A DEMOCRACIA E SUAS DIFICULDADES CONTEMPORÂNEAS

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A DEMOCRACIA E SUAS DIFICULDADES CONTEMPORÂNEAS CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO* I. Democracia formal e democracia substancial. I/. A crise dos instru- mentos clássicos da democracia. /11. Tentativas de resposta à crise da democracia. IV. Insuficiência dos meios concebidos para salvaguarda dos ideais democráticos. V. Possível agravamento da crise da democracia. VI. Globalização e neoliberalismo: novos obstáculos à democracia. I. Democracia formal e democracia substancial 1. Independentemente dos desacordos possíveis em tomo do conceito de demo- cracia, pode-se convir em que dita expressão reporta-se nuclearmente a um sistema político fundado em princípios afirmadores da liberdade e da igualdade de todos os homens e armado ao propósito de garantir que a condução da vida social se realize na conformidade de decisões afinadas com tais valores, tomadas pelo conjunto de seus membros, diretamente ou através de representantes seus livremente eleitos pelos cidadãos, os quais são havidos como os titulares da soberania. Donde, resulta que Estado Democrático é aquele que se estrutura em instituições armadas de maneira a colimar tais resultados. Sem dúvida, esta noção, tal como expendida, maneja também conceitos fluidos ou imprecisos (liberdade, igualdade, deliberações respeitosas destes valores, insti- tuições armadas de maneira a concretizar determinados resultados). Sem embargo, é dela - ou de alguma outra que se ressinta de equivalentes problematizações - que se terá de partir para esboçar uma apresentação sumária de certas relações entre Estado e democracia, algumas das quais são visíveis e outras apenas se vão entre- mostrando a uma visão prospectiva. Seja como for - e até mesmo em razão da sobredita fluidez dos conceitos implicados na noção de democracia -, é conveniente distinguir entre Estados formalmente democráticos e Estados substancialmente democráticos, além de Esta- * Titular da Faculdade de Direito da Universidade Católica de São Paulo. R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, 212: 57-70, abr./jun. 1998

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I. Democracia formal e democracia substancial. I/. A crise dos instrumentosclássicos da democracia. /11. Tentativas de resposta à crise dademocracia. IV. Insuficiência dos meios concebidos para salvaguarda dosideais democráticos. V. Possível agravamento da crise da democracia.VI. Globalização e neoliberalismo: novos obstáculos à democracia.

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  • A DEMOCRACIA E SUAS DIFICULDADES CONTEMPORNEAS

    CELSO ANTNIO BANDEIRA DE MELLO*

    I. Democracia formal e democracia substancial. I/. A crise dos instru-mentos clssicos da democracia. /11. Tentativas de resposta crise da democracia. IV. Insuficincia dos meios concebidos para salvaguarda dos ideais democrticos. V. Possvel agravamento da crise da democracia. VI. Globalizao e neoliberalismo: novos obstculos democracia.

    I. Democracia formal e democracia substancial

    1. Independentemente dos desacordos possveis em tomo do conceito de demo-cracia, pode-se convir em que dita expresso reporta-se nuclearmente a um sistema poltico fundado em princpios afirmadores da liberdade e da igualdade de todos os homens e armado ao propsito de garantir que a conduo da vida social se realize na conformidade de decises afinadas com tais valores, tomadas pelo conjunto de seus membros, diretamente ou atravs de representantes seus livremente eleitos pelos cidados, os quais so havidos como os titulares da soberania. Donde, resulta que Estado Democrtico aquele que se estrutura em instituies armadas de maneira a colimar tais resultados.

    Sem dvida, esta noo, tal como expendida, maneja tambm conceitos fluidos ou imprecisos (liberdade, igualdade, deliberaes respeitosas destes valores, insti-tuies armadas de maneira a concretizar determinados resultados). Sem embargo, dela - ou de alguma outra que se ressinta de equivalentes problematizaes -que se ter de partir para esboar uma apresentao sumria de certas relaes entre Estado e democracia, algumas das quais so visveis e outras apenas se vo entre-mostrando a uma viso prospectiva.

    Seja como for - e at mesmo em razo da sobredita fluidez dos conceitos implicados na noo de democracia -, conveniente distinguir entre Estados formalmente democrticos e Estados substancialmente democrticos, alm de Esta-

    * Titular da Faculdade de Direito da Universidade Catlica de So Paulo.

    R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, 212: 57-70, abr./jun. 1998

  • dos em transio para a democracia. tendo-se presente, ainda assim, o carter apro-ximativo destas categorizaes.

    3. Estados apenas formalmente democrticos so os que, inobstante acolham nominalmente em suas Constituies modelos institucionais - hauridos dos pases poltica, econmica e socialmente mais evoludos - teoricamente aptos a desem-bocarem em resultados consonantes com os valores democrticos, neles no aportam. Assim, conquanto seus governantes (a) sejam investidos em decorrncia de eleies, mediante sufrgio universal. para mandatos temporrios; (b) consagrem uma distin-o. quando menos material, entre as funes legislativa, executiva e judicial; (c) acolham, em tese, os princpios da legalidade e da independncia dos rgos juris-dicionais, nem por isto, seu arcabouo institucional consegue ultrapassar o carter de simples fachada, de painel aparatoso, muito distinto da realidade efetiva.

    que carecem das condies objetivas indispensveis para que o institudo formalmente seja deveras levado ao plano concreto da realidade emprica e cumpra sua razo de existir. BISCARETTI DI RUFFIA, em frase singela, mas lapidar, anotou que" a democracia exige, para seu funcionamento, um minimum de cultura poltica" , que precisamente o que falta nos pases apenas formalmente democrticos. As instituies que proclamam adotar em suas Cartas Polticas no se viabilizam. Sucumbem ante a irresistvel fora de fatores interferentes que entorpecem sua presumida eficcia e lhes distorcem os resultados. Deveras, de um lado, os segmentos sociais dominantes, que as controlam, apenas buscam manipul-Ias ao seu sabor, pois no valorizam as instituies democrticas em si mesmas, isto , no lhes devotam real apreo. Assim, no tendo qualquer empenho em seu funcionamento regular, procuram, em funo das prprias convenincias, obst-lo, ora por vias tortuosas ora abertamente quando necessrio, seja por iniciativa direta, seja apoiando ou endossando quaisquer desvirtuamentos promovidos pelos governantes, simples prepostos, meros gestores dos interesses das camadas economicamente mais bem situadas. De outro lado, como o restante do corpo social carece de qualquer cons-cincia de cidadania' e correspondentes direitos, no oferece resistncia espontnea a estas manobras. Ademais, presa fcil das articulaes, mobilizaes e aliciamento da opinio pblica, quando necessria sua adeso ou pronunciamento, graas ao controle que os segmentos dominantes detm sobre a "mdia" 2, que no seno um de seus braos.

    3. que - como de outra feita o dissemos - as instituies polticas destes pases" no resultaram de uma maturao histrica; no so o fruto de conquistas polticas forjadas sob o acicate de reivindicaes em que o corpo social (ou os estratos a que mais aproveitariam) nelas estivesse consistentemente engajado; no so, em suma, o resultado de aspiraes que hajam genuinamente germinado, crescido e tempestivamente desabrochado no seio da Sociedade" .

    I O fenmeno no restrito s camadas sociais mais desfavorecidas, mas alcana tambm a chamada classe mdia. 2 O Brasil um perfeito exemplo da situao descrita.

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  • Pelo contrrio, suas instituies jurdico-polticas, de regra, "foram simples-mente adquiridas por importao, tal como se importa uma mercadoria pronta e acabada, supostamente disponvel para proveitoso consumo imediato. Nestes Esta-dos recepcionou-se um produto cultural, ou seja, o fruto de um processo evolutivo marcado por uma identidade prpria, transplantando-o para um meio completa-mente distinto e caracterizado por outras circunstncias e vicissitudes histricas. dizer, instituies refletoras de uma dada realidade vieram a ser implantadas de baixo para cima, como se fossem irrelevantes as diversidades de solo e de enraiza-mento"3.

    4. Em suma: estes padres de organizao poltica no se impuseram conta de autntica resposta a conflitos ou presses sociais que os tivessem inapelavelmente engendrado; antes, foram assumidos porque a elite dirigente de sociedades menos evoludas, de olhos postos nas mais evoludas, entendeu que se constituam em um modelo natural, a ser incorporado como expresso de um desejvel estgio civiliza-trio. Ento, no lhes atribuem outra importncia seno figurativa. Da que, no estando cerceadas por uma conscincia social democrtica e correlata presso, ou mesmo pelos eventuais entusiasmos de uma" opinio pblica" , j que as modelam a seu talante, aceitam as instituies democrticas "apenas enquanto no interfe-rentes com os amplos privilgios que conservam ou com a vigorosa dominao poltica que podem exercer nos bastidores, por detrs de uma mscara democrtica, graas, justamente, ao precrio estgio de desenvolvimento econmico, poltico e social de suas respectivas sociedades" 4.

    De outra parte, esta situao inferior em que vivem os Estados apenas formal-mente democrticos lhes confere, em todos os planos, um carter de natural subal-ternidade em face dos pases cntricos, os quais, compreensivelmente, so os pro-dutores de idias, de "teorias" polticas ou econmicas, concebidas na conformidade dos respectivos interesses e que se impem aos subdesenvolvidos, no apenas pelo prestgio da origem, mas tambm por toda a espcie de presses. Sendo conveniente aos pases desenvolvidos a persistncia desta mesma situao, que lhes propicia, em estreita aliana com os segmentos dominantes de tais sociedades, manejar muito mais comodamente os governos dos pases" pseudodemocrticos" em prol de suas convenincias econmicas e polticas5, natural que existam entraves suplementares para superao deste estgio primrio de evoluo.

    3 Representatividade e Democracia "in" Direito Eleitoral- obra coletiva, p. 45, Livraria Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1996. 4 Idem, p. 46. 5 Ainda aqui, o Brasil vale como exemplo. Aps uma formidvel campanha desencadeada pela "mdia" em prol de reformas constitucionais, com destaque para as Reformas Fiscal e Administrativa (sem o que, dizia-se, o Pas seria" ingovernvel"), o Presidente Fernando Henrique Cardoso, em seu primeiro ano de Governo, animado por esta onda reformista, fez aprovar quatro Emendas Constitucionais. Curiosamente, entretanto, estas quatro Emendas, ao invs de se reportarem a problemas internos, foram todas -registre-se e sublinhe-se - sintonizadas com aspiraes externas ou de agrado internacional. Devem ter sido consideradas as verdadeiramente urgentes e importantes. So as seguintes: (a) Emenda Consti-tucional n2 6, de 15.08.95, por fora da qual de um lado, foram eliminados o conceito de empresa brasileira de capital nacional e a prefernia que o Poder Pblico lhe deveria dar quando pretendesse adquirir bens

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  • 5. Resulta deste quadro que as sociedades de incipiente cultura poltica, para poderem vir a se configurar como Estados democrticos, demandariam mais do que apenas reproduzir em suas Constituies os traos especificadores de tal sistema de governo. Com efeito, de um lado, teriam que ajustar suas instituies bsicas de maneira a prevenir ou dificultar os mecanismos correntes de seu desnaturament06 e, de outro - o que ainda seria mais importante - empenhar-se na transformao da realidade social buscando concorrer ativamente para produzir aquele mnimo de cultura poltica indispensvel prtica efetiva da democracia, nica forma de superar os entraves viscerais ao seu normal funcionamento.

    Uma vez que a democracia se assenta na proclamao e reconhecimento da soberania popular, indispensvel" que os cidados tenham no s uma conscincia clara, interiorizada e reivindicativa deste ttulo jurdico poltico que se lhes afirma constitucionalmente reconhecido como direito inalienvel, mas que disponham das condies indispensveis para poderem faz-lo valer de fato. Entre estas condies esto no apenas (a) as de desfrutar de um padro econmico-social acima da mera subsistncia (sem o que seria v qualquer expectativa de que suas preocupaes

    e servios, e de outro, permitiu-se, assim, que a explorao mineral do sub subsolo brasileiro pudesse ser feita por empresas controladas e dirigidas por pessoas no residentes no Pas, o que dantes era vedado. O atual projeto de privatizar a Cia. Vale do Rio Doce, empresa governamental lucrativa, uma concre-tizao da sobredita Emenda; (b) A Emenda Constitucional n!! 7, tambm de 15 de agosto do mesmo ano, veio extinguir a garantia de que a navegao de cabotagem e interior no Brasil fosse, salvo caso de necessidade pblica, privativa de embarcaes nacionais, pelo que no h mais bice constitucional a que seja feita por embarcaes estrangeiras; alm disto, suprimiu a exigncia de que os armadores, os proprietrios, o comandante e pelo menos dois teros dos tripulantes de nossas prprias embarcaes fossem brasileiros (espantosa a mincia dos interesses aliengenas em excluir at mesmo a clusula que estabelecia devessem ser brasileiros dois teros dos tripulantes de nossas prprias embarcaes); (c) A de n!! 8, da mesma data das anteriores, veio para eliminar a previso de que a explorao de servios telefnicos, telegrficos, de transmisso de dados e demais servios pblicos de telecomunicaes fossem explorados diretamente pela Unio ou por concesso a pessoa sob controle acionrio estatal; (d) A de n 9, tambm da mesma data, para flexibilizar as disposies relativas ao monoplio estatal do petrleo. 6 Sem embargo, os que acedem ao Poder esmeram-se na tendncia inversa. H poucos dias, valendo-se de meios prprios e imprprios, que outrora combatia, aps ingentes esforos junto ao Legislativo, o Presidente Fernando Henrique Cardoso conseguiu fazer passar em primeira votao - e certamente ter xito final - emenda constitucional em proveito prprio: a da reelegibilidade para os atuais ocupantes da Chefia do Executivo. Completar, assim, neste particular, sua paridade com dois outros seus confrades sul-americanos que tambm fizeram aprovar emendas da mesma natureza: os Srs. Fujimori (Peru) e Menem (Argentina), os quais, tal como ele, desenvolvem polticas ao gosto dos organismos internacionais controlados pelos pases cntricos, sendo-lhes conveniente que permaneam no poder o mximo de tempo possvel. Note-se que, desde a primeira Constituio Republicana, todas, com exceo da Carta da Ditadura de 1937, proibiam a reeleio do Presidente, perfeitamente cnscias do risco dos Chefes de Executivo usarem seus formidveis poderes para assegurar-se a continuidade no mandato sucessivo. Foi o que bem anotou GERALDO AT ALIBA: "Aliada, portanto, temporariedade dos mandatos executivos encontra-se. no Brasil, a consagrao tradicional do princpio da no reeleio dos seus exercentes. Querem. destarte. as instituies assegurar que aformidvel soma de poderes que a repblica presiden-cialista pe nas mos do Chefe do Executivo seja toda ela empregada no benefcio da funo e jamais em benefcio prprio. No por outra razo que tal funo designa-se no discurso poltico, por magistratura. dada a impessoalidade e imparcialidade que ho de caracterizar o comportamento do seu titular." (" Repblica e Constituio" , p. 76, Ed. Rev. dos Trib .. 1985 - grifo do autor).

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  • transcendam as da mera rotina da sobrevivncia imediata), mas tambm, as de efetivo acesso (b) educao e cultura (para alcanarem ao menos o nvel de discernimento poltico traduzido em conscincia real de cidadania) e (c) informa-o, mediante o pluralismo de fontes diversificadas (para no serem facilmente manipulveis pelos detentores dos veculos de comunicao de massa)" 7.

    6. Uma vez reconhecido que nos Estados apenas formalmente democrticos o jogo espontneo das foras sociais e econmicas no produziu, nem produz por si mesmo - ou ao menos no o faz em prazo aceitvel - as transformaes indis-pensveis a uma real vivncia democrtica, resulta claro que, para eles, os ventos neoliberais, soprados de pases cujos estdios de desenvolvimento so muito supe-riores, no oferecem as solues acaso prestantes nestes ltimos. Valem, certamente, como advertncia contra excessos de intervencionismo estatal ou contra a tentativa infrutfera de fazer do Estado um eficiente protagonista estelar do universo econ-mico. Sem embargo, nos pases que ainda no alcanaram o estgio poltico cultural requerido para uma prtica real da democracia, o Estado tem de ser muito mais que um rbitro de conflitos de interesses individuais.

    Cumpre ter presente que acentuadas disparidades econmicas entre as camadas sociais, que j foram superadas em outros pases, inclusive mediante ao diligente do Estado, persistem em todos aqueles de insatisfatria realizao democrtica. Nestes, a pssima qualidade de vida de vastos segmentos da sociedade bloqueia-lhes o acesso quele" mnimo de cultura poltica" a que se reportava BISCARETTI DI RUFFIA. Assim, seria descabido imaginar que o papel do Estado pode ser o mesmo em quaisquer deles.

    7. De fato, para engendrar os requisitos condicionais ao funcionamento normal da democracia ou promover-lhes a expanso, o Estado no tem alternativa seno a de se constituir em um decidido agente transformador, o que supe, diversamente do que hoje pode ocorrer nos pases que j ultrapassaram esta fase, um desempenho muito mais participante, notadamente no suprimento dos recursos sociais bsicos e no desenvolvimento de uma poltica promotora das camadas mais desfavorecidas.

    Na medida em que suas instituies e prtica estejam votadas a este efeito transformador, caberia qualific-los como Estados em transio para a democracia. Entretanto, se, em despeito do formal obsquio que lhe prestem atravs das corres-pondentes instituies clssicas, deixarem de consagrar-se instaurao das condi-es propiciatrias de uma real vivncia e conscincia de cidadania, no se lhes poder reconhecer sequer este carter.

    8. Demais disto, contrariamente ao que pode suceder e vem sucedendo nos

    7 .. Representatividade e Democracia" . cit.. p. 46. Observe-se que. entre ns. os veculos de comunicao a que a esmagadora maioria da populao verdadeiramente acede so o rdio e a televiso. Da que a fora. no apenas informativa. mas tambm aliciadora ou persuasiva. que possuem incontrastvel. Assim. no por acaso, em contradita frontal s Constituies e s leis. concesses de rdio e televiso so outorgadas sem um procedimento licitatrio prvio: distribudas como favor. Acresa-se que uma nica emissora de televiso detm ndices de audincia esmagadores, o que lhe proporciona, com uma tecnologia de primeiro mundo sobre cabeas do terceiro mundo. modelar. a seu talante. a opinio e o pensamento do cidado comum.

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  • Estados substancialmente democrticos, naqueloutros que ainda esto em caminho de s-lo, quaisquer transigncia com a rigidez do princpio da legalidade, quaisquer flexibilizaes do monoplio legislativo parlamentar, seriam comprometedoras deste rumo.

    que toda concentrao de poder no Executivo, assim como qualquer indul-gncia em relao a suas pretenses normativas, constituem-se em substancial re-foro ao autoritarismo tradicional, solidificam uma concepo paternalista do Estado - identificado com a pessoa de um "Chefe" - e alimentam a tendncia popular de receber com naturalidade e esperanoso entusiasmo solues caudilhescas ou messinicas.

    Em uma palavra: atribuir ao Executivo - rgo estruturado em tomo de uma chefia unipessoal - poderes para disciplinar relaes entre administrao e admi-nistrados , nos pases de democracia ainda imatura, comportamento que em nada concorreria para a formao de uma conscincia valorizadora da responsabilidade social de cada qual (que a prpria exaltao da cidadania) ou para encarecer a importncia bsica de instituies impersonalizadas como instrumento de progresso e bem-estar de todos. Contrariamente, serviria apenas para reconfirmar a anacrnica relao soberano-sditos.

    Assim, em despeito da generalizada tendncia mundial de transferir ao Execu-tivo poderes substancialmente legislativos, ora de maneira explcita e sem rebuos, como se fez na Frana (e logo acomodada pelos tericos em uma eufmica recons-truo do princpio da legalidade), ora mediante os mais variados expedientes ou atravs de acrobticas interpretaes dos textos constitucionais, nos Estados que ainda carecem de uma experincia democrtica slida, a acolhida destas prticas no compatvel com a democracia, ainda que tal fenmeno haja sido suscitado -reconhea-se - por razes objetivas poderosas, tanto que se impuseram generali-zadamente.

    11. A crise dos instrumentos clssicos da democracia

    9. O tpico do fortalecimento do Poder Executivo e correlato declnio do Legislativo suscita reflexes que concernem genericamente ao tema das relaes entre Estado e democracia, extravasando em muito o mbito das consideraes feitas quanto especificidade de suas repercusses imediatas nos pases onde ainda dbil o enraizamento social da democracia.

    sabido que, em despeito da importncia atribuvel ao Parlamento na histria da democracia, importncia esta correlata ao declnio do poder monrquico, o Exe-

    8 Assim, "exempli gratia", o atual Chefe do Poder Executivo brasileiro - no passado, havido como um "intelectual progressista" e hoje associado politicamente com expoentes da ditadura que dantes combatia - no se constrangeu em expedir uma" medida provisria" a cada 19 horas, conforme registro feito h alguns meses pela Revista" Veja" . Nisto contribuiu eficazmente para a crescente desmoralizao das instituies democrticas entre ns, tanto mais porque ditas medidas tm sido visivelmente incons-titucionais, por ausentes os pressupostos de sua vlida produo.

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  • cutivo, sucessor do rei, cedo comeou a recuperar, em detrimento bvio das Casas Legislativas e, pois, de um dos pilares da democracia clssica, os poderes normativos que lhe haviam sido retirados9 certo, sem dvida, que, na presente quadra histrica, poderosas e objetivas razes vm concorrendo crescentemente para isto.

    Desde que o Estado, por fora da mudana de concepes polticas, deixou de encarar a realidade social e econmica como um dado, para consider-Ia como um objeto de transformao, sua ao intervencionista operada por via da Administrao e traduzida no s em aprofundamento, mas sobretudo em alargamento de suas misses tradicionais, provocaria, como to bem observou ERNST FORSTHOFF, uma insuficincia das tcnicas de proteo das liberdades e de controle jurdico, as quais haviam sido desenvolvidas sob o signo do Estado liberal 10.

    Acresce que, inobstante ameacem vingar e prevalecer concepes neoliberais, nem por isto reduzir-se- a intensificao de um controle do Estado sobre a atividade individual. que o progressivo cerceamento da liberdade dos indivduos, tanto como o fortalecimento do Poder Executivo, arrimam-se tambm em razes independentes das concepes ideolgicas sobre as misses reputadas pertinentes ao Estado. Um outro fator, de extrema relevncia - o progresso tecnolgico - igualmente con-correu e concorre de modo inexorvel para estes mesmos efeitos.

    10. Deveras, o extraordinrio avano tecnolgico ocorrido neste sculo, a con-seqente complexidade da civilizao por ele engendrada e, correlatamente, o carter cada vez mais tcnico das decises governamentais, aliados tendncia recente da formao de grandes blocos poltico-econmicos formalizados, quais mega-Estados, conspiram simultaneamente contra o monoplio legislativo parlamentar e, possivel-mente, a mdio prazo, at mesmo contra as liberdades individuais. Seno, vejamos.

    Sabidamente, como resultado da evoluo tecnolgica, as limitadas energias individuais se expandiram enormemente, com o que se ampliou a repercusso cole-tiva da ao de cada qual, dantes modesta e ao depois potencialmente desastrosa (pelo simples fato de exponenciar-se). Em face disto, emergiu como imperativo inafastvel uma ao reguladora e fiscalizadora do Estado muito mais extensa e intensa do que no passado. Notoriamente, o "brao tecnolgico" propiciou gerar, em escala macroscpica, contaminao do ar, da gua, poluio sobre todas as formas, inclusive sonora e visual, devastao do meio ambiente, alm de ensejar saturao dos espaos, provocada por um adensamento populacional nos grandes conglomerados urbanos, evento, a um s tempo, impulsionado e tomado exeqvel pelos recursos conferidos pelo avano tecnolgico. Tomou-se, pois, inelutvel con-dicionar e conter a atuao das pessoas fsicas e jurdicas dentro de pautas definidas e organizadas, seja para que no se fizessem socialmente predatrias, seja para acomod-Ias a termos compatveis com um convvio humano harmnico e produtivo.

    9 Notvel a este respeito o estudo desenvolvido por SANTA MARIA PASTOR, em seu" Fundamentos de Derecho Administrativo", vol I, pp. 690 a 714, Editorial Centro de Estudos Ramon Areces, Madrid, 1988. 10 "Trait de Droit Administratif Allemand" , pp. 126-127 e 133, tablissements mile Bruyant, Bru-xelles, trad. da 9i ed. alem por Michel Fromont.

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  • Em suma: como decorrncia do progresso tecnolgico engendrou-se um novo mundo. um novo sistema de vida e de organizao social, consentneos com esta realidade superveniente. Da que o Estado, em conseqncia disto, teve que disci-plinar os comportamentos individuais e sociais muito mais minuciosa e extensamente do que jamais o fizera. passando a imiscuir-se nos mais variados aspectos da vida individual e social.

    Este agigantamento estatal manifestou-se sobretudo como um agigantamento da Administrao, tomada onipresente e beneficiria de uma concentrao de poder decisrio que desbalanceou, em seu proveito, os termos do anterior relacionamento entre Legislativo e Executivo. Com efeito, este ltimo, por fora de sua estrutura monoltica (chefia unipessoal e organizao hierarquizada), muito mais adaptado para responder com presteza s necessidades diuturnas de governo de uma sociedade que vive em ritmo veloz e cuja eficincia mxima depende disto. Ademais, instru-mentado por uma legio de tcnicos, dispe dos meios hbeis para enfrentar questes complexas cada vez mais vinculadas a anlises desta natureza e que, alm disto, precisam ser formuladas com ateno a aspectos particularizados ante a diversidade dos problemas concretos ou de suas implicaes polifacticas, cujas solues depen-dem de anlises tcnicas - e no apenas polticas.

    //1. Tentativas de resposta crise da democracia

    11. Estes fatores convulsionantes do quadro clssico da democracia (e no apenas da democracia liberal) suscitaram respostas tendentes, a neutralizar, ao menos parcialmente, os riscos oriundos da transferncia de poderes do Legislativo para o Executivo e da maior exposio. individual ou coletiva dos cidados, a um progres-sivo cerceamento das liberdades.

    A disseminao do parlamentarismo ter sido. possivelmente, o meio de que as sociedades mais evoludas lanaram mo, na esfera poltica, para minimizar as conseqncias do fortalecimento do Executivo. Os Estados Unidos da Amrica do Norte constituem-se em exceo confirmadora da regra. Com efeito, ainda dentro dos quadros tradicionais de organizao poltica, no havendo irrompido outras frmulas de estruturao democrtica do Poder e ante a presumida impossibilidade de deter utilmente a aludida transferncia de atribuies do Legislativo para o Executivo, a soluo ter sido transformar este ltimo em delegado daquele. Ou seja: se o Executivo, armado agora de formidveis poderes, atuar descomedidamente, em descompasso com o sentimento geral da coletividade, simplesmente derrubado. Ou seja: converte-se o Parlamento, acima de tudo, em um organismo dotado do mais formidvel poder de veto: o veto geral; portanto, uma inverso radical, do modesto e provisrio poder de veto tpico do Executivo.

    Na esfera administrativa, ganha relevo crescente o procedimento administrativo, obrigando-se a Administrao a formalizar cuidadosamente todo o itinerrio que conduz ao processo decisrio. Passou-se a falar na "jurisdicionalizao" do proce-dimento administrativo (ou processo, como mais adequadamente o denominam ou-tros), com a ampliao crescente da participao do administrado no "iter" prepa-

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  • ratrio das decises que possam afet-lo. Em suma: a contrapartida do progressivo condicionamento da liberdade individual o progressivo condicionamento do "mo-dus procedendi" da Administrao.

    Outrossim, no mbito processual, mas com as mesmas preocupaes substan-ciais de defesa dos membros da Sociedade contra o poder do Estado, surge o reconhecimento e proteo dos chamados" interesses difusos" ou "direitos difusos' , os quais, em ltima instncia, ao nosso ver, no passam, quando menos em grande nmero de casos, de uma dimenso bvia dos simples direitos subjetivos. De fato, no h sentido algum em conceber estes ltimos com viso acanhada, presa a relaes muito tpicas do direito privado, inobstante categorizado como noo pertinente teoria geral do direito.

    IV. Insuficincia dos meios concebidos para salvaguarda dos ideais democrticos

    12. Os valiosos expedientes a que se vem de aludir minimizaram, mas no elidiram, a debilitao dos indivduos perante o Estado, assim como o enfraqueci-mento da interao entre os cidado e o Poder Pblico.

    O certo que entre a lei e os regulamentos do Executivo, hoje avassaladoramente invasivos de todos os campos (nada importando quanto a isto que hajam sido autorizados expressamente ou resultem da generalidade das expresses legais que os ensejam), h diferenas extremamente significativas que, no caso dos regulamen-tos, repercutem desfavoravelmente tanto no controle do poder estatal, quanto na suposta representatividade do pensamento das diversas faces sociais. Estas dife-renas, a seguir referidas, ensejam que as leis ofeream aos administrados garantias muitas vezes superiores s que poderiam derivar unicamente das caractersticas de abstrao e generalidade tambm encontradias nos regulamentos.

    13. Deveras, as leis provm de um rgo colegial - o Parlamento - no qual se congregam vrias tendncias ideolgicas, mltiplas faces polticas, diversos segmentos representativos do espectro de interesses que concorrem na vida social, de tal sorte que este rgo do Poder se constitui em verdadeiro cadinho onde se mesclam distintas correntes. Da que o resultado de sua produo jurdica termina por ser, quando menos em larga medida, fruto de algum contemperamento entre as variadas tendncias. At para a articulao da maioria requerida para a aprovao de uma lei, so necessrias transigncias e composies, de modo que a matria legislada resulta como o produto de uma interao, ao invs da mera imposio rgida das convenincias de uma nica linha de pensamento.

    Com isto, as leis ganham, ainda que em medidas variveis, um grau de proxi-midade em relao mdia do pensamento social predominante muito maior do que ocorre quando as normas produzidas correspondem simples expresso unitria da vontade comandante do Executivo, ainda que este tambm seja representativo de uma das faces sociais, a majoritria. que, afinal, como bem observou KELSEN, o Legislativo, formado segundo o critrio de eleies proporcionais, ensejadoras, justamente, da representao de uma pluralidade de grupos, inclusive de minorias, mais democrtico que o Executivo, ao qual se acede por eleio majoritria ou,

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  • no caso do Parlamentarismo, como fruto da vitria eleitoral de um partido. Da que os regulamentos traduzem uma perspectiva unitria, monoltica, da corrente ou das coalizes partidrias prevalentes.

    14. Alm disto, o prprio processo de elaborao das leis, em contraste com o dos regulamentos, confere s primeiras um grau de controlabilidade, confiabilidade e imparcialidade muitas vezes superior ao dos segundos, ensejando, pois, aos admi-nistrados um teor de garantia e proteo incomparavelmente maiores.

    que as leis se submetem a um trmite graas ao qual possvel o conhecimento pblico das disposies que estejam em caminho de serem implantadas. Com isto, evidentemente, h uma fiscalizao social, seja por meio da imprensa, de rgos de classe, ou de quaisquer setores interessados, o que, sem dvida, dificulta ou embarga eventuais direcionamentos incompatveis com o interesse pblico em geral, ensejan-do a irrupo de tempestivas alteraes e emendas para obstar, corrigir ou minimizar tanto decises precipitadas, quanto propsitos de favorecimento ou, reversamente, tratamento discriminatrio, gravoso ou apenas desatento ao justo interesse de grupos ou segmentos sociais, econmicos ou polticos. Demais disto, proporciona, ante o necessrio trmite pelas Comisses e o reexame pela Casa Legislativa revisora, aperfeioar tecnicamente a normatizao projetada, embargando, em grau maior, a possibilidade de erros ou inconvenincias provindos de aodamento. Finalmente, propicia um quadro normativo mais estvel, a bem da segurana e certeza jurdicas, benfico ao planejamento razovel da atividade econmica das pessoas e empresas e at dos projetos individuais de cada qual.

    15. J os regulamentos carecem de todos estes atributos e, pelo contrrio, ensancham as mazelas que resultariam da falta deles. Opostamente s leis, os regu-lamentos so elaborados em crculo restrito, fechado, desobrigados de qualquer publicidade, libertos, ento, de qualquer fiscalizao ou controle da sociedade ou mesmo dos segmentos sociais interessados na matria. Sua produo se faz em funo da diretriz estabelecida pelo Chefe do Governo ou de um grupo restrito, composto por seus membros. No necessita passar, portanto, pelo embate de tendncias pol-ticas e ideolgicas diferentes. Sobre mais, irrompe da noite para o dia e assim tambm pode ser alterado ou suprimido.

    Tudo quanto se disse dos regulamentos em confronto com as leis, deve-se dizer - e com muito maior razo - das medidas provisrias, sobretudo tal como utilizadas no Brasil, isto . descompasso flagrante com seus pressupostos constitu-cionais e com a teratolgica reiterao delas.

    V. Possvel agravamento da crise da democracia

    16. Ao que foi dito cumpre acrescer - e este possivelmente o aspecto mais importante - que, na atualidade, est ocorrendo um distanciamento cada vez maior entre os cidados e as instncias decisrias que lhes afetam diretamente a vida. A clarssima tendncia formao de blocos de Estados, de que a Europa a mais evidente demonstrao, por exibir um estgio qualitativamente distinto das ainda prodrmicas manifestaes, mal iniciadas em outras partes, revela o surgimento de

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  • frmulas polticas organizatrias muito distintas das que vigoraram no perodo imediatamente anterior e, como dito, um distanciamento, quase que inevitvel entre o cidado e o Poder. Com efeito, as decises tomadas pelos Conselhos de Ministros Europeus (os quais no so investidos por eleies para este fim especfico) possi-velmente afetam de maneira mais profunda a vida de cada europeu do que as tomadas pelos respectivos Parlamentos nacionais, isto , pelos que receberam mandato ex-presso para lhes regerem os comportamentos (O chamado "Parlamento Europeu", distintamente do que o nome sugere no um rgo legislativo).

    Procederia concluir que um nmero cada vez menor de pessoas decide sobre a vida de um nmero cada vez maior delas e que os modelos tradicionais, sobre os quais se assentou e se procurou assegurar a democracia, esto se esgarando. Os valores liberdade, igualdade, assim como a realidade da soberania popular (que se pretendeu traduzir nas formas institucionais da democracia representativa) encon-tram-se, hoje, provavelmente, muito mais resguardados enquanto valores incorpo-rados cultura poltica do Ocidente desenvolvido, do que, propriamente, pela eficincia dos vnculos formais das instituies jurdico-polticas. Dito de outro modo: a convico generalizada de que liberdade e igualdade so bens inestimveis atua como um freio natural sobre os governantes e permite que a positividade concreta de tais valores se mantenha ainda inclume, conquanto as instituies concebidas para assegur-los j no possuam mais as mesmas condies de eficcia instrumental que possuram.

    Para usar uma imagem exacerbada, como se j houvesse se iniciado uma caminhada em direo a um "despotismo esclarecido" .

    17. Poder-se-ia entender que os valores prprios da democracia encontram-se to profundamente enraizados na conscincia coletiva de sociedades politicamente mais evoludas que se constituiriam em estgio j definitivamente incorporado, tornando impensvel a possibilidade de qualquer retrocesso, independentemente da intrnseca eficincia das instituies concebidas para lhes oferecer o mximo de respaldo.

    Nada garante, entretanto, o otimismo desta suposio. Ainda permanece verda-deira a clssica assero de MONTESQUIEU: "todo aquele que tem poder tende a abusar dele; o poder vai at onde encontra limites" 11. A Histria da humanidade, inobstante a progressiva evoluo em todos os campos, confirma, tanto quanto fatos e episdios ainda muito recentes, que a prevalncia de idias generosas ou o sepul-tamento de discriminaes odiosas e preconceitos de toda ordem mantm correlao ntima com as situaes coletivas de bem-estar e segurana. E duram tanto quanto duram estas.

    18. No patamar do humano existem algumas constantes de comportamento social comuns generalidade da esfera animal. Tal como os irracionais, que, uma vez saciados, convivem bem com as demais espcies e, inversamente, agridem quando tangidos pela fome ou acicatados pelo temor, tambm as coletividades humanas, quando ameaadas pela presumida insegurana ou pelo risco ao seu bem-

    II .. De L 'Esprit des Lois" . p. 142, Gamier Freres. Libraires diteurs. Paris, 1869.

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  • estar. substituem suas convices e ideais mais elevados pelas pragmticas (e j agora especificamente humanas) racionalizaes e atacam com zoolgica violncia. Surtos de racismo. de rechao ao estrangeiro, de nacionalismo exacerbado, de in-conformismo com as levas migratrias advindas de um refluxo do colonialismo ou simplesmente da descomposio poltica, econmica ou social de outras sociedades - quaisquer deles j prenunciados nas tendncias de grupos polticos ou sociais em algumas sociedades europias - tanto como o recente e devastador consrcio blico dos principais Estados desenvolvidos contra um pas rabe, o Iraque (cujo ditador, quanto a isto, em nada diferente dos demais, distinguindo-se deles apenas em que se revela mais resistente aos interesses das grandes potncias e mais preocupado na defesa dos pertinentes ao prprio Pas), demonstram exemplarmente a precariedade das idias que no se encontrem aliceradas, simultaneamente, em interesses e em instituies formais hbeis para mant-Ias consolidadas.

    vista deste panorama, ainda incipiente, mas desde logo preocupante, difcil prenunciar. nestes umbrais do prximo milnio, o que seus albores reservam para a sobrevivncia da democracia e, muito mais, portanto, para as possibilidades dos pases subdesenvolvidos acederem s condies propiciatrias de uma democracia substancial. que os subdesenvolvidos tm sido e so, naturalmente, meros pies no tabuleiro de xadrez da economia e, pois, da poltica internacional; logo, por definio, sacrificveis para o cumprimento dos objetivos maiores dos que movem as peas.

    VI. Globalizao e neoliberalismo: novos obstculos democracia

    19. Talvez se possa concluir, apenas, que as condies evolutivas para aceder aos valores substancialmente democrticos, como igualdade real e no apenas formal, segurana social, respeito dignidade humana, valorizao do trabalho, justia social (todos consagrados na bem concebida e maltratada Constituio Brasileira de 1988), ficaro cada vez mais distantes na medida em que os Governos dos pases subde-senvolvidos e dos eufemicamente denominados em vias de desenvolvimento - em troca do prato de lentilhas constitudo pelos aplausos dos pases cntricos - se entreguem incondicionalmente seduo do canto de sereia proclamador das exce-lncias de um desenfreado neoliberalismo e de pretensas imposies de uma idola-trada economia global. Embevecidos narcisisticamente com a prpria" modernida-de", surdos ao clamor de uma populao de miserveis e desempregados, caso do Brasil de hoje, no tm ouvidos seno para este cntico monocrdio, monoltica e incontrastavelmente entoado pelos interessados.

    20. Diga-se de passagem que incorreta a suposio de que tanto a chamada "globalizao da economia" (com as feies que, indevidamente, se lhe quer atribuir como inerncias), quanto o "neoliberalismo", constituam-se simplesmente em um estgio evolutivo determinado to-s por transformaes econmicas inevitveis e, conseqentemente, que encamp-Ias nada mais significa seno adotar uma atitude racional de atualizao do pensamento para mant-lo conformado ao que h de incoercvel no desenvolvimento histrico. Esta forma de "interpretar" o fenmeno

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  • presente - como freqentemente ocorre - apenas uma forma astuciosa de valorizar o prprio iderio e de desacreditar, por antecipao, as contestaes que se lhes possam fazer. que traz consigo, implcita, ou mesmo explicitamente, a prvia qualificao dos que se lhe oponham, como ultrapassados (" dinossauros").

    Em rigor, elas nada mais so que "teorizaes" pobres, racionalizaes, elabo-radas para justificar interesses meramente polticos - e destarte contendveis - dos pases cntricos e das camadas economicamente privilegiadas, em cujo bojo e pro-veito foram gestadas. Com efeito, o modesto acervo de idias atualmente difundidas "sub color" de verdade cientfica universal nada mais que o uso de nomenclaturas novas encobridoras de experincias velhas, destinadas a consagrar um simples mo-vimento de retorno, quando menos parcial, ao sculo passado, ao "statu quo" precedente emergncia do chamado Estado Social de Direito ou Estado Providn-cia.

    21. Relembremos que a partir de meados do sculo XIX e sobretudo no incio do atual irrompeu e expandiu-se um movimento de inconformismo das camadas sociais mais desfavorecidas cujas condies de vida, como notrio, eram extrema-mente difceis. Fazendo eco a tais eventos, eclodiram, no campo das idias e suces-sivamente das realizaes polticas, manifestaes, de maior ou menor radicalismo, ponto de origem de duas diversas vertentes - comunismo e social democracia -insurgentes ambas contra o quadro poltico social da poca.

    O manifesto comunista (1848) e assim tambm ulteriormente Encclicas papais ("Rerum Novarum", 1891, "Quadragsimo Ano", 1931) so expressivas de uma viso ento crtica e renovadora. Os resultados concretos deste panorama de insur-gncia, em suas duas vertentes, foram, respectivamente, de um lado, a Revoluo Comunista de 1917 e implantao de tal regime na Rssia e, de outro a expanso da social democracia. Em sintonia com esta segunda vertente, consagraram-se, pois, pela primeira vez, em Texto Constitucional, os "Direitos Sociais", na Constituio Mexicana, tambm de 1917 e ao depois na Constituio alem, de Weimar, em 1919, disseminando-se pelo mundo a acolhida de tais direitos, de tal sorte que a preocu-pao em fazer do Estado um agente de melhoria das condies das camadas sociais mais desprotegidas expande-se ao longo de todo o sculo presente, explicando porque passou a ser referido como Estado Social de Direito ou Estado Providncia. De outra parte, o regime comunista, ano a ano, se alastrava, implantando-se em novos pases. Paralelamente, o colonialismo e seu sucessor, o imperialismo das grandes potncias do Ocidente, inicia um processo de agonia, lenta, mas contnua, afligido tambm por censuras crescentes ao excessivo desequilbrio entre as naes (Encclicas "Ma-ter er Magistra", 1961, "Pacem in Terris", 1963, e "Populorum Progressio", 1967).

    22. Foi, desde o incio, o temor de que se expandisse a concepo comunista - radicalmente antittica sobrevivncia do capitalismo - com sua capacidade de atrair as massas insatisfeitas, ou quando menos de alimentar os ativistas que as mobilizavam, o que forneceu o necessrio combustvel para a implantao e disse-minao do Estado Social de Direito. Com efeito, a Histria no registra gestos coletivos de generosidade das elites para com as camadas mais carentes (ainda que seja prdiga em exemplos dela no plano individual). Ora bem, assim como o receio

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  • do comunismo propiciou a irrupo do Estado Providncia, sua falncia na Unio Sovitica e no Leste Europeu - e sinais precursores de seu declnio no Extremo Oriente - est a lhe determinar o fim.

    23. A simples cronologia dos eventos e das correlatas idias o demonstram de modo inconfundvel. O Estado Social de Direito emerge, encerrando o ciclo do liberalismo, quando emerge o comunismo. To logo fracassa o comunismo, renas-cem, de imediato, com vigor mximo as idias liberais, agora "recauchutadas" com o rtulo de "neo" , propondo liminarmente a eliminao ou sangramento das con-quistas trabalhistas e direitos sociais, do mesmo passo em que revive o imperialismo pleno e incontestado, sob a designao aparentemente tcnica de "globalizao" . No h nisto, como bvio, coincidncia alguma. O que h disseminao de idias polticas, de interesse dos pases dominantes e das camadas sociais mais favorecidas. Livres, uns e outros, dos temores e percalos que lhes impuseram as concesses feitas no curso do sculo presente, empenham-se, agora, ao final dele, em retomar as posies anteriores. Trata-se, como se v, de um retomo ao mesmo esquema de poder, nos planos interno e internacional, vigente no final do sculo passado e incio deste, sob aplausos praticamente unnimes em ambas as frentes.

    No momento, parece que no h mais ncleo algum capaz de contender esta rebarbativa unanimidade que se autolisonjeia com o qualificativo de moderna, cate-gorizando como ultrapassados quaisquer que ainda no hajam renunciado ao trabalho de pensar criticamente. A bipolaridade mundial, dantes existente (mas finda com a imploso da Unio Sovitica), com o confronto de idias provindas dos dois centros produtores de ideologias antagnicas, ensejava, alm da rea de frico, de per si desgastadora de seus extremismos, um natural convite crtica de ambas, na trilha da sntese resultante de tal dialtica. A momentnea ausncia das condies objetivas para um debate consistente possivelmente , para os pases subdesenvolvidos, um dos piores dramas deste final de milnio e um dos maiores obstculos a que venham, finalmente, a abicar em regimes efetivamente democrticos.

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