A dialética do senhor e do escravo no contexto da consciência de si e o mundo do trabalho análise...

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1 A dialética do Senhor e do Escravo no contexto da Consciência de si e o mundo do Trabalho. Ricardo George de Araújo Silva 1 1. A consciência-de-si: uma breve compreensão. O presente texto se propõe a ser uma provocação em direção à figura da consciência de si, exposta na fenomenologia do Espírito de Hegel, tendo como enfoque central a dialética do senhor e do escravo, e suas implicações possíveis com o mundo do trabalho. Nesse último momento, o da implicação com o mundo do trabalho, iremos considerá-lo ancorados na crítica de Marx à tal passagem. Nessa oportunidade, discutiremos o conceito de alienação. Posto isto cabe esclarecer que se faz necessário, num primeiro momento, entender esta figura da consciência, para, depois, considerar outros aspectos. Sendo assim, iremos partir do pressuposto que a consciência de si, enquanto figura do espírito que se desenvolve, chega-nos através de Hegel, com quatro momentos que merecem consideração, a saber: - O desejo - A vida - O outro eu - O reconhecimento É preciso considerar ainda que, nesse momento do desenvolvimento da consciência, o seu objeto muda em relação às figuras anteriores, haja vista que já não está em foco o dado da certeza sensível, a coisa da percepção, e nem a força do entendimento, pois a consciência de si tem agora como objeto sua própria certeza, ou seja, o que é sua verdade é sua pesquisa ou objeto de sua pesquisa. Dito isto, podemos, agora, investigar a primeira dimensão da consciência de si. A saber, o desejo. Enquanto desejo, a consciência de si se expressa como movimento. É, portanto, dinâmica na busca de seu objeto, que encontra ao se debruçar sobre si mesma. Assim sendo, a consciência é movimento de retorno, a partir do ser percebido e sentido sobre si mesmo. Como movimento, a consciência busca outra que enquanto outro, é o diferente a ser suprassumido. Contudo, ao fazer isso, suprassume-se também como consciência. 1 Mestre em Filosofia pela UFC (Financiamento FUNCAP). Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco- UFRPE. ([email protected] ) (85)8705-0122

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A dialética do Senhor e do Escravo no contexto da Consciência de si e o mundo do Trabalho.

Ricardo George de Araújo Silva1

1. A consciência-de-si: uma breve compreensão.

O presente texto se propõe a ser uma provocação em direção à figura da

consciência de si, exposta na fenomenologia do Espírito de Hegel, tendo como enfoque

central a dialética do senhor e do escravo, e suas implicações possíveis com o mundo do

trabalho. Nesse último momento, o da implicação com o mundo do trabalho, iremos

considerá-lo ancorados na crítica de Marx à tal passagem. Nessa oportunidade,

discutiremos o conceito de alienação.

Posto isto cabe esclarecer que se faz necessário, num primeiro momento,

entender esta figura da consciência, para, depois, considerar outros aspectos. Sendo

assim, iremos partir do pressuposto que a consciência de si, enquanto figura do espírito

que se desenvolve, chega-nos através de Hegel, com quatro momentos que merecem

consideração, a saber:

- O desejo - A vida - O outro eu - O reconhecimento É preciso considerar ainda que, nesse momento do desenvolvimento da

consciência, o seu objeto muda em relação às figuras anteriores, haja vista que já não

está em foco o dado da certeza sensível, a coisa da percepção, e nem a força do

entendimento, pois a consciência de si tem agora como objeto sua própria certeza, ou

seja, o que é sua verdade é sua pesquisa ou objeto de sua pesquisa. Dito isto, podemos,

agora, investigar a primeira dimensão da consciência de si. A saber, o desejo.

Enquanto desejo, a consciência de si se expressa como movimento. É, portanto,

dinâmica na busca de seu objeto, que encontra ao se debruçar sobre si mesma. Assim

sendo, a consciência é movimento de retorno, a partir do ser percebido e sentido sobre si

mesmo. Como movimento, a consciência busca outra que enquanto outro, é o diferente

a ser suprassumido. Contudo, ao fazer isso, suprassume-se também como consciência.

1 Mestre em Filosofia pela UFC (Financiamento FUNCAP). Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco- UFRPE. ([email protected]) (85)8705-0122

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Todo esse movimento de desejo é, de alguma forma, um movimento de busca da

consciência. Mas em que consiste essa busca da consciência? Na busca do outro, que

emerge como aquele que precisa ser superado, destruído. Para a consciência, pode ser

dissolvido esse outro, em sua própria identidade: Ocorre então uma catarse da

consciência, na qual ela se “purifica” do outro, ao produzir sua identidade. Isto ocorre

de tal modo, que a consciência de si se apresenta como a consciência da inquietude

tendo em vista que determinadas situações já não a satisfazem enquanto busca, por

exemplo como fazia o universal na certeza sensível. Assim, um momento chave da

consciência de si é o desejo, que, por natureza, impulsiona o movimento de retorno,

nesse contexto um movimento de retorno da consciência sobre si, no qual se opera o

confronto do Eu com o Eu, na tentativa de afirmar identidade pela diferença negada.

Contudo, esse movimento de desejo é desejo por algo, que, na consciência de si, emerge

como desejo pela vida.

Assim, a vida é o desejo da consciência de si. Isto é, trata-se do semelhante, pois

tem estrutura homóloga que precisa fazer a experiência da independência.

Independência essa que se efetiva em relação ao seu objeto, que se apresenta em sua

essência de infinito como ser suprassumido de todas as suas diferenças. Portanto, como

puro movimento. Essa vida, que se caracteriza por sua infinitude, encontra sua

expressão máxima na diversidade dos seres, e, assim, na singularidade de cada um

deles, reconstitui sua unidade do todo. Tudo ocorre de modo que negada a negação da

diversidade, efetiva-se a volta à unidade.

Essa unidade, agora alcançada, coloca-nos dentro do terceiro momento,

anteriormente anunciado, a saber: o outro eu, haja vista que, precisamente aqui, parte-se

de uma unidade, não qualquer unidade, mas uma unidade refletida, isto é, unidade

enquanto retorno e movimento que só foi possível de se efetivar pela dialética até então

desenvolvida. O que nos leva a compreender que esta unidade é resultado de uma

suprassunção de todos os momentos anteriores, e, agora, emerge como unidade reflexa

de si.

É preciso tornar claro que, neste momento da experiência da consciência, seu

objeto é abstrato, ou seja, um puro Eu, simples essência, o que significa que seu

movimento é ainda necessário para poder enriquecer-se de várias e possíveis

determinações, pois não está completo e precisa continuar o percurso dialético até

atingir o máximo de determinação do processo da vida. Isto será possível da seguinte

maneira: a consciência que se soube enquanto consciência, isto é, que adquiriu sua

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certeza através da suprassunção do outro, que emergia como independente, entra em

cena, como desejo, ou seja, a destruição do outro surge como uma necessidade da

consciência de si. Portanto, como algo objetivo a ser realizado. Contudo, é preciso

observar que, para o outro ser suprassumido, tem que necessariamente existir como

independente. Buscando perceber esse existir independente, vai suprassumir esse outro

enquanto consciência, através da sua relação negativa com ele. Assim sendo, temos a

consciência, reproduzindo-o como outro, e se reproduzindo como desejo incansável.

Podemos concluir que ao realizar esse movimento de negação e desejo do outro,

a consciência-de-si se apresenta para outra consciência-de-si, e, só assim, é possível

uma plena realização, pois, nesse contexto, encontra uma efetiva unidade do seu si com

o seu outro.

Ao chegarmos nesse ponto, o da relação do si com o ser outro, entramos na seara

do reconhecimento. Reconhecimento que, por exigência lógica, só pode ser em uma

relação, portanto, com outro ou outra consciência. Assim, para que a consciência-de-si

seja, há outra consciência-de-si que emerge como vindo de fora. Ocorre aqui o

reconhecimento da alteridade, a partir de um caráter de dupla suprassunção, haja vista

que é suprassumida a alteridade essente, e, ela própria, enquanto dupla reflexão ou

duplo retorno à igualdade consigo mesma.

Por fim, temos esse movimento do reconhecimento estabelecido como operação

de uma das consciências. Contudo, não é de forma unilateral que isto ocorre, pois essa

operação é tanto de uma consciência quanto da outra, ou seja, trata-se de uma operação

comum. Aqui ocorre a superação do desejo, na qual o objeto encontra-se estático diante

da consciência, agora o movimento é, unicamente, o duplo movimento de duas

consciências, em que uma vê a outra realizar a mesma coisa que ela realiza, executar o

que a outra exige, fazer o que faz enquanto a outra faz também.

Dito isto, cabe agora observar o desdobramento desse movimento como efetiva

relação. É a experiência que a consciência-de-si faz do reconhecimento. Processo

iniciado a partir da desigualdade de duas consciências-de-si: uma que só reconhece e

outra que só é reconhecida. Entramos aqui na parábola do senhor e do escravo.

2. Parábola do Senhor e do Escravo: ou a contenda da consciência-de-si.

Na contenda do senhor e do escravo temos posto uma luta de vida e de morte,

haja vista que a consciência-de-si tem agora que relacionar-se com outra consciência-

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de-si. Contudo, esse outro é, para ela, sempre negativo, desprovido de significado. Na

medida em que, ela toma o outro como inessencial. Esse relacionamento de duas

consciêcia-de-si, que ainda não se conhecem, só pode proporcionar um não

reconhecimento, pois se enfrentam como simples indivíduos, que ainda não se

apresentaram um ao outro como consciência-de-si. Fica claro, neste momento inicial,

que cada uma tem consciência de si, mas não tem do outro. Portanto, não possui a

verdade na sua certeza. Como nos diz Hegel:

“Para a consciência-de-si há uma outra consciência-de-si[ou seja]: ela veio para fora de si. Isso tem dupla significação: primeiro, ela se perdeu a si mesma, pois se acha numa outra essência. Segundo, com isso ela suprassumiu o Outro, pois não vê o Outro como essência, mas é a si mesmo que vê no Outro. A consciência-de-si tem de suprassumir esse seu –ser-outro(Hegel: 1997 p.126.)

Assim sendo, percebe-se que a elaboração do reconhecimento não constitui

tarefa fácil, contudo se configura nesse contexto como condição sine qua non para uma

consciência que se quer saber em si e para si. De tal modo que o outro emerge com

importância e significado destacado. Cabe, contudo, esclarecer que reconhecer não é

perder a identidade, mas passa, sem dúvida, pelo risco da vida ao se confrontar com o

outro. Assim, temos que pela mediação do outro é que se efetiva o reconhecimento que

pode ser expresso da seguinte forma: A não é A, mas A é A porque não é B, ou seja,

não se trata de uma simples tautologia, mas é sobretudo um reconhecimento a partir do

outro, que significa meu sentido de ser.

Esse reconhecimento se dá pelo risco da morte, ou seja, é preciso lançar-se na

disputa para alcançar o reconhecimento, pois esse não vem sem o arriscar-se, e pode até

vir, mas um indivíduo que não arriscou a vida, terá um reconhecimento sem ter

alcançado a verdade desse reconhecimento, enquanto reconhecimento de uma

consciência-de-si independente. O que nos mostra que todo relacionar-se intersubjetivo

é um relacionar-se no perigo que o outro representa, não há, portanto, segurança posta

ao ir de encontro a esse enfrentamento, contudo não há ganhos ficando inerte. A vida é,

portanto, o arriscar-se em direção a outra consciência que aponta a liberdade e o

reconhecimento completo. Para Hegel:

“Devem travar essa luta, porque precisam elevar à verdade, no Outro e nelas mesmas, sua certeza de ser-para-si. Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se conquista]; e se prova que a essência da consciência-de-si não é o ser, nem o imediato como ela surge, nem o seu submergir-se na expansão da vida; mas que nada há na consciência-de-si que não seja para ela momento evanescente; que ela é somente pura ser-para-si. O indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade desse

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reconhecimento como uma consciência-de-si independente” (Hegel: 1997 p.128 e 129)

Assim, como em qualquer enfrentamento, quando se tem o foco da vida, se tem

o foco da morte do outro, de tem que ser suprassumido em alteridade. tem, portanto que

pôr a vida do outro em risco. Nesse enfrentamento, a consciência se encontra com a

pureza do seu-para-si como negação absoluta, ao deixar de ser consciência perdida. Esse

relacionamento que se pauta no risco da vida e na possibilidade da morte, põe em relevo

a consciência dos lutadores que se enfrentam. A morte é a negação natural da

consciência, enquanto a negação dialética, que caracteriza a consciência, suprime o que

conserva e retém o que suprime: suprassume, como dizemos. Nesta experiência, a

consciência-de-si fica ciente de que a vida lhe é tão essencial quanto a pura consciência-

de-si. Assim, nos esclarece Hegel:

“ Mediante a morte, sem dúvida, veio-a-ser a certeza de que ambos arriscavam sua vida e a desprezavam cada um em si e no Outro; mas essa[certeza] não é para os que travam essa luta. Suprassumem sua consciência posta nesta essencialidade alheia, que é o ser aí natural, ou [seja], suprassumem a si mesmos, e vêm-a-ser suprassumidos como os extremos que querem ser para si. Desvanece porém com isso igualmente o momento essencial nesse jogo de trocas. (Hegel:1997 p. 129)

Nesse confronto de duas consciências emergem dois personagens centrais: o

senhor e o escravo. Nesse contexto, surge uma dimensão a se destacar: a dimensão da

dominação. Cabe esclarecer que, nessa perspectiva da dominação, é importante destacar

que sua relação consigo se estabelece através de outra consciência, a qual se define

como ser independente, ao nível das coisas, objeto de desejo. Assim sendo, o escravo

cumpre o papel mediador da relação do senhor com a coisa -o desejo- isto é, o escravo

garante o gozo do senhor, assim o escravo lida com a independência do ser pelo

trabalho. Ao senhor, nada mais resta, e faz sentido, a não ser usufruir. O senhor, então,

apenas goza. Nesse movimento relacional e intersubjetivo, o senhor alcança o

reconhecimento e o escravo se revela como inessencial, por não ter como dominar o ser,

nem chegar à negação absoluta. Em outras palavras, ao escravo resta o trabalho, e,

através deste, o domínio da natureza por sua negação, enquanto o senhor goza da sua

astuta estratégia de colocar entre ele e a natureza -coisa- escravo emerge como a

consciência que o reconhece. Nesta relação, o senhor aparece como o prisma de homem

do escravo. Sendo assim, o que o escravo faz é justamente o agir do senhor, para a qual

somente é o ser-para-si, a essência: ele emerge como pura potência negativa para a qual

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a coisa é nada. O agir do escravo não é um agir puro, mas um agir inessencial. Como

nos esclarece Hegel:

“O senhor também se relaciona mediatamente por meio do escravo com a coisa; o escravo, enquanto consciência-de-si em geral, se relaciona também negativamente com a coisa, e a suprassume. Porém, ao mesmo tempo, a coisa é independente para ele, que não pode portanto, através o seu negar, acabar com ela até a aniquilação; ou seja, o escravo somente a trabalha. Ao contrário, para o senhor, através dessa mediação, a relação imediata vem com pura negação da coisa, ou como gozo.”(Hegel: 1997 p. 130-131)

Contudo, é precisamente nesse momento da negação do escravo, que emerge na

consciência escrava o caminho em direção ao reconhecimento, haja vista que o escravo

faz em si o que o senhor realiza nele, ou seja, vem à tona o momento em se suprassume

como ser para si, além do movimento da operação comum das duas consciências, isto é,

o que escravo faz é obra do senhor, que o é para si, só fica faltando o momento da

consciência plena de si do escravo.

Essa tomada de consciência do escravo se dá, segundo Hegel, pela formação que

o trabalho vai lhe proporcionar, conduzindo o escravo a um processo de auto-

consciência formativa. É, portanto, nesse momento formador, que o escravo desperta

para o reconhecimento de si, sendo na formação, que o para si se torna seu próprio ser

para ele, alcançando agora a consciência-de-si em si e para si.

Portanto, é no trabalho, instância que parecia externa a si, que vai se descobrir e

atingir sua verdade para si. O trabalho emerge como fonte de formação e libertação da

consciência escrava. Assim, de início, toma o senhor por sua verdade; porém, ao fazer a

experiência da pura negatividade do ser-para-si, já tem a verdade em si mesma.

Contudo, para alcançar essa verdade em si, o escravo não tem como prescindir de dois

momentos centrais, a saber: o medo e a atividade formadora. Haja vista que para

alcançar o objetivo do reconhecimento careceu da disciplina do medo e obediência,

além da atividade formadora. Como afirma Hegel:

“Entretanto, esse movimento universal puro, o fluidificar-se absoluto de todo o subsistir, é a essência simples da consciência-de-si, a negatividade absoluta, o puro ser-para-si, que assim é nessa consciência. É também para ela esse momento do puro ser-para-si, pois é seu objeto no senhor, Aliás, aquela consciência não é só essa universal dissolução em geral, mas ela se implementa efetivamente no servir. Servindo, suprassume em todos os momentos sua aderência ao ser-aí natural;e,trabalhando-o, o elimina. Mas o sentimento da potência absoluta em geral, e em particular o do serviço, é apenas a dissolução em; embora o temor do senhor seja, sem dúvida, o inicio da sabedoria a consciência ai é para ela mesma, mas não é o ser-para-si; porém encontra-se a si mesma por meio do trabalho.(...) O trabalho

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é desejo refreado, um desvanecer contido, ou seja, o trabalho forma”.(Hegel: 1997 p. 132)

Por conseguinte, cabe indagar qual sentido queremos destacar dessa passagem a

que nos propomos esclarecer, qual seu significado? Entendemos que Hegel tem uma

visão otimista do processo aqui tratado em relação ao conceito de alienação e da função

do trabalho, neste contexto, ao entendê-lo como liberdade recuperada. Afirmamos isto

porque tendo diante dos olhos o contexto da parábola, encontramos a seguinte situação,

que agora sintetizaremos de maneira mais didática: “Dois indivíduos lutam entre si e um

deles sai vencedor, podendo matar o vencido; este, no entanto, prefere se submeter, não

ousando sacrificar a própria vida. A fim de ser reconhecido como senhor, o vencedor

“conserva” o outro como “servo”. Depois disso, é o servo submetido que tudo faz para o

senhor, mas, com o tempo, o senhor descobre que não sabe fazer mais nada, porque

entre ele e o mundo, colocou o escravo, que domina a natureza. O ser do senhor se

descobre como dependente do ser do servo e, em compensação, o servo aprendendo a

vencer a natureza, recupera de certa forma a liberdade. O trabalho surge, então, como

expressão da liberdade recuperada.

Esta exposição sintética da parábola do senhor e do escravo tem por objetivo

demonstrar a visão otimista de Hegel em que o trabalho seria essa expressão dos

desiguais que se reconheceriam mutuamente. “Eles se reconhecem como se

reconhecendo reciprocamente” (Hegel: 1997 p.127), ao que parece aquela alienação

inicial do escravo, que abdica da liberdade em troca pela vida, é recuperada via

trabalho, que seria o momento de formação e purificação.

Esta visão foi retomada por Marx como uma crítica a de que não há essa

recuperação da liberdade perdida. É bom tornar claro que Marx, ao afirmar que não há

como recuperar a liberdade perdida, está considerando o contexto da sociedade

capitalista, portanto, sua leitura da parábola do senhor e do escravo centra-se, nesse

contexto, como uma crítica à visão idealista de Hegel, que não considerou as situações

concretas de existência dos indivíduos, mas centrou-se em uma exposição conceitual.

Sendo assim, Marx toma como foco aquele localizado nesse específico modelo

econômico de organização, ou seja, o capitalismo. Marx Entende que essa estratégia de

exposição hegeliana ficou por demais no conceito puramente especulativo, ou seja, para

Marx só tem sentido investigar a categoria de alienação no contexto do mundo do

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trabalho, ou estaríamos apenas na especulação ideal do espírito, como fez Hegel. Assim

analisa Marx:

“Todo movimento vai assim terminar no saber absoluto. Trata-se precisamente do pensamento abstrato do qual os objetos se encontram alienados e que eles confrontam com sua pretensa realidade. (...) toda a história da alienação e toda a retração da alienação. Se reduz, portanto, à história da produção do pensamento abstrato, isto é, do pensamento absoluto, lógico, especulativo” (Marx: 1993 p. 243)

Assim, observamos que, segundo Marx, o interesse de Hegel está no conceito na

especulação do espírito, e não alcança a materialidade, a vida escapa-lhe, dessa forma,

as questões pertinentes ao mundo do trabalho que inviabilizam a recuperação de uma

liberdade perdida como queria Hegel.

Marx retoma esse conceito, puramente especulativo, de Hegel, a saber: a

alienação, nos textos de sua produção juvenil, e, então, o desenvolve, considerando a

situação do trabalhador no sistema capitalista. Marx aponta que o equívoco de Hegel

reside no fato dele confundir objetivação, que é o processo pelo qual o homem se

coisifica, com a alienação que é, por sua vez, o processo pelo qual o homem se torna

alheio a si, a ponto de não se reconhecer. A alienação emerge, nesse contexto, como

prejuízo maior da sociedade capitalista. Neste âmbito, é oportuno destacar que a

propriedade privada exerce um papel de destaque ao funcionar como lócus da alienação

do operário, haja vista que é ela que realiza a cisão entre o operário e o produto de seu

trabalho (que pertence ao capitalista), tanto quanto a situação do trabalhador que

continua fora da “órbita” do trabalho. O trabalho permanece exterior ao operário, não

pertence a sua personalidade. Assim, no trabalho, o operário não se reconhece, não se

afirma, nem se realiza. Encontrando-se consigo mesmo apenas fora da esfera da

produção do trabalho. Assim sendo, o trabalho não recupera a liberdade perdida como

queria Hegel, ao contrário, ele aumenta o hiato entre as relações estabelecidas, e o

processo de reconhecimento não se efetiva. O que ocorre é que a alienação se agudiza,

pois, metaforicamente falando, ela se alimenta da humanidade do operário,

coisificando-o, e sugando, do mesmo, sua essência de homem. A alienação se agudiza

porque o trabalho aparece como antagônico ao operário, que nele se sente infeliz, fora

dele e estranho a ele. O operário não se reconhece no trabalho. Como diz Marx:

“A alienação do trabalhador no seu produto significa não só que o trabalho se transforma em objeto, assume uma existência externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder autônomo em oposição com ele; que a vida que deu

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ao objeto se torna uma força hostil e antagônica. (...) Em primeiro lugar, o trabalho é exterior ao trabalhador, quer dizer, não pertence à sua natureza; portanto, ele não se afirma no trabalho, mas nega-se a si mesmo, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve livremente as energias físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente e arruína o espírito. (...) Assim, o seu trabalho não é voluntário, mas imposto, é trabalho forçado. Não constitui a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras necessidades. (...) (Marx 1993 p.1160 e 162)

Tendo observado esse panorama, podemos definir que a situação do trabalhador

na sociedade capitalista é semelhante a do servo que não alcança a realização e o

reconhecimento do senhor (patrão), ao contrário a única relação possível é do

enfrentamento, pois a do reconhecimento só se efetiva unilateralmente, se possível for.

O que se pode constatar é que, na sociedade capitalista, quanto maior for o consumo,

maior ainda será o distanciamento do operário em relação ao que consumiu, ou seja,

menos acesso terá à riqueza por ele produzida. Assim, o trabalhador aparece como o

indivíduo capaz de produzir riquezas para outrem em detrimento de sua dignidade,

ficando apenas com o aumento de sua miséria, proporcional ao aumento da satisfação

material do capitalista, dono dos meios de produção. Poderíamos, ironicamente, afirmar

que o trabalhador, na lógica do capital, é um “altruísta,” capaz de esquecer-se de si,

enquanto classe oprimida, e favorecer ao reduzido número dos dominadores. É evidente

que isto só pode ser afirmado enquanto ironia, haja vista que, na realidade, temos uma

relação de estranhamento do operário com seu produto, e com a riqueza que produz. Já

que não tem acesso a mesma, ficando ele, o operário idiotizado nessa relação que só o

nega, enquanto seu trabalho afirma o de outros, como nos esclarece Marx.

“A alienação do trabalhador exprime-se assim nas leis da economia política: quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem de consumir; quanto mais valores cria, tanto mais sem valor e mais indigno se torna; quanto mais refinado o seu produto, tanto mais deformado o trabalhador;quanto mais civilizado o produto tanto mais bárbaro o trabalho; quanto mais poderoso o trabalho, tanto mais impotente se torna o trabalhador; quanto mais brilhante e pleno de inteligência o trabalho, tanto mais o trabalhador diminue em inteligência e se torna servo da natureza”(Marx: 1993 p.161)

Em outras palaavras:

“Claro, o trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz a privação para o trabalhador. Produz palácios, mas casebres para o trabalhador. Produz beleza, mas deformidade para o trabalhador. Substitui o trabalho por máquinas, mas lança uma parte dos trabalhadores para um trabalho bárbaro e transforma os outros em máquinas.” (Marx: 1993 p. 161).

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Visto como ocorre a alienação no sistema capitalista, e entendido que o trabalho,

nesse sistema, exerce uma função alienadora, colocamos em destaque, de forma mais

direcionada, os sentidos da categoria alienação, descortinando, assim, suas faces.

3. Os significados do conceito de Alienação e sua relação histórica.

O conceito de alienação em Marx deve ser entendido pelo menos em quatro dimensões, a saber:

I. O homem está alienado da natureza; II. Está alienado de si mesmo (de sua própria atividade); III. De seu “ser genérico” (de seu ser como membro da espécie humana); IV. O homem está alienado do homem (dos outros homens) 2

O primeiro desses aspectos, que já foi por nós destacado em momentos

anteriores, é a característica que se expressa na relação do trabalhador com seu

produto, que na visão de Marx é a relação com o mundo sensível exterior com os

objetos da natureza. A outra característica subseqüente é a expressão de trabalho,

como o ato de produção no interior do processo deste trabalho, isto é, a relação do

trabalho com sua própria atividade como alheia, que não oferece satisfação em si e

por si mesma. Mas, apenas para atender o ato de vendê-la a outra pessoa. Assim,

observamos que a sua satisfação encontra-se diluída na satisfação de quem consome o

que produziu, isto é, a atividade do trabalho não lhe proporciona realização, tendo em

vista que isto se cumpre apenas como uma propriedade abstrata dela: a possibilidade

de vendê-la em certas condições. Marx também nomeia a primeira característica

“estranhamento da coisa” e a segunda “ auto-estranhamento.” 3

A terceira característica diz respeito à alienação do homem com seu ser

genérico. Este aspecto esta diretamente ligado, à idéia segundo a qual o objeto de

trabalho é a objetivação da vida da espécie humana. Haja vista que o homem se

duplica tanto enquanto consciência intelectual, como também enquanto efetivação.

Completando-se, por isso, a si mesmo, num mundo criado por ele. Contudo, o

trabalho alienado realiza no ser genérico do homem, um estranhamento, colocando-o

perdido enquanto ser, sem sentido, maculando seu relacionamento interior e exterior.

2 Mészáros.István. A teoria da Alienação em Marx. Trad.Isa Tavares. São Paulo. ED. Boitempo. 2006. p. 20 3 Idem. p.20

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Esta é, portanto, a alienação do homem com a humanidade em geral, ou seja, ocorre

aqui a alienação da “condição humana,” por meio do ato de produzir do capitalismo

que conduz o homem ao rebaixamento, coisificando-o. Na quarta característica o que

está considerando-se é a relação do homem com outros homens. Como nos diz Marx:

“Uma conseqüência imediata da relação do homem a respeito do produto do seu trabalho, da sua vida genérica, é a alienação do homem relativamente homem. (...) De modo geral, a afirmação de que o homem se encontra alienado de sua vida genérica significa que o um homem está alienado dos outros, e que cada um dos outros se encontra igualmente alienado da vida humana. (Marx. 1993 p. 166)

Entender esse processo pelo qual a alienação entra na história e manifesta o

homem coisificado, é, de alguma forma, passar pela história da dominação que

demonstrou o quanto a esfera do trabalho é negadora da realização do homem, sendo,

portanto, seu principal aspecto de desumanização ao longo da história o que nos leva a

observar que a questão da alienação está diretamente relacionada à questão do produto

excedente e da mais-valia; e às várias fases no desenvolvimento da economia política,

que são características para Marx de acordo com a posição, com respeito à origem e à

natureza da mais- valia. Eis uma tabela comparativa para ilustrar suas inter-relações e

desenvolvimento4.

Forma dominante de Forma dominante de Estágio correspondente Sua esfera de referência

propriedade trabalho de economia política e sua visão da mais-valia

Propriedade agrária Servidão Sistema monetário Circulação; sem visão

que atingiu um grau definida da mais-valia relativamente elevado de

acumulação de riqueza

Propriedade agrária Trabalho feudal, servil, Sistema mercantil Circulação; a mais-valia é

com interesses comerciais dando os primeiros passos identificada com o e em expansão colonial - para emancipação polltica excedente monetário, portanto, nacionalmente o superávit da balança

consciente comercial

Propriedade agrária Trabalho agricola ainda Fisiocracia Produção agricola;

modernizada e sujeito a determinações a mais-valia é vista como profundamente afetada políticas produto do trabalho pelas realizações do agricola, posto em sistema de manufatura e operação pela propriedade

pelo progresso do capital que produz rendimentos

Capital industrial Trabalho industrial Economia politica liberal Produção em geral; a mais-

livre de todas as politicamente emancipado valia é definida como determinações (diarista, trabalho produzida pelo trabalho em políticas e naturais assalariado) geral, posto em operação

pelo capital

Ao observarmos a tabela, podemos verificar que o desenvolvimento da

economia política liberal corresponde ao desenvolvimento histórico da propriedade

agrária feudal até o capital, e da total dependência política do trabalho (servidão) até o

4 Idem. p. 130.

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trabalho industrial politicamente emancipado.5 Este panorama nos esclarece que não há

como pensar a questão da alienação desligada da questão da produção e das relações de

produção, nem do aspecto excedente da produção. Assim, nesse contexto, a economia

política liberal representa o ápice desse processo de desenvolvimento. Essa

superioridade da economia política liberal que exacerba o excedente (mais-valia) é

reconhecida por Marx nas seguintes questões.

1. Define o capital como trabalho armazenado. 2. Mostra que a acumulação do capital aumenta com divisão do trabalho e que a

divisão do trabalho aumenta com a acumulação do capital. 3. Descreve de modo agudo e consistente embora unilateralmente a idéia de que o

trabalho é a única essência da riqueza. 4. Acaba o misticismo da renda da terra. 5. Prova que o poder governante da sociedade moderna não é político mas

econômico; o poder de comprar do capital, e finalmente; 6. Estabelece-se como única política e única universalidade tornando evidente seu

próprio caráter cosmopolita. 3. Conclusão Tendo por base as questões acima, trabalhadas chegamos à conclusão a respeito

do conceito de alienação como negação do homem enquanto homem, e, sobretudo,

negação do seu fazer, haja vista que é no mundo do trabalho que deveria existir a

consolidação e realização do ser, na medida em que é dessa esfera, o trabalho, que

provém o existir humano. Contudo, na sociedade capital, o trabalho emerge como

antagônico ao ser do homem, tornando-se, assim, estranho a ele, e, a sua condição de

produtor (homo faber), pois quanto mais produz, menos tem acesso ao que produziu,

isto é, nada mais estranho ao trabalhador do que seu produto, que aparece, em benefício

de outrem, como riqueza produzida, e, em detrimento do operário, como miséria

estabelecida. Portanto, seguindo a compreensão de Marx, não podemos definir no

contexto da sociedade capitalista o trabalho como liberdade recuperada, pelo contrário,

só podemos entendê-lo como fonte de alienação permanente, na medida em que se

organiza como estranho à realização do operário, e negador de sua realização como tal.

A alienação encontra, portanto, no mundo do trabalho, a salvaguarda necessária para

perpetua sua lógica de exclusão e negação do outro (operário), que nessa sociedade não

alcança o reconhecimento.

5 Idem. p. 130

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