de poder:

Portanto, conjunturalmente, as relações entre paulistas e autoridades reais

podiam ser conflituosas, como também o foram, nas mesmas condições, nas

demais regiões do país. Mas, ao fim e ao cabo, a conciliação era sempre

possível pois, como já apontamos, eram os mesmos objetivos que todos

135

VILARDAGA, José Carlos. São Paulo na órbita do Império dos Felipes: Conexões castelhanas de uma vila

da América portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640). 2010. 399 f. Tese (Doutorado em História Social) –

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 221. 136

Ibid., pp. 394-9. 137

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994

[1956], p. 21. 138

Essa perspectiva comparativa entre realidade costeira e interiorana está presente no conjunto desse trabalho,

que focaliza a vida material (Ibidem).

49

perseguiam, quais sejam, o desenvolvimento da colonização e a

sedimentação da ordem senhorial-escravista139

.

Na interpretação de Buarque de Holanda, no entanto, a perspectiva comparativa entre

interior e litoral cumpre uma função diversa do que cumpria na historiografia paulística. A

diferença entre a realidade interiorana e a das cidades costeiras não é atribuída pelo autor às

características especiais de uma “raça paulista”, mas à necessidade de adaptação a condições

muito diversas do meio. Não lhe escapam, contudo, os traços comuns que tornavam as duas

realidades parte de um mesmo processo histórico, perspectiva que Ilana Blaj aponta como

ausente nos autores da vertente paulística e naqueles de derivação cepalina. Segundo Buarque

de Holanda, “em toda parte é idêntico o objetivo dos colonos portugueses. Diverge

unicamente, ditado pelas circunstâncias locais, o compasso que, num e noutro caso, regula a

marcha para esse objetivo”140

. Em Caminhos e fronteiras, o autor identifica como

peculiaridade do processo histórico do planalto a necessidade de uma maior abertura às

técnicas e os costumes indígenas, devido a uma insuficiência do meio. O foco na vida material

dá-se por ser o âmbito no qual essa influência indígena seria mais acentuada. Dessa forma,

essa esquematização em duas realidades, uma litorânea e outra interiorana, deve-se ao

enfoque de Sérgio Buarque de Holanda em um conjunto concreto de problemas, para os quais

tal contraposição é pertinente; ao mesmo tempo, reconhece o que há de comum em ambos os

cenários. Nesse sentido, sua abordagem de um contexto especificamente paulista apresenta

um viés analítico que a diferencia da realizada pela historiografia paulística, ainda que

reafirme, para temas como a língua e a “rebeldia” política, algumas das interpretações

oriundas desses autores, hoje já bastante discutíveis.

Partindo da análise de problemas concretos mais específicos, muitos trabalhos

buscaram identificar os traços peculiares da colonização do planalto paulista, sem com isso

construir imagens totalizantes e simplificadoras de uma São Paulo diferenciada das demais

regiões. Um marco importante na identificação desses traços é o trabalho “Negros da terra”,

de John Manuel Monteiro, que reavaliou a inserção de São Paulo na América portuguesa141

.

Essa importante pesquisa revê criticamente a ideia de São Paulo como mero fornecedor de

mão de obra para outras regiões da colônia – a leitura “de viés” de que fala Ilana Blaj –,

analisando o desenvolvimento da agricultura no planalto, com produção de excedente para o

139

BLAJ, Ilana. “Mentalidade e Sociedade: revisitando a historiografia sobre São Paulo colonial”, Revista de

História da Universidade de São Paulo, n. 142-143, 1 sem. 2000, p. 255. 140

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994

[1956], p. 10. 141

MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1994.

50

mercado interno a partir do trabalho compulsório indígena. Monteiro considera a região como

palco de um processo histórico específico:

os capítulos que se seguem procuram demonstrar que as principais estruturas

da sociedade colonial na região surgiram de um processo histórico

específico, no qual diversas e distintas sociedades indígenas ficaram

subordinadas a uma estrutura elaborada visando controlar e explorar a mão-

de-obra indígena142

.

Dessa forma, ainda que o paradigma da especificidade paulista, nos moldes mais

generalizantes em que foi desenvolvido pela historiografia paulística ou pelas abordagens de

cunho cepalino, seja hoje bastante questionado, os diversos elementos que compunham essa

ideia de especificidade, como a liberdade política, o isolamento do planalto, a pobreza

material e a “marginalidade” na economia colonial, continuam sendo extensamente estudados

e debatidos. Dentre eles, a questão da liberdade política é ainda a mais polêmica, dado que se

relaciona a discussões atuais sobre a natureza da estrutura política das monarquias

quinhentistas e seiscentistas.

Como apontado anteriormente, a questão da liberdade política de São Paulo tem

origem em diversas referências documentais que destacam a desobediência dos paulistas a

determinações reais, relacionadas fundamentalmente à questão da mão de obra indígena no

século XVII, que acabou por gerar aquilo que se convencionou chamar de Lenda Negra143

. A

interpretação historiográfica dessas narrativas seiscentistas dependeu, como não podia deixar

de ser, das problemáticas contemporâneas relativas à identidade regional, o que era agravado,

contudo, pelo caráter unilateral das fontes e pela grande influência dos textos jesuíticos. Os

historiadores setecentistas Frei Gaspar da Madre de Deus e Pedro Taques de Almeida Paes

Leme buscaram em suas obras combater a qualificação do paulista como rebelde,

justificando-a pela animosidade jesuítica e apresentando a aristocracia de São Paulo como fiel

vassala do rei. O desenvolvimento de uma interpretação de cunho federalista dessas

referências à insubmissão dos paulistas virá à tona somente no interior de uma visão

republicana do passado de São Paulo, que começou a ser esboçada a partir do final do século

XIX. Durante o período imperial, praticamente inexistiu um discurso identitário paulista com

base na História, com exceções pontuais como as obras do barão Homem de Melo e do

ultracatólico Ricardo G. Daunt. Mesmo em um autor como Varnhagen, favorável aos métodos

142

MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1994, pp. 8-9. 143

SOUZA, Laura de Mello e. “Vícios, virtudes e sentimento regional: São Paulo, da Lenda Negra à Lenda

Áurea”, Revista de História da Universidade de São Paulo, n. 142-143, 1 sem. 2000, pp. 261-276.

51

bandeirantes e crítico do viés indianista da historiografia desenvolvida no IHGB,

predominava a defesa da fidelidade monárquica do paulista144

.

A historiografia ligada ao IHGSP extraiu dessas referências um espírito de

independência municipal que, como apontou a crítica mais recente, servia como

fundamentação identitária para os conflitos políticos da República Velha e do Estado Novo.

Afonso Taunay, por exemplo, trata do tema como “amor à autonomia, à liberdade”, que teria

ocasionado “a fama de insubmissos vassalos dos reis de Espanha e de Portugal”145

. Ainda que

esse viés interpretativo apologético da historiografia paulística tenho sido largamente

problematizado, como indicado anteriormente, a questão da autonomia política permanece

objeto de controvérsias. Rafael Ruiz Gonzalez admite a situação de relativa autonomia

política de São Paulo e analisa a inserção política da vila na estrutura do Império, durante a

União Ibérica, identificando o papel que cumpria estrategicamente para a monarquia

hispânica:

Todo o desenvolvimento da região, principalmente a partir do momento em

que entrou em vigor o 2º Regimento das minas, fez da vila um lugar bastante

autônomo e independente, uma república, como os documentos exprimiam,

aonde dificilmente chegava o peso e a força do poder central146

.

Para Ruiz Gonzalez, portanto, a situação de São Paulo era realmente bastante

“peculiar”, devido à sua posição geográfica estratégica e da forte ligação com as regiões do

Prata, Paraguai e altiplano boliviano, ocasionada pela maneira como a vila foi integrada aos

planos da coroa de Castela147

, propiciando uma convivência heterogênea na qual os “usos e

costumes” tinham força de lei. Dessa forma, a autonomia política de São Paulo não se deve,

144

Baseamo-nos aqui em FERRETTI, Danilo José Z. A construção da paulistanidade: identidade, historiografia

e política em São Paulo (1856-1930). 2004. 391 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. As exceções de Homem de

Melo e Ricardo G. Daunt são tratadas no capítulo 1, pp. 27-37. Para Varnhagen e a fidelidade paulista, cf. pp.

90-101. 145

TAUNAY, Afonso de. São Paulo nos primeiros anos (1554-1601): ensaio de reconstituição social; São

Paulo no Século XVI: história da vila piratiningana. Coordenação de Paula Porta. São Paulo: Paz e Terra, 2003

[1920, 1921], p. 86. 146

RUIZ GONZALEZ, Rafael. A vila de São Paulo durante a união das coroas: estratégias políticas e

transformações jurídicas. 2002. 229 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002, p.7, itálico do autor. Cf. também: idem.

“Colonos e jesuítas no planalto: A força dos usos e costumes na vila de São Paulo” In: CAMARGO, Ana Maria

de A. (org.) São Paulo, uma longa história. São Paulo, CIEE, 2004, pp. 13-38. 147

“São Paulo, como resultado de sua situação geográfica, prevista por Portugal, integrou-se nos planos da Coroa

de Castela de forma diferente de todas as outras cidades do Brasil, pois passou a compartilhar sua história com as

populações do Paraguai, da Prata e do altiplano boliviano. É precisamente nessa história, peculiar a São Paulo,

que reside a sua originalidade. Tal originalidade está marcada por aquilo que considero um dos pontos mais

importantes deste trabalho: a força que os usos e costumes, como resultado de uma convivência heterogênea,

tiveram na vila de São Paulo frente ao ordenamento legal”, RUIZ GONZALEZ, “Colonos e jesuítas no

planalto”, op. cit., p. 32.

52

para o autor, à incapacidade coercitiva da coroa ou às características morais dos paulistas,

destemidos e insubmissos, como eram pintados pela historiografia paulística. Seguindo os

caminhos teóricos abertos por António Manuel Hespanha, Ruiz Gonzalez entende essa

relativa autonomia como admitida pela estrutura política do Império.

José Carlos Vilardaga, por sua vez, aponta a necessidade de considerar o espaço de

disputas, conflitos e negociações que se estabelecia na relação entre a normatização

metropolitana e a realidade política local, evitando contrapor essas duas instâncias de maneira

demasiadamente esquemática. Afirma o autor:

O tema dos usos e costumes é bastante controverso na história de São Paulo.

Há uma tendência a considerar uma suposta prevalência destes sobre as leis,

numa clara bipolarização entre a norma metropolitana e a prática local. Esta

leitura casou-se muito bem com as interpretações que reforçaram o caráter

autônomo e rebelde dos “paulistas” em relação às autoridades reais. Longe

de negar o papel importante dos usos e costumes, tanto em sua efetiva força

legal, quanto retórica – aliás, bastante comum na época e utilizada por várias

populações coloniais -, deve-se analisar a questão de maneira menos

dicotômica148

.

Nesse sentido, a análise de Vilardaga considera a normatização legal proveniente do

reino como uma das forças atuantes nas articulações políticas da vila, mobilizada

eventualmente pelos próprios moradores tidos frequentemente como rebeldes149

. O estudo da

atuação do governador D. Francisco de Souza na vila é bastante representativo dessa

perspectiva analítica, buscando por um lado evitar a dicotomia entre norma metropolitana e

prática local, demonstrando a habilidosa articulação do governador entre essas instâncias, e,

por outro lado, fugindo à contraposição entre o planalto rebelde e a costa, uma vez que

episódios de resistência a normatizações do reino não foram exclusividade da região de Serra

Acima150

.

As questões, brevemente apresentadas, ligadas à autonomia política, isolamento e

vida material no planalto, inserção econômica no contexto brasileiro e americano, bem como

a utilização do paradigma da especificidade de São Paulo para explicá-las, estão focadas,

como temos indicado, nos séculos XVII e XVIII. Para compreender como nossa temática e

nosso período relacionam-se a essas discussões é preciso decompor essas camadas

interpretativas acumuladas. O peso dessas discussões é tão grande que torna necessário

148

VILARDAGA, José Carlos. São Paulo na órbita do Império dos Felipes: Conexões castelhanas de uma vila

da América portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640). 2010. 399 f. Tese (Doutorado em História Social) –

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 167. 149

Ibid., p. 331. 150

A Análise sobre a atuação de D. Francisco é realizada no segundo capítulo (ibid., pp. 113-88).

53

afirmar uma obviedade: a de que é preciso compreender o século XVI por ele mesmo, e não

retrospectivamente.

Voltando-se mais especificamente para o nosso tema, a ideia de especificidade

influenciou também a análise da vivência religiosa no planalto. À ideia de rebeldia (ou

autonomia) em relação à administração real, associou-se a independência em relação à Igreja.

Essa construção é largamente utilizada por José Gonçalves Salvador151

. Ligando a ideia de

rebeldia e desrespeito às leis dos homens e Deus, desenvolvida a partir do século XVII, ao

nosso período encontra-se a figura emblemática de João Ramalho.

1.3. O Caso de João Ramalho

Dando sequência à análise do tratamento que a correspondência jesuíta dispensa aos

colonos do planalto paulista, deteremo-nos neste tópico em um personagem específico, tido

como patriarca dos paulistas, João Ramalho. Essa abordagem individualizada não se justifica

por uma inclinação biográfica, mas por atender a duas problemáticas, uma documental e outra

historiográfica. A primeira diz respeito ao fato de que, nas referências sobre a população de

colonos do planalto presentes nas cartas jesuíticas, nenhum personagem recebeu tanto

destaque individualmente quanto João Ramalho. A análise esmiuçada desse caso em

particular permite estabelecer relações e comparações que tornam mais claras e concretas as

questões que abordamos no tópico anterior. A segunda problemática refere-se à importância

que o estudo da biografia de Ramalho teve na historiografia relativa a São Paulo colonial,

tanto em aspectos metodológicos quanto na construção de certas imagens de um genérico

paulista.

Na bibliografia que trata de João Ramalho, as cartas jesuíticas ocupam um papel de

destaque, já que não há muitas referências documentais coetâneas a seu respeito, além de

algumas indicações pontuais e fragmentárias. Há referências indiretas a seu testamento,

poucas e curtas indicações nas atas da Câmara das vilas de Santo André da Borda do Campo e

de São Paulo, bem como uma rápida e famosa passagem do viajante alemão Ulrich Schmidel,

151

SALVADOR, José Gonçalves. Cristãos-Novos, jesuítas e inquisição: Aspectos de sua atuação nas capitanias

do Sul, (1530-1680). São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1969, passim.

54

que sequer o vira pessoalmente. Dessa forma, mesmo os historiadores que se contrapunham à

visão jesuítica sobre o personagem tiveram que se valer das cartas em sua pesquisa.

Ainda que João Ramalho seja mais citado na correspondência do que outros colonos

do planalto, o número dessas referências e as informações disponíveis são bastante reduzidas.

Por isso, a utilização das passagens sobre o personagem na historiografia consistiu

fundamentalmente na repetição de alguns curtos trechos, que acabaram por se tornar

emblemáticos. Na coletânea do jesuíta Serafim Leite utilizada nesta pesquisa, Monumenta

Brasiliae, é possível encontrar oito cartas que o citam152

, quase sempre de forma rápida e, na

maior parte das vezes, sem o nomear. Uma delas apenas faz referência a “huma povoação de

João Ramalho”, para situar o local no qual os jesuítas buscavam juntar a população indígena

do planalto, a duas léguas da primeira.

Serafim Leite interpreta essas cartas, seguindo o caráter narrativo que impinge à sua

coletânea, como testemunhos objetivos e complementares, que tornam possível apreender

factualmente os diferentes momentos das relações entre Ramalho e seus filhos com os padres

jesuítas. Nesse sentido, mesmo procurando resguardar o personagem, apontando uma

reconciliação final deste com os jesuítas, aceita os termos do conflito e acusações tal como

proposto nas cartas, revelando mais uma vez a voz institucional de sua historiografia.

Apesar das diversas hipóteses levantadas a respeito da biografia de João Ramalho,

não há muitos dados objetivos153

. É proveniente de Vouzela, freguesia da comarca de Viseu,

província da Beira Alta, e parente do jesuíta Manuel de Paiva, que veio a conhecer no Brasil.

Sua chegada à costa brasileira deu-se por volta de 1510, ainda que a data exata não seja

conhecida. Há a hipótese, não confirmada, de que tenha sido degredado, mas cogita-se

também que viera como marinheiro ou aventureiro. É apontado como o primeiro português a

estabelecer-se no planalto da capitania de São Vicente, pouco tempo após aportar à costa,

talvez por conta de um naufrágio. Entre os episódios mais conhecidos de sua trajetória estão o

auxílio prestado à Martim Afonso de Souza em sua incursão ao planalto; sua relação marital

com a índia Bartira ou Mb’ci, filha do cacique Tibiriçá e mãe de vários filhos seus; além de

152

São elas: MB I (cartas 23, 28, 60, 69, 75) e MB II (cartas 3, 22, 32); Serafim Leite identifica também como

João Ramalho um “homem branco, que haa 60 anos que está nesta terra emtre este Gentio”, citado pelo padre

Baltasar Fernandes em carta de 1568, indicando tratar-se de uma opinião geral em relação a essa citação (MB IV,

pp. 462-3). Essa identificação, verossímil mas não verificável, cumpre importante papel na interpretação que o

historiador jesuíta dá aos conflitos de Ramalho com os missionários da Companhia, já que apresenta uma

reconciliação do “miseravel velho” (ibidem) com os inacianos, por meio dos sacramentos. As demais cartas em

que Ramalho é citado sem ser nomeado são mais facilmente identificáveis pelos episódios narrados. 153

Para parte das informações, utilizamos aqui o resumo presente no verbete “João Ramalho” em AMARAL,

Antonio Barreto do. Dicionário de História de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006 [1903], pp. 518-9.

Os demais dados baseiam-se na documentação das Atas da Câmara das vilas de Santo André da Borda do

Campo e de São Paulo, bem como na correspondência jesuítica, analisados adiante.

55

sua relação conturbada com os missionários jesuítas fundadores da casa de São Paulo de

Piratininga. Ocupou os cargos de guarda-mor do campo e capitão-mor da vila de Santo André

da Borda do Campo. Após a transferência desta para o sítio do Colégio de São Paulo, foi

nomeado capitão de guerra da vila de São Paulo, em 1562, e, ao ser nomeado vereador dois

anos depois, recusou o cargo alegando ter idade avançada.

Parte dessas informações chegou até nós por intermédio de uma carta do padre

Manuel da Nóbrega, datada de agosto de 1553, e trazida à luz pelo jesuíta Serafim Leite em

1934154

. Sua publicação acabou por esclarecer alguns fatos pontuais que haviam sido alvo de

intenso debate nas décadas anteriores. Este documento tornou-se precioso para os estudiosos

da vida de João Ramalho por destoar do tom conflituoso das demais referências epistolares,

fornecendo um contraponto a algumas das condenações feitas pelos mesmos jesuítas em

outros momentos. O objetivo expresso por Nóbrega é resolver a situação marital de Ramalho

com a índia Bartira, não nomeada na passagem, uma vez que teria deixado mulher ainda viva

em Portugal, quando de sua partida155

. O momento de aproximação que esse documento

compreende está relacionado ao benefício que o guarda-mor do campo poderia oferecer à

manutenção da atividade jesuítica no planalto, como analisaremos mais adiante. Além das

informações referentes à situação marital, vem também indicado com precisão seu local de

origem, já que ao nome “Bouzela” acrescenta-se “tierra del Padre Maestre Simón”. Nóbrega

data sua permanência no Brasil em “40 años y más”, o que localizaria sua chegada em 1513.

No entanto, o trecho não aparenta buscar uma datação exata, podendo ser uma genérica

aproximação.

Na historiografia do período colonial, as alusões a Ramalho estiveram basicamente

relacionadas a alguns poucos episódios conhecidos, sem o interesse extensivo que viria a

adquirir posteriormente. Os autores setecentistas Frei Gaspar da Madre de Deus e Pedro

Taques de Almeida Paes Leme trataram-no positivamente, de acordo com as características de

seus escritos de viés regional, voltados à valorização da aristocracia paulista. Em sua louvação

da grandeza e fidelidade monárquica da elite da capitania, era necessário questionar as

descrições negativas dos paulistas presentes nos textos jesuíticos156

. Em relação ao caso

específico de Ramalho, e de sua relação conturbada com os inacianos, afirmara Frei Gaspar:

Huns, e outros [jesuítas de São Paulo e Ramalhos de Santo André]

154

MB I, carta 75, pp. 521-7. 155

MB I, pp. 524-5, para todas as citações do presente parágrafo. 156

FERRETTI, Danilo José Z. A construção da paulistanidade: identidade, historiografia e política em São

Paulo (1856-1930). 2004. 391 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004, pp. 15-6.

56

convidavaõ Indios, e Portuguezes, desejosos de attrahir grande numero de

Povoadores, que se unissem a elles, e daquí nasceraõ as contendas, que tanto

exagera o Chronista da Companhia do Brazil, lançando toda a culpa aos

filhos de Joaõ Ramalho. Vasconcellos naõ explica, que as diligencias fôraõ

reciprocas: cala as sollicitações de seus Socios: e pinta as dos Ramalhos por

estylo, que os reputa sediciosos, ou rebeldes ao Estado quem lê a Chronica

da sua Província157

.

Como veremos adiante, a refutação da crônica seiscentista do jesuíta Simão de

Vasconcelos seria fundamental para todos os defensores de João Ramalho. As diferenças

entre a visão positiva e a negativa do andreense estiveram ligadas, principalmente, aos temas

da identidade regional, da mão de obra indígena e da expansão bandeirante. Se para os

memorialistas paulistas do século XVIII importava a valorização da atuação dos colonos do

planalto, os debates desenvolvidos no ambiente intelectual da corte, no decorrer do século

seguinte, iriam levar a uma condenação das práticas dos colonos em geral, notadamente dos

bandeirantes, por parte da corrente dominante. O desenvolvimento de uma historiografia

indianista no interior do IHGB, no período imperial, levou a uma contraposição maniqueísta

entre a atuação dos missionários jesuítas e dos colonos leigos, na qual estes últimos

representavam o polo negativo. Os aldeamentos jesuítas eram vistos por essa corrente, que

possuía grande penetração na burocracia estatal, como modelo para a incorporação

contemporânea das populações indígenas como mão de obra, desde que geridas pelo Estado

monárquico158

. A historiografia indianista do IHGB teve em José Joaquim Machado

d’Oliveira seu representante paulista que, em seu Quadro Histórico da Província de São

Paulo, desenvolveu-a sob o recorte provincial. O interessante para nosso tema é a relativa

benignidade com que Machado d’Oliveira trata João Ramalho, apesar da leitura

predominantemente negativa da atuação dos colonos leigos. No lugar de acusá-lo de violento

apresador de índios, afirma que estes “cuidavam em bem servil-o, menos pela condição de

escravos seus, do que pela brandura com que os tratava”159

.

A biografia de João Ramalho interessou muito mais intensamente aos pesquisadores

da anteriormente citada historiografia paulística, ligada ao IHGSP, fundado em 1894. Este

interesse inseria-se no objetivo desses autores em identificar e enaltecer os traços específicos

da “raça paulista”, da qual Ramalho seria o patriarca. Como destacamos no tópico anterior, a

157

MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da. Memórias para a história da Capitania de S. Vicente, hoje chamada de

S. Paulo, do Estado do Brazil. Lisboa: Tipographia da Academia, 1797, p. 111. 158

Para uma análise da historiografia indianista do IHGB, cf. FERRETTI, Danilo José Z. A construção da

paulistanidade: identidade, historiografia e política em São Paulo (1856-1930). 2004. 391 f. Tese (Doutorado em

História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,

2004, pp. 38-78. 159

OLIVEIRA, José Joaquim Machado d’. Quadro Histórico da Província de São Paulo. São Paulo:

Typographia Imparcial de J. R. A. Marques, 1864, p. 28.

57

construção de uma identidade paulista por essa corrente relacionava-se à situação econômica

e às pretensões políticas da elite local no contexto da República Velha e do Estado Novo160

.

Uma avaliação positiva ou negativa da atuação de João Ramalho no planalto e de sua relação

com índios e jesuítas tornava-se, dessa forma, tema capital para esses autores e refletia as

divergências presentes nesse ambiente intelectual. No interior dessa produção historiográfica,

um debate sobre o tema, promovido pelos membros do IHGSP em inícios do século XX,

apresenta-nos o momento de maior polarização na discussão referente à biografia do

andreense, além de argumentações e leituras documentais emblemáticas para o estudo de São

Paulo colonial.

A discussão sobre João Ramalho no IHGSP teve início com a formação de uma

comissão que buscava responder a uma indagação levantada no IHGB, pelo consócio José

Luis Alves na reunião de três de março de 1899. Enquanto a proposta teve pouca repercussão

no próprio IHGB, os paulistas acolheram o tema e deram início a um debate acalorado. A

indagação em questão referia-se à veracidade do testamento de Ramalho, documento citado

pelo monge beneditino Frei Gaspar da Madre de Deus no século XVIII e que não havia sido

encontrado por nenhum outro historiador até então. Propôs José Luis Alves que se lançassem

os historiadores à caça desse documento, do qual deveria haver “copia na Bibliotheca do

mosteiro S. Bento de S. Paulo ou de Santos”, além de procurar averiguar o caso com a

documentação do tempo161

.

A polêmica envolvendo o testamento de João Ramalho dizia respeito à controversa

conclusão que dele tirava Frei Gaspar: o patriarca dos paulistas teria chegado ao Brasil por

volta de 1490, antes da frota de Cabral e antes mesmo de Cristóvão Colombo chegar à

América. Tal conclusão estava presente no manuscrito “Notícia dos anos em que se descobriu

o Brasil e das entradas das religiões e suas fundações”, terminado em 1784 e publicado

postumamente pelo IHGB em 1840. Essa afirmação valeu ao monge pesadas críticas de

160

GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Alameda, 2007, p. 47; BLAJ,

Ilana. “Mentalidade e Sociedade: revisitando a historiografia sobre São Paulo colonial”, Revista de História da

Universidade de São Paulo, n. 142-143, 1 sem. 2000, p. 240: “A partir da historiografia ‘paulística’, vinculada

ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, algumas imagens a respeito de São Paulo colonial foram sendo

cristalizadas. Com efeito, tal historiografia tinha como construção implícita, a preocupação de justificar o poder

de São Paulo no contexto de riqueza cafeicultora no âmbito da República Velha, o que pressupunha um

relacionamento com os outros Estados e a luta pela hegemonia nacional. As imagens a partir daí resultantes

edificam um paulista altivo, independente, arrojado e leal, cuja síntese seria o bandeirante”. 161

FERRETTI, Danilo J.Z; CAPELATO, Maria H.R. “João Ramalho e as Origens da Nação: os paulistas na

comemoração do IV centenário da descoberta do Brasil”, Revista Tempo, Dep. de História da UFF, v. 4, n. 8,

dez/1999, pp. 2-3; RIHGB, tomo LXII, parte II, 1900, pp. 285-6.

58

Candido Mendes de Almeida, que o acusava de criador de fábulas e falsificador de

documentos162

.

A discussão que se desenvolveu no IHGSP, a partir de 1902, não buscou reafirmar a

primazia de João Ramalho sobre Cabral no descobrimento. De fato, nem os detratores do

guarda-mor do campo, nem seus partidários, iriam questionar em momento algum que o

primeiro a chegar ao Brasil havia sido Pedro Álvares Cabral. O debate concentrou-se em

alguns aspectos da vida de Ramalho, buscando apresentá-lo ora como um herói modelo da

paulistanidade, ora como um violento e analfabeto apresador de índios. Uma vez que a

documentação sobre o andreense era escassa, como apontamos anteriormente – as atas da

Câmara de Santo André permaneciam não transcritas –, era importante defender a

credibilidade de Frei Gaspar, o primeiro a apresentá-lo de maneira positiva. Sendo assim,

ainda que os defensores de Ramalho admitissem que o beneditino houvesse errado a data de

chegada do futuro guarda-mor do campo, procuravam afastar a imagem de falseador da

História que rondava Frei Gaspar, com vistas a não invalidar seu trabalho como um todo.

A comissão eleita pelo instituto em 1902 compunha-se de Teodoro Sampaio, Orville

Derby, Antonio de Toledo Piza, João Mendes Junior e Manuel Pereira Guimarães. Buscava,

inicialmente, emitir um parecer sobre o analfabetismo de João Ramalho163

. Chegou à

conclusão de que ele era analfabeto e, provavelmente, judeu, conclusão que partiu de uma

análise grafológica das assinaturas de Ramalho presentes no que restavam das atas da Câmara

de Santo André da Borda do Campo. Subscreveram o parecer, que teve Teodoro Sampaio

como relator, todos os membros da comissão, com exceção de Pereira Guimarães, que

publicou parecer em separado nas páginas de O Estado de São Paulo de 20 de julho de

1902164

.

162

RIHGB, tomo XL, parte II, 1877, p. 277 et seq. 163

TAUNAY, Affonso de E. João Ramalho e Santo André da Borda do Campo. São Paulo: Publicação

comemorativa do Quarto Centenário da Fundação de Santo André da Borda do Campo, 1953, p. 95. 164

FERRETTI, Danilo J.Z; CAPELATO, Maria H. R. “João Ramalho e as Origens da Nação: os paulistas na

comemoração do IV centenário da descoberta do Brasil”, Revista Tempo, Dep. de História da UFF, v. 4, n. 8,

dez/1999, p. 11.

Figura 1 - Assinatura de João Ramalho presente em ata da

Câmara de Santo André.

59

Em relação ao analfabetismo do “patriarca dos paulistas”, já apontado anteriormente

por Varnhagen165

, a comissão justificava sua posição afirmando que ele não sabia escrever

seu próprio nome, uma vez que a grafia diferia muito entre as assinaturas encontradas, o que

sugeriria terem sido feitas por pessoas diferentes, que completavam o sinal por Ramalho

grafado (o “c” invertido e, segundo alguns, em forma de ferradura)166

. Argumentaram os

ramalhistas a favor da improbabilidade do analfabetismo, ou de sua pouca relevância167

.

Para o nosso tema – a vivência religiosa dos colonos – é de importância maior a

outra conclusão que se tirou da controversa assinatura. O “c” invertido encontrado nas

assinaturas de Ramalho levou a comissão do IHGSP a identificá-lo como judeu, visto que em

vez da cruz, presente nas demais assinaturas, encontraram o referido sinal, reconhecido por

eles como o kàf – letra simbólica do alfabeto hebraico. O sinal seria também associado pelos

defensores do andreense a um símbolo maçônico, elmo de cavaleiro (sinal de nobreza),

rabisco arbitrário ou símbolo do cargo que ocupava168

. Eram sustentadas essas afirmações por

conjecturas as mais diversas, que não contavam com outra base documental direta senão a

própria assinatura169

. Argumentaram também os ramalhistas que, caso se confirmasse o

judaísmo do “patriarca”, isso em nada afetaria sua imagem positiva170

, afirmação que, ao se

fazer necessária, acaba por revelar o caráter negativo que a classificação de judeu poderia

adquirir na construção de um herói da nacionalidade naquele momento.

Também relacionada ao aspecto religioso foi a reafirmação, pelo parecer da

comissão, da avaliação que do andreense fez o jesuíta Simão de Vasconcelos, em sua

Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663), na qual descrevia João Ramalho

como “homem por graves crimes infame, e actualmente escommungado”171

, frase que seria

repetida em praticamente todos os textos do debate, e sempre refutada pelos ramalhistas.

Outra passagem da crônica que seria retomada com frequência é a que apresenta o alcaide-

165

GURGEL, Leoncio do Amaral. “João Ramalho perante a História”, RIHGSP, vol. IX, 1904, p. 448. 166

FERRETTI, Danilo J.Z; CAPELATO, Maria H. R. “João Ramalho e as Origens da Nação: os paulistas na

comemoração do IV centenário da descoberta do Brasil”, Revista Tempo, Dep. de História da UFF, v. 4, n. 8,

dez/1999, p. 10; TAUNAY, Affonso de E. João Ramalho e Santo André da Borda do Campo. São Paulo:

Publicação comemorativa do Quarto Centenário da Fundação de Santo André da Borda do Campo, 1953, p. 95. 167

GURGEL, loc. cit. 168

RIBEIRO, J. C. Gomes. “João Ramalho: sua fé e nobreza”, RIHGSP, vol. VII, 1902, p. 424. 169

Teodoro Sampaio afirma ter até mesmo recorrido a especialistas estrangeiros (“orientalistas competentes”) no

sentido de confirmar a identificação do sinal com o káf hebraico (“A propósito de João Ramalho”, RIHGSP, vol.

VII, p. 299). Horacio de Carvalho dedica mais de 60 páginas unicamente para confirmar essa hipótese sobre o

“c” invertido (“A assignatura symbolica de João Ramalho interpretada como si fosse o káf hebraico”, ibid., pp.

303-368). 170

GURGEL, Leoncio do Amaral. “João Ramalho perante a História”, RIHGSP, vol IX, 1904, pp. 445-6. 171

VASCONCELOS, Simão de. Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, vol. I. 2ª ed. Lisboa:

1865 [1663], p. 47.

60

mor como “homem rico da terra, mas infame nos vicios, amancebado publico por quasi

quarenta annos”172

.

No decorrer das argumentações pró-Ramalho, a reabilitação moral do personagem

acaba por assumir maior destaque do que a negação de seu judaísmo e analfabetismo. Era

importante para aqueles que procuravam apontar no “patriarca” as qualidades de toda a

“estirpe paulista” que se lhe seguiu, combater a visão negativa que prevaleceu sobre ele

durante todo século XIX e era então reafirmada pela comissão do IHGSP.

Em tal combate, além de desacreditar os testemunhos contrários, conjecturavam o

quanto possível com as escassas informações existentes. Quando, em 1904, Washington Luis

finalmente encontra uma referência documental mais extensa e detalhada ao polêmico

testamento nos papéis de José Bonifácio, publicada na revista do IHGSP173

, presta enorme

contribuição ao esforço de validar as informações presentes nas Memórias de Frei Gaspar174

.

No entanto, quando do início do debate, em 1902, nada se podia afirmar de muito certo sobre

o conteúdo do testamento. Dessa forma, a única documentação coeva que os ramalhistas

tinham à sua disposição para reabilitar o “patriarca” eram as cartas jesuíticas, ainda

espalhadas em diversas publicações e sem a organização sistemática que lhes daria Serafim

Leite a partir da década de 1950.

De maneira geral, a leitura que esses autores fizeram das cartas jesuíticas restringiu-

se às passagens em que se falava diretamente de João Ramalho. Seguindo o procedimento

com o qual abordavam toda a documentação, os partidários do alcaide-mor de Santo André

desqualificavam as descrições negativas que dele faziam os inacianos, atribuindo-as à

inimizade que para com ele nutriam. Dessa maneira, segundo Campos Andrade175

, a figura de

Ramalho estava envolta em nebulosidade “creada pelas informações transmittidas pelos

socios da Companhia de Jesus, sua tradicional inimiga”. Apesar disso, consideravam possível

extrair das cartas, nas entrelinhas dos ataques jesuíticos, informações objetivas que julgavam

capazes de justificar a construção positiva que faziam do personagem.

Outro esforço empreendido pelos partidários de Ramalho foi o de afastar a narração

presente nas cartas jesuíticas do século XVI daquela presente na crônica posterior de

Vasconcelos. Afirma J. C. Gomes Ribeiro:

172

VASCONCELOS, Simão de. Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, vol. I. 2ª ed. Lisboa:

1865 [1663], p. 75. 173

“O testamento de João Ramalho”, RIHGSP, vol. IX, 1904, pp. 563-569. 174

Resolveu-se também a questão da data de chegada de João Ramalho, atribuindo-se o cálculo errôneo de Frei

Gaspar a um equívoco de tradução (ibid., p. 567). 175

ANDRADE, Francisco de Campos. “João Ramalho: contribuição para sua rehabilitação”, RIHGSP, vol. VII,

1902, p. 370.

61

Como explicar-se ainda não constarem tão tremendas accusações a Ramalho,

nominalmente, de nenhuma das cartas dos padres Nóbrega, Anchieta,

Leonardo Nunes, Balthazar Fernandes, e outros, abrangendo o periodo de

1549 a 1568 [...]176

.

Não faz Gomes Ribeiro, contudo, uma análise mais pormenorizada do conteúdo

dessas cartas. Mais detido é o esforço de Francisco de Campos Andrade, que contrapõe à

crônica do padre Simão uma carta de José de Anchieta de 1554, buscando mostrar que, apesar

de narrarem os mesmos acontecimentos e, à primeira vista, concordarem, apresentavam

diferenças sutis, que demonstrariam o quanto foi desfigurado o relato mais fiel de Anchieta177

.

Em suas palavras:

[...] si, para o chronista, os mamelucos de Santo André, os filhos de

Ramalho, são ‘peiores fructos de uma arvore ruim, uma caterva de filhos de

má casta, mamelucos illegitimos e desalmados’, para Anchieta, que os

conhecia de visu, eram ‘CHRISTÃOS nascidos de pae portuguez e de mãe

brasilica’. Si, aquelle dá a entender vagamente, insinua aéreamente que o

portuguez abusava da polygamia, e os filhos eram pagãos, este, mais digno

de credito, mais authentico, diz que os filhos eram christãos, nascidos de

uma só mãe178.

Essa argumentação não resistiria a uma leitura sistemática das cartas de Anchieta, ou

mesmo a uma análise mais detida dessa única carta, visto que mais adiante é também

insinuado o “abuso da poligamia” que o autor diz ser omitido pelo jesuíta, mesmo afirmando-

se serem os filhos de uma única mãe, apresentada como sua concubina179

. O consócio do

IHGSP consultou o que na verdade tratava-se de um resumo de duas cartas de Anchieta180

,

que foram publicadas na íntegra somente na coletânea de Serafim Leite181

. O que vemos nas

duas cartas (uma de setembro de 1554 e outra de março de 1555) é uma descrição de João

Ramalho e seus filhos bastante negativa, muito diferente de quanto apresenta Campos

Andrade em sua contraposição. De fato, Anchieta identifica-os como “cristãos nascidos de pai

português [J. Ramalho] e mãe brasílica”, mas ainda no mesmo parágrafo apresenta-os como

“exemplo duma nefanda e abominável depravação” para os indígenas182

. É ainda nessa carta

que se descreve a adoção dos “costumes dos gentios” por parte dos filhos do andreense:

176

RIBEIRO, J. C. Gomes. “João Ramalho: sua fé e nobreza”, RIHGSP, vol. VII, 1902, p. 425. 177

ANDRADE, Francisco de Campos. “João Ramalho: contribuição para sua rehabilitação”, RIHGSP, vol. VII,

1902, pp. 389-90. 178

Ibid., p. 390, grifos do autor. 179

MB II, pp. 115-6. 180

Campos Andrade apresenta como referência a obra III Centenario do veneravel Joseph de Anchieta. Paris:

Aillaud & C, 1900. 181

MB II, cartas 22 e 32. 182

MB II, pp. 114-5.

62

[...] tendo um destes cristãos trazido um cativo, entregou a um irmão dele

para o matar. E matou-o de facto com a maior crueldade, tingindo as

próprias pernas de vermelho e tomando o nome de quem matara em sinal de

honra, como é costume dos gentios [...]. E são cristãos, nascidos de pai

cristão, que sendo espinho não pode produzir uvas183

.

Tampouco se considerou o uso da palavra “cristão” nessa documentação, que não

significaria, como se vê no trecho citado, uma adjetivação da fé e de práticas religiosas e

morais, como apresenta o autor. A palavra “cristão” era indistintamente utilizada pelos

missivistas como contraposição a gentio, referindo-se genericamente aos portugueses (ou

outros europeus, se fosse o caso) sem qualquer valor descritivo que não o de indicar

objetivamente a origem; poderia também, como parece ser o caso nesse trecho, fazer

referência a uma mais ampla identidade civilizacional europeia, indissociável do âmbito

religioso, mas não resumida à aceitação formalizada da fé e ao sacramento do Batismo;

poderia ainda relacionar-se ao sentido religioso estrito e adjetivar também os indígenas,

quando se contrapunham os batizados e os não batizados. Para compreender essa polissemia,

Campos Andrade teria que partir de uma leitura mais sistemática dessa documentação.

O exemplo que acabamos de apresentar é bastante representativo da metodologia

historiográfica utilizada em todo o debate desenvolvido no IHGSP. A leitura documental que

se fazia era aleatória, retirando fragmentariamente as informações desejadas e

desconsiderando a totalidade da carta e sua relação contextual e intertextual, completando as

lacunas temerariamente com especulações diversas. Veja-se, como um dos muitos exemplos,

nesse mesmo texto de Francisco de Campos Andrade, a conjectura que faz o autor para refutar

as afirmações de uma carta do padre Balthazar Fernandes de 22 de abril de 1568:

Si Ramalho não fosse catholico, não só seu filho, que neste caso teria sido

educado no odio ao padre, qualquer que elle fosse, não se teria lembrado de

caminhar uma legua sómente para ir dizer aos padres que seu pae morrera,

como o respeito ao modo de sentir do seu progenitor o teria impedido184

.

No entanto, ao lado desse tipo de utilização documental da correspondência jesuítica,

há também a tentativa, ainda que tímida, de retirar informações mais amplas, referentes à vida

no planalto. O mesmo Campos Andrade utiliza outra carta de Anchieta, de 1556, não para

tirar informações sobre o “patriarca dos paulistas”, mas sobre problemáticas envolvendo a

evangelização, como a tendência ao nomadismo dos indígenas, o reconhecimento da

183

MB II, p. 115. 184

ANDRADE, Francisco de Campos. “João Ramalho: contribuição para sua rehabilitação”, RIHGSP, vol. VII,

1902, p. 375.

63

necessidade do uso da força pelos inacianos etc.185

Nesse ponto, parece adiantar a tendência,

predominante na segunda metade do século XX, de interpretação dessa documentação a partir

de uma leitura que busca identificar não as informações factuais, mas aquelas relativas à

organização social, política e material da vida no planalto. Em outro ponto, contudo, podemos

considerar que os debatedores do IHGSP foram mais atentos ao caráter subjetivo das cartas do

que muitos pesquisadores que se lhes sucederam. Ainda que aqueles, como Campos Andrade,

favoráveis a João Ramalho, buscassem apenas invalidar as acusações dos membros da

Companhia, reforçaram a importância em se avaliar as narrativas epistolares em função do

conflito entre jesuítas e colonos pelo controle da população indígena, como já indicara Frei

Gaspar. Premissa que não encontramos em muitas das pesquisas mais recentes, como temos

apontado. Por outro lado, acabavam por subdimensionar o que havia de comum nesses dois

âmbitos da presença europeia no planalto.

Ao destacarmos, em relação ao debate, a predominância de argumentações quase

unicamente especulativas e uma interpretação dos documentos que parece a um historiador de

hoje excessivamente arbitrária, não temos o objetivo de contrapor as características da

historiografia metódica, própria da vertente paulística, às correntes atuais. De fato, os

resultados do debate foram inconclusivos até mesmo quando avaliados a partir dos critérios

dessa corrente, como apontaria muitos anos depois seu maior representante, Afonso de

Escragnolle Taunay. Para ele, seguidor da ideia de que a História se faz com documentos, e

somente com documentos, esse esforço argumentativo carecia de maior base documental,

girando quase sempre “em torno do que havia de impresso da obra de Frei Gaspar da Madre

de Deus, de Pedro Taques, de Simão de Vasconcelos e mais alguns autores a se repetirem”; e,

dessa forma,“nada de novo se conquistou para o esclarecimento da biografia do patriarca do

Planalto”186

. Ele próprio, contudo, em sua síntese essencialmente positiva sobre João

Ramalho187

– já se valendo das transcrições das atas da Câmara de Santo André da Borda do

185

ANDRADE, Francisco de Campos. “João Ramalho: contribuição para sua rehabilitação”, RIHGSP, vol. VII,

1902, pp. 391-3. 186

TAUNAY, Afonso de E. João Ramalho e Santo André da Borda do Campo. São Paulo: Publicação

comemorativa do Quarto Centenário da Fundação de Santo André da Borda do Campo, 1953, pp. 94-5. Taunay

classificou esse debate de “indeterminado e ocioso [...] que muito mais util teria sido se o tempo nele dispendido

houvesse sido empregado em pesquizas no próprio arquivo municipal paulistano” (ibidem). 187

A citada obra João Ramalho e Santo André da Borda do Campo, de 1953, apresenta uma síntese de toda a

discussão até então sobre o “patriarca dos paulistas”; representa um momento em que a figura de Ramalho estava

já reabilitada e identificada com o bandeirante. Essa fase da historiografia identitária paulista, com a exaltação

do bandeirante e sua mobilização para uso político, tem seu auge nas décadas de 1920 e 1930, com os trabalhos

de Taunay, Alfredo Ellis Jr. e Oliveira Vianna. Cf. FERRETTI, Danilo J. Z.; CAPELATO, Maria H. R. “João

Ramalho e as Origens da Nação: os paulistas na comemoração do IV centenário da descoberta do Brasil”,

Revista Tempo, Dep. de História da UFF, v. 4, n. 8, dez/1999, p. 13.

64

Campo – realizou uma leitura da documentação jesuítica não muito distante daquela utilizada

na contenda.

O debate acerca de João Ramalho no IHGSP sintetiza de maneira esquemática os

posicionamentos antagônicos que marcaram por muito tempo a apreciação das cartas

jesuíticas pela historiografia de São Paulo colonial, e que ainda ecoam nas discussões atuais

sobre a especificidade do planalto paulista. A predominância, no parecer da comissão

designada pelo IHGSP, da visão negativa de Ramalho, em um momento no qual muitos

esforços eram despendidos para a construção de uma imagem positiva dos primeiros paulistas,

reflete o conflito entre jesuítas e colonos e a maneira como as cartas o documentaram, uma

vez que os membros da comissão estavam envolvidos no desenvolvimento de uma política

indígena que tinha por base justamente os antigos aldeamentos jesuítas, atacados pelos

colonos188

. Na historiografia paulística desenvolvida nas décadas que se seguiram ao debate,

predominou a visão positiva de João Ramalho como patriarca da estirpe paulista e iniciador

do empreendimento bandeirante, da qual o trabalho mais representativo seria a síntese de

Afonso Taunay, João Ramalho e Santo André da Borda do Campo, anteriormente citada. Até

mesmo o jesuíta Serafim Leite, entusiasta do empreendimento missionário, buscou amenizar o

conflito e contribuir para a reabilitação do antigo desafeto de Anchieta e Leonardo Nunes,

afastando a hipótese de que fosse judeu e reservando-lhe um final pio. Publicou a sobredita

carta inédita de Nóbrega de 1553, que considerava indicativa de uma aproximação entre as

partes, e abordou em sua História da Companhia de Jesus no Brasil as esparsas referências

epistolográficas a Ramalho como a narrativa acidentada desse entendimento até um final

amigável, que estaria subentendido no testamento189

.

A historiografia sucessiva não se interessou muito pela figura do patriarca dos

paulistas, sintoma de uma mudança de orientações que colocaria os grandes personagens em

um plano secundário. Sem muito espaço nas discussões historiográficas, a biografia de João

Ramalho cumpriu, por outro lado, importante papel em um âmbito diverso, aquele da

construção da memória paulista, na qual Afonso Taunay também teve papel de destaque

188

Afirmam Ferretti e Capelato: “Assim, vemos que, no seu presente, os historiadores membros da comissão do

IHGSP que desqualifica a figura de João Ramalho, defendiam um modelo de incorporação do indígena baseado

na experiência jesuítica” (FERRETTI, Danilo J. Z.; CAPELATO, Maria H. R. “João Ramalho e as Origens da

Nação: os paulistas na comemoração do IV centenário da descoberta do Brasil”, Revista Tempo, Dep. de História

da UFF, v. 4, n. 8, dez/1999, p. 11). Em relação ao debate entre os intelectuais paulistas sobre a incorporação do

indígena, conferir o capítulo 9, “Tupis, Tapuias e a História de São Paulo”, em MONTEIRO, John Manuel.

Tupis, Tapuias e historiadores: Estudos de História indígena e do indigenismo. 2001. 233 f. Tese (Livre

Docência em Etnologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, Campinas, 2001, pp. 180-193. 189

LEITE, Serafim, S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil, tomo II. Lisboa: Livraria Portugália; Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1938, pp. 378-84.

65

enquanto diretor do Museu do Ipiranga entre os anos de 1917 e 1939. Mesmo que o

personagem não interessasse mais aos historiadores em sua individualidade, as mesmas

passagens das cartas continuaram a ser citadas na historiografia mais recente, com a intenção

de descrever não um único personagem, mas o paulista em sentido mais genérico. Uma

passagem de Anchieta, em especial, tornou-se emblemática e foi citada repetidamente, sempre

recortada do restante da carta. O trecho em questão é a fala do mameluco (filho de Ramalho)

que, ao ser advertido “de que tivesse cuidado com a Santa Inquisição por seguir alguns

costumes gentílicos, respondeu que vararia com flechas duas inquisições”190

. A passagem

fazia parte de uma carta enviada por José de Anchieta a Inácio de Loyola em setembro de

1554, a mesma carta que Francisco de Campos Andrade utilizou em 1902 para questionar a

crônica de Simão de Vasconcelos, como mostramos anteriormente.

O sentido que se buscou dar à citação foi o de apontar o pouco apreço dos

mamelucos de São Paulo em relação ao Santo Ofício. Não é de pouca importância, no

entanto, que essa antipatia apareça no trecho em um formato de insubmissão. Como veremos,

esse teor adquire maior significado quando consideramos o texto como um todo. Podemos ver

essa utilização do trecho em uma passagem de José Gonçalves Salvador:

Cêrca de uma década antes, José de Anchieta escreveu uma carta da

Capitania de São Vicente, ou seja, em 1554, na qual conta que ao exortar

certo mamaluco por seguir práticas gentílicas, ameaçando-o com a

Inquisição “respondeu que vararia com flechas duas inquisições”. Sinal de

que pouco se importavam os mamalucos com o Santo Ofício, ainda mal

conhecido191.

Na maneira como Salvador construiu sua citação, fica a impressão de que a

advertência teria partido do próprio Anchieta, quando, na carta, utiliza-se um impessoal

“advertindo-se de que tivesse cuidado”192

, que não permite conclusões muito peremptórias.

Pela tradução portuguesa utilizada, baseada no texto remanescente em latim193

, fica difícil até

mesmo concluir se o autor da carta teria presenciado a enunciação da frase. Na proposta de

leitura que adotamos, no entanto, trata-se de um problema menor, já que a veracidade da

informação não se dá em termos de relato fiel de um acontecimento. A fala do paulista

advertido é retirada de seu contexto narrativo, fato que, como veremos, tem importantes

190

MB II, p. 115. 191

SALVADOR, José Gonçalves. Cristãos-Novos, jesuítas e inquisição: Aspectos de sua atuação nas capitanias

do Sul, (1530-1680). São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1969, p. 84. Alcântara Machado houvera já

apresentado uma utilização semelhante do trecho em questão (Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Imprensa

Oficial do Estado de São Paulo, 2006 [1929], pp. 203-4). 192

MB II, p. 115, itálico nosso. 193

O documento consultado por Serafim Leite está em latim, mas não é possível definir se é uma cópia traduzida

e em que língua foi originalmente escrita (MB II, p. 84).

66

implicações. Salvador utiliza a carta como um registro objetivo do diálogo, já que se permite

concluir qual seria a opinião do mameluco a partir da narrativa.

Por um lado, uma antipatia dos habitantes do planalto pelo Santo Ofício é fato

verossímil, como o seria para todas as regiões ibéricas ou americanas, ainda que seja difícil

avaliar o quanto seria conhecido pelos filhos de João Ramalho. Laura de Mello e Souza, no

seu fundamental trabalho sobre as práticas religiosas na colônia, retoma a citação de

Gonçalves Salvador com o mesmo fim: apontar a ira ibérica e americana contra a

Inquisição194

. Ainda que não consideremos essa citação de Anchieta o caminho mais seguro

para sustentar empiricamente essa argumentação, a referência integra um conjunto de diversa

natureza, relacionado a distintas localidades do mundo ibérico e americano.

O descaso do mameluco é narrado por Anchieta, por outro lado, como parte de uma

crítica a João Ramalho e seus filhos, que são tratados durante todo o relato separadamente dos

demais habitantes de Santo André; e, no contexto da crítica, o Santo Ofício torna-se menos

importante do que a maneira rebelde com que o mameluco refere-se à autoridade. Na frase

que antecede a série de críticas, o padre apresenta separadamente o alvo:“De facto, alguns

cristãos nascidos de pai português e mãe brasílica, que estão apartados de nós 9 milhas numa

povoação de Portugueses”195

. Deixando de lado momentaneamente a questão da aversão ao

Santo Ofício, não são, portanto, os mamelucos em geral que Anchieta busca apresentar como

desobedientes e insubmissos, mas os mamelucos filhos de Ramalho. Em uma carta no ano

seguinte, também para Loyola, Anchieta retoma o assunto e diz, ainda sobre Ramalho e os

filhos, que “Se pudessem até os próprios portugueses afastariam da fé cristã”196

. Entretanto, se

considerarmos a imagem, tradicional na historiografia, do paulista “independente das

autoridades da marinha”197

, podemos observar as consequências que o uso fragmentário dessa

citação pode trazer. Como vimos no tópico precedente, a qualificação do paulista, em um

sentido generalizante, como rebelde, está fundamentalmente ligada ao século XVII. Sob o

peso desta imagem, a crítica que Anchieta dirige a um grupo bem determinado de colonos do

planalto pode ser lida como análoga às críticas dos jesuítas seiscentistas ao paulista. De fato,

194

SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil

colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 101. 195

MB II, p. 114. 196

MB II, p. 195. 197

ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial (1500-1800). Rio de Janeiro: M. Orosco & C., 1907,

p. 99.

67

observamos em trabalhos recentes a utilização dessa famosa passagem para reforçar a ideia do

paulista rebelde198

.

A célebre ameaça do mameluco armado ao Santo Ofício pode ser interpretada

diversamente se a tomarmos na totalidade da carta, considerando os conflitos concretos que a

produziram e sua estrutura formal específica, fruto da tradição da ars dictaminis e seus

desdobramentos modernos.

Resumidamente, temos como conteúdo da carta em questão uma primeira descrição

da localização das residências e irmãos em cada capitania, de acordo com as instruções

recebidas do padre Polanco por comissão de Loyola199

. Descrição na qual se intercalam

informações sobre acontecimentos relevantes em cada localidade (chegadas e partidas de

irmãos, trabalhos desenvolvidos com indígenas e portugueses etc.). Em seguida, apresentam-

se os fatos concernentes à aldeia de Piratininga, que incluem a mudança efetuada da costa

para esse sertão, os trabalhos realizados nessa aldeia com a população indígena, localização

geográfica, mantimentos etc. Segue-se uma descrição dos costumes dos portugueses da

povoação de João Ramalho, uma descrição dos índios Carijó e outras informações sobre

chegadas e partidas de irmãos.

Trata-se de uma carta edificante, como eram aquelas chamadas quadrimestrais200

.

No caso, refere-se ao quadrimestre até junho de 1554. As informações referentes à localização

dos colégios e irmãos seguiam as instruções de confecção das cartas edificantes201

, sendo esta

o exemplo maior de adequação ao modelo proposto para essa modalidade de carta. Isso

significa que as informações nela presentes são aquelas permitidas a pessoas de fora da ordem

e que seguia, preferencialmente, a estrutura formal da ars dictaminis medieval, não aquela

pessoal e amigável do sermo, destinada às hijuelas202

. Também significa que seu conteúdo

estava principalmente voltado para objetivos devocionais e de “propaganda” das missões,

lembrando, porém, que esse tipo de divisão não era intransponível.

De acordo com a proposta da ars dictaminis, reinterpretada pela Companhia de

Jesus, temos em nossa carta a salutatio, que apresenta a fórmula piedosa “A paz de Nosso

198

Cf., por exemplo, o capítulo “O comportamento do paulista em relação à Inquisição”, In: BOGACIOVAS,

Marcelo M. A. Tribulações do Povo de Israel na São Paulo colonial. 2006. 270 f. Dissertação (Mestrado em

História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,

2006, pp. 151-4. 199

MB II, p. 101, nota 2. 200

EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: Encontros culturais, aventuras

teóricas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, p. 52. 201

Ibid., p. 52. 202

POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial. Bauru:

EDUSC, 2003, p. 82; EISENBERG, op. cit., pp. 53-54.

68

Senhor Jesus Cristo seja sempre em nossos corações. Amen”203

. Assim como Pécora204

identifica nas cartas de Nóbrega, utiliza-se aqui o “nós”, que, em lugar de reforçar a

hierarquia (no caso, Loyola está hierarquicamente acima de Anchieta), reafirma a união entre

os membros da Companhia. A captatio benevolentiae, que inclui, entre os jesuítas, fórmulas

de humildade, obediência e desejo de martírio, assim como a petitio, referente geralmente a

necessidade de mais missionários, não se apresentam nesse escrito de Anchieta como divisões

físicas do texto, mas aparecem diluídas no decorrer da narratio.

Na narratio, ainda segundo Pécora, trata-se de “construir um relato do ocorrido à

pessoa ausente”205

. Observamos, em nosso exemplo selecionado, o procedimento análogo

àquele observado em Nóbrega, de apresentar um estado de coisas a partir de cenas

exemplares:

A narração é sobretudo uma descrição ou composição de um quadro

temático em que os acontecimentos selecionados atuam no conjunto como

exemplos de situações repetidas, que referem menos ocorrências

verdadeiramente únicas do que cenas exemplares, típicas, capazes de

evidenciar determinada prática ou costume longamente estabelecido206

.

Considerando o conjunto temático e formal da carta, podemos analisar mais

detidamente a descrição dos maus costumes dos paulistas, que mais nos interessa, e entender

como se enquadra neste conjunto. Logo após descrever a dificuldade da evangelização com

“estes, entre os quais trabalhamos [indígenas de Piratininga]”207

, por recalcitrarem devido à

falta de sujeição a rei ou chefe e não se apartarem da antropofagia e do concubinato, reafirma

a necessidade de mitigar “todo o direito positivo” e “outras leis da Santa Madre Igreja”, caso

contrário “não há dúvida que não quereriam dispor-se a seguir a fé cristã”208

. Ao final da

passagem, Anchieta conclui afirmando que o fato de serem bárbaros e indômitos “não é tanto

de admirar como a tremenda malícia dos próprios cristãos, nos quais encontram não só

exemplo de vida mas também favor e auxílio para praticarem más acções”209

. Seguem-se a

essa afirmação genérica os três parágrafos que consistem em apresentar João Ramalho e seus

filhos como exemplares dessa má conduta.

203

MB II, p. 101. 204

PÉCORA, Alcir. “Arte das Cartas jesuíticas do Brasil”. In: ENCONTRO INTERNACIONAL NÓBREGA-

ANCHIETA, 1999, São Paulo. VOZ LUSÍADA. Anais do Encontro Internacional Nóbrega-Anchieta. São

Paulo: Green Forest do Brasil, 1999, v. 1, p. 46. 205

Ibid., p. 50 et seq. 206

Ibid., p. 50. 207

MB II, p. 113. 208

MB II, p. 114. 209

MB II, p. 114.

69

A passagem que inclui a famosa frase do irado mameluco não é, portanto, parte de

uma descrição pormenorizada do que fizeram os moradores de Santo André da Borda do

Campo durante os quatro meses de que trata a carta. Seguindo a tradição retórica da

epistolografia jesuítica, são apresentados pequenos episódios isolados que sejam, no entender

de Anchieta, representativos da adoção, por parte desses específicos mamelucos e seu pai

português, dos costumes ditos gentílicos, da má influência que exercem sobre os indígenas no

que tange aos costumes e à submissão aos padres, da violência e concubinato por eles

praticados.

Não se entende aqui, ao considerar tal passagem parte de uma construção retórica,

que sejam informações falsas, no sentido de meros artifícios para convencer o leitor. As

informações apresentadas pelo padre são tanto mais verídicas quanto mais representativas

forem de um estado geral das coisas. Ao colocar na boca do mameluco a afirmação de que

“vararia com flechas duas inquisições”210

, tem-se, com as flechas, mais um, dentre outros

exemplos apresentados, de adoção por parte desses mamelucos dos costumes gentílicos; e

com o ataque à Inquisição, indica-se sua insubmissão a qualquer autoridade. Se o anônimo

mameluco realmente proferiu a polêmica frase nesses termos é algo que permanece no campo

do irrecuperável. Para além da possibilidade de Anchieta ter ouvido esse relato indiretamente,

com possíveis distorções, ou ter carregado nas cores, intencionalmente ou não, há o fato mais

evidente da narrativa possuir um teor abertamente condenatório, apresentando unilateralmente

uma relação de conflito. A versão de um desafeto não é, obviamente, o caminho mais seguro

para recuperar um fato objetivamente. Tudo isso, contudo, não tornaria a passagem menos

representativa do que Anchieta entendia ser o estado de coisas na região. Como dissemos

anteriormente, no interior do conteúdo desses quatro parágrafos a Inquisição tem menor

importância do que a maneira desrespeitosa do mameluco dirigir-se a uma autoridade.

Considerando, porém, toda a construção retórica que envolve o documento em

questão e submetendo-o à comparação com outros relatos, o trecho oferece informações

preciosas sobre a povoação de João Ramalho. Temos, por um lado, a questão da adoção por

esses cristãos de costumes gentílicos e a prática da mancebia; tendência frequente nos relatos

e que não acreditamos ser possível reduzir a um subjetivo ataque jesuítico. Destrincharemos

esses temas em tópicos posteriores, relacionando sua função retórica com a situação concreta

à qual se ligam.

210

MB II, p. 115.

70

Ao tratar da má influência que os mamelucos e seu pai português exercem sobre os

índios, Anchieta utiliza uma série de adjetivos vagos como “torpe”, “dissoluta”, “nefanda e

abominável depravação”211

sem, contudo, adentrar muito nos detalhes de o que seriam essas

práticas. A adjetivação acompanha sempre a acusação de dificultar o trabalho dos padres com

os indígenas. O dado concreto possível de ser apreendido, a partir do qual Anchieta formula

sua avaliação condenatória, é uma disputa entre jesuítas e colonos em torno da população

indígena. É essa disputa que orienta a construção retórica e dá sentido ao relato sobre os

mamelucos de Ramalho, inserindo-o na carta como parte do tema da evangelização dos

indígenas do planalto, no qual está incluído até mesmo no que diz respeito à organização

formal do texto. Considerando a descrição a respeito de João Ramalho e seus filhos no

interior desse fio condutor e da estrutura formal em que está compreendida, podemos obter

algumas informações para além daquelas que o jesuíta tinha intenção de transmitir. Nesse

sentido, o trecho inicial apresenta elementos importantes:

De facto, alguns cristãos nascidos de pai português e mãe brasílica, que estão

apartados de nós 9 milhas numa povoação de Portugueses, não cessam nunca

de esforçar-se, juntamente com o seu pai, por lançar a terra a obra que

procuramos edificar com a ajuda de Deus, pois exortam repetida e

criminosamente os catecúmenos a apartarem-se de nós e a crerem neles, que

usam arco e frechas como os índios [...]212

.

É possível identificar uma diferenciação concreta entre o elemento português (João

Ramalho) e o mestiço (seus filhos), ainda que a argumentação de Anchieta busque justamente

apresentá-los de forma conjunta. A utilização da palavra “cristãos” para designar os

mamelucos Ramalhos não se refere, nesta passagem, apenas ao fato de serem batizados. A

polissemia da palavra “cristão” na correspondência jesuítica torna imperativo, como já

apontamos, analisar cuidadosamente o contexto em que é utilizada. O trecho busca

exemplificar, por meio do caso dos filhos de Ramalho, a avaliação geral anterior de que a

natureza “bárbara” e “indômita” dos indígenas não era tão admirável quanto a “malícia” dos

próprios cristãos. Os indígenas, no caso, são “estes [do sertão da capitania de São Vicente]

entre os quais trabalhamos”213

, dos quais se descrevem os costumes, a organização social e

familiar etc. Aos indígenas da região, tomados em sentido geral, são contrapostos, portanto,

os europeus (“cristãos”). Dessa maneira, os filhos mamelucos de João Ramalho aparecem não

apenas conjuntamente com os colonos, mas são até mesmo utilizados para exemplificar as

práticas do grupo em geral. Não obstante se indique sua origem mestiça ao início do trecho, é

211

MB II, pp. 115-116. 212

MB II, pp. 114-5, grifo nosso. 213

MB II, p. 113.

71

a inserção na esfera cristã (europeia) que justifica a indignação pela adoção dos costumes

gentílicos: “e são cristãos, nascidos de pai cristão”214

. A posição do mameluco nessa

sociedade não é facilmente identificável, notadamente nesse período inicial de pequena

presença portuguesa. Na correspondência jesuítica, ele aparece ora claramente destacado, ora

muito próximo ao português.

Os filhos de João Ramalho, ao que tudo indica, não ocupavam o espaço marginal que

progressivamente assumiu o mameluco no planalto com o incremento mais efetivo da

presença portuguesa. Parecem pertencer àquele grupo de mamelucos que se integravam mais

ao ambiente dos colonos215

. Sem menosprezar esse fato, o tratamento conjunto de mamelucos

e brancos na argumentação de Anchieta, por outro lado, permite-lhe aplicar a esse caso

específico um esquema interpretativo muito frequente nas cartas jesuíticas: por meio de uma

comparação com o indígena, acentua-se as características negativas que se busca apontar nos

“cristãos” (colonos) ou as positivas que se busca apontar no indígena, de acordo com o caso.

É uma das maneiras com que o colono aparece na correspondência jesuítica em função do

tema central da evangelização dos índios, como tratamos no tópico anterior. No trecho em

questão, é a dificuldade que João Ramalho e seus filhos colocam à atividade missionária que

os situa conjuntamente na aplicação dessa linha argumentativa. Entretanto, ainda que

Anchieta apresente-os dessa forma, há uma divisão subentendida no trecho que nos fornece

indícios dos limites dessa caracterização comum de mamelucos e portugueses. Os dois

primeiros parágrafos, iniciados com a citação acima e referentes aos danos causados aos

indígenas e à adoção de seus costumes, concentram-se nos filhos, figurando o próprio

Ramalho somente nas avaliações generalizantes, como a destacada em itálico, mas não nos

episódios exemplificadores. É no terceiro parágrafo que o jesuíta passa a tratar do alcaide-mor

de Santo André, identificando seu tempo de permanência na terra (50 anos), o parentesco com

o Padre Manuel de Paiva e formulando as acusações de poligamia e mancebia.

Por mais clara que fique a intenção de José de Anchieta em acusar João Ramalho na

mesma intensidade que os filhos, e até mesmo responsabilizá-lo pela “maldade” destes, acaba

por se insinuar na narrativa o fato social da diferenciação entre o elemento português e o

mameluco no que diz respeito à adoção dos costumes indígenas. O único caso em que o

missivista indica concretamente a mesma prática para pai e filhos é quando aborda os temas

da mancebia e da poligamia. Não é de pouca importância que por ocasião da tentativa de

214

MB II, p. 115. 215

Valemo-nos aqui do quanto aponto Ronaldo Vainfas acerca da plasticidade da situação do mameluco na

sociedade colonial brasileira (A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo:

Companhia das Letras, 1995, pp. 141-51).

72

aproximação entre João Ramalho e Manuel da Nóbrega, é unicamente ao problema conjugal

que se buscou dar solução.

Apesar de parecer uma obviedade afirmar que os mestiços seriam mais influenciados

culturalmente pelos índios, a delimitação desses espaços de identidade está longe de ser

consensualmente resolvida na historiografia. Vimos, no tópico anterior, como a abertura do

europeu à influência indígena foi constantemente vista como característica da realidade do

planalto, não sendo fácil identificar os elementos do legado cultural europeu aos quais os

colonos mais se apegariam, e, por outro lado, quais os costumes indígenas que adotariam sem

maiores escrúpulos, sendo comum a imagem de um “paulista” profundamente indianizado216

.

Dado que a acusação de adoção de costumes gentílicos era frequentemente mobilizada em

conflitos variados, inclusive contra os próprios jesuítas, uma melhor definição dos limites e da

abertura à influência cultural indígena é fundamental para se compreender a dinâmica social e

cultural do planalto paulista. Trataremos mais detidamente desses temas relativos à adoção de

costumes gentílicos pelos moradores de Santo André da Borda do Campo e São Paulo no

próximo capítulo.

As questões da poligamia e do concubinato podem ser compreendidas mais

profundamente comparando-se a descrição de Anchieta com as que fornece Manuel da

Nóbrega em junho e agosto de 1553217

, cada qual reintroduzida em seu respectivo contexto

narrativo. Na carta de Anchieta que temos discutido, a seguir aos exemplos de gentilidade dos

mamelucos de Ramalho, afirma-se:

Este [João Ramalho] passou quase 50 anos nesta região, junto com uma

concubina brasílica, e gerou muitos filhos: a salvá-los dedicaram os Irmãos

da nossa Companhia todos os cuidados e canseiras [...]. Notando, porém, que

nenhum fruto se obtinha dele, mas que pelo contrário continuavam os

maiores escândalos – por causa da maneira de viver torpe e dissoluta tanto

do pai como dos filhos, que estão unidos com duas irmãs e duas filhas do

mesmo pai – começaram os Irmãos a exercer sobre eles algum rigor e

violência, sobretudo separando-os da comunhão da Igreja. Mas eles, [...] que

nos têm o maior ódio e procuram prejudicar-nos por todos os modos, [...]

principalmente esforçando-se por inutilizar a doutrina em que instruímos e

educamos os Índios, e por concitar o ódio deles contra nós218

.

Destaca-se no trecho a proeminência da relação com a concubina brasílica (Bartira),

que denota certa estabilidade e dentro da qual foram gerados os muitos filhos. Tanto Ramalho

quanto os filhos, no entanto, são acusados de estarem “unidos” com “duas irmãs” (elas entre

si), o que configuraria poligamia. A situação conjugal do alcaide-mor do campo também

216

O termo paulista vem aqui entre aspas devido às problemáticas conceituais discutidas no tópico anterior. 217

MB I, carta 69, pp. 489-503, e carta 75, pp. 521-27. 218

MB II, pp. 115-6, grifo nosso.

73

aparece relacionada aos conflitos a respeito da população indígena, já que o “ódio” aos

jesuítas, por suas admoestações, levaria-os a prejudicar o trabalho de evangelização. Os

elementos da descrição são muito semelhantes aos que apresentara Nóbrega em carta ao padre

Luís Gonçalves da Câmara, datada de junho de 1553:

[...] su vida es principal estorvo para con la gentilidad, que tenemos, por él

ser muy conoscido y muy aparentado con los indios. Tienen muchas mugeres

él y sus hijos, andan con hermanas y tienen hijos dellas así el padre como

los hijos. [...] Este estando escomulgado por no se confessar y no queriendo

los nuestros Padres celebrar con él, dixo que también los Padres y Hermanos

pecavan con las negras, lo que hizo presumir ser alguna cosa [...] y hize la

verdad pública a todos y ganóse quitar de los coraçones alguna presumpción

[...]219

.

Esta carta trata de uma ampla gama de temas, alguns de teor bastante prático e

específico, entremeados às descrições das populações indígenas, o relato das atividades dos

membros, os planos de adentrar o sertão etc. Não há, portanto, aquela conformação mais

sistemática presente nas quadrimestrais, como a de Anchieta anteriormente analisada. A

passagem citada insere-se em um relato do estado de coisas na capitania de São Vicente, sem

a vinculação explícita e formal ao tema do conflito pelo indígena. Entretanto o vínculo pode

ser reconhecido no início do próprio trecho, ainda que não sirva de fio condutor para o

conjunto da descrição, como no relato de Anchieta. A poligamia do pai e dos filhos é

apontada – também no que toca às irmãs – sem que figure a mais estável relação com a índia

Bartira.

Mais linhas gastará o padre Manuel da Nóbrega a seguir para defender os padres e

irmãos da acusação de que “pecavan con las negras” (índias), levantada pelo andreense, do

que para descrever sua situação. A caracterização negativa de Ramalho e seus filhos cumpre

também a função de desqualificar as acusações levantadas, como fica evidente ao final da

passagem citada. Trata-se de uma das raras vezes em que a correspondência jesuítica

apresenta com nitidez as relações concretas nas quais estão inseridas, permitindo recuperar

parcialmente a pluralidade de vozes daquele contexto, como acontece analogamente nas

cartas que fazem parte do conflito com o bispo Sardinha. No mais das vezes, essa pluralidade

só pode ser entrevista por meio de extenso aparato crítico. A acusação de que também os

jesuítas “pecavam” com as índias é desmentida pelo padre Nóbrega, após desqualificar seu

autor e afirmar ter investigado o caso em detalhes220

. Evidencia-se, entretanto, que os jesuítas

também não estavam alheios às acusações de tratos ilegítimos, dirigida repetidamente por eles

219

MB I, pp. 498-9, grifos nossos. 220

MB I, pp. 498-9

74

aos colonos e ao clero secular. Não nos cabe apontar a veracidade das acusações ou

subscrever a defesa realizada por Nóbrega. O importante aqui é destacar que a desqualificação

moral por meio desse tipo de acusação não fazia parte somente do repertório jesuíta, ainda

que a correspondência jesuítica, dado seu caráter institucional, obviamente apresente os

membros da ordem como os legítimos guardiões da castidade, contrapondo-os aos seculares e

leigos. Certamente o problema das relações ilegítimas não possui a mesma intensidade nestes

diferentes grupos, mas é imprescindível considerar a parcialidade desse tipo de informação.

Em carta de agosto de 1553, pouco mais de dois meses após a anterior, Manuel da

Nóbrega apresenta ao mesmo Luís Gonçalves da Câmara uma descrição muito mais branda de

João Ramalho, fruto de uma tentativa de aproximação. Diferentemente das duas cartas

analisadas anteriormente, esta tem a descrição da situação de Ramalho como seu principal

assunto, tratando apenas marginalmente e rapidamente das atividades dos missionários da

Capitania de São Vicente. Para um relato mais detido do “fructo que en esta tierra se haze”,

Nóbrega remete às outras cartas que de São Vicente se escreverão221

. Vê-se, mais uma vez,

que a comunicação ocorria de maneira articulada, com uma divisão de atribuições e de

modalidades de cartas. As informações acerca de João Ramalho que o padre apresenta

cumprem o objetivo prático de conseguir-lhe uma dispensa para poder casar com sua

concubina índia:

En este campo está un Joán Ramallo el más antiguo hombre que hay en esta

tierra. Tiene muchos hyjos y muy aparentados en todo este sertán, y el maior

dellos llevo yo hahora comigo al sertán por más autorizar nuestro ministerio,

porque es mui conocido y venerado entre los gentiles, y tiene hijas casadas

con los principales hombres desta Capitania, y todos estos hyjos e hyjas son

de una india hija de los maiores y más principales desta tierra, de manera

que en él y en ella y en sus hijos speramos tener un grande medio para

conversión destos gentiles [...].

Quando vino de la tierra, que avrá 40 años y más, dexó su muger allá viva y

nunqua más supo della, mas que le parece que deve ser muerta, pues ha

tantos años. Desea mucho casarse com la madre destos sus hyjos. Ya allá se

escrevió y nunqua vino respuesta deste su negocio, y portanto es necessario

que V. R. luego embíe a Bouzela, tierra del Padre Maestre Simón, y de parte

de N. Señor lo requiero, porque si este hombre estuviere en estado de gracia

hará N. S. por él mucho en esta tierra, pues estando en el peccado mortal, por

su causa la sustentó hasta hahora [...].

[...] Si el Nuncio tuviere poder, avan dél dispensación particular para este

mismo Joán Ramallo poder casar con esta india, no obstante que oviese

conocido otra su hermana y qualesquier otras parientas della; y así para

otros dos o tres mestizos que quieren casar con indias de que tienen hijos no

221

MB I, p. 522.

75

obstante qualquier affinidad que entre ellos aya222

.

Vê-se que o combate à mancebia e qualquer tipo de relação ilegítima era,

efetivamente, caro à Companhia de Jesus, não sendo apenas um recurso retórico mobilizado

em função do conflito indígena. O caráter prático desta carta, voltada quase exclusivamente

ao problema da dispensa, e o momento de aproximação de que faz parte levam a diferenças

consideráveis na abordagem. Primeiramente, a acusação de adoção dos costumes gentílicos

não aparece. Mesmo que a carta se concentre na resolução da situação conjugal, com a qual o

tema não está diretamente ligado, há uma descrição geral de Ramalho e seus filhos, como nas

anteriores, que não trata da questão. Há ainda uma clara identificação de uma relação estável,

a qual se busca tornar legítima, e os demais tratos ilegítimos são reduzidos a encontros

esporádicos (“no obstante oviese conocido otra sua hermana”), à diferença da caracterização

explícita de poligamia presente em seu relato anterior.

222

MB I, pp. 524-6.

76

CAPÍTULO 2

A VIVÊNCIA RELIGIOSA DOS COLONOS: INTERCULTURALIDADE E

DIMENSÃO POLÍTICA

77

2.1. Os “costumes gentílicos”

A influência dos costumes indígenas na vida cotidiana dos colonos de Santo André e

São Paulo é um tema largamente tratado pela historiografia referente à região, sendo

frequentemente proposta a imagem de um paulista223

profundamente indianizado. A

construção dessa imagem, bem como da oposta, um paulista civilizador e nobilitado,

dependeu em larga medida da seleção documental efetuada pelos historiadores. Na

interpretação do colono indianizado ou, no mínimo, pouco afeito à prática formal do

catolicismo e aos “costumes cristãos”, a correspondência jesuítica ocupa um papel central,

sobretudo quando nos atemos a algumas passagens mais polêmicas. A descrição dos colonos

nas narrativas epistolares insere-se, como vimos anteriormente, em uma prática textual

complexa, que aborda esse tema a partir de premissas particulares. O debate relativo à

influência indígena no cotidiano do planalto paulista gira em torno da demarcação dos limites

dessa abertura dos colonos às técnicas e costumes nativos, uma vez que as lacunas

documentais deixam margem para muita divergência. Consideramos que nossa pesquisa pode

contribuir, ainda que modestamente, para essa discussão, reavaliando o que as cartas jesuíticas

podem informar a esse respeito.

Ao tratar do tema da adoção dos “costumes dos gentios” pelos colonos, não seria

pertinente partir de uma delimitação do que seriam os costumes propriamente religiosos, uma

vez que, como veremos, a afirmação desta diferenciação é justamente o aspecto que norteia as

descrições presentes nos documentos, variando de acordo com a situação em que estes foram

produzidos e a posição que exprimem. É imprescindível aqui utilizar o conceito de religião

em perspectiva histórica, evitando balizar a análise a partir de categorias alheias àquele

contexto224

. Dessa forma, um costume que poderia ser apresentado como inofensivo em

alguns momentos, como o uso das línguas ou técnicas nativas, poderia, em determinadas

situações, ajudar a compor uma descrição negativa ligada a uma “barbarização” do branco,

em um contexto no qual os costumes não são facilmente dissociáveis de uma identidade

civilizacional mais ampla, baseada na religião.

223

As problemáticas referentes ao conceito de “paulista”, de discutível aplicação para o século XVI, foram

tratadas no tópico 2 do primeiro capítulo. Aludimos aqui à utilização generalizante que estende o conceito para

todo o período colonial. 224

Para uma síntese do debate teórico referente à historicização do conceito de religião, cf. MASSENZIO,

Marcello. A história das religiões na cultura moderna. São Paulo: Hedra, 2005; BRELICH, A. “Prolegómenos a

una historia de las religiones”. In: PUECH, Henri-Charles (org.). Historia de las religiones, vol. 1: Las religiones

antiguas I. 6ª ed. Madrid: Siglo XXI, 1986, pp. 30-97.

78

Assim, não nos cabe afirmar se os habitantes do planalto teriam sido “bons

católicos”, ou “selvagens” indianizados. A formação das identidades ou, em outras palavras,

dos limites onde se situaria a abertura aos costumes locais era móvel, e fazia parte das

relações políticas e sociais ali presentes. Por mais discordâncias que haja em relação aos

hábitos dos moradores de Santo André e de São Paulo, não há dúvida que eles se reconheciam

como cristãos em relação aos gentios, ou como “brancos” em relação aos “negros” (índios).

Todavia, nem sempre é evidente como essas identidades compunham-se socialmente e

etnicamente, principalmente em relação ao espaço ocupado pelo mameluco, tampouco quais

práticas religiosas compreendiam. A análise mais específica da relação dos colonos com a

liturgia católica, a recepção dos sacramentos e o aspecto “civil” (no sentido do pertencimento

às estruturas políticas municipais) da observância religiosa será realizada no terceiro tópico

deste capítulo. No presente tópico, interessa-nos o enfoque mais amplo na relação cultural

entre portugueses e indígenas e no entendimento que dela apresentavam os textos jesuíticos.

Consideramos que as tentativas de recompor pormenorizadamente a relação

cotidiana dos colonos do planalto com a Igreja, institucionalmente entendida, esbarram em

lacunas documentais nada desprezíveis e utilizam frequentemente recortes relativamente

arbitrários. De fato, o estudo que Afonso de Escragnolle Taunay fez das atas da Câmara da

vila de São Paulo do século XVI apresenta-nos uma população piedosa e engajada nas

atividades paroquiais, ainda que não faltem referências do autor à adoção de práticas

indígenas em outros setores da vida cotidiana. As características deste material privilegiam,

evidentemente, o aspecto mais oficial da vida pública de São Paulo, e as conclusões

decorrentes acabam por refletir no texto do autor essa parcialidade225

. Quando trata da relação

dos moradores da vila com a Igreja, Taunay privilegia os anos posteriores a 1588, com as

discussões sobre a construção da matriz e relações da Câmara com o recém-nomeado

pároco226

. Não há muito nas atas sobre o período anterior. O autor justifica as frequentes

referências sobre a necessidade da igreja matriz e de um pároco a partir de 1588 por se tratar

de um período distinto. Anteriormente, segundo ele, a assistência dos jesuítas era suficiente.

A dificuldade em se recuperar os pormenores da vida cotidiana dos primeiros

portugueses e mamelucos do planalto não reside apenas na parcialidade dos documentos, mas

também na escassez de dados mais concretos sobre a maioria dos aspectos que compunham

225

TAUNAY, Afonso de E. São Paulo nos primeiros anos (1554-1601): ensaio de reconstituição social; São

Paulo no Século XVI: história da vila piratiningana. Coordenação de Paula Porta. São Paulo: Paz e Terra, 2003

[1920, 1921]; Actas da Camara da villa de S. Paulo, vol. I (1562-1596). Publicação official do Archivo

Municipal de S. Paulo. São Paulo: Duprat & C.ª, 1914. 226

TAUNAY, op. cit., pp. 58-70.

79

esse cotidiano. O estudo mais importante sobre a adoção de práticas indígenas pelos colonos

de São Paulo é ainda o clássico Caminhos e Fronteiras227

, no qual Sérgio Buarque de

Holanda desenvolve a ideia, já presente em Raízes do Brasil228

, de que a situação do planalto,

profundamente marcada pelo movimento, pelo dinamismo e pela assimilação do indígena,

decorre de uma imposição das circunstâncias para se levar a cabo o mesmo ideal de

permanência e estabilidade das povoações da costa. Os estudos que compõem o livro focam-

se na vida material por ser o aspecto em que se daria a maior abertura dos adventícios à

influência nativa. Ainda que o autor aborde São Paulo colonial de forma mais geral, as

referências documentais ao primeiro século são relativamente escassas para parte dos temas e,

mesmo tomando-o em conjunto com os dois séculos posteriores, Sérgio Buarque de Holanda

vale-se frequentemente de analogias com a situação do interior de São Paulo que lhe era

contemporânea, entendida como resquício dos tempos passados. O recurso a exemplos coevos

busca preencher as consideráveis lacunas documentais sobre a vida material do planalto

paulista. Ainda que seja lógico supor que a influência indígena em usos e técnicas

contemporâneos do interior paulista seria ainda mais intensa no período colonial, no qual a

possibilidade de substituí-los pelos provenientes da Europa era bastante restrita, torna-se

evidente a dificuldade em se estender essa interpretação para determinados temas.

O caso da língua falada pelos colonos do planalto exemplifica muito bem essa

questão. Em outro texto, também clássico, A língua-geral em São Paulo229

, o autor

desenvolve a ideia, retomada então230

, de que a língua portuguesa suplantaria a língua geral

no planalto somente no século XVIII. Seguindo a proposta de Teodoro Sampaio, afirma que,

no ambiente doméstico, prevalecia a utilização da língua geral, ficando o português relegado a

um âmbito oficial. É importante destacar que a língua geral, ela mesma instrumento e produto

do processo de mediação cultural entre europeus e indígenas, foi sistematizada pelos jesuítas,

a partir da gramatização do tupi e, posteriormente, do guarani, como instrumento catequético

voltado à atividade missionária231

. Na análise de Buarque de Holanda, “língua geral” é

227

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994

[1956]. 228

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 [1936], p.

131. 229

Ibid., pp.122-33. O texto foi publicado primeiramente nas páginas de O Estado de São Paulo, no ano de 1945

e incorporado na reedição da obra. 230

HOLANDA, Caminhos e fronteiras, op. cit., p. 10. 231

Uma análise pormenorizada da língua geral como parte do processo de mediação cultural está em AGNOLIN,

Adone. “Catequese e tradução: Gramática cultural, religiosa e lingüística do encontro catequético e ritual nos

séculos XVI-XVII”. In: MONTERO, Paula (org.). Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São

Paulo: Globo, 2006, pp. 143-207 (para ideia da língua geral como “produtor e produto” da mediação cultural cf.

p. 162); ______. Jesuítas e Selvagens: A negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (séc.

80

utilizada simplesmente como sinônimo de língua tupi, fazendo referência à comunicação

cotidiana entre os colonos e a população indígena do planalto e as “descidas” do sertão. A

língua tupi possuía efetivamente grande abrangência e servia como instrumento de

comunicação entre grupos indígenas diversos em uma extensa área, dado este que, ainda que

superdimensionado, levou os jesuítas a sistematizá-la como instrumento de comunicação e

catequese para com populações indígenas de origem diversificada. O tupi adquire

progressivamente “características de uma ‘língua (voltada para a comunicação) colonial’”,

fato “tanto mais evidente quanto menos essa língua geral se mostrava voltada para a

comunicação com grupos indígenas tupi – na medida em que esses estavam

desaparecendo”232

. Um exemplo interessante desta característica colonial adquirida pela

língua tupi nos é dado por José de Anchieta, que afirma, em uma carta de 1565, ter se valido

da “lengua brasíllica” para se comunicar com um francês calvinista durante as negociações

com os tamoios em Iperoig233

.

Não é nosso objetivo abordar a problemática da sistematização da língua geral pelos

jesuítas, suas características e de que maneira se relacionava com a língua efetivamente

empregada na comunicação entre colonos portugueses e indígenas, dado que muitos destes

viviam em aldeamentos administrados pelos inacianos. Pretendemos tão somente levantar

alguns questionamentos acerca da relação entre a divisão linguística e a estrutura social do

planalto, com foco na população branca e mameluca. Valemo-nos, dessa forma, do sentido

mais genérico de “língua geral”, tal como utilizado por Buarque de Holanda.

O conjunto de dados disponíveis para o período entre os séculos XVI e XVIII não

deixam dúvida da grande difusão da língua geral entre a população branca e mameluca do

planalto. No entanto, dado o caráter esparso das informações, é difícil situar onde se

localizaria o limite entre o uso do português e da língua geral para as diferentes camadas da

população. É possível, partindo da mesma base documental, reconhecer um maior alcance do

uso do português. Neste sentido, John Monteiro propõe que a divisão linguística refletia a

estrutura social do planalto:

A rigor, a divisão lingüística de São Paulo refletia a estrutura bipolar da

sociedade colonial: na sua base, os escravos provenientes de diversos grupos

étnicos e lingüísticos comunicavam-se na versão paulista da língua geral,

baseada num padrão guarani; no topo, a comunidade luso-brasileira

XVI – XVII). São Paulo: Humanitas Editorial, 2007, principalmente pp. 41-107. 232

AGNOLIN, Adone. “Catequese e tradução: Gramática cultural, religiosa e lingüística do encontro catequético

e ritual nos séculos XVI-XVII”. In: MONTERO, Paula (org.). Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação

cultural. São Paulo: Globo, 2006, p. 158. 233

MB IV, p. 138.

81

diferenciava-se da massa cativa por meio do uso da língua colonial, embora,

inevitavelmente, entrasse em contato diário com o guarani do lugar234

.

Na interpretação de Monteiro, o domínio da língua geral ou qualquer língua indígena

entre a população branca era, antes que um fato cotidiano, uma “respeitável especialização, e

a fluência numa dessas línguas limitava-se apenas aos maiores sertanistas”235

. No cerne dessas

posições parcialmente divergentes, focadas principalmente no século XVII, estão algumas

referências documentais bastante conhecidas. Dentre as mais importantes, há o

frequentemente citado comentário do bispo de Pernambuco em relação ao sertanista

Domingos Jorge Velho, de 1697: “Este homem é um dos maiores selvagens com que tenho

topado: quando se avistou comigo trouxe consigo língua, porque nem falar sabe, nem se

diferença do mais bárbaro Tapuya mais que em dizer que é Cristão”236

. Outra referência

importante fornece-nos Antônio Vieira, em conhecida passagem acerca da administração do

gentio:

É certo que as famílias dos portuguezes e indios de São Paulo estão tão

ligadas hoje humas ás outras, que as mulheres e os filhos se criam mystica e

domesticamente, e a lingua que nas ditas famílias se fala he a dos indios, e a

portugueza a vão os meninos aprender à escola [...]237

.

Em ambos os casos é necessário lidar com o inevitável problema da parcialidade do

testemunho e, no caso de Vieira, tem-se mais um episódio da construção de uma imagem do

paulista pelos jesuítas. Mesmo Sérgio Buarque de Holanda, que utiliza as duas citações para

fundamentar a interpretação do predomínio da língua geral em São Paulo, reconhece essa

dificuldade metodológica e procura superá-la adicionando mais referências. Ainda que se

recuse a atribuir o conteúdo da passagem apenas ao caráter conflituoso da relação entre

jesuítas e paulistas238

, reconhece a possibilidade de que

Vieira, conhecendo apenas de informações o que se passava em São Paulo,

tenha sido levado facilmente a repetir certas fábulas que, entre seus próprios

companheiros de roupeta, correriam a respeito dos moradores da capitania

sulina não é contudo improvável239

.

234

MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1994, p. 165. 235

Ibid., p. 164. 236

Carta de D. frei Francisco de Lima, bispo de Pernambuco, apud MONTEIRO, op. cit., p. 164. 237

VIEIRA, Antônio. Obras Várias, I (Lisboa, 1856), p. 249, apud HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do

Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 [1936], pp. 122-3. 238

Reiteramos que, no momento em que escreve Vieira, o conceito de “paulista” faz já parte do vocabulário

jesuítico. 239

HOLANDA, op. cit., p. 123.

82

Tanto nesse caso, como nas outras referências que apresenta, o autor busca antecipar-

se às objeções que ele próprio já identifica que poderiam ser levantadas. Não lhe escapou que

poderia se considerar demasiadamente genérica a descrição do paulista, tanto no trecho de

Vieira como nos outros testemunhos que elenca, e que seria possível relacioná-la a uma

camada mais baixa da população, predominantemente mestiça. Para responder a essa objeção,

apresenta o já citado testemunho do bispo de Pernambuco sobre Domingos Jorge Velho, por

se tratar de um grande sertanista de ascendência predominantemente portuguesa. Contudo, há

uma dificuldade ainda maior em tal testemunho, dada a existência de uma carta ao rei redigida

por ele e diversas assinaturas suas nos registros do cartório de Santana de Parnaíba240

. Para

Sérgio Buarque de Holanda, entretanto, há ainda a possibilidade de se admitir que “sendo

porventura sua a letra com que foram redigidos os escritos, não o seriam as palavras e, ainda

menos, as idéias”241

, possibilidade que é, de qualquer maneira, inverificável. Desta forma,

fragiliza-se a recusa a atribuir estes episódios a uma camada específica da população.

A interpretação que John Monteiro dá aos testemunhos seiscentistas de que os

paulistas não falavam o português caminha em outra direção:

[...] parece provável que, acompanhando a evolução do regime de escravidão

indígena ao longo do século XVII, tenha se desenvolvido uma forma

ancestral do dialeto caipira, aliás fortemente marcado pela presença de

palavras de origem guarani242

.

Dessa forma, o bispo, bem como outros observadores portugueses da época, teria

dificuldade em compreender o “português colonial, corrompido pela presença de barbarismos

africanos e indígenas” e classificava-o como uma língua à parte243

. A dificuldade em se

confirmar essa hipótese está justamente no caráter fragmentário e indireto das informações

disponíveis, como destacamos mais acima. De qualquer maneira, essa interpretação encaixa-

se melhor com as referências documentais, já que a aceitação integral do comentário em

relação à incapacidade de manejo do português por um sertanista influente como Domingos

Jorge Velho não poderia ser facilmente harmonizada com o uso, bastante documentado, do

português em âmbito oficial. Os demais testemunhos apresentados na discussão desse tema

possuem limitações similares, ainda que consideremos, como John Monteiro, que esteja

suficientemente documentado o uso do português entre os colonos do planalto para além do

240

MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1994, p. 164. 241

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 [1936], p.

127. 242

MONTEIRO, op. cit., p. 164. 243

Ibidem.

83

âmbito estritamente oficial, o que significa admitir uma clivagem social na configuração

linguística da região244

, já que a predominância do tupi em parte dos moradores está também

documentado.

O pano de fundo da discussão acerca da língua é a conformação social e familiar nas

vilas do planalto paulista, e a maneira com que a abertura dos povoadores aos costumes

indígenas relacionava-se com essa estrutura social. É preciso levar em conta como o

mameluco inseria-se nessa sociedade, quais as identidades que estavam em jogo, a articulação

entre as áreas periféricas e o núcleo urbano, a diferença de abertura à influência indígena em

ambientes distintos etc. Pode-se reconhecer na interpretação de Sérgio Buarque de Holanda o

peso adquirido pela ideia de uma população predominantemente mestiça em São Paulo,

mesmo que apenas culturalmente, ideia esta que baseia seu estudo sobre a vida material na

região245

. Em outras palavras, podemos afirmar que o autor situaria o idioma da população

branca e mameluca além da “fronteira”, não o incluindo entre aqueles aspectos institucionais

e sociofamiliares em que os adventícios procurariam reter, “tanto quanto possível, seu legado

ancestral”246

. A interpretação de Buarque de Holanda em relação à língua geral articula

referências documentais esparsas e fragmentadas, por meio da ideia do predomínio de um

hibridismo cultural, que dilui a diversidade sociocultural do planalto em função das

características gerais do “paulista”. Há aí um eco de certas imagens tradicionais acerca dos

habitantes do planalto, desenvolvidas a partir dos escritos jesuíticos setecentistas.

Os conceitos de “hibridismo” ou “mestiçagem” aplicados às relações culturais

carregam alguns problemas que é conveniente esclarecer. Usualmente, pressupõem uma

noção de coesão e unicidade em cada uma das culturas em contato, indicando uma mistura

entre dois blocos monolíticos. Tal noção obscurece o sentido dinâmico da cultura e a

diversidade, muitas vezes conflituosa, dos delineamentos possíveis em cada uma das

diferentes culturas em contato, além de impedir o entendimento dos mecanismos de

comunicação. Dessa maneira, ao indicarmos a situação cultural do planalto, tanto na análise

de Sérgio Buarque quanto na nossa, por meio destes termos, pressupomos o seu sentido

dinâmico.

244

Marilza de Oliveira, em “Para a História social da língua portuguesa em São Paulo”, apresenta mais

referências documentais do uso do português em ambientes não oficiais, como cartas e bilhetes pessoais

retirados dos testamentos e inventários seiscentistas, o que corrobora a interpretação social proposta por John

Monteiro. In: CASTILHO, Ataliba Teixeira de (org.). História do português paulista. Série Estudos, Vol. I.

Campinas: Institutos de Estudos da Linguagem, 2009, pp. 185-208. Cf. principalmente os anexos, pp. 207-8. 245

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994

[1956]. 246

Ibid., p. 12.

84

Para o período de que nos ocupamos, anterior à “era das bandeiras”, os registros

documentais podem apontar alguns caminhos para se compreender melhor o pano de fundo

sociocultural da questão da língua, ainda que não tratem diretamente do idioma falado pelos

moradores de Santo André e São Paulo em ambientes públicos e domésticos. O destaque que

a figura do “língoa” ou “língua” (intérprete) recebe nos registros documentais indica, ao que

parece, tratar-se de uma importante especialização. Não eram utilizados apenas por europeus

recém-chegados, como no caso em que Martim Afonso de Sousa leva João Ramalho e

Antonio Rodrigues como “linguas d’esta terra”247

, mas também por adventícios há muito

estabelecidos no Brasil, como o próprio Manuel da Nóbrega em meados da década de 1560248

.

Entretanto, não é possível saber em que idioma se dava a comunicação no ambiente

civil e familiar neste momento de predomínio da união entre portugueses e índias, com filhos

mamelucos. É interessante apontar que o esforço de Anchieta e Nóbrega em apresentar os

filhos mestiços de João Ramalho profundamente indianizados não incluía a acusação de

imperícia no português, como se daria nos registros seiscentistas tratados anteriormente. Por

mais que a negação de um fato não comprove o seu contrário, essa ausência nas acusações

jesuíticas quinhentistas indica, no mínimo, uma diferença de critérios utilizados na construção

de uma imagem “indianizada” dos moradores de São Paulo.

A prática jesuítica de confessar por meio de intérprete, condenada pelo bispo D.

Pedro Fernandes, não era utilizada apenas com índios, mas também com mestiças, mulheres

de portugueses, que não falavam sua língua, como veremos a seguir. Por outro lado, alguns

desses intérpretes eram também mestiços, o que indica, mais uma vez, a indefinição da

situação do mameluco nesta sociedade.

As mesmas problemáticas referentes à língua apresentam-se para outros temas

relacionados à influência indígena no cotidiano dos primeiros colonos do planalto. A análise

de Sérgio Buarque de Holanda sobre a adoção pelos portugueses de técnicas e costumes

indígenas no campo da vida material esclarece em larga medida esse aspecto do cotidiano

planaltino, mas parte do reconhecimento que a abertura à influência nativa não seria a mesma

na esfera da vida social, familiar e institucional249

. No que diz respeito ao cotidiano religioso,

247

MARQUES, Manuel Eufrásio de Azevedo. Apontamentos históricos, geográficos, biográficos, estatísticos e

noticiosos da Província de São Paulo seguidos da cronologia dos acontecimentos mais notáveis desde a

fundação da Capitania de São Vicente até o ano de 1876. São Paulo: Comissão do IV Centenário da cidade de

São Paulo, 1954 [1879], tomo II, p. 41. 248

José de Anchieta afirma ter acompanhado Nóbrega a Iperoig como intérprete (MB III, p. 564). 249

“A acentuação maior dos aspectos da vida material não se funda, aqui, em preferências particulares do autor

por esses aspectos, mas em sua convicção de que neles o colono e seu descendente imediato se mostraram muito

mais acessíveis a manifestações divergentes da tradição européia do que, por exemplo, no que se refere às

instituições e sobretudo à vida social e familiar em que procuram reter, tanto quanto possível, seu legado

85

deve-se considerar, portanto, sua estreita ligação com a própria identidade civilizacional, e sua

importância na definição dos limites – ou “fronteiras”, para usar novamente a bela imagem de

Sérgio Buarque de Holanda – do contato entre europeus e indígenas.

O reconhecimento de ser cristão, entretanto, não se traduz simplesmente na adoção a

um conjunto estanque de normas ortodoxas. A definição desses limites ocorre no interior de

situações políticas concretas, nas quais as vozes em questão procuram dar-lhes os contornos

que consideram mais adequados, e que nem sempre são muito nítidos. É dessa forma que

podemos compreender a acusação feita aos paulistas do século XVI de adotar costumes

indígenas justamente pelos jesuítas, vítimas da mesma acusação por parte de outros setores da

Igreja. É bastante conhecida a polêmica envolvendo o conceito de adaptação no ministério da

Companhia de Jesus e a defesa que a ordem fazia desta postura a partir da divisão entre

práticas inofensivas à fé, que poderiam ser instrumentalizadas para a conversão, e as

prejudiciais, que se deveriam combater implacavelmente250

.

Na atuação da Companhia em terras brasileiras quinhentistas, a página mais célebre

dessa polêmica desenvolveu-se em torno do conflito entre Manuel da Nóbrega e o bispo D.

Pedro Fernandes, no qual a escrita epistolográfica cumpriu importante papel251

. O bispo não

desenvolve sua crítica em torno da ideia de adaptação de forma geral, ainda que essa seja a

consequência de sua argumentação; questiona diretamente Nóbrega, focando-se em episódios

específicos ocorridos na Bahia. Sente-se escandalizado porque o superior jesuíta “confessava

ciertas mugeres mistiças por intérprete”, principalmente pelo intérprete ser “un niño de los de

la tierra, mamaluquo de diez años”252

. Pareceu-lhe uma afronta ao sacramento. No entanto,

com exceção desta questão mais polêmica referente à confissão, grande parte de seu

escândalo dizia respeito a práticas que Nóbrega entendia como não prejudiciais à fé. O bispo

ancestral”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,

1994 [1956], p.12. 250

PROSPERI, Adriano. “O missionário”. In: VILLARI, Rosario (dir.). O homem barroco. Lisboa: Presença,

1995, pp. 154-61. Um dos registros mais notáveis desse posicionamento na Companhia, para o período, é o

“Tratado em que se contém muito sucinta e abreviadamente algumas contradições e diferenças de costumes entre

a gente de Europa e esta província de Japão [...]”, escrito pelo jesuíta Luís Fróis em 1585, no qual se apresenta

com uma impressionante riqueza de detalhes os costumes dos japoneses, contrapondo-os pontualmente aos

correspondentes europeus, com o evidente objetivo de melhor se inserir nessa sociedade e promover sua

evangelização. Os capítulos que tratam dos bonzos e seus costumes, e “Dos templos, imagens e cousas que

tocam ao culto de sua religião” destoam dos demais pelo tom agressivo de condenação (FRÓIS, Luís. Europa

Japão: Um diálogo civilizacional no século XVI. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos

Descobrimentos Portugueses, 1993). 251

Há uma carta do próprio bispo, datada de 1552 e endereçada ao provincial Simão Rodrigues, em Lisboa, e

uma sequência de cartas de Nóbrega que fazem referência aos desentendimentos: MB I, carta 49, pp. 357-66;

carta 51, pp. 367-75; carta 61, pp. 448-59; carta 69, pp. 489-503. O bispo retoma o assunto, no ano seguinte, em

carta endereçada ao Reitor do Colégio de S. Antão de Lisboa: MB II, carta 2, pp. 11-2. 252

MB I, p. 361.

86

não compartilhava da visão inofensiva de práticas como cortes de cabelos, modos de cantar e

tocar instrumentos. Apontava-lhes consequências negativas:

[...] estos gentiles se alaban que ellos son los buenos, pues los Padres y niños

tañiam sus instrumentos y cantavam a su modo. Digo que Padres tañiam,

porque en la compañia de los niños venía hun Padre sacerdote, Salvador

Rodrígez; tañía, dançava e saltava com ellos253

.

O bispo advertiu Nóbrega de “que no venía aquá hazer lós christianos gentiles, sino a

costumbrar los gentiles a ser christianos”254

. Para D. Pedro Fernandes, a evangelização do

indígena deveria começar justamente pela eliminação de seus costumes, e era muito maior

motivo de preocupação a perversão dos brancos255

. A versão do desentendimento que

Nóbrega endereça a Simão Rodrigues, a quem também se dirigia D. Pedro Fernandes, baseia-

se na já citada contraposição entre costumes inofensivos e prejudiciais à fé, demarcando a

diferença de posicionamento com o bispo, que não aceitara o argumento de que “[...] nom

erão ritos nem custumes dedicados a ídolos, nem que perjudicassem a fee catholica”256

.

Mesmo levando-se em conta a posição característica da Companhia de Jesus, a

delimitação entre esses dois tipos de prática era sempre tênue. O caso de João Ramalho e seus

filhos, que abordamos no capítulo anterior, é bastante revelador nesse sentido. A descrição

negativa que Anchieta faz dos filhos de Ramalho vale-se tanto de práticas rituais, como matar

o inimigo “com a maior crueldade, tingindo as próprias pernas de vermelho e tomando o

nome de quem matara em sinal de honra”, quanto de práticas meramente técnicas, como usar

“arco e frechas como os índios”, informação que cumpre um papel retórico na construção da

imagem negativa desses mamelucos257

.

De fato, a indianização de europeus, ainda que descrita em termos de características

físicas e técnicas, não deixava de chamar a atenção de comentadores coloniais. Gabriel Soares

de Sousa faz menção a um episódio em que:

N'este Rio Grande achou Diogo Paes de Pernambuco, lingua do gentio, um

castelhano entre os Pitiguares, com os beiços furados como elles, entre os

quaes andava havia muito tempo, o qual se embarcou em uma nao para

França, porque servia de lingua dos francezes entre o gentio nos seus

resgates258

.

253

MB I, p. 359. 254

MB I, p. 360. 255

MB I, p. 364. 256

MB I, p. 373. 257

MB II, p. 115. 258

SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descriptivo do Brasil em 1587. Introdução e comentários de Francisco

Adolpho de Varnhagen. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da Silva, 1879, p. 14.

87

O cronista considerou o fato inusitado o suficiente para referi-lo em meio a

descrições quase que exclusivamente topográficas. O caso de São Paulo do primeiro século é,

evidentemente, diverso, já que a abertura à influência nativa é reconhecidamente maior, como

temos dito. No entanto, como no caso da língua geral, é preciso certo cuidado antes de

ratificar a tradicional imagem do paulista indianizado, não muito diferente de um “Tapuia”.

Temos, por um lado, a natureza das fontes jesuíticas que, no século XVI, descrevem a adoção

de práticas gentílicas pelos colonos do planalto. Por outro lado, temos o peso de uma imagem

do paulista rebelde e barbarizado, construída a partir do XVII por autores jesuítas e

repetidamente reforçada pela historiografia sucessiva.

A descrição da adoção dos costumes gentílicos por João Ramalho e seus filhos, como

acompanhamos no tópico anterior, não indicava uma situação específica do planalto e fazia

parte de uma construção retórica baseada no tema da assimilação da mão de obra indígena.

Encontramos em uma longa carta do padre Manuel da Nóbrega a Tomé de Sousa, de 1559,

uma argumentação construída nos mesmos moldes que aquela de José de Anchieta259

, mas

apresentando uma avaliação do Brasil como um todo. É importante aqui transcrever um

trecho relativamente longo, para reinseri-lo em seu contexto narrativo.

Em todas estas Capitanias, [...] notei outros [pecados] que muyto mais que

todos offendem a divina Bondade e mais lhe atirão de rostro, porque sam

contra a charidade, amor de Deus e do proximo. E estes peccados tem sua

raiz e principio no odio geral que os christãos tem ao gentio, e não somente

lhe avorecem os corpos, mas tambem lhes avorecem as almas, e em tudo

estorvão e tapão os caminhos que Christo N. Senhor abrio pera se elas

salvarem [...].

Em toda a costa se tem geralmente, por grandes e pequenos, que hé grande

serviço de N. Senhor fazer aos gentios que se comão e se travem huns com

os outros, e nisto dizem consistir o bem e segurança da terra, e isto aprovão

capitãis e prelados, eclesiasticos e seculares, e asi o põem por obra todas as

vezes que se offerece; e daqui vem que, nas guerras passadas que se tiverão

com o gentio, sempre da[v]am carne humana a comer não somente a outros

yndios, mas a seus proprios escravos. Louvão e aprovão ao gentio o

comerem-se huns a outros, e já se achou christão mastigar carne humana

pera dar com isso bom exemplo ao gentio.

Outros matam em terreiro hà maneira dos Yndios, tomando nomes, e não

somente o fazem homens baixos e mamalucos, mas o mesmo capitão, às

vezes! Ó cruel custume! Ó deshumana abominação! [...] E não hé muyto que

siguão a seu capitão gente que não sei se algum[a] ora do ano está sem

peccado mortal260

.

259

MB II, pp. 114-5. 260

MB III, pp. 76-7, grifo nosso.

88

Diferentemente da citada carta de Anchieta, Nóbrega restringe a acusação às práticas

propriamente rituais, relacionadas à antropofagia e a morte no terreiro. Não apresenta um caso

exemplar, como era a praxe, mas sim uma avaliação do estado geral em todas as capitanias.

Entretanto, a referência ao “capitão”, não nomeado, destoa do caráter genérico da avaliação,

indicando um episódio específico que não é abertamente tratado e que em tudo lembra o do

próprio João Ramalho. Há ainda a referência a um “cristão”, utilizado aqui no sentido de

“branco”, que teria efetivamente mastigado carne humana, o que o trecho acusatório a

Ramalho e seus filhos não apresentava. Nesta carta, como na de Anchieta, as descrições da

adoção de costumes dos gentios por brancos e “mamalucos” estavam submetidas ao tema da

evangelização do indígena, e do empecilho que os colonos colocavam a esta atividade

missionária.

A descrição da adoção de “costumes dos gentios” era frequentemente mobilizada

quando se pretendia desqualificar as pessoas em questão, fossem colonos portugueses ou

franceses calvinistas. Na longa narrativa que José de Anchieta escreve ao prepósito-geral

Diego Laines acerca da paz de Iperoig, enviada em janeiro de 1565, os franceses

estabelecidos no Rio de Janeiro são assim descritos:

La vida de los franceses que están en este Rio es ya no solamente oie

apartada de la Iglesia Cathólica, mas también hecha salvage. Biven

conforme a los Indios comiendo, bibiendo, bailando y cantando con ellos,

teñiéndose con sus tintas prietas y bermejas, ornándose con las plumas de los

páxaros, andando desnudos a las vezes, sólo con unos pañetes, y finalmente

matando contrarios según el rito de los mismos Indios, y tomando nombres

nuevos como ellos, de manera que no les falta más que comer carne humana,

que en lo más su vida es corruptíssima. Y con esto, y con les dar todo género

de armas, incitándolos siempre que nos hagan guerra y aiudándolos en ella,

le son aún péssimos261

.

O trecho apresenta muitos elementos semelhantes à descrição do mesmo Anchieta a

respeito dos filhos de Ramalho262

, mas organizados de maneira um pouco diversa. A narrativa

do cativeiro de Iperoig, mais do que uma simples carta edificante, carrega muitos elementos

de um relato de viagem, encadeando cronologicamente os episódios e fornecendo descrições

dos locais visitados e da população neles existente. Nas informações a respeito dos franceses

do Rio de Janeiro não há os episódios exemplificadores como para o caso dos mamelucos de

Santo André. O estado geral que se quer comunicar é apresentado sucintamente de maneira

descritiva. Os franceses, como os filhos mamelucos de João Ramalho, tornam-se “selvagens”

por meio da adoção dos costumes e indígenas, incluindo os rituais (com exceção, nos dois

261

MB IV, p. 139. 262

MB II, pp. 114-5.

89

casos, da antropofagia). Se a cristianização do indígena pressupunha a “civilização” de seus

costumes – o que está na base da política dos aldeamentos -, o caminho inverso do processo

civilizatório também poderia ser trilhado, de acordo com a argumentação de Anchieta. O

tornar-se “selvagem”, como vemos, é uma categoria que atribui aos diferentes episódios uma

significação que transcende o particularismo factual. Há uma evidente dimensão retórica deste

código, visto que, como demonstram os exemplos apresentados, ele era mobilizado em

situações de conflito bastante concretos. Admitindo isto, compreendemos como as

argumentações do bispo D. Pedro Fernandes e do padre Manuel da Nóbrega, anteriormente

analisadas, estão indiretamente negociando o espaço da legitimidade cristã. A discordância

em relação a quais práticas descaracterizariam a fé cristã, indicativa da diferença na maneira

de entender a administração de sacramentos e a própria condição do indígena, desenvolve-se,

contudo sob o mesmo código: o civilizado (cristão) que se torna selvagem.

Nas vereanças da vila, encontramos uma referência a brancos que bailam e bebem ao

modo gentílico. Não há, como se vê, qualquer tipo de avaliação explícita da prática, que

dificilmente teria lugar nesse formato de texto. Contudo, havendo ou não algum motivo por

trás dessa resolução, o fato é que, servindo como argumentação, revela-nos que há uma

identidade em questão:

[...] e mais requereo ho dito procuador do conselho que todo homem cristão

branco que não seja negro de fora que se achar em aldea de negros foros ou

cativos bebendo e bailando ao modo do dito jẽtio e suas merses lhes

mãdasem e puzesem pregão e pena contra os tais263

.

Em nossa interpretação, a mobilização deste código para se referir aos colonos

leigos, nos exemplos que apresentamos, fundamenta-se em duas questões principais. A

primeira é o papel retórico que este código cumpre no conflito envolvendo a escravidão

indígena. Na correspondência, a partir desta construção, os jesuítas aparecem como os

verdadeiros representantes da fé e da civilização, tanto em relação ao indígena quanto ao

colono e o clero secular. A segunda questão é a prática da mancebia. Entendida não apenas

como um costume gentílico, mas ainda como de caráter ritual, é um dos principais motivos

que levavam os jesuítas a situarem colonos brancos no polo “selvagem” do processo

civilizatório.

263

ACVSP, 19/01/1583.

90

2.2. A mancebia

A prática da mancebia ou do concubinato – palavras estas referentes a relações

extraconjugais de tipos variados – foi bastante difundida no período colonial brasileiro, em

todas as regiões. Diversas pesquisas abordaram essa questão, analisando os aspectos sociais,

econômicos e religiosos envolvidos nesse tipo de união, concentrando-se em diferentes

períodos e locais264

. Interessa-nos aqui, mais especificamente, o aspecto religioso dessa

prática, uma vez que os relatos jesuítas que analisamos interpretavam-na pelo viés do pecado,

tendo como parâmetro o sacramento do Matrimônio265

e condenando-a insistentemente.

Seguindo nossa proposta de trabalho, procuramos reconduzir as referências à mancebia em

Santo André da Borda do Campo e São Paulo ao todo retórico das respectivas cartas. Para

tanto, não consideramos essas narrativas um registro ou relatório do combate à mancebia

pelos jesuítas: eram parte fundamental e atuante desse combate. Dessa forma, podemos

fornecer um importante filtro crítico para a leitura dessa documentação, complementando as

diversas leituras já realizadas nas pesquisas citadas, que se concentraram na análise de trechos

específicos em conjunto com documentação de outra natureza.

Os historiadores valem-se frequentemente da correspondência jesuítica para

investigar a prática da mancebia no século XVI, uma vez que dispõem de menos registros

exteriores à Companhia para este século que para os períodos posteriores. Foi principalmente

na leitura das cartas jesuíticas quinhentistas que Serafim Leite baseou sua análise das

“Mancebias de brancos e mamelucos” em História da Companhia de Jesus no Brasil266

. No

texto de Serafim Leite, as cartas são tomadas como um registro objetivo do alcance e das

modalidades da mancebia, assim como do combate a ela, realizado pelos missionários. Neste

sentido, endossa a avaliação moralizante que baseia as descrições e a firmeza com que padres

264

Cf., por exemplo: TORRES-LONDOÑO, Fernando. A outra família: Concubinato, Igreja e escândalo na

Colônia. São Paulo: Edições Loyola, 1999; VAINFAS, Ronaldo. “Moralidades brasílicas: deleites sexuais e

linguagem erótica na sociedade escravista”. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da vida privada no

Brasil, vol. 1: Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp.

221-273; ______. Trópico dos pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus,

1989; SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo, 1984. Mariza Corrêa aponta a necessidade de contextualizar os estudos sobre

estrutura familiar e relações interétnicas, evitando os modelos muito totalizantes, e de abordar as formas de

relação familiar para além do modelo defendido como norma (no caso, o patriarcal): CORRÊA, Mariza.

“Repensando a Família Patriarcal Brasileira”. In: ALMEIDA, Maria Suely Kofcs et al. Colcha de Retalhos:

Estudos sobre a Família no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, pp. 13-38. 265

A grafia maiúscula de “Matrimônio” é aqui utilizada quando se refere especificamente ao sacramento, e não

ao sentido mais amplo, que vem grafado com a minúscula. 266

LEITE, Serafim, S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo II, século XVI – a obra. Lisboa; Rio

de Janeiro: Livraria Portugalia; Civilização Brasileira, 1938, Capítulo IV, Livro Terceiro, pp. 361-90.

91

e irmãos descreviam a própria batalha contra o dito pecado. O autor aponta, seguindo as

afirmações dos missionários, as três medidas que estes propuseram para combatê-lo: “a vinda

de homens honrados, já casados, com as suas mulheres; a vinda de mulheres brancas [...]; e o

terceiro, mais difícil, porém mais cristão e civilizador: o casamento das índias com os

brancos”267

, medidas que tiveram, notadamente esta última, alcance limitado. Na apresentação

das causas da grande incidência da mancebia, Serafim Leite elenca a adoção pelos colonos da

poligamia indígena, a disposição moral ruim de parte dos portugueses adventícios, a

disponibilidade das índias e até mesmo o clima268

. Com exceção desta última, para a qual

indica ser tributário de Gilberto Freyre, as outras causas apontadas são abordadas com os

mesmos parâmetros utilizados pelos missivistas. Entre as causas, estaria também a

“conivência dalgum clero”269

, questão levantada principalmente por Nóbrega, que colocaria

os jesuítas como os legítimos defensores da moralidade, e não considerada em sua

parcialidade argumentativa por Serafim Leite.

As pesquisas posteriores também utilizaram largamente a correspondência jesuítica

para tratar do tema da mancebia, mas tiveram o cuidado de assinalar a subjetividade dessa

documentação. Torres-Londoño, cuja pesquisa foca-se no século XVIII, utiliza as cartas para

analisar o estabelecimento da mancebia dos portugueses com as índias durante o primeiro

século de colonização, procurando, entretanto, problematizar a opinião nelas presente sobre a

inclinação sexual das nativas, interpretando-a como uma “útil criação de portugueses e

ocidentais”, “carregada da misoginia européia”270

. Nesta perspectiva, os relatos jesuíticos são

relacionados, pelo autor, a uma mais ampla construção sobre o feminino, proveniente de

ambientes religiosos e laicos europeus. A explicitação dessa interferência subjetiva na

descrição dos nativos não deve nos levar, no entanto, a uma desconsideração da efetiva

influência que os costumes sexuais e sociais das populações brasílicas tiveram na formação da

sexualidade colonial. Deste aspecto se ocupam Ronaldo Vainfas271

e Maria Beatriz Nizza da

Silva272

, analisando a adoção de costumes indígenas por parte dos primeiros colonizadores, da

qual os casos de Caramuru e João Ramalho seriam, segundo Vainfas, os mais representativos.

267

LEITE, Serafim, S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo II, século XVI – a obra. Lisboa; Rio

de Janeiro: Livraria Portugalia; Civilização Brasileira, 1938, Capítulo IV, Livro Terceiro, p. 372. 268

Ibid., pp. 373-4. 269

Ibid., p. 377. 270

TORRES-LONDOÑO, Fernando. A outra família: Concubinato, Igreja e escândalo na Colônia. São Paulo:

Edições Loyola, 1999, p. 35. 271

VAINFAS, Ronaldo. “Moralidades brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista”.

In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da vida privada no Brasil, vol. 1: Cotidiano e vida privada na

América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 231-2. 272

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo, 1984, especialmente pp. 36-8.

92

A indicação nas cartas das uniões “segundo o costume da terra” fariam referência a essa

adoção da prática poligâmica indígena, segundo a qual os homens que se destacassem em

valentia e influência teriam mais mulheres. Mais do que uma simples adoção de práticas

indígenas pelos portugueses, devido à carência de mulheres brancas, as prática da mancebia e

da poligamia faziam parte do estabelecimento de alianças entre colonos e nativos273

.

A referência dos missivistas à mancebia é constante em todo o período que tratamos,

e assume, como veremos, um papel de destaque na descrição dos pecados dos colonos e no

relato do trabalho ministerial dos missionários. O conceito de mancebia, no entanto, não é

fechado e imutável. É necessário compreender o que os missionários queriam significar com

sua utilização, uma vez que a definição do conceito é parte de um processo bastante longo,

relacionado à delimitação do Matrimônio como único espaço válido e sacralizado, do ponto

de vista da ortodoxia católica, para a união entre homem e mulher274

. Nas cartas jesuíticas do

Brasil quinhentista, predominou o uso dos termos “manceba” e “amancebados”, ainda que

não estivesse ausente o uso pontual da palavra “concubina”, com o mesmo sentido275

.

As palavras “concubinato”, “mancebia” e “barregania” variaram em sua significação

e uso ao longo do tempo. Na Idade Média Ibérica predominou o uso de barregania,

significando a relação de união entre homem e mulher, com dependência econômica e

ausência do laço matrimonial276

. A legislação portuguesa dos séculos XVI e XVII manteve

essa definição, considerando barregueiros “o homem e a mulher que dormiam juntos, sendo

que a mulher era sustentada pelo homem sem que estivessem casados perante a Igreja”277

. No

século XVIII, essa relação passou a ser predominantemente denominada “concubinato”,

palavra que também se referia a contatos mais esporádicos. Torres-Londoño refaz a trajetória

desse conceito desde a Antiguidade, mostrando como a acepção latina de concubinat – união

permitida, mas sem os vínculos e direitos do matrimônio, devido à diferença social – foi

transformando-se com o advento do cristianismo, tendo na obra de Santo Agostinho um

273

MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1994, p. 34. 274

Cf. VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no ocidente cristão. São Paulo: Editora Ática, 1986, pp.

25-48; _____. Trópico dos pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989,

pp. 70-5. 275

Cf., por exemplo, a carta do Irmão Pero Correia, enviada de S. Vicente a 10 de março de 1553 para o Padre

Simão Rodrigues, na qual é utilizado o termo “concubina” para se referir às diversas escravas com que os

homens casados se deitavam. O jesuíta não utiliza nas cartas os termos concubinato, mancebia ou

amancebamento, adotando designações como “estava en pecado com um hombre”, “vive en pecado mortal con

una índia” ou “tenerlas [as índias] por mugeres”. MB I, carta 60, pp. 433-448. Trata-se de tradução espanhola da

carta original. 276

TORRES-LONDOÑO, Fernando. A outra família: Concubinato, Igreja e escândalo na Colônia. São Paulo:

Edições Loyola, 1999, pp. 25-7. 277

Ibid., p. 27.

93

marco para a definição do espaço legítimo do matrimônio278

. Já a palavra “manceba”, que

também passaria no século XVIII a ser sinônimo de “barregã”, poderia referir-se

anteriormente à mulher envolvida em uma relação extraconjugal na qual era tida como de

condição inferior ao homem em questão, seja por ser de uma camada social mais baixa,

meretriz, ou mesmo escrava. No Brasil, o termo “mancebia” manteve, até o século XVII, essa

ambiguidade no significado279

. Ronaldo Vainfas, por sua vez, chama a atenção para a

importância de situar melhor a relação entre matrimônio oficial e concubinato, destacando

que, apesar dos casos de conjugalidade classificados como mancebia ou concubinato, em

muitos outros os tratos ilícitos referiam-se a relações de natureza variada, fugazes ou

duradouras, mas sem caráter conjugal e, dessa forma, seria preciso dimensionar melhor o

papel da mancebia na sociedade colonial280

. Nesse sentido, o autor também percorre a

trajetória do conceito de concubinato a partir da “tradição pagã greco-romana”, destacando

que “na História ocidental, o concubinato sempre foi, é certo, mais do que uma relação sexual

episódica, mas não parece ter se identificado com qualquer forma de casamento”281

.

Os pesquisadores têm apontado constantemente, para o século XVI, a relação entre

mancebia e escravidão282

. No que diz respeito a esse vínculo, a correspondência jesuítica já

foi exaustivamente analisada pela historiografia. Dessa forma, não é preciso que nos

detenhamos nas cartas para reafirmar o processo pelo qual a dominação dos senhores sobre as

escravas se estendia também à sexualidade. No entanto, para compreender a que os jesuítas se

referiam ao utilizar os conceitos de “manceba” e “amancebados”, é necessário analisar as

consequências terminológicas decorrentes desse vínculo entre mancebia e escravidão.

Partindo da centralidade deste vínculo, a palavra “amancebamento”, nesse período, serviria

para designar os tratos ilícitos entre brancos e suas escravas e, assim sendo, o termo

“manceba” guardaria parte do sentido ligado à condição social inferior da mulher em questão,

como indicamos anteriormente. Nessa formulação, cumprem papel de destaque as primeiras

cartas enviadas por Nóbrega ainda em 1549, ano de sua chegada ao Brasil, nas quais busca

apresentar o estado geral da terra. Nesse conjunto, há um trecho de uma carta datada de 9 de

278

TORRES-LONDOÑO, Fernando. A outra família: Concubinato, Igreja e escândalo na Colônia. São Paulo:

Edições Loyola, 1999, pp. 21-30. 279

Ibid., p. 27. 280

VAINFAS, Ronaldo. “Moralidades brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista”.

In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da vida privada no Brasil, vol. 1: Cotidiano e vida privada na

América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 237. 281

VAINFAS, Ronaldo, Trópico dos pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:

Campus, 1989, p. 72. 282

Id., “Moralidades brasílicas”, op. cit., pp. 230-4; TORRES-LONDOÑO, op. cit., pp. 31-46; SILVA, Maria

Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,

1984, pp. 36-8.

94

agosto que se tornou citação obrigatória para os historiadores que estudaram a mancebia na

colônia: “Nesta terra há hum grande peccado, que hé terem os homens quasi todos suas negras

por mancebas, e outras livres que pedem aos negros por molheres, segundo ho custume da

terra, que hé terem muitas molheres”283

.

Maria Beatriz Nizza da Silva aponta nesse trecho a distinção vocabular entre

“mancebas” e “mulheres”, referindo-se o primeiro termo à relação entre o senhor e a escrava,

e o segundo à “união entre o branco e a índia livre segundo o costume da terra”284

. Afirma a

autora:

A interpenetração entre as práticas matrimoniais indígenas e as práticas

transplantadas da metrópole antes da reformulação tridentina criava

situações complicadas, que os padres descreviam, a maior parte dos casos,

genericamente como situações de concubinato ou de mancebia. Por vezes,

contudo, eles próprios distinguiam claramente entre uma situação de

autêntica mancebia (o branco e suas escravas índias) de uma outra de união

com índias livres “segundo o costume da terra”285

.

Torres-Londoño, por sua vez, aponta o uso de “mancebia” no século XVI para

“caracterizar os tratos que os colonos portugueses estabeleceram com as índias, negras e

mestiças”286

, na qual se destacaria igualmente o amancebamento entre senhor e escrava.

Ambos, entretanto, indicam a polissemia do termo, já que também seria usado para classificar

diversas outras “situações complicadas”, ou relações apenas entre indígenas287

. Consideramos

importante, no entanto, esmiuçar mais essa polissemia, pois a separação entre um uso

genérico, relativo a diversos tratos ilícitos, e um outro estrito, referente à relação entre

senhores e escravas não parece corresponder aos critérios mais caros aos missionários jesuítas

em seu ministério entre brancos e índios. A leitura da Informação dos Casamentos dos Índios

do Brasil, escrita por Anchieta288

, indica que a relação entre um uso mais estrito e um mais

genérico está presente mesmo quando voltado apenas para a descrição dos indígenas. A

utilização de “amancebados” também para indígenas batizados aparece em outras cartas,

como na do próprio Anchieta, de 1562289

; em duas do irmão António de Sá, a primeira

283

MB I, p. 119. 284

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo, 1984, p. 36. 285

Ibid., p. 37. 286

TORRES-LONDOÑO, Fernando. A outra família: Concubinato, Igreja e escândalo na Colônia. São Paulo:

Edições Loyola, 1999, p. 28. 287

M. B. Nizza da Silva, por exemplo, aborda a diferença da classificação das relações indígenas entre mancebia

ou casamento de acordo com o argumento de que a carta tratasse (op. cit., pp. 34-5). 288

ANCHIETA, José de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de

Anchieta, S.J. (1554-1594). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, pp. 448-456. 289

MB III, p. 455.

95

enviada do Espírito Santo em 1559290

e a segunda, enviada de Pernambuco em 1563291

, na

qual utiliza “amancebados” para escravos batizados e não batizados; e na escrita em 1568

pelo padre Baltasar Fernandes, de São Vicente.

O trecho de Nóbrega anteriormente citado parece, dessa forma, ter uma preocupação

mais descritiva que analítica. De fato, “ter por mulher” poderia ser utilizado também para

descrever a situação de amancebamento entre senhor e escrava, como sugere o uso que lhe dá

o irmão Pero Correia na carta escrita de São Vicente em março de 1553: “Era costumbre

antiguo en esta tierra los hombres casados que tenían 20 y más esclavas y índias tenerlas todas

por mugeres”292

. Entre a pluralidade dos sentidos que fazem parte do uso desses termos,

torna-se ainda mais importante contextualizar o uso que se lhes dá em cada carta. A partir daí,

algumas distinções clareiam os critérios de combate a esse pecado movido pelos membros da

Companhia. A utilização mais estrita do termo “amancebado” tem como referência a ausência

do sacramento do Matrimônio, tanto para brancos quanto para índios. Portanto, quando os

missionários descrevem o costume tão comum de os senhores terem suas negras por

mancebas, como vimos, especificam com maiores detalhes. Quando usado de forma mais

geral, correspondendo a “trato ilícito”, seja o esporádico ou o continuado, ainda mantém o

vínculo com o sacramento, mas com um valor descritivo menos preciso. Já a palavra

“manceba” apresenta, na maioria das vezes, ainda que nas entrelinhas, uma qualificação

inferiorizada daquela mulher específica e, neste sentido, é constante nas descrições dos

senhores brancos amancebados com índias escravas. No entanto, como nos mostra a

utilização de Anchieta, pode também descrever uma relação de uma cativa de guerra, índia ou

mestiça, com um indígena293

.

A recorrência do tema da mancebia na correspondência jesuítica indica, além da

grande incidência da prática, o papel central que ela ocupa na relação dos missionários com os

colonos. Como vimos, é constante na epistolografia jesuítica apresentar um estado geral das

coisas, que poderia ser acompanhado ou não de algum exemplo representativo. Quando se

apresenta o estado geral em que se encontram os colonos, a mancebia figura, na maioria das

vezes, como principal acusação. As primeiras cartas enviadas da capitania de São Vicente que

chegaram até nós – uma de Leonardo Nunes em fins de 1550, seguida de um conjunto de sete

cartas escritas por ele e por irmãos, provavelmente todas em junho de 1551 – indicam já essa

290

MB III, p. 47. 291

MB IV, p. 37. 292

MB I, p. 438. 293

ANCHIETA, José de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de

Anchieta, S.J. (1554-1594). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 450.

96

tendência294

. Tomadas em conjunto, estas cartas exprimem o grande interesse que os

inacianos tinham nos índios, fornecendo descrições e afirmando constantemente a boa

disposição destes para o batismo; mas, por outro lado, revelam que grande parte do tempo era

ainda dedicada ao trabalho com os brancos. Neste trabalho, a mancebia ocupava um papel de

destaque.

Na carta de 1550, enviada por Leonardo Nunes aos padres e irmãos de Coimbra295

,

predomina o caráter edificante, com a inclusão de episódios consoladores – para usar o

vocabulário da Companhia – na narrativa mais longa do trajeto que o padre realizou da Bahia

até a Capitania de São Vicente, passando por Porto Seguro e Espírito Santo, com o objetivo

de restituir à sua terra alguns índios injustamente cativos. Leonardo Nunes fornece uma

descrição a respeito de cada uma das localidades em que passou, a qual intercala um estado

geral das coisas com narrativas factuais do que realizou durante sua estadia. Sobre a capitania

de São Vicente, escreve o missivista:

[...] todos quasi los habitadores destas três villas estavan en gravissimos

peccados offuscados assí casados como solteros, y mucho más los

sacerdotes, los començó de moyer y traer a tal confusión y sentimiento de

sus peccados, que todos trabajavan por se apartar dellos, unos casándose con

las mugeres y índias que tenian, otras echándolas fuera, y otros buscándole

maridos, otros determinando de vivir castamente con sus mugeres, y todos

con grandes espantos de sí, viendo su ceguedad y peligro en que estavan

tanto tiempo avia, porque avia muchas almas que no avían sido confessadas

treinta o quarenta años avia, y estavan en peccado mortal, y esto

públicamente296

.

O relato consiste, como se vê, em uma contraposição entre o estado negativo em que

se encontravam os colonos e o resultado positivo que a ação do jesuíta causou. É a mesma

estrutura utilizada para descrever, um pouco antes, a situação da capitania do Espírito Santo:

“En esta Capitania La mayor parte de la gente estava en pecado, y quiso nuestro Señor que

con mi llegada se començassen a mover”. “Mover” significava apartar-se de “pecado mortal”,

como os “dos hombres [que] se casaron com índias que tenían em casa”297

. A persistência do

problema nos anos posteriores indica que esse “movimento” não se realizava com a

intensidade apontada por Leonardo Nunes. Considerando o caráter subjetivo do relato, fica

praticamente impossível recuperar se a admoestação do missionário causou um ímpeto inicial

294

MB I, cartas 18, 23, 24, 25, 26, 27, 28 e 29. 295

Serafim Leite indica que a carta parece ter sido dirigida primitivamente ao padre Simão Rodrigues, por causa

de uma indicação no corpo texto. Dessa forma, a destinação para os padres e irmãos de Coimbra poderia ser uma

alteração do tradutor. Esta questão não afeta a análise, uma vez que a evocação de Simão Rodrigues poderia ser

simplesmente indireta e na carta predomina o tom edificante assim como naquelas destinadas a padres e irmãos

(MB I, p. 201). 296

MB I, p. 207. 297

MB I, p. 203.

97

nos colonos, que depois arrefeceu; se ele deixou-se levar por atitudes apenas exteriores; ou o

quanto a necessidade de construir uma narrativa edificante condicionou as informações,

mesmo que de forma não intencional. O que podemos apontar, de fato, é que a apresentação

dos resultados positivos no combate à mancebia cumpria na estrutura retórica dessas cartas o

papel de edificar espiritualmente, além de divulgar, para dentro e fora da Companhia298

, os

bons frutos da presença da ordem no Brasil.

Alguns casamentos entre brancos e índias amancebados parecem ter de fato

ocorrido, como aponta a próxima carta do próprio Leonardo Nunes, de junho de 1551, na qual

esse resultado positivo traduz-se em termos numéricos: “Algunos hombres de los que estavão

amancebados com índias se casavan con ellas, que serán 15 ó 16 y aora andam otros 7 ó 8

para hazer lo mismo”299

. Mesmo ressaltando que havia “muchos muy endurecidos”, o foco

direciona-se aos bons resultados, sendo também essa referência parte de um balanço positivo

mais geral, de caráter edificante, que interpreta e comunica esses sucessos pontuais como um

movimento em direção à piedade. Nesse balanço sobre o trabalho com os colonos, trata ainda

de temas como o fim de “los saltos que los christianos hazião en los gentiles de la costa”; “el

comer carne” na quaresma, que “es muy emendado”; o “darles [aos índios] armas, que era

muy general hazerlo” – e então se corrigia –; e os juramentos, que também estariam “muy

emendados, porque jurão poco y se reprehenden unos a otros quando juran”300

. A seguir, o

missionário passa a tratar dos indígenas. O que temos, portanto, é um elenco dos problemas

identificados nos colonos de São Vicente, todos sendo resolvidos pelo trabalho da

Companhia, sem deixar de destacar que “era tan grande la perditión de las animas, que aún ay

mucho que hazer”301

. Este tom otimista seria bastante frequente nas cartas edificantes dos

primeiros anos, e podemos encontrá-lo de forma semelhante nas primeiras cartas do Padre

Manuel da Nóbrega302

.

No trecho anteriormente transcrito, da carta enviada em 1550 por Leonardo Nunes,

não se observa, nem marginalmente, referência a resistências por parte dos colonos, como

apareceria na segunda, já que o missivista utiliza o absoluto “todos” para mostrar a

intensidade do movimento piedoso de afastamento da mancebia. Encontramos essa indicação

298

Lembrando que essa carta circulou em tradução italiana nas coletâneas impressas em Roma e Veneza (MB I,

p. 201). 299

MB I, p. 233. 300

MB I, p. 234. 301

MB I, p. 234. 302

Cf., por exemplo, trecho da carta de 9 de agosto de 1549: “[...] e huns se casão com algumas molheres se se

achão, outros com has mesmas negras, e outros pedem tempo para venderem as negras, ou se casarem. De

maneira que todos, gloria ao Senhor, se poem em algum bom meo”. A seguir relata o que seria a única exceção

(MB I, p. 120, grifo nosso).

98

somente mais ao final da carta303

, quando o padre apresenta um relato de suas próprias

atividades. Nessa espécie de “relatório” individual, têm menos destaque as atividades em

concreto do que a demonstração de prudência e alinhamento com a postura ministerial

característica da Companhia, dando origem a formulações mais abstratas e vagas, como:

“ejercitándome em otras obras pías, buscando en todo la salvación de las animas” –

lembrando que a Companhia entendia seu ministério justamente como ajuda de almas.

Continua o autor: “Y no con poco trabajo por ser solo [único padre, os outros em São Vicente

nesse momento eram irmãos], y por la persecución de algunos deste puerto, porque de uma

parte fui persiguido de algunos amancebados por los querer apartar del pecado”, tratando mais

das condições difíceis de seu trabalho e, portanto, de sua firmeza, que da situação dos

colonos. A referência a essa “perseguição” sofrida por Leonardo Nunes em São Vicente, que

desponta discretamente no relato, é semelhante à narração do episódio em que João Ramalho

e seus filhos teriam-no agredido em Piratininga pelo mesmo motivo, feita pelos irmãos Pero

Correia e Diogo Jácome, em 1551304

.

O mesmo trecho permite-nos ainda identificar outros elementos da prática da

mancebia e da forma como os jesuítas interpretavam-na e combatiam-na. Primeiramente, é

bastante representativo do que analisamos anteriormente em relação às problemáticas

terminológicas e do que estavam os inacianos combatendo de fato, uma vez que trata dos

“gravíssimos peccados” 305

, sem utilizar nenhum conceito específico, como “amancebamento”

ou “manceba”. Ao descrever como os colonos estavam se “apartando” dos ditos pecados,

fornece-nos especularmente um elenco dos comportamentos que estavam sendo combatidos.

Na passagem “unos [estavam] casándose con las mugeres y índias que tenían” ou “echándolas

fuera”, podemos ver uma condenação das relações com coabitação, como sugere a solução de

lançá-las fora. Por outro lado, o par “mugeres y índias” poderia significar “índias livres e

escravas”, por analogia, ou simplesmente mulheres mestiças e índias. Qualquer que seja o

sentido que lhes deu o missivista, podemos ver que a condenação das relações com escravas e

não escravas apareciam correlacionadas ou, ao menos, condenadas no mesmo nível. A seguir,

com a passagem “determinando de vivir castamente con sus mugeres”, podemos observar a

condenação dos tratos ilícitos de qualquer natureza, em uma construção que poderia incluir as

relações episódicas com as escravas – provavelmente a mais frequente –, assim como

qualquer tipo de adultério.

303

MB I, p. 209-10, para todo o trecho a seguir. 304

MB I, p. 222 e 243. 305

MB I, p. 209-10, para todo o parágrafo.

99

As cartas provenientes de São Vicente de que tratamos descrevem a mancebia como

corrente em toda a capitania, uma vez que estão, como dissemos, apresentando seu estado

geral. Ainda que grande parte das descrições refira-se especificamente à vila de São Vicente,

não há, nessas primeiras cartas, uma diferenciação, quanto a esse pecado, entre os povoadores

do Campo e da costa. Podemos, de acordo com essa tendência, encontrar uma utilização do

caso de João Ramalho, povoador do Campo, para descrever exemplarmente o que seria a

situação generalizada dos costumes dos colonos em toda a capitania, como faz o irmão Diogo

Jácome306

.

2.3. Administração de sacramentos

A relação dos colonos do planalto paulista com a Igreja católica, no que tange à

liturgia, aos sacramentos ou à malha paroquial, dificilmente é analisada por meio de um

tratamento sistemático das informações disponíveis. Selecionando uma ou outra alusão

documental, conclui-se, às vezes apressadamente, que os moradores da região estavam

afastados da comunhão da Igreja ou, por outro lado, que tudo corria na mais perfeita

normalidade. O que sabemos a respeito deste tema está profundamente marcado pelo que

veicularam os textos jesuíticos. É sobre esse problema que nos debruçaremos no presente

tópico.

O período de que nos ocupamos é caracterizado pela exclusividade jesuítica no

planalto. Os padres da Companhia eram os únicos a quem os colonos podiam recorrer para

receber os sacramentos. Dessa maneira, entender a relação dos colonos com a prática

ministerial jesuítica é, em larga medida, entender sua relação institucional com a Igreja. É

necessário, contudo, esclarecer alguns pontos da relação de Santo André da Borda do Campo

e São Paulo com a administração eclesiástica presente na costa vicentina.

Nosso objetivo não é apresentar um quadro descritivo da atividade pastoral da

Companhia junto aos colonos, como no trabalho até hoje mais completo sobre o tema,

realizado pelo padre Serafim Leite307

. Temos buscado demonstrar, com nossa análise, os

problemas que a natureza da documentação coloca a uma reconstrução factual tal qual a

306

MB I, p. 243. 307

LEITE, Serafim, S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portugália; Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1938, Tomo II, Livro III, Capítulo 1, pp. 269-98.

100

desenvolvida na obra do historiador jesuíta. Propomos aqui uma análise da maneira como a

correspondência apresenta o tema da administração de sacramentos aos colonos, dialogando

criticamente com o viés institucional dos documentos e cotejando as informações com as

fornecidas pelas atas da Câmara da vila de São Paulo.

O sacramento do Matrimônio, um dos que aparecem mais frequentemente nas cartas,

foi já analisado no tópico anterior, em sua relação com a prática da mancebia e o combate que

lhe moveram os missionários jesuítas. Consideramos mais conveniente tratar separadamente

esse sacramento pela grande importância do tema na historiografia e pelas questões

específicas que a descrição da mancebia apresenta nessa documentação, como vimos. O

enfoque do presente tópico na confissão e comunhão justifica-se por seu destaque nas cartas,

fruto da importância a elas atribuída no ministério da Companhia de Jesus.

A administração de sacramentos ocupava um lugar importante no ministério jesuíta,

ainda que houvesse uma ênfase maior nos ministérios da palavra e obras de misericórdia308

. O

Instituto da Companhia determinava que os membros não deveriam assumir a condição de

pastores de paróquias. No entanto, eram autorizados a administrar os sacramentos permitidos

aos simples sacerdotes, o que excluía a Confirmação e as Ordens, reservados aos bispos.

Entendiam os inacianos que faria parte de seu ministério administrar a Eucaristia e a

Penitência ordinariamente, mas o Batismo, o Matrimônio e a Extrema-unção somente em

ausência de párocos309

.

O sacramento da Penitência, que “requeria a confissão dos próprios pecados”,

adquiriu primazia em relação aos demais no ministério jesuíta310

. Inácio de Loyola foi

defensor da prática frequente da confissão, bem como da recepção mais frequente da

Eucaristia. A necessidade da confissão para obter o perdão dos pecados era já defendida por

teólogos medievais, e a prática crescia em importância no século XVI, sendo comum o uso de

manuais de confissão311

. Os jesuítas deram particular ênfase ao aspecto consolador da

confissão, vista como uma oportunidade de orientação, advertência e conforto para o

penitente312

. Este caráter consolador do sacramento é bastante presente nos relatos epistolares

do Brasil.

308

O’MALLEY, John W. Os primeiros jesuítas. Tradução Domingos Armando Donida. São Leopoldo, RS:

Editora UNISINOS; Bauru, SP: EDUSC, 2004, p.211. 309

Ibid., pp. 211-2. 310

Ibid., pp. 140-1; 311

Ibid., p. 214; EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o Pensamento político moderno: Encontros

culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, p. 39. 312

O’MALLEY, op. cit., pp. 220-2.

101

Em relação ao trabalho missionário com os indígenas brasileiros, as narrativas

epistolares dão grande destaque, ao lado da Penitência e da Eucaristia, aos sacramentos do

Batismo e do Matrimônio. Este conjunto estava na base da estratégia missionária de

conversão do gentio. Relatando as atividades dos jesuítas na Bahia, José de Anchieta assim

descreve o trabalho com índios e africanos das fazendas, engenhos e paróquias:

O metodo que se adota nestas missões, é ensinara e explicar a doutrina cristã

aos Indios e Africanos reunidos em um lugar, batizar, ouvir-lhes as

confissões, separá-los das concubinas e sujeitá-los ás leis do matrimonio: o

que nesta provincia é trabalho quotidiano, necessario e utilissimo á salvação

das almas313

.

Em relação às povoações dos portugueses, como mencionamos anteriormente, os

jesuítas poderiam, onde não houvesse presença de párocos, suprir as necessidades pastorais da

população, ainda que se buscasse evitar essa situação. O caso das vilas de Santo André da

Borda do Campo e de São Paulo de Piratininga situa-se justamente nessa condição.

Entretanto, visto que raramente essa atividade é mencionada na correspondência, além de ser

abordada a partir de condicionamentos institucionais e formais particulares, analisados ao

longo da dissertação, é fundamental que não se tome arbitrariamente trechos singulares como

norma cotidiana. Antes que descrever o cotidiano pastoral no planalto paulista, interessa-nos

identificar alguns dos elementos envolvidos na relação dos jesuítas e colonos com os

sacramentos, as cerimônias e a estrutura eclesiástica.

Afonso Taunay considera que, no período de exclusividade pastoral da Companhia

na vila de São Paulo, não ficavam os moradores desassistidos, posto que “no Colégio de

Piratininga, numerosos sacerdotes jesuítas havia, que facilmente davam conta do serviço da

restrita cura de almas”314

. Esta afirmação, contudo, não é desenvolvida em linhas menos

generalistas e, mesmo sem apresentar a sua fundamentação, podemos conjecturar se o célebre

historiador não estaria ecoando a maneira vaga com que as cartas jesuíticas apresentaram o

tema. Há alguns questionamentos de importância a serem colocados a uma afirmativa como

esta.

Em primeiro lugar, o que poderia significar “dar conta” em cada uma das

perspectivas envolvidas (jesuítas e colonos)? Se pensarmos na dimensão política (no sentido

do viver em uma comunidade urbana) de atividades como sepultamento, Batismo,

313

ANCHIETA, José de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de

Anchieta, S.J. (1554-1594). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 399. 314

TAUNAY, Afonso de E. São Paulo nos primeiros anos (1554-1601): ensaio de reconstituição social; São

Paulo no Século XVI: história da vila piratiningana. Coordenação de Paula Porta. São Paulo: Paz e Terra, 2003

[1920, 1921], p. 58.

102

Matrimônio, festas e procissões, missas etc., pode-se tentar averiguar se os jesuítas atendiam

suficientemente a estas necessidades da comunidade. Todavia, mesmo cumprindo estas

tarefas, não é dessa maneira que os jesuítas entendiam seu próprio ministério, ao qual estas

atividades representavam um empecilho, e certamente não é a elas que aludem em sua

correspondência quando afirmam fazer “bom fruto” com os portugueses. Em segundo lugar, é

necessário questionar como a frequência à igreja da Companhia se relacionaria à dinâmica de

ocupação espacial da região, visto como as atividades agropastoris afastavam os portugueses

do núcleo murado, preferencialmente voltado às atividades administrativas e cerimônias

religiosas, ainda que o predomínio das atividades agrárias causasse certa indefinição quanto

aos limites físicos entre o meio rural e o propriamente urbano315

.

Serafim Leite, tratando do Brasil em conjunto, também destaca o zelo ministerial dos

jesuítas para com a população branca, tanto de maneira geral quanto especificamente nos

lugares em que não havia pároco. Porém, também em seu texto, essa afirmação se limita a

reafirmar a maneira vaga com que os missionários relatavam sua própria atividade entre os

colonos. Nesse sentido, afirma: “Os Padres confessavam todo o género de pessoas. Mas de

modo particular os humildes, índios e negros. Não descuravam contudo os brancos, quando o

pediam”316

. O autor utiliza uma citação que indica o bom resultado da atividade ministerial

entre os portugueses, isolada de seu contexto narrativo, para ratificar a própria avaliação da

carta.

O fruto entre os próprios Portugueses fêz-se sentir. Vicente Rodrigues,

escrevendo em 1552, diz que os “brancos ganham o jubileu com muita

devoção”. Havia práticas à sexta-feira, “onde vem muita gente e o

Governador com tôda a gente principal, nos quais há muita emenda na vida e

exemplo: não juram, e se escapa alguma, olham para trás, para ver se

ouvem”317

.

Não faltam, como vimos no capítulo anterior, referências contrárias, isto é, do pouco

fruto obtido com os portugueses. No texto de Serafim Leite, este tema é incluído na descrição

dos vícios dos colonos, aos quais não cediam os inacianos. Dessa forma, na obra apologética

315

MORSE, Richard M. Formação histórica de São Paulo (de comunidade à metrópole). São Paulo: Difusão

Européia do Livro, 1970 [1954], p. 30; SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.) et al. História de São Paulo

colonial. São Paulo: Editora UNESP, 2009, pp. 35-6. Sérgio Buarque de Holanda analisa o processo da ocupação

e exploração de terras no planalto desde o final do século XVI, apontando também para o século posterior a

ausência de missa e doutrina em função do afastamento do núcleo urbano (“Movimentos da população em São

Paulo em meados do século XVIII (sic)”, Revista do IEB, n.1, 1966, pp. 55-111). 316

LEITE, Serafim, S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil, tomo II. Lisboa: Livraria Portugália; Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1938, p. 279. 317

Ibid., p. 270.

103

do autor, o tema da administração de sacramentos entre os portugueses foca-se nos bons

resultados ou na diligência dos missionários em combater os vícios318

.

As alusões epistolares à atividade pastoral entre os habitantes da vila de São Paulo

estão centradas na indicação de não possuírem pároco próprio. No documento intitulado

“Memorial das cousas que o P.e Gregorio Sarraõ ha propuesto a N. P.

e Geral cõ la respuesta

de su Paternidad. año .76.”319

, que pede esclarecimento acerca de diversas questões

envolvendo o ministério jesuíta no Brasil, aponta-se o seguinte em relação à vila de São

Paulo: “En Piratininga esta una uilla de blancos, y por no tener cura, los P.es

exercitan este

officio, y por esta cauza se entierran en nra’ Iglesia los de aquella Villa”320

. O documento é

um conjunto de dúvidas referentes à maneira de proceder no Brasil, daí a objetividade do

tratamento e a ausência de mais informações. A resposta indicava a necessidade de

providenciarem pároco, à qual se acrescenta à margem, em data posterior: “ja o te’”.

Destacamos ainda o interessante pormenor de que, dentre todas as atividades que se poderia

incluir para indicar o caráter praticamente paroquial assumido pela igreja, Gregório Serrão

cita o sepultamento na igreja, que mais destacaria, em seu entender, esse aspecto.

No interior da estrutura formal e do repertório temático das cartas regulares não

havia muito espaço para o cotidiano praticamente paroquial do atendimento jesuíta a

moradores de uma pequena vila sem pároco. Algumas indicações a respeito da frequência e da

maneira com que se atendia aos colonos de São Paulo são fornecidas por outras modalidades

de escritos, também jesuíticos, como as informações e os relatos de viagens, construídos a

partir de critérios diversos. Em uma Informação da Provincia do Brasil para nosso Padre de

1585, atribuída a Anchieta, afirma-se que a vila de São Paulo “não tem cura nem ha outros

sacerdotes senão os nossos, nem os Portugueses os querem aceitar” e, dessa forma, os jesuítas

eram “como curas dos Portugueses e lhes administram todos os sacramentos, são mui amados

de todos e como pais daquela gente”321

. Já o relato de viagem de Fernão Cardim, dá a

entender que os moradores compareciam regularmente à missa do domingo, além de

acrescentar uma listagem das atividades realizadas.

318

LEITE, Serafim, S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil, tomo II. Lisboa: Livraria Portugália; Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1938, p. 280. 319

ARSI, Bras. 2, ff. 24-6. O título está riscado, e acima se atribui em anotação a proposição do memorial ao

provincial Inácio Tolosa. 320

Ibid., 24. O trecho está transcrito em grafia atualizada em LEITE, Serafim, S. J. História da Companhia de

Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portugália; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938, Tomo I, p. 313, mas

recorremos ao original para compreender seu contexto narrativo. Mantivemos a grafia do documento para seguir

o padrão adotado no restante do trabalho. 321

ANCHIETA, José de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de

Anchieta, S.J. (1554-1594). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 423-4.

104

Vão aos domingos á igreja com roupões ou berneos de cacheira sem capa. A

villa [...] não tem cura nem outros sacerdotes senão os da Companhia, aos

quaes têm grande amor e respeito, e por nenhum modo querem aceitar cura.

Os padres os casam, baptisam, lhes dizem as missas cantadas, fazem as

procissões, e ministram todos os sacramentos, e tudo por sua caridade: não

tem outra igreja na villa senão a nossa. Os moradores sustentam seis ou sete

dos nossos, com suas esmolas com grande abundancia322

.

Tomando a descrição inteira de Cardim acerca da vila de São Paulo, fica claro o

predomínio do trabalho com os portugueses da vila em relação aos índios aldeados em

Pinheiros e São Miguel. A função praticamente paroquial da igreja jesuítica pode ser

visualizada também, de forma indireta, nas atas da Câmara da vila de São Paulo:

Aos coatro dias do mes de abrill de mill e quinhentos e setenta e sinquo anos

as portas da igreja desta villa de san paullo o sair da misa estando junto a

mor parte do povo desta villa hi pr pero fřz p

rtr

o deste cõselho foi llancado

preguão em alltas vozes ẽ q~ apreguoava o q

~ os senhores vreadores tinhão

mandado pr termos fazer no llivro da camara

323.

A referência à “igreja desta villa”, justamente por consistir aqui em uma simples

indicação técnica do pregão, revela o entendimento mais prosaico que se poderia ter da

relação dos moradores com a igreja da Companhia. Sequer é mencionado o fato de se tratar da

igreja dos jesuítas, irrelevante para o que se registrava. A igreja e a missa aparecem no trecho

com a naturalidade do fato cotidiano, raramente visualizada nas referências jesuíticas em

relação às atividades com os colonos nesta vila. A regularidade da presença dos moradores na

missa está indicada não apenas por nessa ocasião estar ali junta a “mor parte do povo desta

villa”, mas pela própria frequência das indicações de que se tratava de lugar ordinário para se

apregoar as posturas da Câmara324

, sem considerar ainda os casos em que não se indica o local

do pregão, que poderia ser o mesmo. Em uma ocasião, essa regularidade vem explícita: “[...]

ao domingo ao sair da igreja como he custume nesta dita vila lanso diguo apreguoarão as

posturas”325

.

Há um problema, contudo, na constatação dessa regularidade semanal de

comparecimento às missas. A dinâmica de ocupação espacial da região no período, com o

predomínio da vida rural e o núcleo urbano voltado preferencialmente às atividades

322

CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Introduções e notas de Baptista Caetano, Capistrano

de Abreu e Rodolpho Garcia. Rio de Janeiro: J. Leite & Cia., 1925, p. 356. 323

ACVSP, 04/04/1575. 324

Além da expressão “ao sair da misa”, presentes também nas atas de 07/05/1576; 22/09/1576 e 10/04/1588,

utiliza-se também “no adro da igreja desta vila” (02/04/1580), “a frente da igreija” (23/05/1580) e “ao sair da

higreja” (21/10/1584). 325

ACVSP, 06/10/1583. A afirmação também é feita na ata de 01/12/1583.

105

administrativas e religiosas326

, influenciou a regularidade da frequência à igreja por parte dos

moradores que se estabeleciam em locais mais afastados: “[...] os ditos moradores por rezam

de as não poderem aproveitar vam lavrar daqui tres e quatro legoas de q~ os ditos moradores

resebem muita perda outrosim por rezam de lavrarem logem deixam de vir algŭas vezes de

virem a misa [...]”327

. Depreende-se da informação que as dificuldades materiais

influenciavam no cotidiano religioso e, ao mesmo tempo, que a presença nas cerimônias

religiosas era alvo de atenção e controle pelos oficiais da Câmara.

Nesse sentido, também a presença nas procissões era controlada, podendo levar à

cobrança de multas:

[...] loguo na dita camara requereo o perqurador q~ faltaram na prisiam de

santa sabel a marquos fȓzo velho e marquos fȓz o moso e joam fȓz filho de

joam francisco digo joam ramalho q~ estes não viherao a prisiam q

~ os

condenasem nas pena q~ el rei da os quais loguo os condenarão a cada hŭ em

dozentos res e mandarão pasar mãdado pera serẽ penhorados [...]328

.

Durante o período em que a igreja da Companhia de Jesus funcionou como igreja

“desta villa” e os jesuítas eram “como curas dos portugueses”, os moradores de São Paulo

gozavam de relativa regularidade em relação à administração dos sacramentos e celebrações,

malgrado o caráter fragmentário das informações deixe algumas questões em aberto, como

indicamos. Todavia, o período posterior à transferência de Santo André da Borda do Campo

para junto do colégio de Piratininga, em 1560, representa um momento bastante diverso na

história deste povoado. Além do afluxo dos moradores de Santo André, a população indígena

reunida em torno do colégio estabelecia-se nos aldeamentos de Pinheiros e São Miguel329

,

transformando efetivamente o povoado de um núcleo predominantemente indígena em uma

vila de portugueses.

Antes da transferência de Santo André da Borda do Campo para o sítio do colégio, e

antes mesmo da fundação da casa de Piratininga, qual era a situação destes colonos e

mamelucos do Campo? Em relação ao período de convivência entre a vila de Santo André e a

casa, depois colégio, de Piratininga, indica-se também a assistência dos jesuítas, a partir de

uma alusão rápida de Anchieta. Afirma Serafim Leite:

A vila de Santo André não teve pároco nem padre algum. Depois da

fundação de S. Paulo, iam lá os Jesuítas aos domingos e dias santos.

326

MORSE, Richard M. Formação histórica de São Paulo (de comunidade à metrópole). São Paulo: Difusão

Européia do Livro, 1970 [1954], p. 30. 327

ACVSP, 27/02/1580. 328

ACVSP, 16/07/1580. 329

PETRONE, Pasquale. Aldeamentos paulistas. São Paulo: Edusp, 1995, p. 114.

106

Celebravam missa, administravam os sacramentos, prègavam aos brancos,

doutrinavam os Índios330

.

Considerando-se, todavia, que, mesmo com os moradores estabelecidos em São

Paulo, a dinâmica de ocupação do espaço criava dificuldades para o comparecimento semanal

à missa, podemos questionar se, com a vila distante e os moradores espalhados pelas

fazendas, a frequência era grande. De qualquer maneira, há uma questão mais importante. Os

campos de Piratininga estavam sob a jurisdição do padre Simão de Lucena, vigário de São

Vicente331

. Não há menção a contatos frequentes entre o vigário e a população de Serra

Acima mas, ao que parece, a ideia de isolamento também condicionou essa conclusão. Há,

por exemplo, uma carta do irmão Pero Correia que narra o episódio em que o “alguazil

[meirinho] de los clérigos”, tomou uma escrava da índia amancebada com Ramalho (Bartira)

por “estar tanto tiempo en aquel y en otros pecados”332

. Não está explicitado se João Ramalho

e sua mulher estavam no litoral, ou se o “alguazil” subiu ao planalto. Em qualquer uma das

possibilidades, há efetivamente contato. Levando em conta o quanto discutimos rapidamente

acerca da ideia de isolamento, consideramos lícito questionar se não havia algum tipo de

contato esporádico com o vigário de São Vicente antes de os jesuítas assumirem a cura

espiritual dos colonos.

Muito do que se escreveu acerca da situação do colono do planalto no que tange à

administração eclesiástica baseia-se na primeira carta de São Vicente, enviada por Leonardo

Nunes em novembro de 1550333

. Trata-se de uma carta importante para vários dos temas que

tratamos ao longo da dissertação.

Ela se inicia por um exordium que, além das tradicionais fórmulas de humildade e

obediência (benevolentiae captatio) pede que se “encomiende a Dios esta perdida gentilidad”,

destacando desde o início o fundamento da atividade missionária. Ainda como parte do

exordium, resume o assunto das cartas anteriores: o pecado “muy arraygado y malo de

arrancar” que era ter muitos índios injustamente cativos. Segue-se um relato de suas

atividades no Espírito Santo e em São Vicente. Os dois relatos que apresenta destacam o

grande fruto alcançado nas populações dos dois locais devido à sua presença. Descrevendo os

bons frutos, apresenta indiretamente em que entendia constituir o ministério jesuíta: confissão,

pregações, pacificação de conflitos, doutrina para escravos e portugueses. A descrição dos

330

LEITE, Serafim, S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil, tomos I. Lisboa: Livraria Portugália; Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1938, p. 282. 331

KUHNEN, Alceu. As origens da Igreja no Brasil: 1500 a 1552. Bauru, SP: EDUSC, 2005, 443. 332

MB I, pp. 435-6. 333

MB I, carta 18, pp. 200-10, para todas as citações a seguir.

107

bons frutos alcançados contrapõe a sua própria atividade à do vigário local, que aparece como

pouco zeloso de suas tarefas:

Continuavam con grandes desseos la doctrina y trabajavan mucho por la

aprender, y dizían unos a otros: “Este es el verdadero que Dios manda, pues

que no busca interés, sino enseñar a todos de balde las cosas de Dios” [...] Y

quando la postreta noche en que me avía de despedir dellos vino,

encomendéles que siempre perseverassen como lo avían hasta alli hecho, que

el Padre vicario los enseñaría como yo, porque me lo tenía assí prometido.

O padre Leonardo Nunes constrói assim uma “apologia” do modo de proceder

jesuíta, de como eles entendiam o próprio ministério e as vantagens em relação aos demais.

Em relação ao pecado da mancebia, indica também o bom fruto que realizava e a condição de

amancebado também dos sacerdotes. A seguir, descreve sua ida ao Campo, na passagem que

se tonou emblemática:

Aquí me dixeron que en el Campo quatorze o quinze leguas daqui, entre los

Indios estava alguna gente christiana derramada, y passávase el año sin oyr

missa y sin se confessar, y andavam en una vida de salvajes. Viendo esto

determiné de yr allá, tanto por dar remedio a estos christianos como por

verme con estos gentiles, los quales están más apartados de los christianos

que todas las otras Capitanías. [...]

Y yendo, en la postrera jornada topamos un mancebo con unas cartas para

mí, que me estavan esperando, porque ya tenían nuevas que yo desseava de

les yr a ver. Trabajé mucho con los christianos que allé derramados en aquel

lugar entre los Indios, que se tornassen a las villas entre los christianos, en lo

qual yo los hallé muy duros, mas en fin acabé com ellos que se ayuntassen

todos en un lugar y hiziessen una hermita y buscassen algún Padre que les

dixesse missa y confessasse. Pusiéronlo luego por obra y tomaron luego

campo para la iglesia. Gasté dos o tres días con ellos, y confessé algunos y

diles el Sanctissimo Sacramento.

Después desto nos fuimos dar con los Indios a sus aldeas que estavan quatro

o cinco leguas day. [...] También hallé allí algunos hombres blancos, y acabé

con ellos que se tornassen a los christianos.

Destacamos novamente aqui o que afirmamos anteriormente a respeito do

isolamento. O “mancebo”, que chega com umas cartas por saber de sua intenção de lá ir, não

parece corroborar muito a ideia de uma região isolada. Há, por outro lado, vários

questionamentos importantes a colocarmos a esse trecho.

Em primeiro lugar, o que poderíamos entender por “gente christiana derramada”? O

sentido mais rapidamente identificável é o de não estarem juntos em uma vila, já que com os

cristãos “derramados” ele trabalhou para que tornassem às vilas entre os cristãos. Pela

dificuldade em fazê-los tornar à costa, fez com que “se ayuntassen” e convenceu-os a fazer

uma ermida e buscar padre para rezar missa e confessar. Dessa forma, o que lhes falta é a

108

instituição política (vila) e a religiosa (igreja e padre). Ao que parece, não viviam esses

primeiros “christãos” na aldeia, já que é somente após permanecer três dias com eles que

foram encontrar os índios em suas aldeias, onde também havia cristãos. Podemos cogitar a

hipótese de que estarem derramados signifique que viviam em fazendas espalhadas pela

região, sem uma vila em que se oficiassem as cerimônias religiosas e se dispusesse das

instituições políticas. É apenas uma hipótese, mas em acordo com a tendência com que vai se

desenvolver a ocupação na região, mesmo após a fundação da vila de Santo André.

Por fim, porque Leonardo Nunes considera que esses cristãos viviam “entre los

Indios”, se as aldeias estavam em outro lugar? E porque considerava os índios “más apartados

de los christianos que todas las otras Capitanías”, se havia cristãos vivendo entre eles? Seria

apenas uma questão quantitativa? Se considerarmos, contudo, as categorias que o padre

utiliza, podemos propor outra hipótese. O “viver entre índios” ou “entre cristãos” poderia

referir-se à condição, antes que a uma referência à presença de um e de outro. Seria a ausência

ou presença da organização política, das celebrações religiosas e dos sacramentos que

definiria o que é viver entre índios ou entre cristãos. Vê-se então que Leonardo Nunes

considerava como critérios para se classificar o que seria uma “vida de salvajes” justamente

aqueles elemento que se procuraram incutir aos indígenas na política de aldeamentos: a vida

política, as leis, os sacramentos e as cerimônias. Não desconsideramos a efetiva adoção de

costumes indígenas, que, de fato, foi intensa e marcou profundamente a sociedade colonial.

Gostaríamos apenas de destacar o fato que o conceito de selvagem era também mobilizado

para interpretar ou descrever diferentes conflitos político-religiosos.

109

CONSIDERAÇÕES FINAIS

110

A “armadilha” envolvida em uma pesquisa que se volta à análise de uma prática

discursiva e de seus condicionantes é fechar-se na ideia de que “um texto é apenas a prova de

si próprio, das próprias categorias”334

. A nossa dissertação concentrou-se justamente na

análise das categorias e procedimentos formais que orientavam a atividade epistolográfica da

Companhia de Jesus, mas teve como pressuposto resguardar a dimensão referencial destes

textos. Em outras palavras, operamos com a convicção de que as cartas tinham algo a nos

informar acerca da vida cotidiana dos colonos, por pouco que fosse, e não apenas do que os

jesuítas escreveram a propósito dela. A essa altura, podemos estabelecer algumas relações

entre as diversas partes do trabalho e tecer algumas considerações finais a respeito de duas

questões principais: quais as relações concretas – políticas, religiosas e culturais – que estão

compreendidas na utilização das categorias e formatos textuais em questão? O que

efetivamente a correspondência informa a respeito da vivência religiosa dos colonos a partir

de nossa premissa epistemológica?

Comecemos pela segunda questão, tratada mais rapidamente, destacando um aspecto

fundamental da natureza dessa documentação: a voz (ou vozes) nela presentes. Carlo

Ginzburg debruçou-se sobre esse problema em relação à documentação inquisitorial. Esta

documentação é fruto de um diálogo entre duas culturas distintas, a do inquisidor e a do

acusado, com um evidente desequilíbrio de poder, real e simbólico335

. A voz em desvantagem,

contudo, pode ser identificada em algumas situações específicas em que o texto adquire um

caráter mais acentuadamente dialógico. Um interrogatório é mais suscetível a tais situações,

dada sua própria conformação, do que uma crônica, uma carta ou um tratado, mas, também

nestes últimos, o caráter dialógico pode se manifestar de maneira indireta.

Um procedimento similar tem sido aplicado à documentação missionária, da qual

fazem parte as cartas jesuíticas, por uma série de pesquisas voltadas ao processo de “mediação

cultural” necessariamente desenvolvido no “encontro”, também em desigualdade de forças,

entre europeus e indígenas, como discutimos em nossa introdução336

. O diálogo intercultural

presente na correspondência jesuítica é entre missionários e indígenas. Não há (ou somente de

forma muito indireta), por parte do missionário, o interesse analítico em relação aos costumes,

crenças e características dos colonos portugueses, como há em relação ao indígena (mesmo

que submetido a categorias prévias), à semelhança do que ocorre entre inquisidor e acusado.

334

GINZBURG, Carlo. “O inquisidor como antropólogo: Uma analogia e as suas implicações”. In: ______. A

micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand, 1991, pp. 203-14. 335

Ibid., 207-8. 336

Sem adentrar novamente esta discussão, indicamos aqui uma obra conjunta que sintetiza os principais

elementos desenvolvidos por essa corrente: MONTERO, Paula (org.). Deus na Aldeia: missionários, índios e

mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006.

111

Nesse sentido, procuramos, ao longo do trabalho, identificar sob quais condições a

correspondência os descreve.

Sendo assim, não podemos considerar a descrição dos costumes gentílicos, rituais ou

não, adotados pelos colonos como um elenco de práticas heterodoxas que os jesuítas

estivessem buscando identificar e combater. São, antes de tudo, peças que compõem a

imagem do civilizado que se torna selvagem, uma categoria interpretativa e retórica possível

naquele contexto e mobilizada em diversas situações conflituosas, indissociavelmente

religiosas e políticas. Apresentar os costumes gentílicos adotados por brancos ou mamelucos

a partir das narrativas epistolares equivale a fazer uma analogia indireta entre estes textos, no

que tange à presença de vozes de jesuítas e de colonos, e os processos inquisitoriais referentes

aos “desvios” surgidos no contexto intercultural brasileiro, como é o caso da famosa

Santidade de Jaguaripe, estudada mais pormenorizadamente por Ronaldo Vainfas337

. A

impressionante situação de ambivalência cultural dos mamelucos investigados neste processo,

trafegando com relativa desenvoltura entre o âmbito português e indígena338

, leva-nos

imediatamente a conjecturar o que havia de concreto nas descrições de Anchieta e Nóbrega a

respeito dos filhos de João Ramalho. Entretanto, individualizar o que é verdadeiro e o que é

retoricamente construído naqueles trechos não pode evitar um caráter arbitrário. Ao

aceitarmos o fato, verossímil, de que os mamelucos Ramalhos participassem de execuções

rituais ou seu descaso para com a Inquisição, somos metodologicamente compelidos a

também aceitar a acusação, bastante suspeita para uma época de ferrenha polêmica entre

católicos e protestantes, de que os franceses calvinistas do Rio de Janeiro haviam se

indianizado quase por completo. Delimitar essa lacuna e o campo do indecifrável, neste caso,

é fundamental para não reservar ao historiador o papel de propagador de categorias de

pensamento e indisposições políticas dos jesuítas.

O que esperamos ter demonstrado, em nossa análise, a respeito das relações culturais

entre brancos, índios e mamelucos é que as cartas, cotejadas com as atas da Câmara,

corroboram a tese de uma clivagem social para a configuração cultural do planalto, a despeito

da persistência da ideia do predomínio da mestiçagem e hibridismo cultural em certa

historiografia. Dito de outra forma: ainda que o objetivo dos missivistas fosse, muitas vezes, o

de apresentar brancos e mamelucos conjuntamente como selvagens, as cartas contêm

elementos não intencionais que possibilitam entrever a existência de um ambiente no qual a

337

VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia

das Letras, 1995. 338

Ibid., pp. 141-51.

112

identidade cristã (no sentido civilizacional) era mais claramente reconhecida, notadamente

através das instituições municipais e religiosas. Por não ser propriamente o foco de nossa

investigação, não procuramos abordar essa configuração social de maneira aprofundada,

apenas esboçamos alguns elementos presentes nas cartas que podem apontar direcionamentos

quanto ao tema. Pretendemos ter deixado claro, ainda, que o tema da mancebia recebia um

cuidado analítico maior na correspondência, fruto da centralidade deste “pecado” dentre os

vários que os jesuítas combatiam. Consideramos que se trata do ponto em que os colonos

mais “se abriram” à influência local.

Quanto à questão das relações concretas envolvidas na utilização das categorias e

formatos textuais da correspondência jesuítica, o resultado mais significativo é a constatação

da ligação entre a indicação da “vida de selvagens” apontada para alguns portugueses e os

elementos institucionais da vida civil, ligados à administração da vila e seus instrumentos.

Viver em meio aos índios e viver como selvagem significava, fundamentalmente, viver alheio

aos instrumentos civilizatórios europeus, dos quais não se pode dissociar o aspecto religioso

(civil e doutrinário ao mesmo tempo) e o cultural. De onde se conclui que, nos códigos

utilizados pelos jesuítas para interpretar a realidade colonial, dançar ao modo dos índios no

Rio de Janeiro calvinista era mais selvagem que dançar do mesmo modo para propagar a

“verdade” religiosa católica.

A atividade epistolográfica jesuítica, como a consideramos desde o início, não era

um reflexo da atuação da ordem no Brasil, mas parte fundamental dela. Uma das maneiras

como as cartas atuaram foi delimitando seu próprio ministério, sua própria política indígena,

sua atividade econômica etc., como o espaço legítimo da verdade cristã, em oposição aos

colonos e ao clero secular. O viés negativo com que o clero secular frequentemente figura na

correspondência jesuítica brasileira está ligado ao processo de afirmação do “modo de

proceder” da Companhia no seio da Igreja e para fora dela. A classificação da vivência

religiosa dos colonos do planalto paulista como selvagem ou de maus cristãos, muito presente

na correspondência jesuítica e na historiografia posterior, ainda que obscureça em alguma

medida o quanto podemos compreender sobre as características efetivas desse cotidiano

religioso, é bastante reveladora do processo por meio do qual a dimensão política da religião

delimita o espaço da legitimidade de costumes e crenças determinados.

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