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A Corrida dos Ratos

Brasil em guerra

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Rafael Alves Rezende

A Corrida dos Ratos

Brasil em guerra

Novembro

2015

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Capítulo 1

Origens

“Essa é a História Pós-Moderna”, começaria eu se essa fosse uma

disciplina oferecida na Universidade, mas não é o caso; esse relato não

tem a pretensão de ser objetivo ou científico, nem de convencer pela

comprovação de veracidade. Então, essa é apenas uma estória pós-

moderna e eu sou um sobrevivente da guerra civil que tomou algumas

partes do Brasil e esse relato é a minha interpretação dos fatos que

mudaram a história do meu país e também a história do mundo; digo a

história do mundo porque o mundo viu um homem bom chegar ao

poder, e isso nos tempos atuais é uma exceção de caso único, pelo

menos na minha concepção de intelectual universitário brasileiro, se é

que isso existe e apesar de eu mesmo ignorar a universidade. E essa já

é a minha interpretação da realidade. E, de fato, o que chamo de

realidade não é mais que as coordenadas simbólicas que determinam o

que sinto como realidade.

Além do fato de um homem bom ter chegado ao poder (coisa que

realmente só aconteceria com o uso da força, pois quando

dependíamos do voto só elegíamos os medíocres e os mais bem

assessorados pelas empresas publicitárias, sem considerar a farsa que

a democracia sempre foi, desde a Grécia antiga, que incluía apenas a

elite grega), a guerra civil brasileira serviu para mostrar ao mundo que

Tom Jobim estava certo e que “o Brasil não é para principiantes”, e

também para mostrar que Shakespeare também estava certo, pois

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realmente existem muito mais coisas entre o céu e a terra do que

supõe a nossa vã filosofia, e só considerando seriamente essas

questões foi que me dei conta de que a razão não é capaz de lidar com

os elementos e acontecimentos que permearam a história do meu

país... na verdade, existimos muitas camadas abaixo da superfície da

realidade e agora entendo o que o apóstolo Paulo disse quando

escreveu que nesse mundo vemos tudo por enigmas, através do

espelho, de modo distorcido e incompleto... As instituições

acadêmicas que produzem conhecimento não possuem instrumentos

intelectuais capazes de explicar os fenômenos existenciais que

estabeleceram e sustentaram essa guerra. Mais do que de política ou

de ideologia, mais do que de armas e rios de sangue, essa guerra se

alimentou de elementos infinitamente mais sombrios provenientes dos

lodaçais putrefatos de nossas almas... elementos que habitam a alma

de todo ser humano e que estão muito além da compreensão de nossas

mentes limitadas, e em relação a isso eu gostaria de abrir um pequeno

parêntese: George Steiner e outros humanistas intelectualmente

privilegiados se debateram tentando encontrar a razão pela qual o

horror do nazismo surgiu no berço do humanismo cristão europeu,

contaminando indivíduos de educação refinada e humanista; buscaram

respostas racionais para o mal, explicações cientificamente plausíveis,

dados quantificáveis... causa e efeito... eu porém tenho outra teoria: O

mal realmente existe, distribuído democraticamente a todos, cultivado

mais carinhosamente por alguns e talvez personificado num ser

consciente. O mistério da iniquidade está entre nós! Aquilo que se

chama o mal pode até pensar que esquecemos ou ignoramos sua

existência, pois olhando nossas festas, nossos valores, vendo as

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universidades e os centros intelectuais alegarem que a causa dos maus

atos do homem é devido apenas ao seu aspecto biológico, psicológico

ou social, pode acabar acreditando que, mergulhados nessa nuvem de

ignorância, o esquecemos. Mas não é verdade, nós não o esquecemos.

Nós, a resistência, estamos cientes de suas constantes ações.

Shakespeare estava certo e o mundo mudou.

Isso tudo aconteceu num tempo em que no Brasil ainda se acreditava

na impunidade, uma crença cultivada ao longo de cinco séculos de

exploração comercial (primeiro por parte dos portugueses, depois por

parte dos ingleses, depois os americanos, depois a própria burguesia

local, depois as empresas privadas do mundo todo, ou seja,

everybody), e que tem sua origem na própria realidade de

desigualdade que se instalou desde então: os poderosos nunca foram

punidos por seus delitos, salvo raríssimas exceções, e os fodidos

permaneceram se fodendo ao longo do desenrolar de nossa história, de

maneira cada vez mais descarada e infame. Ano após ano as favelas

pegavam fogo e os favelados, antes que tivessem tempo de chorar a

perda e agradecer a Deus o que conseguiram salvar, a chuva carregava

todo o resto dos objetos e do apego que acaso ousasse penetrar seus

corações dilacerados... Os políticos roubavam até o dinheiro da

merenda escolar e dos hospitais públicos, e os patrões oprimiam como

se a escravidão ainda vigorasse no país. Nada era feito e nada mudava

e eu não entendia como o povo suportava tamanho ultraje e

humilhação sem se indignar e meter fogo em tudo.

Eu estudava ciências sociais na USP e vivia enfurnado naquela

biblioteca da FFLCH lendo Lévi-Strauss, Da Matta, Sérgio Buarque

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de Holanda, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Geertz, Sahlins,

Adorno, Weber, Foucault, Deleuze e todo esse feijão com arroz da

intelectualidade do século XX, tentando entender essa porra desse

país, e sempre achei que em algum momento a guerra se instalaria no

Brasil.

O povo brasileiro sempre foi oprimido, mas nunca resignado, nunca

passivo; o brasileiro nunca se rendeu à injustiça, mas passou a habitar

nas brechas da opressão, driblando as leis opressivas ao invés de

confrontá-las; a malandragem foi a resistência que o povo criou contra

os poderosos, até que os poderosos, depois de séculos dominando o

povo na base da porrada, também se tornaram malandros e passaram a

seduzir o povo com suas mentiras: é preciso ser muito malandro para

convencer toda uma população a obedecer suas ordens, infundindo

medo da desobediência nas pobres consciências ignorantes.

Mas sempre achei que um dia essa lógica se esgotaria e o povo se

revoltaria contra a putaria institucionalizada que reinava em nosso

território. Um governo deveria tomar mais cuidado ao criar um povo

que não tem nada a perder, era o que alguns diziam na época, e

estavam certos. Às almas sedentas e aos corpos bronzeados e sensuais

dos brasileiros, o mal propôs a dedicação... e nós aceitamos a

proposta, e, escondidos entre as brechas da opressão, nos dedicamos

ao mal nos últimos cinco séculos. Entre nós não há poesia nem

romantismo, e se há, é farsesca, forçada; tudo o que de nós procede

está encharcado de sangue, suor e sofrimento, e até nossas palavras

são carregadas de intensidade e cicatrizes; somos belos e somos

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maus... o Brasil não é para principiantes. Tom Jobim estava certo e o

mundo mudou.

E naquele tempo, como eu dizia, ainda acreditávamos na impunidade

e negávamos uma lei eterna que vale pra qualquer época, lugar ou

povo: “aquilo que o homem plantar, isso também colherá”, até que eu

conheci o cara que acabou com a crença na impunidade, pelo menos

por algum tempo: o Príncipe; assim como a figura do malandro

representava um pouco o espírito do brasileiro, driblando e enganando

para não ser massacrado, o Príncipe passou a representar a revolta dos

massacrados, como um Antônio Conselheiro pós-moderno que

conduziu seu povo à libertação da ignorância e da opressão. Ele ficou

conhecido como “aquele que fez o que todo brasileiro gostaria de

fazer”. Até hoje camisas com suas frases e sua imagem circulam

ilegalmente entre os brasileiros, apesar da vigilância das autoridades

para evitarem uma nova disseminação de suas ideias; na Europa e nos

Estados Unidos ele se tornou um mito entre líderes de movimentos

sociais, também entre líderes de oposição de todos os tipos e de todos

os lugares imagináveis no planeta, mas quando o conheci éramos

apenas universitários e jogávamos futebol no centro poliesportivo da

USP; jogamos no mesmo time e ele gostou de mim e depois do jogo

me chamou pra fumar maconha no apartamento da sua namorada, que

era um apartamento minúsculo, com três quartos minúsculos, no

alojamento da universidade, onde moravam sua namorada, uma

colombiana estudante de biologia e plantadora de maconha, e um

casal de gays.

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Ele dizia a quem lhe perguntasse que seu nome era Macunaíma, “o

mais brasileiro dos nomes”, mas quando nos conhecemos me falou

que seu nome era Dom, um nome escolhido pela sua avó maconheira,

aliás se lhe perguntassem ele diria que havia maconheiros em toda a

sua árvore genealógica. Nós já tínhamos nos encontrado na biblioteca

algumas vezes e também na cantina, onde ele costumava estar sempre

acompanhado de alguma garota gostosinha desenvolvendo sua

conversa de intelectual-maconheiro-libertário e sempre com um livro

antigo e interessante nas mãos; eu também sempre o via fumando

maconha nos cantos escuros e arborizados da FFLCH, acompanhado

de qualquer um que tivesse um baseado ou boas ideias pra trocar; ele

tinha carisma e as pessoas falavam dele e eu era calouro e isso tudo

me impressionava muito.

Naquele tempo meus amigos me chamavam de Zumbi, porque numa

manifestação no dia da consciência negra, na avenida Paulista, eu

tomei uma mescalina potente, a estrelinha dos deuses, pra curtir a

manifestação com mais empolgação, e saí gritando incansavelmente

“Zumbi dos Palmares!” por toda a extensão da manifestação. O

apelido ficou como homenagem ao surto; eu já era um cara inteligente

e sagaz e sabia falar sobre muitos assuntos com uma certa

desenvoltura, eu ouvia jazz contemporâneo, Dub e todo tipo de

experimentação sonora, era muito bom no Xbox e lia Kafka, Cioran,

Agamben, etc.; essas qualidades faziam com que eu me sentisse um

prodígio, um cérebro privilegiado. Mas Dom era diferente; ele não

atuava na realidade, ele criava a realidade; ele não tinha apenas

informações científicas ou filosóficas, ele acreditava no que sabia,

encarnava o conhecimento que tinha fazendo-o exalar em cada ato

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seu; parecia emanar algum tipo de poder, e aquilo me intrigava porque

qualquer um com as habilidades de Dom se renderia ao business,

colocaria sua genialidade a serviço do capital, se tornaria um líder

empresarial inovador e figuraria apenas em revistas especializadas e

caríssimas, de difícil acesso ao cidadão comum.

Mas Dom tinha outros objetivos, objetivos muito superiores à

vantagem pessoal que disso poderia tirar e sua consciência não

suportaria outra escolha que não fosse a liberdade, mesmo se sentindo

tentado a entregar-se; além disso, Dom me apresentou Dostoievski e

Baudrillard.

Quando o conheci melhor, vi que ele transitava por todos os contextos

da universidade e fora dela, participava de grupos de debate formados

pelos professores com os alunos que se destacavam intelectualmente,

assim como participava de um churrasco com o traficante que lhe

fornecia maconha, discutia sobre espiritualidade com sua avó, uma

cristã maconheira pouco ortodoxa que ligava pra ele só pra discutir

sobre alguma passagem bíblica polêmica; Dom poderia ser visto

descalço e sem camisa perambulando pelo campus, trajando smoking

e bebendo champanhe numa festa cheia de burgueses ou bebendo num

bar sórdido e discutindo literatura ou futebol ou qualquer outro

assunto que se possa imaginar.

Ele parecia um revolucionário em plena ação revolucionária, seus

poros exalavam rebelião, sua natureza era livre; quando qualquer

pessoa quebra uma regra, o ponto principal da ação é a própria regra,

como símbolo de um poder maior que deve ser questionado. Quando

Dom quebrava uma regra, ele o fazia naturalmente; o ponto principal

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não era a regra ou o poder que a instituiu, mas o fato de que todas as

coisas deveriam se curvar diante de sua liberdade. Imagine se todos os

humanos exercessem naturalmente a liberdade que originalmente

têm... mas eu mesmo não conseguia imaginar isso, uma sociedade de

pessoas livres e sem condicionamentos, uma sociedade em que as

pessoas pudessem se autogovernar... até li O sonho de um homem

ridículo por indicação de Dom, para tentar imaginar um mundo em

que os humanos se amassem, e o conto foi um sopro divino em minha

imaginação; mas tudo me parecia tão harmonioso e por isso

fantasioso, que minha identificação natural de realidade se deu apenas

quando aquele mundo perfeito do conto se corrompeu.

Dom parecia a todos um ar fresco de liberdade, e essa liberdade

fascinava e contagiava a todos de seu convívio. Um dia, enquanto

jogávamos videogame, fumávamos skunk, ouvíamos Groundation

Dub Wars no apartamento enorme de um de seus amigos milionários

do Morumbi, perguntei a ele quais eram suas crenças, principalmente

estando mergulhado num ambiente universitário tão impregnado de

dogmas e que nos exigia a reverência a algum desses credos

científicos e tudo mais, e ele me respondeu que “suas crenças te

limitam... porque uma crença é sempre a sistematização de algum

aspecto da existência; se você escolhe acreditar nessa sistematização,

abre mão de todas as outras possibilidades que sua mente ainda não

pode contemplar. Eu acredito numa realidade de infinitas

possibilidades”, e esse era o tipo de resposta que fazia as universitárias

ficarem molhadinhas e abrirem as pernas de excitação.

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Esse sujeito, com todos os seus adjetivos e contradições, mudou a

história desse país, e mesmo que as pessoas continuem mergulhadas

no entretenimento barato, no consumo ou em suas reflexões científicas

estéreis, lá no fundo elas sabem que algo mudou e que essa guerra

civil nos permitiu vislumbrar um pouco das leis eternas que organizam

a existência. Por mais cruéis e sanguinolentos que tenham sido alguns

combates, por mais estúpidas que tenham sido as motivações ou por

mais covardes que tenham sido os massacres, a Revolução foi nossa

catarse, a catarse que precisávamos como purgação dos últimos cinco

séculos. A destruição nos ensinou sobre a eternidade.

Em novembro de 2010 os jornais noticiaram a emblemática invasão

do Bope ao Complexo do Alemão, fortemente armados e protegidos

dentro dos blindados da Marinha e a mídia do mundo todo

transmitindo aquelas imagens da fuga dos traficantes, alguns deles

sendo alvejados ao vivo e o mundo todo comentando sobre a operação

de limpeza social, realizada com o objetivo de tornar a cidade do Rio

apresentável para a copa do mundo da Fifa de 2014 e as olimpíadas de

2016; colocá-la nos padrões internacionais de turismo e permitir aos

membros das classes média e alta que a visitassem sem serem

incomodados pelos resquícios de uma realidade brutal e

demoniacamente opressiva.

Abri o jornal O Globo e a foto de capa mostrava um policial

hasteando a bandeira do Brasil no alto de alguma favela ocupada pela

polícia, como se aquela cena de filme americano pudesse emocionar

ou como se aquilo representasse uma nova esperança para o calejado e

experimentado povo brasileiro; todos discutiam as implicações

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daquele episódio e na USP, principalmente na FFLCH, as discussões

estavam pegando fogo. Professores e alunos organizaram diversas

discussões públicas sobre a invasão das favelas, sobre a falsa

pacificação, sobre a legalização das drogas, sobre a criminalização da

pobreza e a maior parte desses debates terminava em porrada ou em

agressões verbais do mais baixo nível; o núcleo de estudos da

violência nunca produziu tantos artigos e seus membros sentiam uma

excitação constante, como quando trepamos e não queremos que a

trepada acabe nunca, eles desejavam que a invasão não acabasse

nunca para poderem estudarem-na minuciosamente e assim

descobrirem “o segredo por trás da violência”, para poderem fazer a

“anatomia da violência” e anunciarem suas reveladoras estatísticas.

O fato foi que a invasão das favelas, além de movimentar a vida

intelectual da USP, fez os olhos de Dom brilharem estranhamente e

nos dias que se seguiram ele ficou isolado e nas semanas seguintes ele

desapareceu. Estávamos em fim de semestre e o desaparecimento de

Dom não parecia tão estranho, já que a universidade entrava de férias

e todos deixavam o campus, mas até sua namorada estranhou. Não

estranhou muito porque ela já sabia que Dom era bicho solto, assim

como ela também, ele sumia sem avisar e voltava sempre de alguma

aventura louca com muitas estórias e novas percepções, e era esse

caos sem rotina que alimentava seu espírito continuamente.

No começo de 2011, logo nos primeiros dias de aula na universidade,

Dom apareceu em São Paulo com a cabeça raspada, novas tatuagens

nos braços e um plano que mudaria o Brasil; ele tinha passado pelo

Espírito Santo, ido para a Bahia e ficado quase dois meses em Itacaré

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fumando e vendendo maconha, trepando com as turistas e elaborando

seu plano revolucionário; suas ideias fervilhavam e ele estava louco

pra compartilhar aquelas ideias comigo e com sua namorada, Maria.

Fomos para o apartamento de Maria, naquele quartinho minúsculo do

alojamento e fechamos a porta; abrimos um vinho e Dom começou a

enrolar um baseado e eu e Maria ficamos curiosos pra saber o que ele

tinha pra dizer, mas ele não quis falar antes de fumarmos aquele

baseado. “Essa maconha é um skunk especial que eu consegui com

uns amigos que conheci na Bahia; eles plantam e tal...”; ele enrolou

calmamente o baseado enquanto elaborava seu discurso.

Acendemos o baseado, umas velas e um incenso, um Nag Champa

maravilhoso; senti a importância daquele momento e a cena me

pareceu um quadro de Caravaggio, sombrio e poderoso, e quando o

quarto estava todo enfumaçado e na penumbra, o baseado ainda estava

na metade, Dom começou a exposição: “Vocês querem realmente

mudar a história desse país ou vão ficar nessa masturbação intelectual

eterna? Vão ficar discutindo teoricamente sobre a sacanagem no

puteiro ou vão libertar as putas?”, e nós paramos para olhá-lo e seu

olhar transmitia excitação, seus olhos fervilhavam; Maria passou o

baseado pra Dom, que deu uma tragada longa e vigorosa, soltou a

fumaça e deu outra tragada, daquelas que você sente as moléculas de

THC desfazerem-se em chamas e navegarem por suas veias e viajarem

por todo o sistema nervoso, depois de intoxicarem os pulmões; passou

o baseado pra mim, encheu seu copo de vinho e continuou, “vocês

entendem a importância do que está acontecendo nesse momento

histórico em nosso país? Há muito tempo os pobres esperam por sua

redenção, anseiam ver a impunidade ser eliminada, mas o que eles

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viram, geração após geração, foi abuso e exploração sem limites; o

único lugar onde os pobres viram a justiça ser feita nesse país foi nas

novelas, e mesmo assim apenas no último capítulo. E pra fechar o

espetáculo da injustiça, esses poderosos filhos-da-puta tornaram

ilegais algumas drogas e com uma justificativa moralista e ‘bem-

intencionada’, com o argumento de salvação da sociedade e das

famílias, de uma só vez os ‘senhores do mundo’ monopolizaram a

produção da droga, criaram uma guerra civil entre polícia e traficantes

de drogas dentro de todos os países do mundo, encarceraram milhares

de pobres e necessitados como demonstração de sua força opressiva,

estimularam o tráfico internacional de armas, com os quais eles

também lucram absurdamente, e aprofundaram a dependência

econômica de todos os países em relação aos grandes bancos. Sei que

vocês também já sabem disso tudo, mas agora chegou o momento de

um macho tomar as rédeas dessa porra! Vamos matá-los com o

veneno que eles nos inoculam; vamos prender toda essa corja de

cafetões que prostituem nossa nação e libertar esse povo estuprado e

humilhado”, e o baseado quase apagou na minha mão, pois eu estava

surpreso com aquele discurso sem realmente imaginar onde ele queria

chegar, e Dom continuou enquanto eu dei aquela carburada no

baseado, “nós temos as circunstâncias históricas a nosso favor e tudo

parece contribuir para o nosso sucesso! No século dezenove

Dostoievski acreditava que a Rússia era uma nação com uma missão

profética na Terra, acreditava na pureza essencial dos valores do povo

russo que ainda não tinha sido infectado pela frivolidade da

intelectualidade russa; ele acreditava que a Rússia poderia encarnar os

valores cristãos e assim carregar a mensagem eterna de Cristo: a

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liberdade e o amor, e mostrá-la a toda a humanidade. Pensei ‘pobre

Dostoievski, descobri seu defeito: acreditar na humanidade’”. Dom

nos olhava com gravidade e firmeza e conseguia transmitir a

intensidade da confiança que se apoderara dele; “Eu não acredito que

a humanidade tenha a capacidade de escolher o amor e a liberdade.

Pelo contrário, acredito que os homens amam a guerra, sentem-se

confortáveis com a escravidão e necessitam de um ‘senhor’ para

legitimá-los, para atribuir-lhes existência; a intelectualidade também

está totalmente contaminada por sua própria frivolidade e já se afastou

completamente da realidade, escrevendo artigos e participando de

eventos acadêmicos sem a menor relevância para o povo. O favor que

prestam à humanidade se limita a lustrar os pesados e infames ídolos

que o povo irá carregar nas costas! Meus caros, se o Brasil possui uma

função messiânica diante da humanidade, sua função é purgar os

brasileiros de toda a opressão imposta por seus dominadores, e servir

de exemplo para o resto do mundo, mesmo que se tenha que derramar

algum sangue”.

“Uma vez, num emprego que eu tinha, minha patroa, uma gestora já

bastante experimentada pelo mercado, senhora respeitável e correta,

metódica e organizadíssima, profissional irrepreensível, chamou-me

no seu escritório para conversarmos sobre minha conduta ‘solta

demais’ e meu comportamento despreocupado com os padrões e

metas da empresa; ela me chamou para o ritual cotidiano de massacre

psicológico dos escravos, ritual em que se esculacha o funcionário por

não corresponder ao perfil e expectativas da empresa, um dos rituais

mais aterrorizantes para a maioria dos empregados, pobres sujeitos

que apenas tentam se enquadrar no sistema, mesmo que tenham que

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abrir mão da própria consciência, somente para não serem dispensados

e jogados no limbo da disputa mercadológica”.

“A gestora me chamou e disse ‘Dom, todos temos nossas obrigações e

todos estamos cheios de trabalho para fazer. Ou você se adequa ao

sistema de nossa empresa, ou serei obrigada a substituí-lo. Quando

alguém não cumpre o esperado, devemos substituí-lo. Não vou mais

levar esporro de gente da diretoria por sua causa, por causa de seus

atrasos ao responder e-mails, por causa de sua tranquilidade de hippie.

Todos nós temos que fazer coisas com as quais não concordamos,

temos que obedecer a ordens que não aprovamos, temos que cumprir

metas que não acreditamos, mas a verdade é que estamos todos no

mesmo barco e queremos sobreviver e blábláblá....’, e sua fala me

parecia a fala de um carcereiro que se vê diante da missão de manter

outros humanos, seus semelhantes, irmãos e irmãs, presos e submissos

a um sistema carcerário que também o prende e que nem ele

compreende ou concorda. Olhe pras favelas! São campos de

concentração militarizados, onde se pratica diariamente a tortura e o

assassinato pelas mãos ‘legítimas’ do Estado! Vocês sabem o que foi

Auschwitz? Sabem o que foi Auschwitz? Auschwitz foi a grande

profecia! Auschwitz foi a encenação carnavalesca que previu nossa

desgraça! Uma cidade de prisioneiros feitos de escravos aos milhares,

passivos e indiferentes, submetendo-se à autoridade bélica de algumas

centenas de algozes, cansados demais e esfomeados demais para se

rebelarem, matando-se uns aos outros apenas para sobreviverem por

mais um miserável dia... uma luta desesperada pela sobrevivência,

mesmo sem compreender o significado de existir, mergulhados em

suas próprias ignorâncias e defendendo até a morte seus dogmas

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idiotas. Eu olho para as cidades e vejo Auschwitz! Olho para as

pobres almas ignorantes se debatendo de ansiedade e medo, oprimidos

e explorados, sem coragem de se levantar e afirmar a liberdade de sua

consciência, e vejo a fraqueza dos prisioneiros de Auschwitz, vejo

corpos sem alma caminhando e trabalhando para produzirem a própria

escravidão; vendem a consciência em troca de pão! ‘Nem só de pão

vive o homem’, disse Jesus, ‘A liberdade vale mais que o pão’, disse

Nelson Rodrigues, e esses pobres estúpidos oferecem a alma em troca

de qualquer migalha...”.

Dom tinha disparado sua metralhadora discursiva sobre mim e Maria e

agora sua munição parecia ter acabado; no entanto, a pausa foi apenas

pra encher o copo de vinho, recarregar as ideias e voltar a disparar

sem misericórdia, “Zumbi, estamos todos presos a estes cabrestos

cotidianos e precisamos nos libertar, e pra isso precisamos da

revolução... a última coisa que o Brasil precisa nesse momento é de

paz... paz é para os fracos e frouxos! ‘Não vim trazer paz ao mundo,

mas sim espada’, não foi assim que falou Jesus? Você não é de família

religiosa, Maria? Não foi assim que Jesus falou? E eu sou obrigado a

concordar com ele... como posso querer paz se está tudo errado? Isso

não é paz, é conformismo!”

“Eu poderia estar isolado no meio do mato, perdido em algum paraíso

baiano e ignorando toda essa putaria, desfrutando da minha

indiferença em relação aos outros... eu estava em Itacaré e poderia

simplesmente virar as costas pra essa porra toda e viver no paraíso, à

margem do sistema, mas eu não consigo! Eu não consigo! Eu nasci

nessa Babilônia global e não consigo ignorar esse inferno. Agora os

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poderosos do mundo estremecerão com o recado que eu mandarei a

eles: assim como Sansão matou milhares de filisteus produzindo sua

própria morte, eu também estou disposto a derrubar muitos, mesmo à

custa de minha própria queda!”, e o baseado apagou completamente

ouvindo esse discurso.

Os olhos de Maria brilhavam apaixonados e esse discurso de Dom

parecia ter sido mais excitante pra ela que um pedido de casamento;

Maria era neo-marxista, leitora de Slavoj Zizek, Bauman, Foucault,

Deleuze, libertária por convicção, participava de todos os atos de

repúdio e protesto contra a sociedade e o capitalismo, era uma das

mais engajadas da FFLCH e esse tipo de discurso fazia Maria ficar

molhadinha de excitação; ela estava pronta a aceitar qualquer proposta

de Dom, mais ainda se a proposta fosse um plano mirabolante para

derrubar os poderosos e libertar os brasileiros da opressão.

Dos olhos de Dom vazava uma estranha luz profética e apocalíptica,

como a luz dos ‘iluminados’ dos quadros renascentistas; ele tomou o

baseado da minha mão, acendeu, deu uma longa tragada, soltou a

fumaça e continuou, “vamos nos mudar pra Vila Velha e organizar o

tráfico, vamos transformar o tráfico num Estado paralelo e vamos

convocar todos os traficantes expulsos dos morros do Rio pra se

juntarem a nós!”, e Maria perguntou, “Vila Velha? Por que Vila

Velha?”, e Dom, “Vila Velha é o lugar perfeito para nos

estabelecermos: lá é próspero, tem estrutura, a economia está

crescendo, tem praia e uma energia maravilhosa! Lá é longe dos

holofotes que se voltam sempre para Rio, São Paulo, Belo Horizonte,

Curitiba e Brasília, e podemos crescer sem ser notados... Nos

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organizaremos nas sombras, e como um câncer nos infiltraremos na

política, na economia e na mídia, e nas Olimpíadas de 2016

tomaremos o poder!”; eu quase não respirava de tensão e acho que

meus olhos transmitiam espanto, porque Dom me olhou diferente e se

dirigiu com mais ênfase, como que para fazer seu discurso penetrar à

força em minha mente, “Mano, quando a verdade e a justiça não

importam mais, não há mais nada a perder, e por isso a bandidagem é

o único grupo de indivíduos que tem a disposição, a coragem e a

motivação necessárias pra realizar esse projeto! Num lugar onde reina

a injustiça e a polícia só existe para manter essa injustiça legitimada

pelas leis, todos os meios de desrespeito à lei e corrupção do sistema

devem ser utilizados e a lei se faz na rua, o tribunal e os juízes são

dados pelas circunstâncias e a morte é esperada a cada instante... sem

medo! Até porque a morte não é o verdadeiro mistério, como todos

pensam; a morte é ridiculamente exata. No entanto, de tanto acumular

mistérios nulos e monopolizar o sem-sentido, a vida inspira mais

pavor do que a morte! A vida é a grande Desconhecida! Tudo o que

respira se alimenta do inverificável... a inexatidão de seus fins a torna

superior à morte. E afinal, um artista só serve se for pra destruir os

ídolos da razão e debochar das convenções; do contrário vira escrivão

do senso comum. Nós somos os artistas que irão reescrever a história

desse país! O que acha disso Zumbi?”.

Dom precisou criar aquele clima ritualístico naquele minúsculo quarto

de alojamento da USP, rodeados de velas e com nossas percepções

alteradas, como num ritual xamânico; aquilo que ele compartilhara

conosco era precioso demais pra ser revelado de maneira displicente, e

Dom quis dar ao momento a importância que merecia.

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Maria estava completamente envolvida por aquela atmosfera, pronta

pra se jogar nos braços de seu imperador e clamar que ele a possuísse

completamente, que ele a penetrasse profundamente de maneira única

e inesquecível, ou pelo menos foi isso que consegui interpretar do

olhar apaixonado dela; senti também que se eu demorasse mais alguns

segundos para responder a pergunta de Dom, Maria passaria por cima

de mim e daria a resposta por nós dois. Então respondi com aquela

cara de maconheiro quando se perde no encantado mundo da

linguagem, “Você tá falando sério?” e comecei a rir com vontade, mas

não de deboche, e fiquei olhando pra cara séria de Dom.

Ele me agarrou pela gola, me puxou pra perto de si e falou baixinho

“maconheiro-filho-da-puta!” e começou a rir uma risada espontânea.

Depois de um tempo rindo, ele ficou sério, deu uma golada no seu

vinho, abriu a janela e acendeu um Marlboro vermelho ficando de

costas para nós dois; Maria o abraçou forte por trás e começou a dizer

que o amava com muita doçura, e seu feminismo asséptico, sua

postura combativa já tinham sido dissolvidos pelo skunk e pelo vinho.

Não há ideologia que se sustente diante das delícias da natureza! Dom

desvencilhou-se cuidadosamente de Maria e dirigiu-se a mim, “eu

preciso que você venha comigo pra Vila Velha... você e Maria são os

únicos em quem confio pra me ajudar a realizar essa missão”, e Maria

se agarrou novamente a ele, obedecendo a seus instintos mais

primitivos, enquanto Dom esperava minha reação; e eu perguntei, “e

como você pretende fazer isso?”, e Dom respondeu “vamos comigo

pra Vila Velha e lá a gente operacionaliza a missão”.

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Maria já devia estar pensando em arrumar as malas naquele momento,

mas eu não acreditava que ele queria chegar num lugar sem conhecer

ninguém, montar uma estrutura complexa que demandaria muitas

pessoas, muito material e muito dinheiro pra tomar o poder numa

espécie de golpe de Estado, e isso tudo em apenas cinco anos. Minha

cara era de incredulidade e Dom ainda esperava uma resposta

imediata, sem reflexões mais duradouras; então lhe perguntei, “Dom,

me diga como você vai chegar num lugar sem conhecer ninguém e

montar um império em tão pouco tempo?”, e Dom calmamente deu

uma última tragada no cigarro que ainda estava na metade, jogou-o

pela janela e argumentou, “meu caro Zumbi, o que é o tempo? Já foste

absorvido por essa percepção ansiosa do tempo praticada pela

Babilônia? Uma revolução autêntica não visa apenas mudar o mundo,

mas, antes, a mudar a experiência do tempo... ou não leste Agamben?

Além disso, você não sabe que a linguagem é a dádiva da

comunicação, o elemento que permite qualquer tipo de acordo ou

entendimento entre os homens? Do que precisamos além de uma boa

conversa e alguma dose de persuasão? E mais, nós somos brasileiros,

planejamento é coisa de alemão, aqui a gente improvisa; você já

estudou física quântica Zumbi?”, eu ainda não tinha estudado nada

sobre física quântica e Dom já era fissurado por essa porra, “então

meu caro Zumbi, a física quântica é uma espécie de sacerdotisa da

nova espiritualidade, e ela nos revela que a existência é muito mais

caótica e imprevisível do que quer acreditar nossa vã ciência e nosso

maldito cartesianismo; o desconhecido e a incerteza são muito mais

presentes do que podemos ou queremos imaginar. Incitarei as energias

revolucionárias adormecidas dentro de cada brasileiro e as conduzirei

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à revolução!”, e Dom terminou seu argumento olhando fixamente nos

meus olhos e acreditando piamente no que dizia.

Se eu aceitasse a proposta, a aventura seria extremamente radical,

conduzida por um empreendimento criminoso e que diminuía muito a

expectativa de vida, e eu já começava a me interessar pela ideia. Dom,

sentindo minha abertura, continuou seu discurso, “Zumbi, as pessoas

estão famintas de poder e perderam a noção do valor e do significado

das coisas; numa dessas festas de magnatas e autoridades, recheada de

juízes, desembargadores, deputados, senadores, empresários de todos

os ramos da economia, investidores e muitas mulheres gostosas, uma

dessas figuras, um jovem juiz, me confessou depois de alguns copos

de uísque que estava tão deslumbrado com o dinheiro e o poder, que ia

ao banco e sacava uns cinquenta mil reais; depois ia sozinho com esse

dinheiro para um motel luxuoso, espalhava o dinheiro pela cama,

deitava sobre as notas e ficava se masturbando por horas... as notas de

papel e o poder que simbolizam o deixavam de pau duro, e ele me

disse isso não em tom de vergonha ou confissão, mas como quem

revela uma excentricidade de ‘gente poderosa’, algo que o tornava

especial, algo possível a poucos poderosos privilegiados... o sujeito

me falou também que às vezes pagava duas putas, levava pro motel,

mandava as duas ficarem chupando seu pau enquanto ele esfregava

chumaços de notas de cem reais na cara delas; às vezes fazia isso com

chumaço de dólar porque dava mais tesão. Esse sujeito é um idiota,

um cabaço que não sabe de porra nenhuma a respeito da vida,

seduzido pela máquina do entretenimento e do consumo e ele é só um

entre milhões iguais a ele! Esse exército de idiotas desalmados ganha

dinheiro e notoriedade e aí começam a achar que são imperadores

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romanos e começam a agir como insanos, com mania de grandeza,

demonstrações de poder, orgias intermináveis... mano, não podemos

deixar nossos irmãos caminharem entorpecidos para o precipício

existencial, devorando-se uns aos outros levados por essa força que

nos arrasta para o inferno que criamos em nossas próprias almas! Não

consigo ver as pessoas com fobia da morte e escravas desse medo,

lambendo as feridas causadas por esse pavor e simplesmente virar as

costas... isso tudo me atormenta demais”, ele respirou fundo e

continuou em seu fluxo discursivo, “mano, uma vez eu tomei um chá

psicodélico num ritual xamânico com uns caras estranhos, muito

metódicos e ritualistas que tinham a intenção de controlar a viagem

mental dos participantes com aquela liturgia desnecessária, aquela

assistência caridosa-opressiva, etc., e nessa viagem eu senti o vazio

existencial e a solidão humana de modo intenso... eu senti a força que

dilacera o interior dos deprimidos e percebi que todo esse circo de

mídia, entretenimento e consumo que montamos, serve apenas pra

disfarçar esse vazio que ameaça tomar conta do interior de cada mente

fraca e ali instalar o desespero. É por isso que as pessoas gostam das

imbecilidades da mídia: a imbecilidade as salva da depressão! A

imbecilidade as salva da banalidade de suas vidas! Mas Zumbi, eu não

suporto ver meus semelhantes dominados pela imbecilidade, a vida é

um surto existencial muito curto pra ficarmos ajoelhados diante de

nossos algozes! Vamos derrubar as colunas desse presídio babilônico

que construímos e libertar esses escravos!”, e essa proposta

messiânica era bastante atraente e acabei aceitando viver a aventura.

“A aventura”.

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Mas antes, Dom continuou dando vazão ao fluxo discursivo que tinha

se apossado dele, “não sei se você assistiu Django Livre, do Tarantino,

mas tem uma cena nesse filme que é simplesmente foda: o Leonardo

Di Caprio, que representa um senhor de escravos do sul dos Estados

Unidos, avisado por seu fiel escravo negro do plano de resgate de uma

escrava chamada Broomhilda, noiva de Django, pega um crânio

humano e o coloca sobre a mesa. Questionado por seu convidado

sobre a identidade do morto em questão, ele inicia seu discurso com

um cigarro de enorme piteira na boca: ‘Este é Ben... ele é um Ol’Joe

que viveu por aqui por um longo tempo. E quero dizer, um tempão

desgraçado. Bom, o Ben aqui tomou conta do meu pai... e do pai do

meu pai, e até matarem esse sujeito um dia, cuidou de mim também.

Cresci filho de um dono de plantação enorme no Mississipi, um

homem branco em contato com uma gama de... rostos negros’, a

composição da cena é fantástica, que além de ter Leonardo Di Caprio

elegantemente vestido e com uma atuação intensa, tem um candelabro

de ouro finamente trabalhado, o crânio de Ben e uma escultura de

mármore com dois homens nus lutando Mandingo, uma espécie de

MMA primitivo disputado até a morte e bastante apreciado pelo

personagem de Leonardo”, Dom gostava de descrever cenas e de

refletir em voz alta sobre elas, “Essa mistura de luxo e crueldade,

refinamento intelectual e monstruosidade desumana é o caldo em que

se cozinham os poderosos de todo tipo, inclusive os que tem um micro

poder! E Di Caprio continua o discurso: ‘passei a minha vida inteira

aqui... aqui... em Candyland... cercado por... rostos negros. E vendo-os

sempre, dia a dia, eu só tenho uma pergunta: por que não nos matam?

Lá em cima na varanda, três vezes por semana, durante 50 anos, o

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velho Ben aqui barbeava meu pai com uma navalha. Se eu fosse o

velho Ben, teria cortado a garganta maldita do meu pai e não teria

levado 50 anos para acontecer. Mas ele nunca fez. Por que não? Veja,

a ciência da analogia é crucial para entender a separação entre duas

espécies. No crânio do africano aqui, a área associada com a

submissão é maior do que qualquer ser humano ou qualquer outra

espécie no planeta Terra’, e então ele começa a serrar o crânio para

provar sua tese. Essa cena e a justificativa da submissão do negro são

tão provocativas em sua ironia, que tenho certeza que ali Quentin

Tarantino não estava se referindo à escravidão dos negros, mas à

escravidão humana; e é claro que aquela justificativa científica para a

escravidão, com a cara do cientificismo do século XIX na boca de um

senhor de escravos, está ali como um elemento argumentativo de

época, mas numa coisa ele tem razão: a área do cérebro humano

relacionada à submissão é muito mais desenvolvida e estimulada do

que qualquer outra; mas não por algum tipo de herança genética

maldita de servilismo... Somos escravos apenas porque fomos

ensinados a acreditar na autoridade dos que nos governam, assim

como acreditamos que uma nota de cem dólares valha realmente

alguma coisa e não seja apenas o que é: papel pintado; eles nos pisam

porque nós nos ajoelhamos. Minha pergunta a você, meu caríssimo

Zumbi, é: por que não cortamos a garganta dos senhores que nos

escravizam?”, e como essa pergunta era apenas retórica, sem a

necessidade de uma resposta, eu apenas disse, “vamos conhecer Vila

Velha”.