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A Declaração de Incheon e o desafio da educação inclusiva: considerações sobre a
relação estabelecidos-outsiders numa universidade federal brasileira
Documento para su presentación en el IX Congreso Internacional en Gobierno, Administración y Políticas Públicas GIGAPP. (Madrid, España) del 24 al 27 de
septiembre de 2018.
Freitas, Marina Carvalho (1)
Ésther, Angelo Brigato (2)
Resumo
O mundo contemporâneo tem clamado por maior abertura a grupos considerados minoritários e/ou marginais, embora seja preciso, inclusive, definir o que se entende por
inclusão. De todo modo, o que nos parece claro é que se trata, acima de tudo, de relações de poder entre grupos, indivíduos e instituições, num contexto que pode ser caracterizado
como uma relação entre “estabelecidos” e “outsiders”. O foco deste artigo é discutir a inclusão de grupos no contexto da universidade pública brasileira, utilizando-se
resultados preliminares de uma pesquisa em andamento numa universidade localizada no estado de Minas Gerais. No contexto das metas da Educação 2030, o Brasil tem um
enorme desafio, pois a área tem sofrido cortes e redução de investimentos, e a intolerância tem se mostrado alta e, quiçá, crescente.
Palavras-chave: Educação superior; desenvolvimento sustentável; universidade.
Resumen
El mundo contemporáneo ha clamado por una mayor apertura a los grupos minoritarios y/o marginales, aunque es preciso, inclusive, definir qué se entiende por inclusión. En
cualquier caso, lo que parece claro es que, por encima de todo, se tratan de relaciones de poder entre grupos, individuos y instituciones, en un contexto que puede caracterizarse
como una relación entre "establecidos" y "outsiders”. El enfoque de este artículo es analizar la inclusión de grupos en el contexto de la universidad brasileña pública,
utilizando los resultados preliminares de una investigación en curso en una universidad ubicada en el estado de Minas Gerais. En el contexto de los objetivos de la Educación
2030, Brasil tiene un enorme desafío, porque el area ha sufrido recortes y la reducción de las inversiones, y la intolerancia ha demostrado ser alto y, quizás, la creciente.
Palabras clave: educación superior; desarrollo sostenible; universidad.
Nota biográfica
(1) Grupo de Pesquisa Socius. Mestranda em Administração na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de São João del
Rei (UFSJ). (2) Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da Universidade Federal de Juiz de
Fora (FACC/UFJF). Líder do Grupo de Pesquisa Socius. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGA). Investigador do Centro de Estudos
Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra (CEIS20/Portugal). Pós-Doutor pelo CEIS20 e Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG).
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Introdução
Na sociedade e nas organizações em geral, a despeito do discurso da democracia
e do direito à igualdade previsto na Constituição Federal, as oportunidades de acesso à
educação e ao trabalho são distintas entre os grupos sociais, como os de mulheres, negros
e de pessoas com orientações sexuais que se diferem da heterossexualidade. Essas
diferenças podem ser comprovadas pelas estatísticas de emprego e renda (RAIS, 2015)
que refletem o acesso ao trabalho desses grupos. Por exemplo, no ano de 2015 no Brasil,
43,69% dos empregos formais foram ocupados por trabalhadoras do sexo feminino,
embora a participação feminina seja superior à masculina nos níveis de instrução superior
(59,05%). Em relação à raça, os trabalhadores pardos representam 32,62% e os
pretos/negros, 5,13% do total de vínculos de emprego formal no país (RAIS, 2015),
embora a população de negros e pardos representem mais da metade (50,6%) da
população brasileira (IBGE, 2015). Além disso, tanto as mulheres quanto os pardos e
negros têm salários inferiores ao trabalhador branco (IBGE, 2015). Em relação à
orientação sexual, ainda não se tem dados estatísticos oficiais sobre empregos formais.
As pesquisas têm indicado também que a desigualdade racial durante o processo
de escolarização se acentua a partir do ensino médio e tem sua maior incidência no ensino
superior e na pós-graduação (Silva, 2013; Charão, 2011). As políticas afirmativas,
materializadas na criação de cotas para estudantes que tenham cursado integralmente o
ensino médio em escolas públicas, têm parte destinadas especificamente para
autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em número proporcional àquela população da
unidade da federação onde se situa a instituição (Brasil, 2012), explicitando o
reconhecimento da nação frente às desvantagens históricas de acesso ao ensino superior
dessas minorias.
A desigualdade no que se refere a homens e mulheres não se evidencia em
aspectos educacionais, havendo diversas pesquisas que indicam que no ensino superior
brasileiro o número de mulheres é superior ao de homens, embora as mulheres sejam o
segundo grupo populacional com maior taxa de desocupação, inferior apenas ao grupo de
jovens (IBGE, 2015). Essa desigualdade se reflete de muitas formas, entre elas quando se
compara o número de docentes mulheres e homens no ensino superior (Barreto, 2015).
No entanto, conforme Ridgeway (1997), é necessário considerar que a desigualdade de
gênero pode se manter por meio de processos de interação que não são objeto de reflexão.
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Em relação à população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais, Transgêneros e outras identidades de gênero) percebe-se um quadro
alarmante quanto às oportunidades de acesso à educação e ao trabalho. Embora ainda não
se tenha dados estatísticos oficiais sobre empregos formais, a Associação Nacional de
Travestis e Transexuais (ANTRA), em 2015, divulgou que, em função da negação de
direitos e oportunidades, bem como por o Brasil ser considerado um país LGBTfóbico,
90% das travestis e transexuais se prostituem ou já se prostituíram em algum momento
de suas vidas. Considerando o contexto organizacional, o cenário ainda é permeado pelo
poder heteronormativo que restringe as experiências de gênero (Pompeu e Souza, 2018).
Essa heteronormatividade, muitas vezes expressa através de comportamentos
homofóbicos, aparece como forma de manutenção das relações de poder e hegemonia
masculina (Knights, Tullberg, 2012).
Esse cenário demonstra a existência de relações de poder assimétricas entre esses
grupos e o grupo de homens brancos heterossexuais na sociedade brasileira, indicando
possibilidades diferenciadas no acesso aos bens e serviços e desvantagens históricas
dessas populações. Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo apresentar os
resultados preliminares de uma pesquisa que visa compreender as relações de poder entre
estudantes estabelecidos e ousiders, especificamente em relação ao sistema de cotas,
orientação sexual e questões de gênero, dentro de uma universidade pública no estado de
Minas Gerais.
As universidades são um espaço em que as possibilidades de reflexão e discussão
acerca da realidade estão sempre presentes (Silva, 2001). Entretanto, a história das
instituições, como as universidades, é também a história dos processos de socialização,
do desenvolvimento da cultura e dos modos de se organizar como sociedade, fazendo
com que elas sejam um reflexo da sociedade no geral e, com isso, reproduzam as relações
de poder instauradas socialmente.
Este artigo leva em conta não apenas como contexto, mas, sobretudo, como meta,
os objetivos para o desenvolvimento sustentável (ODS), a partir da Declaração de
Incheon, no âmbito da Agenda 2030 para a educação. Seu objetivo mais amplo é
“assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de
aprendizagem ao longo da vida para todos”. O desafio da inclusão talvez seja o aspecto
mais ousado e difícil, pois não se trata apenas de ampliar vagas ou estabelecer cotas de
acesso, por exemplo. Trata-se, primeiramente, de definir o que se entende por inclusão, o
que remete a um conceito que vem sendo amplamente debatido, mas longe de ser
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esgotado, ou seja, o de diversidade. Porém, para além de simplesmente elucidar um
conceito, é preciso compreender as práticas de inclusão adotadas no âmbito universitário,
o que, por sua vez, ultrapassa meras formalidades e procedimentos burocráticos.
É neste sentido que se considera que, no contexto da diversidade, a relação
estabelecidos-outsiders se faz mais evidente, sendo necessária mais investigação, na
medida em que expressa uma relação de poder que pode se manifestar na forma de
homofobia, racismo e outras demonstrações de intolerância para com os diferentes e
“anormais”. Este é o propósito deste artigo, discutir na prática cotidiana como tais
relações vem sem vividas e percebidas, a partir do ponto de vista de seus “protagonistas”,
os considerados outsiders.
Inclusão/Exclusão: as relações de poder entre Estabelecidos e Outsiders
Considerando o incontornável objetivo da inclusão nos OSD 4, é preciso situar
seu significado. Embora a quantitativa seja fundamental, não se pode reduzir a inclusão
a esta única dimensão. Uma definição inicial a toma como
o processo pela qual a sociedade se adapta para poder incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades especiais e, simultaneamente, estas
se preparam para assumir seus papeis na sociedade. A inclusão social constitui,
então, um processo bilateral no qual as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade
buscam, em parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos (Sassaki, 1997, p. 3).
É preciso ressaltar que embora o autor se refira mais especificamente a pessoas
com necessidades especiais (pessoas com deficiência, por exemplo), entendemos
“necessidades especiais” de modo mais amplo, incluindo neste qualificativo qualquer
pessoa que não esteja nas mesmas condições do que aquelas que “normalmente” tem. Em
outras palavras, pessoas que tendem a ser ou sejam estigmatizadas, alienadas ou alijadas
das mesmas oportunidades dos demais, especialmente em função de preconceitos ou de
falta de igualdade de condições, por assim dizer. Neste conjunto, incluem-se os negros,
mulheres, pessoas com deficiência, pessoas em condição de vulnerabilidade, dentre
outros.
No caso da educação em particular, inclusão não diz respeito apenas a acesso em
termos quantitativos (dimensão quantitativa) – por exemplo, aumento do número de
vagas e de estudantes matriculados –, mas também a outras dimensões, como a
institucional (regulação jurídica), a social (envolvendo construção e desconstrução de
estereótipos), técnico-normativa (conhecimentos e procedimentos em diversos âmbitos,
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como família, trabalho etc.), da atividade ou do trabalho (possibilidades e
impossibilidades, condições de realização etc.), e subjetiva (imagem de si, identidade)
(Freitas et al., 2003).
Ao se pensar nas metas relativas à educação inclusiva diante das dimensões
apontadas, fica evidente que as estatísticas são capazes de perceber quase exclusivamente
a dimensão institucional (e a quantitativa), enquanto as demais não são captadas com
precisão por meio de procedimentos estritamente quantitativos. Neste sentido, é
relativamente comum se chamar de “democratização de acesso” o aumento de vagas, seja
por cotas ou não, por exemplo. Aliás, tal crítica já foi feita por Bourdieu e Champagne
(2007), ao se referirem ao ensino médio francês na década de 1950. Eles afirmam que a
entrada de categorias escolares antes excluídas não implicou, necessariamente, uma
mudança em suas posições sociais. Ao contrário, implicou um aumento da concorrência
e do investimento em educação por parte de categorias que já utilizavam, em grande parte,
o sistema escolar. Além disto, afirmam os autores que
Depois de um período de ilusão e mesmo de euforia, os novos beneficiários compreenderam, pouco a pouco, que não bastava ter acesso ao ensino
secundário para ter êxito nele, ou ter êxito no ensino secundário para ter acesso
às posições sociais que podiam ser alcançadas com os certificados escolares
[...] (Bourdieu, Champagne, 2007, p.220).
Como se pode perceber, o incremento do acesso não garante, necessariamente,
uma mudança no gradiente de poder, para utilizar uma expressão de Norbert Elias.
O conceito de inclusão implica a existência de seu oposto, ou seja, a exclusão.
Ambos dizem respeito às relações sociais – envolvendo indivíduos, grupos, organizações
e instituições –, o que remete às relações de pertencimento, reconhecimento, socialização
e, portanto, às relações de poder. Em outras palavras, remete ao conceito de identidade.
Identidade é um conceito esquivo, como diria Anselm Strauss (1999), bem como
possui entendimentos e perspectivas diversas, como a funcionalista, a interpretativa, a
pós-moderna (em suas diversas vertentes) e a crítica. De modo geral, excetuando-se as
concepções essencialistas, é ampla a aceitação de que a identidade é uma construção
social que se dá por meio de relações de poder.
Seja como for, trata-se da articulação entre o individual e o social, entre a biografia
individual e os processos sociais. Em tal articulação, uma pessoa pode experimentar um
“espectro de sentimentos que vai de relativa indiferença a violenta rejeição ou a orgulhosa
aceitação” (Strauss, 1999; p. 36). Da mesma forma, Elias (1994) entende que o fato de
uma pessoa receber um nome e de este nome ser registrado perante a sociedade faz com
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que o nome forneça a cada pessoa um símbolo, que lhe confere singularidade e uma
resposta à pergunta sobre quem ela é perante si mesma. Além disso, o nome também serve
de cartão de visita, indicando quem é aos olhos dos outros. “Também por esse pr isma,
vemos o quanto a existência da pessoa como ser individual é indissociável de sua
existência como ser social” (Elias, 1994, p. 151). Assim, “não há identidade-eu sem
identidade-nós. Tudo o que varia é a ponderação dos termos da balança eu-nós, o padrão
da relação eu-nós” (Elias, 1994, p. 152).
Castells (2001, p. 22) entende a identidade como um “processo de construção de
significado com base em um atributo cultural ou, ainda, um conjunto de atributos culturais
inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado”. O
autor entende que podem existir identidades múltiplas, tanto para o indivíduo quanto para
um ator coletivo (seu foco de discussão). Tal pluralidade é fonte de tensão e contradição
tanto na autorrepresentação quanto na ação social. As identidades, por sua vez,
“constituem fontes de significado para os próprios atores, por eles originadas, e
construídas por meio de um processo de individuação” (Castells, 2001, p. 23).
A construção de identidades “vale-se da matéria-prima fornecida pela história,
geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por
fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso” (Castells,
2001, p. 23). Tudo isso é processado pelos grupos sociais, sociedades e indivíduos, que
reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais
enraizados em sua estrutura social, como também em sua visão de tempo e de espaço.
O autor entende que a construção de identidades se dá num contexto marcado
pelas relações de poder e que, nesse sentido, as identidades construídas servem a pelo
menos três propósitos: legitimar a ação de dominação das instituições sobre os atores
sociais (identidade legitimadora); constituir trincheiras de resistência e sobrevivência
àqueles atores que se encontram em posição desfavorável pela lógica da dominação
(identidade de resistência); e redefinir a posição dos atores sociais na sociedade de modo
a transformar toda a estrutura social (Quadro 1).
Castells (2001) pondera que nenhuma identidade pode constituir uma essência e
nenhuma delas, per se, encerra valor sem a consideração do seu contexto histórico. Em
outras palavras, a identidade é construída num contexto específico e mediada pelas
relações estabelecidas entre grupos determinados.
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Quadro 1 – Identidade: formas e origens, segundo Castells
Baseado em Castells (2001).
Tal concepção é similar àquela proposta por Norbert Elias quando define
identidade, bem como quando articula identidades coletivas em torno dos conceitos de
“estabelecidos” e “outsiders”. Para este autor, os estabelecidos se referem aos
grupos/indivíduos dominantes – os detentores de poder e prestígio dentro de uma esfera
social –, enquanto os outsiders, por outro lado, são os que se encontram fora dessa
sociedade prestigiada, sendo atribuídos a eles características ou diferenças com o objetivo
de estigmatizá-los como forma de manutenção das relações de poder (Elias, Scotson,
2000). Em sua investigação, os autores observam como se dá a relação entre grupos de
moradores de três bairros numa pequena cidade inglesa, apelidada de Winston Parva,
constatando que um grupo mais antigo tratava o mais novo, estigmatizando-os como
“pessoas de menor valor humano” (p.19), pois se assumem “como pessoas ‘melhores’,
dotadas de um carisma grupal, de uma virtude específica que é compartilhada por todos
os seus membros e que falta aos outros” (p.20), sendo capazes, ainda, de fazer com que
os estigmatizados se sintam, eles mesmos, como carentes de tal virtude.
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Graças ao poder de coesão do grupo mais antigo, e por meio de aparatos de
controle social, “a exclusão e a estigmatização dos outsiders pelo grupo estabelecido eram
armas poderosas para que este último preservasse sua identidade e afirmasse sua
superioridade, mantendo os outros firmemente em seu lugar” (Elias, Scotson, 2000, p.22).
Percebe-se certa correspondência entre o que Elias chama de “estabelecidos” – um grupo
com forte identidade “positiva” – e o que Castells (2001) chama de “identidade
legitimadora”. Os outsiders, se e quando organizados, podem se configurar como um
grupo que resiste a tal imposição identitária, no que Castells (2001) chama de “identidade
de resistência”. Caso obtenham êxito, a identidade coletiva de resistência pode vir a se
tornar uma identidade de projeto, visando, quiçá, sua emancipação.
Segundo Goffman (2008), estigma refere-se a uma desqualificação de alguns
indivíduos frente à sociedade devido a características que os diferem dos demais. A
sociedade cria normas para categorizar as pessoas, elegendo alguns atributos como sendo
os esperados e “naturais” a todos, que acabam se tornando expectativas normativas que
devem ser apresentadas por todas as pessoas. Quando um indivíduo apresenta um atributo
ou uma marca que o difere dos demais, ele deixa de ser considerado uma pessoa comum,
sendo reduzido a uma pessoa diminuída e, com isso, depreciada frente aos demais. Como
se pode ver, Goffman também entende que a definição de “normal” e de estigma
(“anormal”) é uma construção social num contexto de relações de poder. Nesse sentido,
há grupos que se encontram em relações de subordinação – mulheres, negros,
homossexuais, etc. – que constituem uma identidade antagônica ao imaginário social
hegemônico, fazendo com que sejam subalternizados a partir do enfrentamento das
diferenças pelas relações de dominação (Costa, 2014).
Conforme Scotson e Elias (2000, p.20) explicam no caso por eles estudado, a
forma de manter tal relação de poder se dava, de um modo mais geral, por meio da recusa
dos estabelecidos a qualquer “contato social com eles [os outsiders], exceto o exigido por
suas atividades profissionais; juntavam-nos todos num mesmo saco, como pessoas de
uma espécie inferior”. Os autores explicam da seguinte forma:
Em suma, tratavam todos os recém-chegados como pessoas que não se
inseriam no grupo, como “os de fora”. Esses próprios recém-chegados, de depois de algum tempo, pareciam aceitar, com uma espécie de resignação e
perplexidade, a ideia de pertencerem a um grupo de menor virtude e
respeitabilidade, o que só se justificava, e, termos de sua conduta efetiva, no
caso de uma pequena minoria. Assim, nessa pequena comunidade, deparava-se com uma constante universal em qualquer figuração de estabelecidos-
outsiders: o grupo estabelecido atribuía a seus membros características
superiores; excluía todos os membros do outro grupo do contato social não
profissional com seus próprios membros; e o tabu em torno desses contatos era
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mantido através de meios de controle social como a fofoca elogiosa [praise
gossip], no caso dos que o observavam, e a ameaça de fofocas depreciativas
[blame gossip] contra os suspeitos de transgressão (Elias, Scotson, 2000, p.20). [...] o grupo estabelecido tende a atribuir ao conjunto do grupo outsider as
características “ruins” de sua porção “pior” [...] Em contraste, a auto-imagem
do grupo estabelecido tende a se modelar em seu setor exemplar, [...] na
minoria de seus “melhores” membros. Essa distorção pars pro toto, em direções opostas, faculta ao grupo estabelecido provar suas afirmações a si
mesmo e aos outros; há sempre um fato para provar que o próprio grupo é
“bom” e que o outro é “ruim” (Elias, Scotson, 200, p.22-23).
Como se pode perceber, a relação estabelecido-outsider é, fundamentalmente, um
relação de poder, jamais uma característica natural ou biologicamente determinada, como
grupos estabelecidos tentam fazer parecer, como no caso da questão do gênero e da raça,
por exemplo, foco deste artigo.
A utilização do termo “gênero” realça um conjunto de relações que pode incluir
sexo, mas que não é determinado por este. É uma categoria que se refere também às
questões de identidade e subjetividade e que são construídas tendo como referência um
determinado modelo de sociedade com padrões delimitados do que seja masculino e
feminino (Cortina, 2015). Segundo Scott (1995), gênero começou a ser utilizado como
sinônimo de mulheres, bem como para designar as relações sociais entre os sexos –
indicando as construções culturais. Torna-se uma palavra capaz de distinguir a prática
sexual dos papeis sexuais que são atribuídos aos homens e mulheres. O termo gênero faz
parte da tentativa empreendida pelas feministas de reivindicar uma definição para
enfatizar a incapacidade das teorias existentes para explicar as persistentes desigualdades
entre mulheres e homens.
O movimento feminista teve de tentar desconstruir o modelo patriarcalista de
sociedade, o qual se caracteriza pela autoridade imposta, institucionalmente, do homem
sobre a mulher e filhos no âmbito da família (Castells, 2008). Para Castells (2008), por
permear toda a vida social, o modelo está enraizado na estrutura familiar e na reprodução
sociobiológica da espécie, contextualizados histórica e culturalmente. O movimento
feminista vem ganhando maior relevo nos últimos, segundo o autor, devido à combinação
de quatro elementos: 1) Transformação da economia e do mercado de trabalho de forma
articulada ao aumento de oportunidades para as mulheres no campo da educação; 2)
Transformações tecnológicas ocorridas na biologia, medicina e farmacologia,
favorecendo maior controle sobre a gravidez e a reprodução humana; 3) Tendo como
pano de fundo as transformações anteriores, o patriarcalismo foi atingido pelo movimento
feminista, que foi capaz de se desvincular dos movimentos sociais e trabalhistas de cariz
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mais masculino, propondo uma agenda própria; 4) Rápida difusão de ideias no mundo
globalizado no qual pessoas e experiências se misturam.
O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças
percebidas entre os sexos e é uma forma primária de dar significado às relações de poder.
Isto é, num campo onde o poder é articulado, estrutura-se a percepção e a organização
concreta e simbólica da vida social. Sendo assim, a potencialidade analítica do conceito,
dentro dessa perspectiva, parte da noção de que mudanças na organização das relações
sociais correspondem às mudanças nas representações de poder, sendo esse o domínio do
pensamento acerca do gênero (Scott, 2016).
No entanto, é preciso, ainda, levar em conta que a noção de construção da
identidade não pode ser confundida com outro tipo de naturalização, ou seja, a identidade
construída culturalmente não pode levar à armadilha de se considerar a identidade como
destino, como se as regras e “leis” de uma cultura fossem determinantes inexoráveis da
identidade, como no caso daqueles que atribuem à biologia tal determinação
(Butler,2003).
De todo modo, fica clara a disputa entre perspectivas essencialistas ou políticas,
por assim dizer. Identidade como essência pressupõe naturalização e, consequentemente,
um destino a ser cumprido, daí o drama de muitos indivíduos ao lutarem “contra” seu
gênero “natural”, levando, inclusive, a um adoecimento psíquico, na medida em que o
reconhecimento social somente se dará em função da identidade de gênero estabelecida
como natural, portanto, “correta”, “normal”. Como veremos, o ser “normal” favorece o
fortalecimento de grupos “estabelecidos em oposição aos outsiders.
Tal como no caso do conceito de gênero, o de raça é uma construção social
desenvolvida para classificar as diferenças (a diversidade) entre os seres humanos, a partir
da dimensão biológica. O problema da classificação é a hierarquização estabelecida entre
as raças, numa escala de valores, em que foi erigida uma relação intrínseca entre o
biológico e as qualidades psicológicas, morais, intelectuais e culturais. Nos termos de
Kabengele Munanga (2003, p.5),
os indivíduos da raça “branca”, foram decretados coletivamente superiores aos
da raça “negra” e “amarela”, em função de suas características físicas hereditárias, tais como a cor clara da pele, o formato do crânio (dolicocefalia),
a forma dos lábios, do nariz, do queixo, etc. que segundo pensavam, os tornam
mais bonitos, mais inteligentes, mais honestos, mais inventivos, etc. e
consequentemente mais aptos para dirigir e dominar as outras raças, principalmente a negra mais escura de todas e consequentemente considerada
como a mais estúpida, mais emocional, menos honesta, menos inteligente e
portanto a mais sujeita à escravidão e a todas as formas de dominação. A
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classificação da humanidade em raças hierarquizadas desembocou numa teoria
pseudo-científica, a raciologia, que ganhou muito espaço no início do século
XX. Na realidade, apesar da máscara científica, a raciologia tinha um conteúdo mais doutrinário do que científico, pois seu discurso serviu mais para justificar
e legitimar os sistemas de dominação racial do que como explicação da
variabilidade humana. Gradativamente, os conteúdos dessa doutrina chamada
ciência, começaram a sair dos círculos intelectuais e acadêmicos para se difundir no tecido social das populações ocidentais dominantes. Depois foram
recuperados pelos nacionalismos nascentes como o nazismo para legitimar as
exterminações que causaram à humanidade durante a Segunda guerra mundial.
No Brasil, a dominação por raça se deu, no início do século 20, por meio da
disseminação da eugenia, que tinha como pressuposto a hereditariedade não apenas de
traços físicos, como também de capacidade intelectuais, traços comportamentais,
habilidade poéticas e artísticas. Difundida por meio da Faculdade de Medicina da Bahia,
ajudou a propagar a ideia de que os negros foram responsáveis, inclusive, pela
disseminação de doenças, o que levou à associação da eugenia com práticas higiênicas e
de saneamento. A eugenia tem como premissa fundamental o determinismo biológico,
constituindo-se numa ideologia que tem servido como justificativa da dominação social,
naturalizando as desigualdades sociais (Teixeira; Silva, 2017).
Se o determinismo biológico é tomado como correto e, portanto, aceito e
legitimado (para explicar tanto a questão da raça quanto do gênero), não parece fazer
sentido se falar em políticas e práticas inclusivas, na medida em que a genética “vence”
o social e político, por assim dizer. Portanto, problematizar esta questão ainda se faz
necessário.
Em outras palavras, colocar as diferenças em termos de uma categoria biológica
é naturalizar e des-historicizar a diferença, confundindo o que é histórico e cultural com
o que é natural, biológico e genético, é colocar a identidade em uma perspectiva
essencialista (Hall, 2009). Ao mesmo tempo, por mais que os cientistas reconheçam e
afirmem que raça é um conceito incapaz e não operacional para explicar a diversidade
humana (Munanga, 2005-2006), ele ainda povoa o imaginário social em larga medida,
com consequências graves para os grupos estigmatizados.
De certo modo, aqueles que formulam determinadas regras acerca do que é certo
ou errado, do que é permitido ou não, constituem aqueles que Becker (2008) denomina
de “empreendedores morais”. A rigor, são dois tipos de empreendedores morais: o criador
de regras e o impositor de regras. Para o autor, eles muitas vezes se vêem como
verdadeiros cruzados, pois consideram sagrada sua missão de fazer com que o mundo
funcione corretamente. Podem até ser bem intencionados, mas acabam por impor sua
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compreensão e visão de mundo particular a todos os demais, sejam eles cientistas,
psiquiatras, governantes e assim por diante (Becker, 2008). Como se pode perceber,
dependendo da configuração das relações de poder, estes empreendedores morais podem
exercer uma influência maior ou menor nas relações sociais.
Pesquisas desenvolvidas em inúmeros contextos, incluindo as universidades,
indicam que a representação das diferenças sociais é um reflexo das relações de poder
que estigmatizam pessoas e grupos sociais negando a eles oportunidades iguais e
conferindo-lhes uma identidade estigmatizada (Oliven, 2007).
Diante do exposto, e tendo em vista a meta da educação inclusiva no âmbito dos
ODS, será abordado um estudo de caso que trata da inclusão/exclusão de indivíduos que
representam, a priori, grupos excluídos, marginalizados ou estigmatizados. Ressaltamos
que não se trata de escolher indivíduos particulares, mas sim aqueles que representam –
e fazem parte – grupos cujas “normas de comportamento” ou “características distintivas”
são consideradas “desviantes” ou “não pertencentes” a determinado contexto. Embora
uma universidade seja um ambiente diverso e “universal”, portanto aberto à diversidade,
os dados empíricos não tem comprovado uma inclusão em todas as dimensões apontadas
anteriormente, a despeito de políticas de cotas para negros e outros casos, por exemplo.
Não se trata, portanto, meramente de inclusão numa perspectiva numérica, mas,
sobretudo, o sentido desta inclusão.
Metodologia
A pesquisa foi realizada numa universidade federal localizada no estado de Minas
Gerais, em que foram entrevistados três membros de coletivos, a saber: coletivo de gênero
(mulher), coletivo de negros e coletivo LGBT (Lésbicas, gays, bissexuais e transexuais).
A escolha dos participantes teve por objetivo atender ao critério de inclusão dessa
investigação que consiste em ser membros de grupos considerados socialmente como
outsiders e aceitarem participar da pesquisa. Os coletivos são formas de mobilização da
juventude que visam promover debates, e são baseados em valores da igualdade,
autonomia e horizontalidade, buscando soluções para questões específicas, tais como o
gênero, sexualidade, raça etc., buscando ser um movimento instituinte (Guimarães, Silva,
2014) e trazem para o cenário das discussões as normas instituídas pela sociedade que
produz e reproduz as desigualdades sociais.
Por ser uma pesquisa qualitativa, pressupõe-se que os sujeitos “têm um
conhecimento prático, de senso comum e representações relativamente elaboradas que
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formam uma concepção de vida e orientam suas ações individuais”, ainda que isso não
implique um conhecimento crítico que relacione os saberes específicos à totalidade e as
experiências individuais ao contexto geral da sociedade (Chizotti, 1991, p. 83). É nesse
sentido que a pesquisa qualitativa e seus métodos partem da perspectiva ou das ações do
sujeito estudado (Alvesson, Sköldberg, 2000).
Os dados foram coletados por meio de entrevista gravada e depois transcrita,
mediante aceitação do termo de consentimento livre e esclarecido. As entrevistas foram
semiestruturadas (Triviños, 1987), e abordaram questões básicas como: a compreensão
acerca dos coletivos; a visão dos sujeitos acerca da diferença de tratamento dentro das
universidades em relação a esses grupos; a opinião deles acerca do preconceito e
discriminação dentro da universidade; e relativas a identidades, do tipo como se veem e
como são percebidos e pelos outros.
A entrevista tem a vantagem de obter dos entrevistados fatos e opiniões expressas
sobre acontecimentos, sobre os outros e sobre eles mesmos, além de informações sobre
evolução de fenômenos, algum conteúdo latente e significação das respostas (Bruyne et
al., 1991), bem como permite a combinação de convites para a narração de
acontecimentos concretos com perguntas mais gerais e que busquem respostas mais
amplas de relevância pontual, além de pressupor certa experiência dos entrevistados sobre
as situações, acontecimentos ou processos estudados (Flick, 2003).
As entrevistas transcritas foram lidas diversas vezes pelos pesquisadores, visando
a agrupar e a classificar os dados em categorias temáticas (Bardin, 1994) que refletissem
as principais percepções, entendimentos e compreensões dos entrevistados sobre o lugar
de outsiders dentro da universidade. Foram identificadas três principais categorias
temáticas em suas respostas: repercussões sociais da pertença à diferentes grupos de
outsiders; repercussões subjetivas com formas de introjeção diferenciadas frente à
atribuição de características depreciativas pela sociedade; ações e procedimentos
insuficientes da instituição frente à discriminação de alunos tidos como outsiders.
Convém destacar que os eventuais grifos nos depoimentos são nossos.
14
Estudo do caso
O objetivo mais geral do OSD4 de “assegurar a educação inclusiva, equitativa e
de qualidade...” passa, inicialmente, pelo o que se entende por inclusão. O documento de
referência não a define objetivamente, mas é possível inferir seu significado diante do
conjunto de OSD e das respectivas metas. No que diz respeito às metas específicas à
educação, o Quadro 2 traz em destaque o que diz respeito ao nível superior mais
objetivamente (metas 4.3, 4.4 e 4.5).
Quadro 2 – Metas da educação 2030, ODS (ONU)
Fonte: UNESCO (2015).
15
As metas educacionais, embora evidenciem a questão do gênero, não o fazem em
relação à raça, pontuando mais claramente apenas indígenas, pessoas com deficiência e
em situação de vulnerabilidade. Na melhor das hipóteses, pode-se considerar que a meta
4.3, relativa à igualdade de acesso, englobe a questão da raça, e dos negros em particular.
No caso brasileiro, como já sabido, a maior parte da população é negra, o que se reproduz
na universidade pública no que diz respeito à quantidade de estudantes matriculados,
segundo dados do INEP (2015).
No caso da universidade pesquisada, foram evidenciados os casos relativos à
inclusão relativa ao gênero (mulheres, LGBT) e à raça, conforme explicitado
anteriormente. Como se verá, o acesso não se resume meramente à quantidade de vagas
disponibilizadas. A universidade em questão, por exemplo, possui o programa de cotas
para negros, o que se encaixa na dimensão de oportunidade de acesso mais democrática,
a despeito das críticas daqueles em desacordo com tal política, mas que não serão
abordadas aqui diretamente. No entanto, o foco deste artigo recai sobre outras dimensões
da inclusão, e não apenas sobre a quantitativa.
A inclusão sob o ponto de vista dos entrevistados
Repercussões sociais da pertença à diferentes grupos de outsiders
A partir das entrevistas foi possível identificar que as repercussões sociais para os
grupos de mulheres, negros e grupo LGBT tinham similaridades e diferenças. A principal
similaridade é a percepção de que esses grupos são tidos como menos capazes que os
demais na convivência e na realização das atividades diárias em sala de aula.
Eu vejo muito, comparando por exemplo duas pessoas que tem mais ou menos
o mesmo tipo de iniciação científica, o homem é muito mais privilegiado
sabe? Todo mundo já olha para ele como o brilhante, mesmo ele não fazendo
nada. Enquanto as mulheres sempre acabam tentando se colocar muito nas coisas, essa necessidade de ter que provar nosso valor.
O negro de modo geral, dentro do circuito artístico, desde seu início até as suas cadeias mais altas ocupa um lugar subalterno. A gente não está nas galerias, a
gente não está nas exposições, a gente não está nos grupos de faculdade [...]
Teve uma exposição do Instituto de dez anos... Dez anos de Instituto e tinha
um artista negro expondo de, sei lá, quinze artistas. E assim, esse artista nem tava lá, sabe? Prestígio nenhum, mérito nenhum ali. A arte, o cenário da arte,
é um ambiente que tem essa particularidade racista que é muito forte. A gente
realmente é vetado dos espaços e, quando passa, passa como se fosse uma
cota. Porque “precisa ter um artista negro se não nós estamos sendo
racistas”. É sobre isso, não é sobre valorizar o nosso trampo ou gostar do nosso
trampo1.
1 “Trampo”, na gíria, significa “trabalho”.
16
E os LGBTs estão sofrendo opressões estruturais. Por mais que não seja de
tomar uma lâmpada na cara, é opressão de, sei lá, de rebaixamento de classe,
de evasão escolar alta, de coisas estruturais mesmo... Não necessariamente do coleguinha fazer uma piada com você. Mas de questões objetivas da sua vida
que sua sexualidade e sua identidade de gênero são entraves pra você
permanecer no ambiente acadêmico. Não que as questões de piadinha e de
opressão estejam fora dos muros da universidade.
A depreciação feminina baseada na superioridade biológica do homem é logo
percebida nos depoimentos, especialmente no sentido de que as mulheres têm sempre de
“provar seu valor”, conforme destacado no depoimento. No caso dos negros, o
depoimento é contundente, no sentido de que eles se percebem como se fossem
meramente “uma cota”, sendo politicamente ter cota para que não configure racismo por
parte de grupos ou instituições. No caso específico do coletivo LGBT, evidencia-se logo
que a “identidade de gênero” é entrave para o convívio no meio acadêmico. Em todos
estes depoimentos, o estigma é evidente. Ao mesmo tempo denota que, embora haja
acesso por quantidade, a inclusão é um processo difícil, em que os “estabelecidos”, de
alguma forma, ainda não são capazes de realizá-la efetivamente, seja por que motivo for.
Além disso, os entrevistados afirmaram que suas possibilidades de carreira
tendem a ser mais desvalorizadas socialmente: às mulheres são destinadas as funções
eminentemente de cuidado, aos negros as funções mais subalternas da sociedade (faxina,
etc.) e ao grupo LGBT, funções terceirizadas.
Eu acho assim que ocupar um espaço de mulher dentro de uma universidade é
algo muito político, porque a gente acaba sendo sempre muito escanteanda pra coisas tipo de cuidado, muito específicas, né? É difícil, por exemplo, vou dar
um exemplo bem bobo, mas ele é muito fácil de ilustrar. Por exemplo, tem uma
atividade pra discutir política no geral, os homens quando discutem conjuntura,
economia, sempre vão discutir assim... A identidade, tudo isso que são polos muito importantes para ter mulheres, até por causa da representatividade e
tudo, mas temos muita dificuldade em acessar os espaços .
E também outra coisa que me incomoda muito é olhar à minha volta e ver um pátio (universitário) majoritariamente composto por pessoas brancas uma vez
que a sociedade brasileira é composta por 53% de pessoas negras... então,
assim, era, no mínimo, pra ter um número igualitário. No mínimo, né? Mas
estruturalmente isso é impossível. E eu percebo que quando eu olho, sei lá, na salinha de limpeza a maioria das pessoas que estão ali são negras. Isso
também é um racismo cotidiano difícil. E saber que, sei lá, há alguns anos atrás,
antes de se aposentar, era a minha avó que tava naquela salinha. Minha mãe já
passou por ali.
A LGBTfobia da nossa sociedade é refletida aqui (na universidade). Em alguns
lugares mais, em alguns lugares menos... Mas sim. Esses casos de opressão de professor com aluno, e de professores LGBT sofrendo opressão, trabalhadores
LGBT sofrendo opressão... Estando nos postos mais precarizados , tendo
rebaixamento de classe, estando nos cargos terceirizados muitas vezes. Isso é
um reflexo da nossa sociedade.
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Também a questão da segurança em relação à integridade física apareceu nas
entrevistas.
Primeiro porque os homens dificilmente vão ter problemas de assédio, problemas de segurança.
Acho que o mais pesado é com pessoal da segurança. Já aconteceu de um
segurança apontar arma pro pai de uma amiga nossa porque ele tava dentro do próprio carro, só que ele tava usando uma touca e tinha um berimbau do lado
dele. Aí o cara achou que ele tava armado, sabe? Esse tipo de coisa acho
que é muito pesada. Esses abusos da segurança. Já fui constrangido por um
segurança e um policial dentro do campus, saindo da aula a noite.
É importante notar que, embora o preconceito seja muitas vezes tido como sutil,
quando ele assume as vias de fato, ele coloca em risco a segurança das pessoas. No caso
do pessoal de segurança, houve a pressuposição de alguém que estava ali não deveria
estar (outsider), por conta do estereótipo dominante – negro com touca dentro de um carro
parado “só pode estar armado”, “é no mínimo suspeito”, segundo a representação do
senso comum no país.
Nos dois casos, as possibilidades de defesa dos grupos tidos como outsiders ficam
muito limitadas, cabendo-lhes o lugar de submissão para a preservação da integridade
psicológica e/ou física. O segurança, baseado no estereótipo, acaba desempenhando o
papel de empreendedor moral (Becker, 2008) que visa impor a regra, ainda que sem
evidência concreta alguma de que “há algo errado”.
Algumas diferenças também puderam ser identificadas. No grupo das mulheres a
questão da naturalização das diferenças e a dificuldade na identificação de determinados
comportamentos como assédio sexual ou moral é mais comum.
Eu acho que a gente acaba sendo forçada a aceitar essa identidade, sabe?
A gente tem que se colocar numa posição e fazer muita desconstrução, e
pensar, fazer muita reflexão sobre o nosso papel pra poder sair dessa posição,
sabe? Tem gente que acha aquilo é tão natural que a gente acaba achando
que é natural, que é assim mesmo. Eu acho que, mesmo hoje tendo muito
mais debate sobre identidade e tudo isso, a maior parte das mulheres ainda não
conseguiu perceber essas coisas de fato.
Vejo, principalmente as que acabam de chegar assim, que são essas que contam histórias. Aí tem que fazer muito debate, mostrar que isso que você sofreu foi
um assedio, foi uma violência... e não é porque o mundo é mal, mas porque
são construções, não são malvados e bonzinhos. A gente naturaliza.
No grupo de negros, a questão da inferiorização da contribuição da cultura
afrodescendente é o mais marcante: não há nos currículos escolares autores negros, além
da inferiorização das contribuições dos negros.
Tipo assim, o pior problema em sala de aula é quando o professor acaba
falando coisas racistas. A história muitas vezes é contada de forma racista. Quando trata, por exemplo, artes de matriz africana, com estéticas do
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continente africano assim, de modo geral, como algo primitivo. Isso são ações
racistas cotidianas que vai adoecendo a gente. A gente vai ficando cansado,
saturado de ouvir isso, tratado como exótico tudo que é relativo ao negro. Enfim, desqualificado isso e imposto sobre nós numa questão eurocêntrica.
O depoimento acima é emblemático, pois remete à ideia de que o europeu é o
civilizado, e, o negro, o primitivo, o selvagem, tal como difundido no início do século
XX, por meio do ideal eugenista. A percepção do entrevistado em relação à postura de
certos professores amplifica o problema, pois no ambiente plural que a universidade é –
ou deveria ser – a última atitude que se espera é a racista por parte de um professor, cuja
disciplina, no caso citado, discute justamente as tradições culturais e artísticas, diversas
“por natureza”. O qualificativo “exótico” acaba por denotar a ideia de “desvio”, portanto,
de outsider.
Além disso, aparece uma questão que pode ser denominada como presença-
ausente desse grupo, que representa numericamente a maior parte da população brasileira,
que está em uma ínfima minoria nas universidades e que, quando presentes, têm
dificuldade em fazer literalmente parte dos grupos de maioria.
Cara, tipo assim, o círculo de amigos de uma pessoa branca é sempre majoritariamente branco dentro do espaço universitário. Existe um não
querer estar perto, preferir não estar junto. É muito subjetivo... Agora é um
pouco mais mascarado porque as pessoas são meio desconstruídas, né? Então
acontece isso. Mas de modo geral existe uma certa segregação, uma certa distinção sim. Mas é muito complicado explicar isso.
E essas pessoas de classe social mais alta, consequentemente acabam
frequentando espaços majoritariamente brancos . Elas lidam com pessoas brancas durante toda a vida. Então a sociabilidade dela com pessoas negras
é diferente. Porque existe um racismo embutido na cabeça delas que tá na
mídia, que tá em todos os veículos midiáticos que não têm representatividade,
que não falam sobre nós. Nós não existimos pra essas pessoas, de modo geral, sabe?
As pessoas brancas que entraram comigo firmaram laços de amizade com
outras pessoas brancas veteranas muito mais rápido do que eu, entendeu? Estando nos mesmos lugares, frequentando as mesmas festas, fazendo as
mesmas coisas, sabe? Essa é a diferença de sociabilidade que eu tô falando. E
existe uma relação superficial de coleguismo, certa amizade... Mas quando
se trata de uma outra pessoa branca essa relação de coleguismo evolui pra uma relação de amizade verdadeira muito rápido.
Como apontam os depoimentos, o pertencimento é relativo, na medida em que é
superficial, como uma espécie de tolerância, mas não pode identificação, o que se
expressa no “preferir não estar junto”, a divisão dos espaços, bem como a relação de
“amizade verdadeira” observada. Some-se a isto a menção à diferença de classe
econômica, que parece ser, também, um elemento significativo no processo de
sociabilidade (e socialização).
19
No grupo LGBT as questões institucionais ganham um peso maior ao não
regulamentar os direitos iguais a essas pessoas como nome social; banheiros, conforme
identidade assumida pelas pessoas, etc.
A gente conseguiu, por meio da mobilização e da atuação de coletivos, várias
conquistas aqui dentro da universidade como o direito à carteirinha com nome
social, de maneira até bem desburocratizada; a regulamentação do banheiro pra pessoas trans usarem o banheiro de acordo com o gênero ao qual elas se
identificam... Mas, assim, a universidade ainda é um lugar opressor pras
LGBT. A gente tem uma taxa de evasão escolar muito alta pra LGBT, a
gente não tem política de assistência estudantil específica pras LGBTs, a gente tem muito caso de assédio moral... Porque assim, assédio moral
dentro da universidade a gente sabe que é generalizado, todos os estudantes
sofrem assédio moral aqui dentro. Mas isso tem um recorte muito grande
quando você está falando de LGBT, porque são assédios motivados pela questão da sexualidade, da identidade de gênero. A gente tem caso de
desrespeito dessa questão de nome social.
O depoimento aponta uma situação muito problemática institucionalmente, na
visão do entrevistado, que é o assédio moral, o qual é todo como generalizado, porém
amplificado no caso dos indivíduos LGBT, exatamente pela identidade de gênero. Na
prática, o depoimento aponta a dificuldade ou a ausência de reconhecimento de outra
identidade no contexto da relação social, sendo que, no caso da relação professor-aluno,
a relação de poder é muito assimétrica, a despeito das regras institucionais exigirem uma
postura de respeito à diversidade.
Repercussões subjetivas com formas de introjeção diferenciadas frente à atribuição de
características depreciativas pela sociedade
A partir das entrevistas foi possível identificar que existem três possibilidades de
fazer frente à atribuição de uma identidade inferiorizada:
1. Por meio da negação ativa do que lhe é atribuído, via atitude combativa e de
explicitação da discriminação. De certo modo, por implicar uma postura mais
“combativa”, aproxima-se do tipo de identidade de resistência apontada por Castells
(2001), embora, por vezes, seja mais uma atitude individual do que uma real e efetiva
mobilização coletiva.
É algo que eu sei que existe. Só que, em resposta a isso, eu acabo entrando em um modo mais combativo, de tipo assim: “Ah, tá bom. Então não vão me
chamar pra fazer parte dessa sua exposição? Eu vou fazer a minha, sabe? Eu
vou fazer com os meus, vou chamar aqui a minha galera e vamos fazer.”
20
Então, acho que eu tento assumir essa postura mais combativa enquanto
não chego à exaustão.
Teve uma vez que eu escrevi um... Eu escrevo, né? Eu trabalho com arte. Eu
pinto, escrevo... faço todas essas coisas. Aí teve uma vez que eu escrevi um
texto que falava assim que tinham jogado um cachorro dentro do meu quintal
e esse cachorro era muito bravo. E aí a primeira vez que eu tive que lidar com ele, ele me mordeu e eu fiquei muito mal. Aí, depois, em dado momento, eu
tomei coragem e enfrentei o cachorro e meio que destruí ele e remontei ele
de novo. E aí eu passei a lidar com ele. Assim, eu nunca quis a presença dele
ali e ele também não queria estar lá. Mas eu criei ele, cuidei dele e agora ele chama autopreservação.
2. Pela internalização e assunção da identidade inferior (essencialização e naturalização
da identidade). Neste caso, a identidade legitimadora apontada por Castells (2001) parece
presente – no caso da avó do entrevistado – e internalizada, reproduzindo a desigualdade
baseada na crença da inferioridade de uma raça em relação à outra, historicamente. No
entanto, esta não é a posição do entrevistado que, ao contrário, a problematiza.
Mas por exemplo, minha avó ela é totalmente essa pessoa aí. Totalmente, totalmente. Ela solta às vezes uns comentários assim: “Ah, porque preto é
fedido”, negócio assim, sabe? E aí você fala: “Que isso, vó?!” e aí ela fala:
“Mas não é?”, e você fica assim: “Claro que não! (risos) você é fedida? Eu não
sou!”. É... é um negócio que até mesmo... Você já ouviu falar do Frantz Fanon? Frantz Fanon2 é um psicanalista negro lá da... ele estudou na França. Ele é da
Costa Rica? Acho que é do norte da África... de um país ali do norte da África.
Aí ele fala, ele tem um livro muito bom que chama “Pele negra, máscaras
brancas”, em que ele fala dos efeitos psicanalíticos do racismo na mente de uma pessoa preta, sabe? Ele fala sobre a maneira como chega um nível que é
patológico, sabe? Por exemplo, minha avó assim... Ela é velha. Ela cresceu
ouvindo isso, ela era filha da faxineira da escola particular, e estudava ali no
meio dos brancos também e assim... a única preta, e era filha da faxineira, e elas eram muito pobres, moravam em uma casa de um cômodo, e todo aquele
caos e nãnãnã... E toda essa vivência de racismo deve ter feito ela introjetar
isso totalmente na mente dela.
3. Pela via da desistência, quando o sofrimento chega ao limite da capacidade de luta e a
pessoa desiste, começando a faltar às aulas e mantendo-se apenas nos grupos de negros.
Aí quando eu chego à exaustão eu só desanimo e não quero a faculdade. Aí eu
começo até a faltar um pouco, ou então chego na hora da aula e já vou embora
bem rápido. Perco o tesão. Isso geralmente acontece todo período, mas... e não é só aquele desgaste acadêmico, é de fato ficar cansado de toda essa
realidade e de, tipo assim, cansar, e deixar toda essa gente muito bosta,
muito chata e muito desinteressante e preferir ficar em casa. Esse é o ponto
da exaustão.
2 Frantz Fanon (1925-1961) “foi ao mesmo tempo psiquiatra, ensaísta e militante político ao lado da Frente de Libertação Nacional da Argélia (FLN), com a qual compartilhava a causa independentista. Martinicano,
faz parte do grupo de intelectuais negros cuja importância a França tem dificuldade em reconhecer, embora
tratem de uma história comum a todos. Anticolonialista radical, de escrita altamente literária e retórica,
contribuiu para aclarar não só a história, mas também reflexões e debates contemporâneos. Preferem, no entanto, esquecê-lo sob o rótulo de ‘profeta fracassado’”. Le Monde Diplomatique Brasil. Cultura da
Resistência. Frantz Fanon, uma voz dos oprimidos. Disponível em < https://diplomatique.org.br/frantz-
fanon-uma-voz-dos-oprimidos/>. Acesso em 25 ago. 2018.
21
Ações e procedimentos insuficientes da instituição frente à discriminação de alunos
tidos como outsiders
Nas três entrevistas, um aspecto que aparece de forma muito intensa refere-se às
políticas institucionais e à necessidade de tê-las e melhorá-las para que abranjam todos
os grupos e estes se sintam contemplados. Houve críticas acerca dessas políticas e da
forma como são efetivadas, demonstrando descontentamento e indignação por parte dos
grupos menos favorecidos.
Olha, todas as vezes que eu vi, a universidade assim, teve ações no sentido de
coibir a ação, mas o auxílio à vítima foi muito “entrucado”. As campanhas também são sempre mais superficiais. As ações mesmo, de combate às coisas,
são em geral de alunos, alguns professores se envolvem, mas a universidade
enquanto instituição eu não vejo como uma coisa que atrapalha, mas não
ajuda. Fica burocratizando demais tudo.
Acho que é mais necessário as ouvidorias serem mais preparadas, ter uma
rede de apoio psicossocial também maior. Porque é muito difícil conseguir
um apoio psicossocial aqui. Em geral é o que as pessoas mais precisam depois, porque se a denúncia é feita, abre um processo. Tudo bem que a pessoa
pode até sair da universidade pelo que aconteceu, mas e a vítima? Não tem
muito esse amparo enquanto ser humano. É o que eu falei, é sempre esse
processo de burocratização... grupo de apoio também... na hora da resolução acaba parecendo que não é um ser humano.
Pra ser sincero eu acho a universidade assim... é... um pouco... “pra inglês
ver”. Muitas ações, muita divulgação, muita coisa e tal... Mas, sei lá, quando
a gente teve esse problema do pai da menina que foi intimidado pelo segurança da universidade que estava armado, sem ter feito o devido curso pra portar
aquela arma, apontando aquela arma pra uma pessoa negra dentro de um
carro... Enfim. Esse caso foi muito omitido. Nós não conseguimos que... a
universidade não fez aquilo que a gente estava procurando, que a gente esperava. Não deu o acolhimento necessário pra família, pro cara. Isso foi
muito forte pra gente. Nossa, foi um dia horrível. Mas em uma situação
tão absurda quanto essa, não deu a devida atenção que deveria ser dada. Mas de repente uma ótima campanha de “Quantos professores negros você tem?”, e coloca em todos os cartazes com fotos, em todos os paineis da
universidade com fotos de professores negros da universidade, sabe? Tá, uma
coisa legal. Mas é muito assim, esse negócio pras pessoas verem, que passam
aqui de carro. Mas só que o aluno, de fato, não tem todo o suporte necessário da universidade. Acho que esse é um problema muito sério.
A gente precisa pautar a política de assistência estudantil específica pra
LGBT porque a gente vê a burocracia que é pra você conseguir uma bolsa de
apoio, por exemplo. Exigem um tanto de documento, e pras LGBTs que
sofrem opressão em casa, muitas vezes são expulsas de casa, é muito difícil
conseguir documento do pai pra comprovar renda. E muitas vezes a pessoa
nos critérios pra conseguir a bolsa ela teoricamente não vai cumprir por causa
da questão da família dela.
Quando a gente não tem política de permanência estudantil ampla que
contemple de fato todos os estudantes, isso atrapalha todos os estudantes da
universidade. E aí você que é LGBT, que já sofre essas opressões, esse tipo de ausência de política LGBT, de acesso a política de assistência estudantil, de
condição de permanência na universidade... Então quem é LGBT sofre
duplamente com isso. Quando a gente tem conivência, quando a
22
administração superior é conivente com os casos de assédio moral, quando
muito pouco é feito disso, quando você precisa de uma ocupação de
reitoria, você precisa de meses de ocupação pra conseguir fazer alguma coisa com o professor que fica assediando aluna, quando a gente é conivente com
isso, quando a gente não consegue ser efetivo no combate a isso.
Eu era muito amigo do N. (caso de suicídio de um aluno da universidade). Eu
era muito próximo dele. Um pouco antes de ele morrer, teve um prova que ele fez e escreveu o nome social dele. Era pra ser respeitado e tal, até dentro das
normas da universidade. O professor riscou o nome dele e escreveu o nome
de registro em cima. E nada foi feito em relação a isso.
Psicólogo da universidade é muito restrito, é muito burocrático pra você conseguir. É muito pouco o número de profissionais que estão pra atender
os estudantes. Essa política é muito importante e é muito difícil de você ter
acesso a ela. Tem esse serviço, mas muito difícil pras pessoas que não tem
condição de ter o psicólogo pagando, ter acesso a isso dentro da universidade. Porque é muito restrito o número de profissionais que têm pra atender, sei lá,
vinte mil alunos.
Os entrevistados reconhecem ações desenvolvidas pela universidade, mas as
consideram pouco ou não efetivas em casos mais graves, como no caso do assédio moral,
especialmente quando envolve professores. A estrutura também é considerada precária,
por exemplo, quando se referem ao despreparo de certos profissionais que atuam na parte
burocrática, e quando apontam quantidade insuficiente de profissionais, como os
psicólogos, para cuidarem das pessoas assediadas e estigmatizadas.
Considerações finais
A questão da diversidade é um tema pujante e está na ordem do dia, sendo
totalmente alinhado à questão da inclusão. No caso da educação no âmbito da Agenda
ODS4 para 2030, a meta de inclusão ainda está muito distante de se tornar uma realidade,
pelo menos no caso brasileiro. Mesmo que os números – quantidade de vagas, de
mulheres, negros e LGBT, por exemplo – estejam melhores do que no passado recente, a
dimensão quantitativa ainda precisa ser melhorada, especialmente no caso dos negros (e
das classes menos favorecidas economicamente, embora não analisadas aqui).
A dimensão institucional (regulação jurídica) é relativamente atendida, na medida
em que existe a lei de cotas e, no caso da instituição investigada, suas próprias normas e
políticas afirmativas (dimensão técnico-normativa) têm procurado reconhecer e atacar a
intolerância às diferenças e a consequente estigmatização de pessoas e grupos. No
entanto, ainda são percebidas como insuficientes, mesmo com alguma estrutura
implementada. Neste sentido, fica evidente que a mera quantidade ou a simples existência
de “estruturas” não são capazes de resolver a problemática, sobretudo no que diz respeito
23
às relações de poder, pois estas permeiam as relações sociais como um todo e, embora
perpassem a universidade, também a ultrapassam. Porém, internamente, a configuração
das relações de poder ainda é capaz de reproduzir a relação de inferiorização e
estigmatização, mantendo, ainda, a vigência de certos estereótipos mediante identidades
legitimadoras, dificultando avanços na dimensão social. Este conjunto de elementos irão
repercutir na dimensão da atividade dos próprios estudantes, na medida em que são
preteridos em seleção de bolsistas, de estágios, de atividades artísticas, dentre outras. Ao
mesmo tempo, no que diz respeito à dimensão subjetiva, os indivíduos têm procurado e
se organizado em torno dos coletivos, de modo a adotar uma identidade de resistência,
mais combativa, construindo e contribuindo para políticas de identidade que alcancem
maior reconhecimento numa sociedade que vem se tornando cada vez mais plural, embora
ainda muito intolerante com as diferenças e com a diversidade.
Neste sentido, a política de educação inclusiva no contexto dos ODS é
fundamental, pelo menos como mecanismo indutor. Mas é preciso compromisso por parte
de estabelecidos e outsiders, por assim dizer, na construção deste ambiente mais plural e
democrático. E cabe à universidade uma enorme responsabilidade de, pelo menos em seu
interior, ser capaz de proporcionar tal contexto, embora não deva se limitar apenas a isto.
Problematizar a situação é fundamental, mas ações concretas devem ser realizadas, de
modo a deixarmos de ver o diferente como desvio, o estabelecido como o certo e o
outsider como um mal a ser combatido.
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