A degradação docente, a falência do projeto formativo e a perpetuação do estado de menoridade...

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Ítaca 25- Edição Especial A degradação docente, a falência do projeto formativo e a perpetuação do estado de menoridade existencial no capitalismo educacional Renato Nunes Bittencourt 159 A degradação docente, a falência do projeto formativo e a perpetuação do estado de menoridade existencial no capitalismo educacional Renato Nunes Bittencourt Resumo: O artigo aborda a degradação cultural promovida pela inserção de parâmetros econômicos alheios ao autêntico projeto de promoção da educação em nossa estrutura social, e de que maneira vivemos uma crise da atividade profissional do professor a partir da ofensiva neoliberal. Palavras-Chave: Mercantilismo. Tecnocracia. Emancipação. Menoridade. Educação Abstract: The article discusses the cultural degradation promoted by inserting economical parameters unrelated to the authentic education promotion project in our social structure, and that way we have a crisis of professional activity of professor from the neoliberal offensive. Keywords: Mercantilism. Technocracy. Emancipation. Minority. Education. Para Luigi Bordin, pelo aprendizado crítico contra a ditadura do Capital Nota Prévia: Este artigo é fruto dos estudos realizados na linha de pesquisa DOCÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Docência e as Tecnologias Contemporâneas desenvolvido na FACULDADE CCAA.

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  • taca 25- Edio Especial A degradao docente, a falncia do projeto formativo e a perpetuao do estado

    de menoridade existencial no capitalismo educacional

    Renato Nunes Bittencourt 159

    A degradao docente, a falncia do projeto formativo

    e a perpetuao do estado de menoridade existencial no

    capitalismo educacional

    Renato Nunes Bittencourt

    Resumo: O artigo aborda a degradao cultural promovida pela

    insero de parmetros econmicos alheios ao autntico projeto de

    promoo da educao em nossa estrutura social, e de que maneira

    vivemos uma crise da atividade profissional do professor a partir da

    ofensiva neoliberal.

    Palavras-Chave: Mercantilismo. Tecnocracia. Emancipao.

    Menoridade. Educao

    Abstract: The article discusses the cultural degradation promoted

    by inserting economical parameters unrelated to

    the authentic education promotion project in our social structure, and

    that way we have a crisis of professional activity of professor from the

    neoliberal offensive.

    Keywords: Mercantilism. Technocracy. Emancipation. Minority.

    Education.

    Para Luigi Bordin, pelo aprendizado crtico contra a ditadura do

    Capital

    Nota Prvia: Este artigo fruto dos estudos realizados na linha de pesquisa

    DOCNCIA NA CONTEMPORANEIDADE Docncia e as Tecnologias Contemporneas desenvolvido na FACULDADE CCAA.

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    Introduo

    O avano do sistema econmico neoliberal ocasionou

    diversos desdobramentos na manuteno equilibrada da esfera pblica

    nos pases de orientao capitalista, acima de tudo atravs da

    dissoluo do papel ativo do Estado na constituio da vida social.

    Esse processo motivou o sucateamento dos servios pblicos

    essenciais para o bem-estar coletivo, tais como a sade e a educao:

    esta ltima justamente o enfoque crtico concedido neste texto,

    apresentando-se de que maneira constatamos o onipresente processo

    de mercantilismo cultural em vigor na atual conjuntura social, poltica

    e econmica. No de se estanhar que os ditames capitalistas tenham

    penetrado violentamente no sistema educacional, impondo os seus

    parmetros econmicos nos processos de ensino, pesquisa e formao

    intelectual do ser humano, dissolvendo todos os valores culturais mais

    elevados. A conjuntura neoliberal concretizou esses dispositivos

    destrutivos sobre a singularidade humana em nossa da pretensa

    soberania do consumidor travestido de cidado.

    Nesse contexto ideolgico, poltico e econmico, a relao

    pedaggica entre professor e aluno se converte em uma relao

    comercial regida pelo poder financeiro, na qual o docente, tal como

    um vendedor de conhecimento padronizado em produto vulgar, se

    encontra na obrigao de satisfazer todos os caprichos narcsicos de

    seu cliente que jamais aceita ser contrariado em seus objetivos; tanto

    pior, o prprio processo de ensino se adequada ao discurso ideolgico

    da flexibilidade capitalista e se torna cada vez menos exigente

    intelectualmente e cada vez mais superficial em seus parmetros

    avaliativos, promovendo assim a massificao da conscincia

    estudantil e sua incompatibilidade com todo esforo de progresso da

    inteligncia, da legitimao da cultura e da construo social da

    conscincia crtica.

    O infantilismo estudantil e a degradao docente no capitalismo

    educacional

    O refinamento intelectual cada vez mais substitudo

    violentamente pela massificao grosseira da educao no sistema de

    ensino privado quando este economicamente direcionado pelo lucro

    incondicional dos mantenedores dos estabelecimentos educacionais,

    cabendo assim o uso de uma contundente colocao de Jos

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    Ingenieros acerca do processo moderno de massificao da vida

    humana: Toda sociedade em decadncia propcia mediocracia e inimiga de qualquer excelncia individual (INGENIEROS, 2006, p. 180).

    A converso da educao em produto de consumo exige

    que o contedo pedaggico seja simplificado de modo a no causar

    qualquer estranhamento em seus usurios intelectualmente ineptos

    para as exigncias superiores da racionalidade crtica e do poder

    epistemolgico da reflexo como exerccio de introspeco

    imprescindvel para a apurao racional de qualquer contedo

    absorvido. Para Jos Contreras,

    A escola comea a se movimentar para oferecer o

    que atrai a clientela. E a clientela se movimenta em

    funo do que sente como competitivo no mercado social. Assim, enquanto escola e usurios no se

    sentarem para discutir o que acreditam que deveria

    ser a prtica educativa, ambos estaro fazendo movimentos de ajuste a partir de demandas e

    necessidades que eles prprios no construram,

    porque no atuam enquanto grupo que toma decises deliberativas e compartilhadas, seno como agentes

    isolados guiados por interesses individuais, no

    sociais. No participam na definio coletiva da educao e de sua vinculao com a sociedade, mas

    to somente em processos de escolha e de adequao

    a partir de decises dos quais esto excludos, porque so decises tomadas pela administrao

    (CONTRERAS, 2012, p. 285-286).

    As instituies de ensino que desenvolvem o projeto de

    acmulo incondicional na sua captao de recursos econmicos

    proliferam no mercado educacional brasileiro, impondo assim seu

    padro espoliador sobre a prxis pedaggica verdadeiramente

    comprometida com a emancipao cultural dos indivduos,

    caracterizada pela exigncia rigorosa da formao intelectual como

    processo de singularizao mediado pela realidade concreta. O

    mercantilismo educacional desvaloriza a figura do professor e degrada

    a dignidade do estudante ao destitu-lo de sua potencial condio de

    sujeito autnomo capaz de compreender as contradies que

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    perpassam a realidade concreta. Tal como argumentam Cleon Cerezer

    e Jos Outeiral,

    Na atualidade, um novo valor de competncia

    profissional a habilidade de readaptao rpida aos

    contextos. A rapidez exigida nesse processo proporcional ao no questionamento das atitudes

    necessrias para a manuteno do lucro das empresas, inclusive as da educao, pois isto cada vez mais tambm visto e tratado como mercadoria

    (CEREZER & OUTEIRAL, 2011, p. 43).

    importante destacar que no existe relao imediata entre

    mercantilismo e instituio educacional de cunho privado.

    Obviamente que em uma estrutura econmica regida pela ordem

    capitalista qualquer iniciativa empresarial requer a sua adequao de

    alguma maneira ao sistema financeiro em vigor; entretanto, constata-

    se no avano do neoliberalismo um violento processo de agregao do

    sistema de ensino ao poder plutocrtico de empresas que fazem da

    comercializao educacional uma grande fonte de lucro. Ricardo

    Nassif afirma que

    Se se parte da base de que o mundo econmico se

    rege pela lei da utilidade (maiores resultados no menor tempo e com menor esforo), fcil descobrir

    as razes pelas quais na pedagogia de hoje tm tanto

    valor as categorias de eficcia, rendimento, produtividade e avaliao do processo educativo

    (NASSIF, 1976, p. 95).

    Corporaes capitalistas travestidas de instituies de

    ensino impem suas diretrizes econmicas na atual conjuntura

    educacional. um disparate o fato de que tais empresas educacionais

    utilizem em suas marcas-fantasia nomes de grandes pensadores da

    humanidade, talvez visando escamotear perante a irrefletida sociedade

    capitalista os seus verdadeiros objetivos comerciais. Melhor seria se

    utilizassem em seus pomposos ttulos os nomes dos infames tericos

    do neoliberalismo, imortalizados por suas propostas espoliadoras

    contra a educao pblica de qualidade e os benefcios sociais

    cidados conquistados paulatinamente atravs das lutas das classes

    subalternas contra a ganncia dos detentores dos meios de produo

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    na ordem capitalista. Para compreendermos a estupidez dessa

    perspectiva econmica, nada mais conveniente do que cedermos um

    pouco de espao para que um dos grandes profetas do neoliberalismo

    expresse suas teorias:

    Numa economia de mercado o consumidor

    soberano. ele que manda, e o empresrio tem que se empenhar, no seu prprio interesse, em atender seus desejos da melhor maneira possvel [...]. O empresrio bem-sucedido aquele que consegue

    antever os futuros desejos dos consumidores, melhor

    do que os seus competidores. Para o empresrio, na qualidade de vassalo do consumidor, irrelevante se

    os desejos e necessidades dos consumidores de-

    correm de uma escolha, racional ou emocional, moral ou imoral. O empresrio procura produzir o

    que o consumidor quer. Nesse sentido pode-se dizer

    que ele amoral (VON MISES, 2010, p. 20; p. 22).

    O consumidor-soberano vive sob os parmetros do

    infantilismo existencial, pois em sua conscincia idiotizada apenas os

    seus pretensos direitos encontram acolhida, dissociando-se de

    qualquer relao aos seus deveres sociais e obrigaes morais para

    com os outros. Podemos perceber o quo perigoso tal imperativo

    narcsico na realidade educacional, em que a massa estudantil,

    seduzida pelo poder financeiro, acredita resolver todos os seus

    empecilhos intelectuais e existenciais graas ao usufruto do dinheiro.

    Esses idiotas diplomados no so aptos para insero no competitivo mercado de trabalho nem pesquisadores compromissados

    com o desenvolvimento do saber nacional; tal diploma no concede

    efetivas garantias profissionais para o seu detentor. Dessa maneira, o

    engodo sedutor se concretiza sobre as expectativas frustradas dos

    alunos-consumidores que no conseguem alcanar sucesso

    profissional no obstante a posse do diploma outorgado pela

    instituio comerciria de ensino. Nesse contexto, as indagaes de

    Derrida corroboram a reflexo sobre o tema:

    Tem a universidade por misso essencial produzir competncias profissionais que podem, s vezes, ser

    extra-universitrias? Deve a universidade assegurar

    em si mesma, e em que condies, a reproduo da

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    competncia profissional formando professores para a pedagogia e para a pesquisa, em respeito a um

    determinado cdigo? (DERRIDA, 1999, p. 152).

    As imperiosas determinaes do diretor-burocrata

    praticante das domingadas pedaggicas representam o processo de

    transformao do espao educacional na configurao ideolgica do

    consumo irrestrito, realizando assim os interesses alienados do aluno

    convertido em cliente-consumidor que exige sempre a plena satisfao

    dos seus caprichos desiderativos. Cndidas mentiras do lbrico reitor

    que rege sua corporao educacional como um feudo medieval,

    furtando dos professores sua dignidade profissional ao se apropriar

    dos lucros obtidos pela comercializao educacional para satisfazer os

    seus caprichos pessoais mais escusos. Beatriz Sarlo afirma que

    Quando a administrao educacional perde poder e

    recursos, os grandes ministros da educao so, na verdade, os gerentes e programadores do mercado,

    cujos valores no incentivam o surgimento de uma

    sociedade de cidados iguais e sim o de uma rede de

    consumidores fiis (SARLO, 2005, p. 101-102).

    De modo geral, o aluno encontra na estrutura comercialista

    de ensino um projeto econmico-ideolgico que visa atender aos seus

    imperativos narcsicos desde que cumpra com sua parte junto ao

    departamento financeiro da instituio na qual est matriculado; caso

    contrrio, sua aura mgica de consumidor obscurecida pelas trevas

    que circundam os economicamente inviveis, tornando-se assim

    descartvel para os mandatrios de tal instituio: seu papel de

    consumidor perfeito no foi cumprido com rigor. Para Adorno e

    Horkheimer, Quanto mais a realidade social se afastava da conscincia cultivada, tanto mais esta se via

    submetida a um processo de reificao. A cultura

    converteu-se totalmente numa mercadoria difundida como uma informao, sem penetrar nos indivduos

    dela informados. O pensamento perde o flego e

    limita-se apreenso do fatual isolado. Rejeitam-se as relaes conceituais porque so um esforo

    incmodo e intil (ADORNO & HORKHEIMER,

    1985, p. 184).

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    Na sociedade tecnocrtica, a formao intelectual cede seu

    espao para a arrecadao de novas divisas, agregando nas fileiras

    estudantis pessoas que, horribile dictu, no esto existencialmente e

    intelectualmente preparadas para as dificuldades intrnsecas da vida

    acadmica e no realizam os mnimos esforos para que saiam de tal

    estado de alienao existencial. Essas hordas de postulantes de

    diplomas so reacionrias plenas, lumpemproletariados do sistema

    universitrio sem qualquer conscincia de classe ou senso de

    cidadania. Para Paulo Freire,

    A sociedade alienada no tem conscincia de seu prprio existir. Um profissional alienado um ser

    inautntico. Seu pensar no est comprometido

    consigo mesmo, no responsvel. O ser alienado no olha para a realidade com critrio pessoal, mas

    com olhos alheios (FREIRE, 1983, p. 35).

    O esprito crtico do Esclarecimento sucumbe perante a

    infantilizao sociocultural legitimada pela converso da educao em

    mercadoria acessvel para todos que possam pagar por seus

    benefcios; eis assim a diluio do projeto iluminista e sua proposta de

    emancipao do homem perante toda forma de dominao externa, tal

    como apresentada por Kant:

    Esclarecimento [Aufklrung] a sada do homem

    de sua menoridade, da qual ele prprio culpado. A menoridade a incapacidade de fazer uso de

    seu entendimento sem a direo de outro

    indivduo. O homem o prprio culpado dessa menoridade se a causa dele no se encontra na

    falta de entendimento, mas na falta de deciso e

    coragem de servir-se de si mesmo sem a direo de outrem. Sapere Aude! Tem coragem de fazer

    uso de teu prprio entendimento, tal o lema do

    esclarecimento [Aufklrung]. (KANT, 2005, p.63-64)

    Kant afirma ainda que o homem no pode se tornar um verdadeiro homem seno pela educao. Ele aquilo que a educao

    faz dele (KANT, 1999, p. 15). Para Kant, a educao deve promover a expresso da virtude moral do homem, permitindo-lhe assim

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    desenvolver a capacidade crtica de se situar politicamente na esfera

    pblica como um cidado consciente, imbudo de deveres e direitos

    para com sua sociedade e seus interlocutores.

    Muitos alunos reproduzem o iderio servil no cotidiano

    educacional ao agradecerem ao professor quando este lhes d com

    justia uma nota elevada; ora, se a nota representa o mrito decorrente

    do esforo intelectual do aluno, por qual motivo este agradece ao

    docente? Tanto pior, esses alunos reproduzem de forma descarada o

    imaginrio infantil quando solicitam aos professores para que corrijam

    as suas provas com carinho, isto , com indevida condescendncia para com seus erros pedaggicos, evidenciando assim o seu idiotismo

    socialmente legitimado; alm disso, o carinho deve ser recproco, e so os alunos menos empenhados intelectualmente que mais solicitam

    carinho nas avaliaes. O mesmo aluno imbecilizado que pede tal benesse ao professor o primeiro a lhe virar as costas quando o

    mesmo luta por seus direitos civis e profissionais nas rebelies

    polticas contra o poder dominante e seu descaso com o investimento

    na rea educacional. Pereat mundus, conquanto que o aluno alienado

    obtenha sua aprovao nos exames. O sistema de ensino subjugado

    pela ordem do capital, ao invs de promover a ruptura com a lgica

    pueril da vida familiar, favorece, pelo contrrio, a sua continuidade.

    Alain Finkielkraut considera que

    No momento mesmo em que a tcnica, pela interposio da televiso e dos computadores, parece

    capaz de introduzir nos lares todos os saberes, a

    lgica do consumo destri a cultura. A palavra permanece, porm, esvaziada de toda ideia de

    formao, de abertura ao mundo e de cuidado da alma. Doravante, o princpio de prazer forma ps-moderna do interesse particular que rege a vida espiritual. No se trata mais de fazer dos homens sujeitos autnomos, trata-se de satisfazer

    seus desejos imediatos, de diverti-los pelo menor

    custo (FINKIELKRAUT, 1988, p. 146).

    O sentimento de onipotncia proporcionado pelo usufruto

    do dinheiro suprime a racionalidade crtica de todo processo de

    desmitificao do mundo empreendido pelas mentalidades

    esclarecidas na sua luta contra todas as supersties elaboradas pela

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    engenhosidade humana incapaz de compreender a ordem natural das

    coisas. O dinheiro, com efeito, adquire poderes mgicos no regime

    capitalista, iludindo seus detentores de que tudo se resolve pelo seu

    emprego, como uma panaceia social. Christian Laval, ratificando essa

    crtica, argumenta que na cultura de mercado, a emancipao pelo conhecimento, velha herana das Luzes, passa como uma ideia

    obsoleta (LAVAL, 2004, p. IX). A metamorfose do aluno em cliente-consumidor-fregus se

    caracteriza como um processo de manuteno forada desse indivduo

    nos parmetros da menoridade existencial, pois as decises ticas

    fundamentais de sua vida sero mediadas pelo poder do dinheiro que

    pretensamente resolve satisfatoriamente todos os problemas humanos.

    Ironicamente, apesar de vislumbrarem a emancipao perante toda

    forma de autoridade social (pais, professores, polticos), permanecem

    atrelados ainda diante de uma autoridade, a do dinheiro, grande

    mediador de uma existncia reificada incapaz de proporcionar

    qualquer exerccio de singularizao existencial. Para Ivan Illich,

    Ensina-se aos alunos-consumidores que adaptem seus desejos aos valores venda. So levadas a

    sentirem-se culpadas caso no ajam de acordo com

    as predies da pesquisa de consumo, recebendo os graus e certificados que os colocaro na categoria de

    trabalho pela qual foram motivados a esperar

    (ILLICH, 1982, p. 79).

    Talento e criatividade de nada servem para um indivduo

    que no conhece as particularidades estruturais de sua organizao

    social e assim se torna incapaz de desenvolver estratgias polticas

    para a transformao radical das suas prprias condies existenciais,

    suprimindo assim sua alienao cognitiva pela compreenso das

    contradies que vigoram na realidade concreta e engajando-se nas

    lutas sociais contra toda forma de dominao existencial. Conforme

    Edgar Morin argumenta,

    A educao atual fornece conhecimentos sem

    ensinar o que o conhecimento. Ela no se preocupa em conhecer o que conhecer, ou seja, os

    dispositivos cognitivos, suas dificuldades, suas

    instabilidades, suas propenses ao erro, iluso. Isso

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    porque todo conhecimento implica risco de erros e de iluses (MORIN, 2013, p. 195).

    Inserido em uma dinmica societria regida pela

    flexibilidade profissional e pela exigncia de doao plena da

    vitalidade aos desgnios corporativos, o aluno que se constituiu

    psicologicamente pelos signos da menoridade existencial ser incapaz

    de agir de forma madura e responsvel no decorrer da sua posterior

    atividade laboral, sofrendo radicalmente os efeitos deletrios de um

    estilo de vida do qual no estava de modo algum preparado para

    participar: o competitivo mercado de trabalho capitalista no assimila

    pessoas despreparadas tecnicamente e emocionalmente. Pierre Furter

    argumenta que

    Alm dos desequilbrios econmicos que esta

    vulgarizao planetria favorece, podemos tambm notar quanto essa cultura de massa empobrece a

    comunicao cultural, porque, ao invs de permitir

    um aprofundamento, leva a um rpido consumo das significaes mais exticas e mais superficiais das

    diversas civilizaes. (FURTER, 1992, p. 19).

    Nessas condies, o comercialismo educacional engana

    duplamente o aluno-cliente-consumidor, primeiro por prometer uma

    formao acadmica slida, o que no acontece de fato, segundo por

    no prepar-lo adequadamente para o mercado de trabalho,

    marginalizando-o existencialmente e profissionalmente, pois tal figura

    sempre ser preterido por concorrentes mais aptos intelectualmente.

    Ricardo Nassif destaca que

    A escola impulsiona o desenvolvimento social, mas

    o faz em harmonia com outros fatores polticos,

    econmicos, culturais. Suas possibilidades, como elemento de transformao social, so reais, mas

    limitadas, dentro do complexo jogo das foras que se

    entrecruzam na comunidade. Ter realizado sua parte se cumprir cabalmente as funes que lhe

    competem. Ao cumpri-las ser uma orientadora da

    vida social, provendo seus membros dos elementos imprescindveis para a construo de tempos

    melhores (NASSIF, 1976, p. 58).

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    Com efeito, qualquer processo seletivo que vise contratar o

    candidato academicamente mais competente certamente escolher o

    postulante formado em uma instituio de ensino rigorosa em

    detrimento do estudante que investiu seu tempo e seu dinheiro para se

    formar em um curso universitrio cuja dignidade acadmica do diploma to valiosa como o papel-guardanapo de uma lanchonete,

    que somente registra as gorduras dos alimentos e no a chancela

    acadmica da dignidade intelectual. Paula Sibilia argumenta que

    Na oferta educacional contempornea busca-se

    oferecer um servio adequado a cada perfil de

    pblico, proporcionando-lhe recursos para que cada um possa triunfar nas rduas disputas de mercado.

    Isso no para todos, como a lei, mas tem uma

    distribuio desigual como o dinheiro: todos os consumidores querem ser distintos e nicos,

    singulares, capazes de competir com os demais para

    se destacar com suas vantagens diferenciadas, num mundo globalizado no qual impera um capitalismo

    cada vez mais jovial, embora tambm feroz

    (SIBILIA, 2012, p. 132).

    Na conjuntura do ensino mercantilista, os professores

    academicamente exigentes so incitados (isto , coagidos) pelos

    administradores-educacionais a ser pedagogicamente maleveis em

    suas avaliaes, tendo-se em vista a manuteno da massa discente

    nos quadros de pagadores assduos da instituio de ensino, que

    funciona assim como uma agncia de capitalizao econmica.

    Suzana Albernoz Stein considera que a escola precisa equilibrar-se entre dois fogos: o muro de lamentaes de pais e mes insatisfeitos, e o alvo constante da vigilncia burocrtica (STEIN, 1979, p. 43). Os progenitores que abriram mo de educar

    adequadamente seus filhos transferem tal responsabilidade aos

    docentes, mas no aceitam que seus filhos sejam contrariados

    pedagogicamente; tanto pior, as metas oficiais de aprovao requerem

    o estabelecimento de uma vida facilitada aos alunos, mesmo os mais

    incapazes intelectualmente, desleixados, alheios ao ethos do espao

    educacional. O fator monetrio e seu poder mgico na moldagem das

    configuraes sociais so determinantes nessa relao de foras.

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    Conforme destacado argutamente por Paulo Freire, no contexto dessa

    realidade educacional norteada pelo primado economicista:

    Nesta nsia irrefreada de posse, desenvolvem em si a

    convico de que lhes possvel transformar tudo a seu poder de compra. Da a sua concepo

    estritamente materialista da existncia. O dinheiro

    a medida de todas as coisas, e o lucro, seu objeto principal (FREIRE, 2005, p. 51).

    O ato de se reprovar um aluno de rendimento pedaggico

    insatisfatrio para ele um grande desestmulo existencial,

    circunstncia que pode vir a motivar a sua transferncia para outra

    instituio pedaggica menos rigorosa em suas avaliaes acadmicas,

    ocasionando prejuzo financeiro para a empresa educacional que

    perdeu assim um cliente-consumidor. Por conseguinte, no raramente

    ocorre de um professor que faa valer o empenho intelectual sofrer

    reduo da carga horria nos semestres seguintes ou mesmo ser

    demitido da instituio de ensino na qual ele leciona se porventura ele

    insiste na reprovao da massa de alunos que necessitam de maiores

    aprimoramentos intelectuais, os quais, muitos deles, so autnticos

    analfabetos funcionais iludidos com a promessa de aquisio de

    diploma como passe para ascenso profissional posterior. Tal como

    aponta Jean-Franois Lyotard,

    O antigo princpio segundo o qual a aquisio do

    saber indissocivel da formao (bildung) do

    esprito, e mesmo da pessoa, cai e cair cada vez mais em desuso. Esta relao entre fornecedores e

    usurios do conhecimento e o prprio conhecimento tende e tender a assumir a forma que os produtores

    e os consumidores de mercadorias tm com estas

    ltimas, ou seja, a forma valor. O saber e ser produzido para ser vendido, e ele e ser consumido

    para ser valorizado numa nova produo: nos dois

    casos, para ser trocado. Ele deixa de ser para si mesmo seu prprio fim; perde o seu valor de uso (LYOTARD, 2002, p. 45).

  • taca 25- Edio Especial A degradao docente, a falncia do projeto formativo e a perpetuao do estado

    de menoridade existencial no capitalismo educacional

    Renato Nunes Bittencourt 171

    As instituies que mais proliferam na sociedade capitalista

    tecnocrtica so as seitas protestantes neopentecostais e as

    corporaes educacionais regidas pelo dispositivo plutocrtico que

    estaciona a qualidade do ensino em prol da massificao do consumo

    de diplomas, marcos infelizes de uma ordem civilizatria degradada

    axiologicamente. O que h em comum entre essas empresas a

    lucratividade incondicional perpetrada atravs da explorao da

    ignorncia popular, promovendo o enriquecimento dos especuladores

    da f religiosa e os especuladores educacionais em suas domingadas

    pedaggicas de comercializao de diplomas. Conforme aponta

    Nstor Garcia Canclini,

    A educao foi cedendo autonomia ao diminuir a importncia da escola pblica e laica e crescer o

    ensino privado que, com frequncia, subordina o

    processo educacional s aptides de mercado e se preocupa mais em capacitar tecnicamente do que

    formar para aptides culturais. Em vez de formar

    profissionais e pesquisadores para uma sociedade do conhecimento, treina peritos disciplinados

    (CANCLINI, 2008, p. 23).

    O mercantilismo educacional imperante no capitalismo

    tardio impede a emancipao existencial dos estudantes aos quais falta

    a disciplina de usar a inteligncia para que assim ascendam

    academicamente por mritos prprios; a educao se torna apenas um

    mecanismo instrumental desprovido de sua fora formativa. Segundo

    Pierre Furter,

    A educao no pode ser entendida como um ponto

    final, mas como um ponto de partida em que

    tambm o passado se liga dialeticamente ao futuro no dilogo frutfero das geraes (FURTER, 1992,

    p. 29).

    Nessas condies, professores intelectualmente exigentes

    que labutem em instituies de ensino regidas pela lgica

    comercialista da educao se encontram em continua situao de risco

    de demisso, pois as benesses capitalistas so incompatveis com as

  • taca 25- Edio Especial A degradao docente, a falncia do projeto formativo e a perpetuao do estado

    de menoridade existencial no capitalismo educacional

    Renato Nunes Bittencourt 172

    exigncias de uma vida elevada em constante processo de superao

    de si. Para Ricardo Nassif,

    A formao humana verdadeiramente continua

    sendo o nico clima propcio para um verdadeiro

    desenvolvimento socioeconmico. Embora possa parecer lento, no h outra sada que garanta melhor

    sua solidez (NASSIF, 1976, p. 96).

    A educao na era tecnocrtica do capitalismo neoliberal se

    configura como um mecanismo que no visa promoo da

    singularidade humana em sua possibilidade de expresso criativa, mas

    acima de tudo a criao de especialistas mximos do mnimo que

    apenas reproduzem a ideologia da alienao existencial em suas

    atividades profissionais. Para Christian Laval,

    A educao, na poca neoliberal, visa, ao contrrio,

    formao do assalariado ou, mais geralmente, do

    trabalhador, cuja existncia parece se reduzir a utilizar conhecimentos operacionais no exerccio de

    uma profisso especializada, ou de uma atividade

    julgada socialmente til (LAVAL, 2004, p. 42).

    A qualidade da educao posta de lado em prol da

    acelerao da transmisso de contedos visando pretensos resultados

    profissionais favorveis aos interesses imediatistas dos alunos-

    clientes, sendo que estes, pouco habilitados nos ofcios de aprendizado

    significativo, encontraro dificuldades intelectuais para que saibam

    utilizar o nfimo conhecimento adquirido. Istvan Mszros elabora

    uma pertinente indagao:

    Ser o conhecimento o elemento necessrio para

    transformar em realidade o ideal da emancipao

    humana, em conjunto com uma firme determinao e dedicao dos indivduos para alcanar, de

    maneira bem-sucedida, a auto-emancipao da

    humanidade, apesar de todas as adversidades, ou ser, pelo contrrio, a adoo pelos indivduos, em

    particular, de modos de comportamento dos objetivos reificados do capital? (MSZROS, 2008, p. 47-48).

  • taca 25- Edio Especial A degradao docente, a falncia do projeto formativo e a perpetuao do estado

    de menoridade existencial no capitalismo educacional

    Renato Nunes Bittencourt 173

    Constatamos na grande maioria das instituies

    universitrias de fomento privado a existncia de indivduos

    intelectualmente mal formados ao longo das suas vidas, incapazes tanto de analisarem rigorosamente textos de qualquer extenso como

    de formularem adequadamente suas perspectivas interpretativas

    sempre que exigidos. Ricardo Nassif considera que

    Uma coisa valer-se do esprito tcnico, como

    funo criadora, para a formao especializada ou

    geral do homem, e outra, muito diferente submeter-se cegamente ao imprio dos meios tcnicos para a

    realizao do ato formativo, sem o freio da

    suficiente capacidade crtica encarregada de assinar-lhes o justo lugar que possa corresponder-lhes como

    complemento da ao irradiante do educador ou dos

    poderes educativos que vivem na cultura humana (NASSIF, 1976, p. 80).

    Exige-se usualmente dos professores uma docilidade e

    pacincia similar aos dos monges; talvez essa associao ocorra para

    que o professor acate servilmente todos os imperativos reativos dos

    seus interlocutores no cenrio educacional, aceitando toda ordem de

    humilhaes perpetradas pelos alunos/consumidores mal-educados;

    quando ocorre algum ato de desagravo estudantil ao docente de uma

    instituio educacional comerciria, esta no lhe oferece qualquer

    assistncia, pois o aluno-cliente sempre tem a razo, conforme reza o

    sistema do mercado. Conforme aponta Moacir Gadotti,

    A escola tornou-se vlvula de escape da sociedade

    opressiva. E quem est suportando a presso o

    professor. Os professores deveriam, por isso, lutar por um adicional no seu salrio, uma taxa de

    insalubridade, decorrente de um sistema social em

    decomposio (GADOTTI, 1987, p. 125).

    As reivindicaes profissionais dos professores so

    paulatinamente desvalorizadas pelo reacionarismo da opinio pblica

    que sofre os efeitos das paralisaes legtimas perpetradas pela classe

    docente por melhorias em suas atividades laborais. Aluno sem aula

    transtorno para os pais irresponsveis que no esperam por tal estorvo

    no lar. O ritmo vertiginoso do sistema de trabalho em nossa sociedade

  • taca 25- Edio Especial A degradao docente, a falncia do projeto formativo e a perpetuao do estado

    de menoridade existencial no capitalismo educacional

    Renato Nunes Bittencourt 174

    capitalista e o despreparo familiar impede que os filhos recebam a

    educao conveniente em seus lares, de modo que os pais projetam

    para a instituio escolar a responsabilidade pela educao total dos

    filhos, imiscuindo-se de seu dever primordial. Hannah Arendt aponta

    que

    Qualquer pessoa que se recuse a assumir a

    responsabilidade coletiva pelo mundo no deveria

    ter crianas, e preciso proibi-las de tomar parte em sua educao [...] A autoridade foi recusada pelos

    adultos, e isso somente pode significar uma coisa:

    que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as

    crianas [...] A educao o ponto em que

    decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal

    gesto, salv-lo da runa que seria inevitvel no

    fosse a renovao e a vinda dos novos e dos jovens (ARENDT, 2011, p. 239; p.240; p. 241).

    O aluno s serve ao regime comercialista de ensino na sua

    condio de consumidor, jamais de um futuro profissional que possa

    intervir positivamente na estrutura social atravs do exerccio de sua

    competncia intelectual. Nesse contexto, a anlise que Marx

    estabelece acerca da realidade fetichista do sistema capitalista, onde as

    relaes sociais passam a ser mediadas por coisas que adquirem como

    que vida prpria, fundamental para compreendermos o processo de

    alienao existencial produzida pela insero dos critrios monetrios

    na composio das modernas interaes interpessoais:

    O que para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto , o que o dinheiro pode comprar, isto sou

    eu, o possuidor do prprio dinheiro. To grande

    quanto a fora do dinheiro a minha fora. As qualidades do dinheiro so minhas de seu possuidor - qualidades e foras essenciais (MARX,

    2004, p. 159).

    O professor obrigado a seguir a serfica doutrina da no

    violncia perante um alunado incivilizado. Contudo, uma vez que toda

    estrutura social capitalista regida pelas mais diversas expresses da

    violncia, uma absurdidade se determinar ao professor a

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    de menoridade existencial no capitalismo educacional

    Renato Nunes Bittencourt 175

    impassibilidade perante as afrontas recebidas em suas atividades

    pedaggicas. Adorno apresenta um comentrio perspicaz acerca da

    crise de legitimao da figura do professor na sociedade capitalista:

    O professor o herdeiro do monge; depois que este perde a maior parte das suas funes, o dio ou a ambiguidade que caracterizam o

    oficio do monge transferido para o professor (ADORNO, 1995, p. 102-103); da mesma forma, os estudantes infantilizados pelo espirito

    do consumismo so ludibriados com as pretensas facilidades

    prometidas pela vida universitria das instituies privadas regidas

    pela lgica plutocrtica. Nesse quesito, Gilda de Castro aponta: Na escola-empresa, eles se transformam em clientes e, como tal, no

    podem sofrer qualquer contrariedade por quem simples empregado

    da organizao (CASTRO, 2003, p. 53). Surgem assim vestibulares absurdamente flexveis onde se faz valer o infame ditame do pagou, passou, associada diretamente a um mtodo de ensino deficitrio que no prepara efetivamente o alunado para o mercado de trabalho,

    frustrando assim o seu objetivo comercial principal, alm de tampouco

    promover o desenvolvimento da conscincia formativa e a educao

    cidad. Fernando Savater indaga:

    A educao deve preparar gente apta a competir no

    mercado de trabalho ou formar homens completos? Deve dar nfase autonomia de cada indivduo, com

    frequncia crtica e dissidente, ou coeso social?

    Deve desenvolver a originalidade inovadora ou manter a identidade tradicional do grupo? Atendem

    eficcia prtica ou apostam no risco criador?

    Reproduzir a ordem existente ou instruir os rebeldes que possam derrub-la? (SAVATER, 2012,

    p. 17).

    Na lgica capitalista o professor violentamente

    emasculado em suas funes profissionais, circunstncia que acarreta

    inevitavelmente sua descartabilidade laboral, pois quem no capaz

    de lutar por seus direitos bsicos progressivamente perde sua

    representatividade existencial. Quando no exero meus direitos

    sociais no posso esperar que outrem exera por mim. O regime

    capitalista se configura, nessas condies, como um processo de

    dissoluo de toda capacidade humana de se realizar como pessoa

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    de menoridade existencial no capitalismo educacional

    Renato Nunes Bittencourt 176

    criadora em sua mediao com o mundo circundante. Para Istvan

    Mszros,

    Limitar uma mudana educacional s margens

    corretivas interesseiras do capital significa

    abandonar de uma s vez, conscientemente ou no, o objetivo de uma transformao social qualitativa. Do

    mesmo modo, contudo, procurar imagens de reforma sistmica na prpria estrutura do sistema do

    capitalismo uma contradio em termos. por isso

    que necessrio romper com a lgica do capital se quisermos contemplar a criao de uma alternativa

    educacional significativamente diferente

    (MSZROS, 2008, p. 27).

    A educao um exerccio constante contra a barbrie, mas

    no sistema capitalista a barbrie prevalece sobre todo projeto

    civilizatrio. O malfadado discurso ideolgico de educao para todos falseador das relaes sociais, pois nem todo indivduo encontra imediatas de condies existenciais de participar do processo

    de formao radical do conhecimento, que exige pacincia,

    capacidade de reflexo, ascese. Cabe destacar que no so critrios

    financeiros que determinam tal inpcia, pois assim como existem

    indivduos providos economicamente, mas que so desprovidos de

    aspiraes intelectuais superiores e que se encastelam em seus

    pomposos nomes nrdicos, assim tambm existem indivduos

    desprovidos de maiores recursos materiais que apresentam elevada

    capacidade de dedicao aos estudos. Nessas condies, o fator

    primordial que deve ser levado em considerao no processo de

    seleo educacional aptido interior de cada indivduo para ingressar

    nessa seara to exigente. A facilitao da entrada do estudante

    economicamente desfavorecido no sistema universitrio privado cria o

    mito da garantia da incluso social, que depende de inmeros outros

    fatores que no so realizados atravs de medidas institucionais

    burocrticas, ainda que aparentemente bem intencionadas. Lyotard

    argumenta que,

    Em vez de serem difundidos em virtude do seu valor

    formativo e de sua importncia poltica (administrativa, diplomtica, militar), pode-se

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    de menoridade existencial no capitalismo educacional

    Renato Nunes Bittencourt 177

    imaginar que os conhecimentos sejam postos em circulao segundo as mesmas redes da moeda, e

    que a clivagem pertinente a seu respeito deixa de ser

    saber/ignorncia para se tornar como no caso da moeda, conhecimento de pagamento/conhecimento de investimento, ou seja: conhecimentos trocados no quadro da manuteno da vida cotidiana (reconstituio da fora de trabalho,

    sobrevivncia), versus crditos de conhecimentos com vistas a otimizar as performances de um

    programa (LYOTARD, 2002, p. 7).

    A permissividade do sistema comercialista de ensino se

    reflete no comportamento indolente do estudante em sala de aula e no

    decorrer de sua vida prtica, manifestando-se principalmente no seu

    desinteresse intelectual e no embotamento de sua personalidade

    egocntrica, pois esse indivduo cognitivamente limitado se considera

    a grande joia da coroa do capitalismo educacional, perdendo assim

    todo senso de hierarquia conveniente para a moldagem de sua

    disciplina interior. Eis assim o homem-massa transposto para as salas de aula, conforme bem caracterizado por Ortega y Gasset em sua

    crtica ao nivelamento grosseiro do estilo na sociedade tecnocrtica:

    S tem apetites, pensa que s tem direitos e no acha que tem obrigaes: um homem sem obrigaes de nobreza sine nobilitate snob (ORTEGA Y GASSET, 2007, p. 14). Com efeito, esse o perfil do estudante seduzido pela ideologia plutocrtica: somente quer

    saber dos seus benefcios institucionais e nada mais lhe importa desde

    que no seja afetado em seus interesses tacanhos, ou seja, a aprovao

    nas disciplinas sem maiores dificuldades intelectuais, circunstncia

    que denota um reacionarismo estpido, pois toda estrutura autoritria

    do patriarcalismo fundador de nossas relaes sociais se evidencia em

    seu comportamento de consumidor-soberano, assim como perpetua

    tais disposies. Ainda Ortega y Gasset demonstra sua magnifica

    contribuio para a anlise desse problema: Toda vida luta, o esforo para ser ela mesma. As dificuldades que encontro para realizar

    minha vida so, precisamente, o que desperta e mobiliza minhas

    atividades, minhas capacidades (ORTEGA Y GASSET, 2007, p. 131).

    Exige-se do professor capacidades histrinicas tendo-se em

    vista a seduo da conscincia dos estudantes, e que os contedos

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    de menoridade existencial no capitalismo educacional

    Renato Nunes Bittencourt 178

    pedaggicos sejam transmitidos em revestimentos didticos

    agradveis para um alunado que sofre de um embotamento cognitivo

    epidmico mediante a sua vivncia cotidiana em uma estrutura social

    regida pelo despejo incessante de estmulos sensrios intensos. As

    aulas devem ser divertidas para que o alunado possa assim aumentar

    seu ndice narctico de satisfao. Conforme Beatriz Sarlo destaca,

    As escolas consideradas mais avanadas so aquelas

    que adulam os governos, e que chegam a trat-los

    como clientes. Este vis mercantil progr fica evidente quando se ouve falar, o que rotineiro, em

    prover a escola de contedos que sejam interessantes

    para os alunos (SARLO, 2005, p. 107).

    Isso nada mais que a insero totalitria do espetculo no

    cotidiano educacional, fato que se revela axiologicamente

    incompatvel; todavia, os ditames mercantis do capital so capazes de

    resolver todas as incompatibilidades. O professor no um animador

    de auditrio tampouco um palhao que sempre deve rir para agradar

    uma massa estudantil embrutecida pela prpria vida lesada da ordem

    societria capitalista. Para esses alunos imbecilizados, o ambiente

    educacional um grande parque de diverses, pois se conformam a

    uma voluntria regresso mental; esses alunos se esqueceram de

    retirar suas fraldas. Segundo Guy Debord,

    Sob todas as suas formas particulares informao ou propaganda publicidade ou consumo direto de divertimentos -, o espetculo constitui o modelo

    atual vida dominante na sociedade. a afirmao onipresente da essncia j feita na produo, e o

    consumo que decorre dessa escolha (DEBORD,

    2006, p. 14-15).

    O professor que aceita espetacularizar o seu discurso

    educacional contribui para a reificao da conscincia estudantil e

    para a manuteno da menoridade existencial do mesmo,

    compactuando com a estrutura sensacionalista das trocas

    informacionais regidas pelos estmulos fortes, nervosos, ansiosos. A

    velocidade que vigora na vida do indivduo da sociedade tecnocrtica

    exclui dele o apreo pela reflexo e pelo exerccio da conscincia, e

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    de menoridade existencial no capitalismo educacional

    Renato Nunes Bittencourt 179

    esse processo torna-o mais suscetvel de sucumbir perante as foras

    envolventes da cultura das imagens, potencializando ainda mais os seus efeitos deletrios na subjetividade humana. Nessas condies,

    tudo aquilo que reflexivo, que demande tempo de pensamento,

    anlise, amadurecimento, recebe da massa intelectualmente alienada o

    estigma de chato, sem importncia, cansativo, alm de muitos outros esteretipos que representam o empobrecimento da experincia

    de pensamento na sociedade do consumo pleno. Guy Debord aponta

    ainda que

    A conscincia espectadora, prisioneira de um

    universo achatado, limitado pela tela do espetculo para trs da qual sua prpria vida foi deportada, s

    conhece os interlocutores fictcios que a entretm

    unicamente com sua mercadoria e com a poltica de sua mercadoria (DEBORD, 2006, p.140).

    O professor se encontra cada vez mais cerceado no

    desempenho das suas atividades profissionais, tornando-se uma

    espcie de servidor incondicional dos desejos imbecilizantes de uma

    estrutura socioeconmica que reconhece no sistema educacional

    apenas um veculo para legitimao dos interesses das classes

    detentoras do poder de consumo de bens materiais e de diplomas que

    permitam sua insero facilitada no mercado de trabalho. Contudo,

    como j diz o prprio ditado popular, quem no tem competncia no se estabelece. Nessas condies, de nada adianta a posse do diploma se o aluno no capaz de aplicar um conjunto de conhecimentos

    formais ou tcnicos nas suas atividades profissionais; ele tende assim

    a se tornar uma figura passiva no processo histrico, mas sua

    malfadada conscincia alienada de consumidor soberano nada mais

    faz do que velar a dureza da existncia, e quando ele sofrer o choque

    de realidade, descobrir que perdeu grande tempo til nas suas doces

    iluses infantis.

    Consideraes Finais

    Uma reflexo filosfica acerca da deturpao do projeto

    formativo da educao pela sua associao aos ditames financeiros

    fundamental para qualquer pesquisador comprometido com a

    realizao de mudanas radicais nas bases ideolgicas que vigoram

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    de menoridade existencial no capitalismo educacional

    Renato Nunes Bittencourt 180

    em nossas relaes socioculturais. O academicismo filosfico no

    pode abrir mo de se envolver na crtica ao sistema neoliberal que

    converte a educao em mais um produto estandardizado pronto para

    o consumo de uma massa humana desprovida de maiores aspiraes

    existenciais singulares ao longo da vida. Caso contrrio, a prpria

    Filosofia corre o risco de ser suplantada pelo tecnicismo alienante que

    impera de modo geral no sistema escolar e cujo efeito mais cabal

    percebido em nosso cotidiano: a desvalorizao da reflexo, a

    preguia de pensar, a ausncia de ousadia de saber, a consagrao do

    infantilismo existencial, produzindo assim um rebanho de

    consumidores fiis idiotizados e felizes.

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