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    CULTURA GENTICAvertigem ontolgica e dissoluo do

    conceito de natureza

    LUIZ FELIPE POND

    Filsofo, Professor do Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias da Religio da PUC-SP

    Resumo: O objetivo do artigo discutir o processo psicossocial em curso no momento em que se instala a novatecnologia genmica, processo que cria uma ruptura ontolgica na cultura ocidental semelhana de outrasrupturas, como a passagem do nomadismo caador-coletor ao sedentarismo da agricultura , identificada comodissoluo do conceito de natureza e o horror ontolgico que este fato implica. Ta l dissoluo ser concretiza-da pela banalizao feliz do consumo em larga escala dos bens genmicos, um comportamento de consumo,na realidade um desdobramento da aposta iluminista na emancipao humana que se artificializa definitiva-mente na matria viva, normatizando-a dentro da categoria de insumo.

    Palavras-chave: tecnologia genmica; natureza e cultura; cincia e religio.

    padro social de controle da rea a que nosreferimos como eventos naturais bastanteelevado nos pases industrializados, e o mes-

    rias pressupostas na condio nmade (agilidade, fora,velocidade, habilidade em se fazer invisvel, enfim, for-mas superiores de movimento e deslocamento no espao)para superao da condio humana essencial, ou seja, oconstante terror da contingncia manifestado no pavorestrutural do ser humano diante da sua evidente fragilida-de em oposio ao poder absoluto da Natureza ou do Cos-mo. intratvel corrupo fsica humana, o cosmo revelasua tranqila e ativa permanncia em si mesmo, opondodesta forma seu ser ao nosso miservel no-ser. Com apassagem agricultura e ao sedentarismo, os seres huma-nos descobrem outras divindades, agora carregadas dosvalores necessrios para a manuteno da vida na ausn-cia de deslocamento espacial, isto , divindades que re-presentavam as necessidades tcnicas para se agir so-bre as recm-descobertas leis da natureza especficas,percebidas pela observao dos modos naturais de repro-duo da vida vegetal. O sol, a lua e seus ciclos, o fluxo

    das guas e seus poderes sobre a terra cultivada, passa-ram a manifestar o domnio do Sagrado (o Absoluto agente)e assim, apontavam para os modos de nos defender, tal-vez, de nossa estrutural misria ontolgica. O escritor eexplorador ingls Bruce Chatwin (1997), praticando o quepoderamos chamar de uma antropologia social histricaminimalista, tambm chamou a ateno para os desdobra-mentos (para ele, defensor do nomadismo, infelizes) de-correntes da mesma transformao radical de hbitos hu-

    mo se aplica ao autocontrole do pensamento e da obser-vao neste campo. Nele, a insegurana das pessoas di-minuiu expressivamente no decorrer dos ltimos sculos,tal como aconteceu com o componente de desejo e medona atividade mental nessa esfera. Mas em relao s vas-tas reas do mundo humano, especialmente a suas tensese conflitos, tanto o padro de controle social sobre os acon-tecimentos quanto os de autocontrole na reflexo sobreeles so consideravelmente menores. As ameaas mtuasdas pessoas e, particularmente, das naes, bem como dainsegurana da decorrente, ainda so muito grandes, e orefreamento dos afetos na reflexo sobre essa rea re-duzido, comparado ao que normal em relao aos fen-menos naturais. (Elias, 1994:87).

    O historiador das religies, o romeno Mircea Eliade

    (1978), mostrou que a passagem da cultura de caadores-coletores para a agricultura envolveu toda uma alteraodo campo religioso humano. Sendo as religies, segundoo mesmo Eliade, modos criptoontolgicos de pensamen-to, transformaes religiosas implicam necessariamenteabismos ontolgicos desconhecidos. As divindades quehabitavam e moldavam o real do homem e da mulher n-mades carregavam em si as formas que estes mesmos ho-mens e mulheres imaginavam ser as qualidades necess-

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    manos bsicos. O sedentarismo e seu necessrio conser-vadorismo geogrfico envolveu o abandono do movimentocontnuo e cclico dos seres humanos, acarretandodecrepitudes fsica, psicolgica e social desconhecidas

    para os nmades. Os exemplos se multiplicariam: dege-nerao muscular e neuronal precoce devido ausnciade estmulos constantes e novos aos neurotransmissores,empobrecendo o arco-reflexo e a amplitude motora, obs-trues vasculares cada vez mais rpidas pois o alimento,sem movimento contnuo, se transforma necessariamenteem veneno, levando o sedentrio ridcula criao domovimento muscular estril do ponto de vista da funomotora, conhecido como ginstica, depresses e tdiosconstantes em virtude da monotonia esttica do espaoresidencial e da pobreza cognitiva associada, levando ohomem e a mulher a se entregarem risvel aventura da

    inveno da distrao e da decorao programadas, aosexageros da atividade reprodutora como resto da prti-ca fsica permitida, a patologia social de comparao eacmulo de bens materiais (agenciadores psicossociais dainveja e ancestrais primeiros do capitalismo) impossvelao nmade pelas necessidades naturais do movimentocontnuo, a produo crescente de lixo acumulado e geo-metricamente multiplicado pela mesma mania de acmu-lo de bens (estes e o lixo seriam primos sociais e, por-tanto, teriam a mesma raiz funcional), enfim, inflaoda dimenso esttica daquilo que chamamos hierarquiasocial. Assim sendo, com o sedentarismo, inaugura-se oimprio da inrcia patognica e das grandes agonias sociais.

    So vrios os campos de estudo que se ocupam com osinfinitos desdobramentos associados aos modos de vida es atividades produtivas da espcie humana. Os poucosexemplos acima ilustram a amplitude do campo de proble-mas que demandam uma reflexo detida. A variao des-ses modos e a verticalidade das transformaes antropol-gicas causadas por tal variao se desdobram nas maisdiversas reas: da religio ontologia, da fisiologia aoshbitos de comportamento, da sociedade poltica. Comocaso especfico dessa variao alis, foco de interesse

    nesta rpida reflexo , a prtica generalizada da biotec-nologia gentica (os usos e recursos da genmica), a facecontempornea de Prometeu, tender a assumir, desteponto de vista, a mesma amplitude que a revoluo da agri-cultura e, portanto, nos encontramos s margens de umabismo ontolgico (psicolgico e social) de dimenses gi-gantescas. Em meio ao rudo sempre histrico e quasesempre efmero da mdia, o que se esconde o medo at-vico do risco estrutural que acompanha as conquistas da

    atividade cognitiva, reflexiva e tcnica do ser humano.1 Emais, os textos tcnicos sobre o tema pouco ajudam a com-preenso das transformaes envolvidas na futura e pro-vvel banalizao dos produtos da genmica.2 As discus-

    ses ticas tambm pecam pela ingenuidade cnica3 poisfacilmente escamoteiam o carter de emancipao que oconsumidor ver na genmica e que forosamente levarao uso dos recursos biotecnolgicos em escala semelhan-te aos usos da agricultura.

    Assim, a tentativa de compreenso dos campos de pos-sibilidades e de pavor que geram a genmica de consumofica limitada a discusses pouco proveitosas e mistifi-cadoras, e acima de tudo de muito pouco valor para umaampliao da capacidade do senso comum pensante paracompreender e se comprometer com o profundo processode mutao antropolgica em curso.

    A produo filmogrfica sobre o tema fico cientfi-ca (science fiction), apenas como introduo, pode nosservir como indicador interessante da viso atual de comopodero acontecer os desdobramentos do consumo siste-matizado da genmica, que seguramente ser introduzidopelos interesses do capital associado face contempor-nea de Prometeu. Entre os filmes mais recentes e de maiorpblico, a produoBlade Runnerde Ridley Scott (1981)introduz a anlise mais importante dos fundamentos dochoque genmico: a relativizao das supostas diferen-as que existiriam entre seres humanos naturais e artifi-ciais. O que se esconde por trs da luta pela sobrevivn-cia que leva a cabo os replicantes (os homens e mulheresartificiais) diante de seu criador cientista a dissoluo tema fundamental que ser novamente abordado do con-ceito de natureza,4 transformao ontolgica que causara decadncia dos vocabulrios naturalistas nos quais ain-da estamos includos. Segundo o filsofo pragmticoRichard Rorty, assistimos nas ltimas dcadas falnciados vocabulrios teolgicos (Rorty, 1992), que causou aperda de valor cognitivo e com ele, qualquer possibili-dade de significado, inclusive tico ou moral de qual-quer argumento racional baseado em fundamentos religio-

    sos. Como exemplo da estranheza causada por esseprocesso de falncia de uma rede especfica de vocabul-rios, podemos mencionar as absurdas discusses sobrea humanidade (ou no) dos chamados ndios concludaspelos intelectuais espanhis e portugueses na seqnciadas grandes descobertas martimas. O paradigma mentale filosfico desses debatedores era christian-orientedeportanto o choque da nudez dos ndios associado a simi-laridade com os humanos justificava a controvrsia: como

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    descendentes de Ado e Eva podiam andar nus? Ondeestava neles a marca hereditria (no caso em particular, anoo de privacidade vergonhosa do corpo) do pecado ori-ginal? Para alm da completa validade especfica ou no

    da argumentao rortiana, evidente a decadncia dosmodelos teolgicos de pensamento claramente fora dosambientes mais marcadamente religiosos e portanto meparece consistente a analogia: penso que um tal processose dar pelo valor cognitivo dos termos sobre o conceitode natureza (ou nature-dependent). Outro tema introdu-zido pelo filme a dvida ctica de formato cartesiano(Descartes, 1983) no que diz respeito certeza da prpriaidentidade: como ter certeza da prpria identidade se amemria, via manipulao de sua base (sua verdadeiranatureza) bioqumica, poderia ser na realidade fruto deum gnio maligno o engenheiro molecular que a

    introduzia dados at ento inexistentes? O drama da iden-tidade natural aqui se impe.

    Outro filme que vale a pena mencionar, mais recente, Gattaca de Andrew Niccol (1997). Interessante obser-var as relaes sociais e jurdicas nele esboadas: a asso-ciao entre patrimnio (logo diremos capital) genti-co e os mercados de trabalho e amor (afetos) e apreocupao do poder legislativo, ainda que de modo fa-talmente cnico, de criminalizar o genismo, ou seja, aprtica social leviana da discriminao baseada nos dife-rentes patrimnios genticos o Estado (leia-se, o Mer-cado) teria, claro, o monoplio da violncia discri-minatria genmica legtima. Ainda com relao a essefilme, importante seria mencionar seu happy end, no quala integridade pessoal e seu poder salva como possibili-dade que ultrapassa o determinismo gentico, figurada navitria do filho do acaso (miservel geneticamente) so-bre seu irmo manipulado.5 Idealizao vaga e infantil deque algo maior que o patrimnio gentico, associado a ummeio ambiente devorado e moldado pela sistematizaosocial e poltica dos recursos genmicos, existiria e per-maneceria como fundamento ltimo de um livre-arbtrio(sobrenatural porque sobregentico) humano que ago-

    ra, em vez de lutar contra os desgnios opacos de um Deusabsconditus, lanar-se-ia luta contra os desmandos daengenharia gentica e sua lacaia, a sociedade genista. T-pico manifesto cnico que falsamente ensaia a fuga (e re-cusa) do terror ontolgico institudo pela sociedade basea-da no consumo sistemtico e legtimo de bens genmicos.

    Outro marco fundamental e exemplificador das contro-vrsias filosficas com relao gentica de consumo eque me servir para introduzir o modo de reflexo que se

    julga consistente sobre os efeitos da banalizao dagenmica pelo mercado livre de seus recursos a re-cente polmica entre os filsofos alemes Peter Sloterdijke Jrgen Habermas.6 Na seqncia da leitura e posterior

    publicao de seu texto Regras para um parque humano Uma resposta carta de Heidegger sobre o Humanismona Alemanha, em um evento dedicado ao filsofo alemoMartin Heidegger, Sloterdijk foi violentamente acusado por Habermas e outros intelectuais de retomar irres-ponsavelmente a palavra eugenista em solo alemo. Nonos interessa aqui especificamente o curso da controvr-sia e suas particularidades histricas alems, mas parecerazovel a idia de que se algum, no um alemo, intro-duzisse uma reflexo semelhante a Sloterdijk, o halo doterror e da parania nazista seria seguramente menor.7

    Evidentemente que o imaginrio contemporneo est

    pleno de referncias ao aparentemente enorme grau de pa-rentesco ideolgico entre a manipulao programada dosseres humanos e o projeto nazista, e tal fato, alis, comoreconhece o prprio Sloterdijk, fundamental na atitudecnica que a sociedade humanista assume diante da prticagenmica: reprime histericamente, por discursos ticosrasos, a aceitao em nome de uma emancipao que temmedo de revelar seu prprio nome da genmica, a fim deconcluir a revoluo gentica em silncio e sem o barulhoindesejvel da sociedade aterrorizada, que se trabalhadopoderia se transformar em um processo de conscientizaopoltica da dimenso da revoluo em curso. O cinismo aqui exatamente essa recusa pblica de um tipo de reflexoque produz o desconforto moral necessariamente presentena forma bem-sucedida do projeto humanista ocidental, abiotecnologia, via manifestos pretensamente ticos masque na verdade no enfrentam, na prtica privada, oirresistvel desejo humano de combater sua misriaontolgica estrutural presente na evidente e terrvel cor-rupo da matria viva e muito ativo na luta de muitasmulheres, por exemplo, contra o envelhecimento pelas de-lcias estticas da prtica alegre de automutilaogerenciada pela moderna medicina plstica. Segundo

    Sloterdijk, na sua cadeia de argumentos que parte de Platoe sua Repblica de sbios que pastoreiam o restohumano, em meio falncia das engenharias sociais epolticas entre os sculos XVIII e XX, surge a prxis ge-ntica como verdadeira descendente vitoriosa do projetoocidental de aperfeioamento ontolgico da espcie.8

    Diante disso, seguindo os passos da reflexo deSloterdijk, devemos passar urgentemente legislao no-cnica de tal processo abissal. O remdio contra a refle-

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    xo cnica seria exatamente a atitude intelectual que assu-me o mal-estar e encara o abismo ontolgico no qual es-tamos prestes a mergulhar, fruto do prprio projeto deemancipao que caracteriza as melhores almas no Oci-

    dente. Genmica no na sua raiz delrio nazista, aindaque a ele tenha servido, mas o resultado do desejo do ho-mem e da mulher ocidentais na sua luta interminvel con-tra a natureza devoradora e seu Criador. Tal reconheci-mento em absoluto pressupe a institucionalizao de umnovo e ingnuo 14 juillet para celebrar a queda da lti-ma Bastilha, a natureza, esta senhora caprichosa, mas sima fundao de uma reflexo que parte da assuno do seuobjeto de desejo com nome prprio, ou seja, a libera-o do ser humano de qualquer forma de limite imposto sua capacidade tcnica e reflexiva de moldar seu prpriodestino, seguindo a trilha baconiana de controle e submis-

    so da natureza com o objetivo de melhorar suas condi-es de vida.

    A reflexo aqui, de certa forma, em muito se aproximada defesa de Ado mencionada por John Milton na suaobraParadise Lost: transgredidos os limites impostos porDeus, que legislemos livremente sobre nosso jardim dades-graa (Milton, s.d.). Poderia se dizer que este oprimeiro halo que na realidade paira como ter sobre opensamento quando se trata de encarar o drama ontolgicocausado pela genmica. Nesse sentido ela reedita os mi-tos admico e prometeico na sua forma mais violenta, eretomando a equao proposta por Eliade, isto , reli-gio criptoontologia, a relao entre a genmica e osuniversos mticos ocidentais que narram a desmedida hu-mana aponta para as profundas ressonncias religiosas quese impem quando se trata de analisar detidamente a cul-tura e os hbitos de consumo que esto por surgir. Toda-via, em uma primeira apreciao, no parece que a reli-giosidade oportunista de raiz instrumental e narcisista quecaracteriza a retomada espiritual no final do milnio apre-sente muita resistncia ao consumo dos recursos dagenmica, pelo contrrio, rapidamente dever produzir al-guma lenda perifrica que justifique a libertao espiri-

    tual pelo aperfeioamento dos genes imateriais.9

    As bra-vatas oficiais ou cannicas contrrias genmica deveroseguir o curso normal das proibies ao uso de preserva-tivos. No penso que os desdobramentos mais interessan-tes se daro neste terreno da religiosidade explcita. Asressonncias religiosas a que se fez referncia anterior-mente, ainda que certamente possam causar angstias le-gtimas de cunho religioso institucional em alguma par-cela da populao, apontam mais especificamente para o

    contedo ontolgico latente da equao eliadiana (devi-do ao pavor que experimentamos diante da nossa desgra-ada estrutura ontolgica).

    Parece, portanto, que deveramos dar mais ateno ao

    eixo propriamente ontolgico do problema e, neste senti-do, uma rpida reflexo sobre o motto no incio deste per-curso seria de grande ajuda.

    Segundo o que nos diz Elias, haveria uma reduo acen-tuada nos pavores mentais sobre a prtica das chamadascincias naturais e a reflexo produzida sobre tal prticanas sociedades industrializadas,10 ao passo que, no campodos conflitos sociais e de sua necessria reflexo, essespavores mentais permaneceriam ativos em virtude da faltade segurana (antes de tudo, epistemolgica) existente a,em oposio segurana com relao ao controle intelec-tual sobre o universo dos objetos naturais. A reflexo de

    Elias aqui, evidentemente, se insere na sua preocupaosobre a presena dos padres mistificadores e da inge-rncia dos afetos (ansiedade, insegurana, etc.) no campoda epistemologia aplicada s cincias sociais (ou s cin-cias em geral), o que desenharia o crculo vicioso do pavormental inviabilizando uma prtica mais efetiva de objetivi-dade no lidar com os objetos sociais. A reflexo de Eliassitua o problema de modo bastante esclarecedor, ainda queevidentemente partindo de outra trama de conceitos e gi-rando ao redor de outra gama de temas. A tentativa de des-crio do processo de dissoluo do conceito de naturezano deixa de ser um percurso conceitual que muito se apro-xima da batalha de Elias contra a fora aglutinadora, po-rm infeliz, de um ponto de vista cognitivo e epistemolgicodos fantasmas dos produtos reificados do chamado inte-lecto ele mesmo, uma reificao de uma funo do siste-ma nervoso humano materializada no espao social so-bre a atividade reflexiva humana ao longo da histria dafilosofia e das cincias, histria que se coloca como um atoespecfico dentro do drama geral no Ocidente que chama-ramos, ainda seguindo Elias, de o processo civilizador.A tenso entre cultura e natureza exatamente um dos modospelos quais podemos descrever o devorar do natural pelo

    cultural.Por dissoluo do conceito de natureza entende-se umlongo movimento da cultura ocidental que, com o adventoda biotecnologia, mais especificamente a genmica e suaengenharia, terminar por produzir a decadncia da tensocitada, porque ser normal a idia segundo a qual aquiloque se chamava natureza passa a ter apenas o estatuto dematria-prima bruta da atividade biotecnolgica avanada no existe tenso ontolgica alguma entre os carros e o

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    pet rleo mas sim meramente procedimentos tcnico-ambientais e de produo. Tal processo envolver a gra-dual perda de significado cognitivo (ainda que no-poti-co) dos vocabulrios que tm seu eixo na idia de natureza

    que revelar desse modo sua real condio de objetoreificado desmontado pela genmica de consumo e, comodesdobramento, esvaziar toda e qualquer articulao ra-cional que tentar fazer uso desses vocabulrios como fun-damento de prticas social, lgica e psicolgica baseadasna tenso j referida. Todo esse processo recoloca o estra-nhamento e o desconforto na atividade reflexiva tal comoElias fazia referncia na citao anterior.

    Esse processo se d em um universo materialista que,ao contrrio do que se pensava, foi o verdadeiro agente damais radical experincia de transcendncia produzida atento: com a biotecnologia encontramos, e vamos alargar,

    a brecha do Ser. Por que transcendncia? Porque o Ser,ou seja, a matria (viva) passa a ser submetida aos proce-dimentos (meramente) humanos de produo e sofistica-o. A civilizao ocidental agora lana suas garras sobrea matria viva, organizando-a da melhor forma possvel doponto de vista da cultura. 11 Transcendncia porque ultra-passa-se (ou pelo menos reduz-se radicalmente) os padresde sentido da matria viva exclusivamente definida at entocomo a tenso onde a natureza seria o plo que resistiriapor definio cultura. A natureza no mais o outro dacultura.

    O que prepara o processo de civilizao da matriaviva o relativismo12 que se instala em seu seio. Por meiodele, a dimenso de ansiedade retorna ao trato com osobjetos naturais porque os revela enquanto objetos dacultura e, assim sendo, volta a situ-los enquanto obje-tos sociais inseridos em um mar de intenes constru-das social e psicologicamente, por exemplo, as diferen-as (meramente) econmicas so redefinidas em termosbiotecnolgicos e portan to se dissolvem no mar dorelativismo ontolgico, revelando sua face mais violentaenquanto intratvel equivocidade moral quem no tiveracesso s tcnicas de manipulao ser entregue aos

    desmandos da natureza precria e selvagem, o divinoacaso , pois a espessura da misria social ser mais doque nunca tambm de espessura biolgica. A reflexo apartir da biotecnologia gentica revisitada pelos pavo-res humanos, mas na sua modalidade lovecraft: o terrordo abismo ontolgico e da ausncia de referncias uni-versais extra-humanas (ou sobre-humanas) consistentes.O corpo torna-se humano, demasiadamente humano. Orelativismo forte, produto da mente praticante do ceticis-

    mo, usualmente compreendido como o rochedo contrao qual se despedaam todas as formas de universalismosem virtude da falta de critrios ltimos e insuperveis: a(duvidosa) escolha humana torna-se agente da definio

    dos parmetros de sentido na organizao genista da ma-tria viva, e o sentimento de vertigem aproxima-se dacondio de um barco deriva, sem cais. A matria (oSer) definitivamente submetida tica, economia e poltica. No caso da cultura baseada no mercado livre debens genmicos, os modelos platnicos pr-rearranjo tc-nico se revelam potencialmente inferiores, exatamenteporque so identificados como meros produtos do acasoe no de uma ordem perfeita transcendente. Encurrala-se o absoluto desnudando-o de sua necessidade, iluminan-do, na realidade, sua miservel contingncia. E contra osefeitos nefastos das contingncias, a civilizao ociden-

    tal lana seu maduro projeto baconiano que se estabe-lece como oferta da programao tcnica de organizaessuperiores da matria viva, mais apropriadas para as de-mandas do mercado da evoluo humana. A repete-se atranscendncia assustadora. Aparentemente, a misriaontolgica estrutural do ser humano parece contagiar a ins-tncia que at ento era a portadora da dinmica de pereni-dade, desmascarando sua condio de acaso. O novoparaso de Ado ser mais adaptado pois no estar pre-so (ou pelo menos, estar em menor escala) aos ditames dacontingncia (nova face da natureza criadora, mergulhadana humilhante categoria de objeto da tcnica admica), enessa medida, ter uma perfeio mais real e mais til.

    Mas diante de tamanha possibilidade de emancipao, porque tamanho pavor, afinal? O abismo ontolgico no planoreligioso profundo pode ser identificado com o desconfortodo ser humano em aceitar a proposta de Milton feita a Ado(legislar livremente sobre o jardim da des-graa) e a respon-sabilidade metafsica que tal proposta acarreta,13 alis, o mes-mo peso que faz (em menor grau) toda uma cultura contem-pornea baseada no projeto existencial da adolescnciaeterna, reativa ao vazio metafsico recusar as agruras da idadeadulta em todos os planos, mergulhando a sociedade em de-

    lrios narcseos (a atitude narcsea essencialmente infan-til). Outro argumento tambm relacionado mais diretamentecom explcitas dimenses ontolgicas a afirmao de quea manipulao gnica seria contra a condio humana. Masafinal, o que vem a ser esta condio humana seno a de com-bater a natureza que nos devora?

    O fato da natureza passar a sofrer das mesmas mazelashumanas (isto , sua intencionalidade duvidosa) pode serseguramente uma outra referncia do medo, materializado

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    em idias simplistas como exrcitos nazistas indes-trutveis. Aqui, o infantil enredo cyberpunk(o cenrio muito mais prximo, na realidade, do livre e democrti-co mercado de bens de consumo, entregue s grandes com-

    panhias de seguros de sade e s empresas como CeleraGenomics, legtimos agentes do mercado de servios edessa arrasadora forma de medicina pr-natal) na realida-de esconde a verdadeira face da trama poltica latente emdiscusses como o problema das patentes e a definitiva nor-malizao jurdica do poder do capital sobre os cdigosdas (futuras) melhores formas genticas de adaptao sdemandas da evoluo das espcies. Por outro lado, a sim-ples determinao de que tais cdigos seriam patrimniopblico, ainda que representem um ganho, antes de tudosimblico em relao proposta (provavelmente vitoriosaem maior escala) da patente privada, no representa um

    grande avano uma vez que todas as relaes polticas ten-dem a ser sustentadas em bases de custos econmicos, e ahumanidade, alm de ser, como bem definiu o filsofo fran-cs Alain Finkielkraut (1996), uma construo conceitualj perdida, que apenas permanece enquanto resto do con-ceito, no detm o monoplio da violncia econmica le-gtima. A tendncia ser a privatizao dos instrumentosde poder assim como, por exemplo, privatizam-se os ins-trumentos de ao pblica via a simples prtica da corrup-o ou de sua forma sublime, o lobismo sobre a vio-lncia genmica legtima. Parece-me, portanto, que oaparente grande combate entre os partidrios da privatiza-o explcita e os defensores da propriedade pblica (pri-vatizao implcita) tende a se esvaziar quando se tratardo acesso efetivo s tcnicas genmicas, principalmenteem sociedades como a brasileira, em que o Estado e a so-ciedade so suicidas. Todavia, tal embate pode represen-tar seguramente um maior acesso democrtico s tcnicasgenmicas uma vez que algumas sociedades, menos refnsda misria poltica que assola pases como o Brasil, assi-milarem esse modo radical de emancipao aos seus pro-gramas poltico-sociais, em vez de ficarem paralisadas dian-te do imaginrio aterrorizado pelo abismo ontolgico que

    ela representa. Tal atitude diretamente dependente de umaampla democratizao da reflexo sobre a engenharia ge-ntica, uma prtica reflexiva que seja livre da conscinciapecadora e que sofre de pesadelos noturnos por ter maisuma vez apostado na serpente. O terror aqui assume suaclara consistncia poltica, portanto paralisa a capacidadedo senso comum para perceber a revoluo em curso, e,para isso, nada melhor que o investimento em imaginriosinfantis apocalpticos que apresentam a engenharia gen-

    tica como algo opressor por ser antinatural. Quem per-manecer na recusa da revoluo gentica, em defesa de umanatureza inexistente, ser como um nmade diante da re-voluo da agricultura, vagando no vazio da nova hierar-

    quia social do Ser (social e psicolgico), como um priaontolgico.

    Ainda que, na maioria das vezes, toda essa questo sejatratada dentro de um cenrio futurista non, na prticaprovavelmente se dar de um modo muito mais banal. Ofilme Gattaca, j citado, aqui tambm serve como indica-o temtica: as decises devero se dar muito mais noplano privado dos afetos e arranjos familiares. Casais pos-suidores de bons planos de sade iro aos seus laborat-rios, em manhs cheia de sol e de amor (e dos melhoresplanos para a futura criana), aconselhados por um cons-ciencioso profissional da rea de pr-natal e l completa-

    ro a seleo interna de seus patrimnios genticos. Noser muito diferente dos passos, em breve arcaicos, queocorrem hoje quando j somos munidos de formas prec-rias de terapias (preventivas) genticas. Alis, de certaforma, a terapia genmica ser apenas uma forma podero-sa de medicina preventiva pr-natal. Mesmo os mais aman-tes dos delrios em favor do acaso, tero mais dificulda-des dvidas existncias14 em correr riscos quandocontarem com formas seguras de evitar sofrimentos biol-gicos para sua prole. Evidentemente, toda essa sistemati-zao produzir um poderoso vetor de parania e discri-minao, inclusive no j precrio mercado do amor, levandoos consumidores de parceiros love hunters ao delrio maiorestilizado no filme Gattaca e seugenetic i.d. Em breve,toda a identidade gentica15 sem paranias muito estra-nhas ser assimilada ao cabedal cotidiano de dadosque um adulto consciente tem de levar em conta quando selana pesquisa mercadolgica dos afetos, principalmen-te quando envolve a sagrada idia de compromisso poramor. Pais conscienciosos, evidentemente, sero obriga-dos movidos pelos melhores sentimentos produzidospor uma educao elaborada, tpica das elites conhecedo-ras do que h de mais novo em termos de sofisticao

    dos modos de adaptao s necessidades do mercado defuturos a introduzir essa varivel nos dilogos esclare-cidos com seus jovens filhos e filhas (produtos da cari-nhosa programao gentica, evidentemente), que comosempre, tendero a fazer escolhas pouco pensadas e porisso mesmo, de grande risco (gentico).

    Todavia, uma outra varivel (ainda mais aterrorizantepara os descendentes angustiados de Ado) tem de serintroduzida nesta discusso acerca dos padres de com-

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    portamento dos casais reprodutores, sejam eles de fatobinucleares ou mononucleares (usurios de bancos deespermatozides ou vulos): a alterao do critrio leg-timo de filiao. Hoje em dia, e ainda enquanto a filiao

    se der em bases homogenticas (mesmo quando a pro-gramao interna ao patrimnio gentico dos agentes forassimilada pelo comportamento sistemtico da reprodu-o geneticamente assistida), a filiao um evento inte-grado ao que poderia definir como campo biolgico es-trito salvo nos casos de adoo que representam umaexceo regra. Isso pode ser alterado desde que, genesdesejados e teis (isto , os recursos genmicos existen-tes em um dado momento no mercado) possam ser acei-tos juridicamente como parte da procriao geneticamen-te assistida, passando a filiao a ser redefinida porporcentagens homogenticas ou de documentos represen-

    tativos da compra legtima de patrimnios hetero-genticos que devero garantir a melhor adaptao doamado filho ou da querida filha. A sistematizao desseprocedimento levar a sociedade a um rigoroso esforojurdico para legitimamente redefinir as bases da heredi-tariedade familiar. Por exemplo, em uma eventual sepa-rao, o parceiro que tiver comprovado a compra domaior ou mais definitivo (inclusive em termos financei-ros, talvez) componente heterogentico introduzido nacriana, ter provavelmente um argumento de peso para asua guarda.16 V-se aqui uma radical transformao danoo social de filiao, na qual o privilgio, antes dado continuidade biolgica, cede espao aos processosjurdicos e estritamente sociais (artificializantes) dedeterminao das identidades e das legitimidades.Biologiza-se a sociedade na mesma medida em que sesocializa a biologia: s que o biolgico se torna commodityenquanto o social se radicaliza como critrio (artifi-cializante). exatamente esse o processo de relativiza-o ao qual se fazia meno anteriormente: os critriosso cada vez mais mveis e civilization-dependent. Des-sa forma, seria possvel se sugerir que todo o processonatural de adaptao da espcie (de todas as espcies,

    na realidade) torna-se funo da sociedade civilizada etecno-instrumental, e a ecologia gentica da espcie, pro-vavelmente, ir se tornar uma obviedade, na linha dasdecises que definem as polticas (nos dois sentidos dotermo) de biodiversidade.17

    A relao entre a violncia genmica legtima e o mer-cado de trabalho algo j bastante evidenciado. A tendn-cia dever ser a assimilao progressiva dessa forma so-fisticada de violncia adaptativa aos processos j em curso

    de identificao de recursos humanos. Evidentemente quelegislaes podero buscar formas de atenuar tal assimila-o. Todavia, so tentativas que devem ocorrer dentro deum quadro j avanado de instalao das chamadas for-

    mas de flexibilizao legitimizao definitiva da vio-lncia do capital sobre o trabalho da alocao de recur-sos humanos. Assim sendo, o vetor aponta mais para umapura e simples assimilao pacfica que para a suainviabilizao, reproduzindo nesse processo especfico omovimento geral de cada sociedade e seus mecanismos(ativos ou no) de proteo dos indivduos quanto vio-lncia estabelecida por parte do capital contra o trabalho,isto , a violncia propriamente econmica da genmicatender a se ajustar aos quadros (ou vcios) j existentesem cada sociedade, acirrando, todavia, um agravamentodas tenses preexistentes na estrutura. Por outro lado, os

    integrantes do mercado de trabalho devero se adaptar namesma linha de preocupaes a ser apresentada pelosreprodutores biolgicos. Assim como se deve aprender ln-guas estrangeiras, o indivduo em busca de um maior graude adaptao dever investir no ajuste genmico de seusdescendentes assim como no prprio, neste caso por for-mas paliativas de reduo de fentipos indesejveis. Aevoluo de tal assimilao para atitudes discriminatriase modos de funcionamento na base de castas gnicas podeser um dos estgios no incio do processo. Entretanto, como aumento gradativo do consumo, via ampliao do aces-so aos recursos, o que de incio pode parecer uma castavoltar normalizao pela racionalidade do mercado:ningum pensa no enorme contingente de pessoas quemorrem de fome diariamente no mundo como uma castalegtima de vtimas que tm o direito de reivindicar o quelhes negado pelo mercado, nem como vtimas de umadiscriminao tnica, mas simplesmente como uma con-dio normal do processo de adaptao das coisas. Bre-vemente teremos autoridades genmicas semelhantes,ainda que com maior consistncia cientfica, s autorida-des monetrias, esta falcia contempornea esclarecen-do como os recursos genticos so em si democrticos e

    apolticos, e como os indivduos que deles no fazemuso so vtimas da prpria culpa ou atavismo comporta-mental. A usual metfora naturalista lanada para neu-tralizar a conscientizao poltica poder ser bastante tile, a menos que percebamos que o principal sentido filos-fico da genmica a prpria dissoluo da natureza, per-maneceremos presos a esses discursos que absurdamentebuscam o refgio na pobre natureza para suas verdadeirasrazes ideolgicas, histricas e sociais.18 exatamente em

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    momentos como esses que a decadncia ontolgica da na-tureza gerada pela genmica no plano filosfico deve sertrazida luz e tornada compreensvel para o senso comum:o sentido verdadeiramente poltico de toda essa histria

    da Natureza saltar ento aos olhos. E se existe uma his-tria porque algum processo de relativizao de algu-ma forma se deu. Civilizar um modo especfico de decli-nar a ao histrica. Com a morte dessa natureza, tudo sehumaniza e se torna objeto social e poltico. Evidentementeescolher cansa e uma resistncia cega permanecer ig-norando cinicamente o processo em curso de dissoluo. interessante perceber como, ao lado de tal revoluogentica, os discursos naturalizantes da histria permane-cem ativos. Ser possvel identificar a um processo de ali-enao semelhante ao papel poltico-social muitas vezesdesempenhado pela religio: a pura e simples crena em

    uma natureza que legislaria via o (suposto, mas irreal) aca-so, passa a ser o poder incognoscvel que, eternamente la-tente no velho lamento da orfandade metafsica moderna,permanece como resduo que legitima o pavor diante dorisco estrutural que caracteriza a aventura do conhecimen-to o medo de Fausto e de seu pai Ado. A idia corri-queira de que grandes desgraas acontecero devido genmica , em muito, fruto desse resqucio teolgico (eteleolgico) de que foras indomveis (O Sagrado) per-manecem retendo o sentido das coisas. Convivemos diaria-mente com desgraas geradas pelo modelo econmico-social que abraamos e jamais consideramos o prpriomodelo como a desgraa. Voltando ao dilogo comSloterdijk, parece que sem dvida o nazismo prestou umgrande servio ao imaginrio moral do Ocidente ao daruma suposta definitiva localizao ontolgica e moral-geogrfica do mal, poupando-nos o desconfortvel tra-balho intelectual e afetivo de perceber o quanto de nor-mal, banal e racional19 teve a aventura nazista.

    Na realidade, parece-me que o carter mais marcada-mente criminal da revoluo gentica acontecer dentrodos padres definidos pelo socilogo espanhol ManuelCastels (1999) como conexo perversa. Grosso modo,

    essa conexo se caracteriza pela perfeita harmonia en-tre o comportamento do capitalismo globalizado e estabe-lecido em redes e o modus operandi das redes internacio-nais de crime organizado, empresas que por sua selvagemhabilidade em operar com velocidade, flexibilidade e vio-lncia, esto na proa da atitude mais bem sucedidamenteadaptada a uma sociedade (des)regrada pelas ausncias deregras e submetida ao imprio dos desejos nas mais diver-sas escalas. Os recursos genmicos se enquadram total-

    mente na linha de produtos que a conexo perversa co-mercializa, alis, toda a rede de comrcio ilegal de rgoshumanos poder servir j como uma pr-especializao paraa identificao de recursos humanos logsticos alocados

    para lidar com a sofisticada mercadoria biolgica. Um outrofator que poder agravar uma tendncia conexogenmica a demora da sociedade legtima para atuar so-bre a revoluo gentica de modo no-cnico. Aqui tam-bm o horror ontolgico pode fazer seu estrago, pois po-der abrir espao para uma infeliz criminalizao de algunsrecursos genmicos mais agressivos tecnologicamente, aopotencializar o cinismo intelectual.

    Outro terreno em qualquer reflexo que pretenda en-frentar intelectualmente a revoluo gentica so os cam-pos da fisiologia e psicologia. No se pretende abordaraqui a longa e rdua discusso sobre o determinismo (ou

    no) presente nos modelos antropolgicos genomics-oriented. Isso no implica supor que tal objeto de refle-xo seja invlido, mas simplesmente que ele umasuperespecializao na reflexo geral sobre a revoluogentica e no o primeiro na escala de preocupaes deuma reflexo que pretenda iluminar o senso comumquanto ao horror ontolgico paralisante. Evidentemente,o palco da controvrsia entre deterministas e antide-terministas ser fundamental na reflexo sobre a revolu-o em curso.20 Todavia, no se pode pensar que a revo-luo gentica d a vitria to evidente para qualquerum dos lados, simplesmente porque se tender a assi-milar os recursos genmicos da gama de insumos que lan-amos mo no processo de adaptao, e nessa medida osgenes estaro fortemente submetidos s relaes sociaise aos atores, eles mesmos devorados pela bioqumicagenmica de consumo. Com isso, quer se apontar para acircularidade latente nessa controvrsia acerca dodeterminismo. Sem dvida o patrimnio gentico umexemplo do que poderamos chamar de contexto forte,entre outros inmeros, na condio humana.21 Mas suporuma autonomia forte do ser humano, semelhana dosiluministas utpicos pr-crtica romntica alem, pura

    ingenuidade filosfica. Carregar (prioritariamente) na dis-cusso sobre o determinismo supondo ser esta a grandeissue no advento da genmica mais uma forma de es-camotear a artificializao da natureza em curso na nor-malizao da prxis genmica. Qualquer processo de ob-servao emprica assim como qualquer modeloteraputico associado ou decorrente dela do comporta-mento e da trama de dramas humanos aprender a lidarcom o contextualismo genmico, da mesma maneira que

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    tem aprendido a lidar com o contextualismo farma-colgico, por exemplo. Assim sendo, a fisiologia e a psi-cologia tendero, neste modo de ver, a lidar pontualmen-te com a dissoluo da natureza, isto , dentro de seus

    campos especficos de observao e sem necessariamen-te tomar conscincia de tal ruptura ontolgica. No pare-ce que faro resistncia significante ao processo em cur-so, e tambm insistiro em abordagens que iluminaromicroscopicamente o processo, e assim sendo no faci-litaro a vida do consumidor na melhora de sua acuidadevisual ontolgica. As alteraes fisiolgicas ou psicol-gicas como, por exemplo, a elevao do coeficientegenmico da populao devero fazer parte como jo fazem do prprio processo de normalizao do para-digma genmico.

    Desse modo, pode-se pensar que para uma abordagem

    realmente esclarecedora da dimenso do que est em jogono tema da revoluo gentica, faz-se necessrio antes detudo o enfrentamento deste tema em chave filosfica. muito provvel que a passagem se d diretamente das dis-cusses chamadas de ticas (que usualmente perdem devista o problema ontolgico do horror ao qual j se fezreferncia) para os procedimentos tcnico-jurdicos, semesclarecer suficientemente a ruptura ontolgica fundamen-tal que se processa diante de nossos olhos. Sofreremos osefeitos de tal ruptura ontolgica de qualquer modo. Paraalm dos efeitos inevitveis que uma ruptura dessa mag-nitude ter sobre a totalidade da sociedade, esse momen-

    to poderia se transformar em uma rara oportunidade paraperceber que estamos mais uma vez, assim como nossosantepassados j estiveram, em profundo contato com mo-vimentos viscerais do Ser. Lembrando pela ltima vez ohistoriador Mircea Eliade, Ser implica indagao do sen-tido ltimo (ou sua total ausncia) das coisas. O fenme-no sobre o qual se tentou lanar alguma luz, a dissoluoda natureza pela genmica de consumo, na realidade umdilogo radical e absolutamente contemporneo com o Ser.Pelo dilogo, elabora-se o terror que tal vertigem envol-ve. Desde os primrdios sabe-se que nossa espcie elabo-ra seu terror estrutural produzindo cultura. Faz parte ne-

    cessariamente da ruptura atual tanto o terror que ela gera,como o possvel dilogo com este mesmo terror. Palavrasditas a um corao angustiado podem evitar que ele sejadevorado pelo medo. Quem silenciar, ficar cego.

    NOTAS

    E-mail do autor: [email protected]

    1. Ainda que no captulo especialmente dedicado biotecnologia se peque pelosmesmos erros metodolgicos e de contedo a que faremos referncia na seqn-cia, o livro de Roger Shattuck (1998), uma interessante exposio intr odutria,ao alcance do leitor brasileiro que (infelizmente) ainda no l ingls, sobre o ca-rter estrutural de risco do conhecimento a que fazemos meno aqui.

    2. Infelizmente, comum uma certa incompreenso por parte dos tcnicos em

    cincia laboratorial da amplitude dos desdobramentos de suas (pequenas) ativi-dades dirias para a sociedade em geral, levando-os muitas vezes a simplesmentedesconhecerem tais desdobramentos ou pensarem que se tratam de produtos deli -rantes de fico. Um pouco de cultura histrica aplicada s cincias naturais seriainteressante a fim de recuperar um pouco da perspectiva histrica a que fazemreferncia autores como (entre outros) Thomas Kuhn (1987), ou mesmo um maiortrato com a clssica literatura de fico cientfica como Jlio Verne e outros.

    3. Este problema do cinismo ser novamente abordado com a controvrsiaSlotyerdijk/Habermas sobre a revoluo gentica.

    4. Por tal dissoluo no se pretende evidentemente dizer que as leis naturaisdeixam de existir mas simplesmente que a natureza, enquanto lugar ontologicamenteoposto tcnica ou cultura, perde sua consistncia geogrf ica. Essa clssica opo-sio, grosso modo, herdada da Grcia, perde a validade porque a natureza podeser programada e organizada exatamente pelo conhecimento tcni co que adquiri-mos sobre suas leis mais ntimas. Assim sendo, dissolve- se como agente absolutaalheia a intenes e necessidades humanas e passa a ser devassada pelo poderhumano de transformao tcnica.

    5. Exemplo tpico do cinismo: escamoteia-se a verticalidade e horizontalidadedo problema colocado pelo prprio enredo do fil me via uma soluo Cinderela.

    6. Sobre tal controvrsia seria interessante ver o Caderno Mais! ( Folha de S. Pau-lo, 12/10/1999).

    7. Neste aspecto, foram de grande valia como defesa da posio de Sloterdijk ostextos publicados pelo intelectual francs e judeu, Bernard Henry-Levy: quemmais do que um judeu, diante da parania paralisante do nazismo, teria capitalsimblico para reafirmar e esclarecer as perigosas reflexes do alemoSloterdijk?

    8. Mais especificamente, o projeto humanista (emancipao humana via uso desua razo natural) veria esse aperfeioamento assustador como fruto da revoltarenascentista e radicalizada pelo Iluminismo baseada na idia da plena assunodo ser humano de sua condio de rfo de um Pai silencioso, intil e injusto.

    9. Sobre isto, j possvel ver as snteses fant sticas que andam por a a tratar dealgo que seria uma cabala gentica.

    10. Libertando-nos do pensamento mgico como cadeia de argumentos que da-riam conta dos fenmenos naturais.

    11. Da os comentrios tpicos (e rasos) quando se fala em engenharia gentica,de que surgiro modismos nas cores dos olhos e coisas semelhantes. Para almdo excesso fico cientfica hollywoodiana, que serve de horizonte em tais re-flexes simplistas, existe a conscincia latente por parte do senso comum das fron-teiras em jogo no processo civilizador da matria. Com a biotecnologia genti-ca, a matria viva inteligente se liberta do domnio exclusivo dos cegos instintosatmicos e penetra as infinitas possibilidades dos arranjos tcnicos, culturais eimaginrios dos seres humanos.

    12. O Homem passa a ser, seguindo a fala de Protgoras, a medida tambm daNatureza.

    13. Trata-se do problema do medo diante da orfandade metafsica.

    14. No incio da sistematizao do consumo legtimo, provavelmente a terapiagenmica se converter em mais uma das infinitas causas de conflitos maritais.

    15. O termo identidade aqui se refere, ambiguamente, tanto identidade pes-soal psicossocial (agora tambm definida em termos genticos) quanto ao RG.

    16. Evidentemente que tal fato integra-se s variaes psicossociais que vm acon-

    tecendo no comportamento dos pais quanto ao cuidado dos filhos, isto , mais emais os papis de pai e me se distanciam da relao direta com as figurasbiolgicas de pai e me. A crescen te revo luo das mulhe res para se libe rta-rem da obrigao solitria de cuidar da cria pode vir a ser um agravante nacomplexidade nas sentenas jurdicas que envolvam a deciso da guarda das crian-as em um futuro prximo.

    17. Insisto que nada disso implica um imaginrioAdmirvel mund o novo.

    18. Portanto culturais e no-naturais.

    19. No sentido mais instrumental que possa ter este conceito.

    20. Seria interessante lembrar aqui a importncia, por muitos desconhecida, dacontrovrsia do sculo XVII sobre a relao entre graa divina e natureza huma-na (agostinianos x jesutas) quanto economia moral do comportamento humano

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    em todo o processo de decadncia da consistncia racional dos vocabul rios teo-lgicos como dito anteriormente ao cit ar Richard Rorty no Ocidente. Um dos

    princ ipais produt os de tal controvrs ia exatamente a derrocada de Deus comointegrante consistente do dilogo ontolgico (moral e cientfico) nas sociedadesfilhas do Iluminismo francs.

    21. Alis, reconhecer tal fora mais que espe rado, se pensarmos que o materia-

    lismo nosso paradigma normal.

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