A DIALÓGICA ENTRE REALIDADE E CONHECIMENTO COM ALUNOS E ALUNAS DO ... · 1 perspectiva de jovens...
-
Upload
hoangthien -
Category
Documents
-
view
217 -
download
0
Transcript of A DIALÓGICA ENTRE REALIDADE E CONHECIMENTO COM ALUNOS E ALUNAS DO ... · 1 perspectiva de jovens...
1
A DIALÓGICA ENTRE REALIDADE E CONHECIMENTO COM ALUNOS E ALUNAS
DO COMPLEXO DA MARÉ: O TEATRO DO OPRIMIDO COMO ABORDAGEM
ETNOGRÁFICA
ECIMENTO COM ALUNOS E ALUNAS DO COMPLEXO DA MARÉ: O TEATRO DO OPRIMIDO
COMO ABORDAGEM ETNOGRÁFICA
, Igor Federici Trombini
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
RESUMO
O presente trabalho propõe-se a estudar a dialogicidade entre realidade e conhecimento, utilizando o Teatro
do Oprimido como tecnologia social, baseando-se em um trabalho de campo no Complexo da Maré. Pretende-
se compreender como o aluno percebe sua realidade sociocultural transformada em conhecimento nos
processos educativos do qual participa e como a educação antidialógica, que desconsidera este capital cultural,
fomenta a exclusão social sobre um viés subjetivo. A metodologia escolhida para este trabalho é a pesquisa
etnográfica com observação participativa. Elege-se como teóricos privilegiados Freire com o conceito de
dialogicidade; Gaujelac e Leoneti com a idéia de desinserção; Buarque explicando a apartação social; Dewey,
Doll e Teixeira com perspectivas sobre a educação como reconstrução da experiência; Mclaren com a idéia de
pedagogia crítica e Boal com o Teatro do Oprimido. Pretende-se, junto aos resultados da observação
participativa no campo, aprofundar a reflexão sobre como realidade e conhecimento se relacionam na
perspectiva de jovens no Complexo da Maré que utilizam o Teatro do Oprimido em contextos educativos.
PALAVRAS-CHAVE: Opressão – Dialogicidade – Realidade.
2
INTRODUÇÃO
Um importante ponto de estudo no campo da educação nas últimas décadas tem sido a
relação entre a realidade vivida pelo educando e a produção de conhecimento. Dewey, Doll e
Freire tem ressignificado a educação na sociedade contemporânea, entendendo-a como um
processo social, vivido através da experiência nela e não à sua margem. Este último (1984)
dedicou-se a demonstrar a importância de se aplicar uma educação libertadora e dialógica,
que partisse do universo do educando, fosse para o seu letramento, ou para o
desenvolvimento de sua criticidade do mundo e de sua humanização. Doll (1993) descreveu a
importância de se pensar em uma escola onde se crie e se produza conhecimento ao invés de
simplesmente se transmitir conteúdo, aprofundando a visão de Dewey (1938) de que o
currículo é interação com a vida, não ocorrendo no vácuo, e que o entendimento e o
conhecimento se dão por meio de interações complexas e por meio da reconstrução da
experiência que ocorre dentro de uma comunidade solidária (Mattos; Borges, 2014).
Assim, Compreende-se a importância de aprofundar os estudos sobre como a
dialogicidade é aplicada na educação atualmente, de forma que o educando se sinta
pertencente à construção do conhecimento e de sua aprendizagem, com sua realidade incluída
nas discussões que permeiam este espaço. Entende-se que ao negar este direito, também se
gera exclusão. Foi estudado então nesta perspectiva conceitos que se relacionam a Freitas
(2007) no que diz respeito à exclusão subjetiva, aprofundando nesta linha a idéia de excluídos
como sujeitos não pertencidos através não só de sua exclusão material, mas do não
reconhecimento de seus valores. Também, foi trabalhado Gaujelac e Leonetti (1994) com o
conceito de desinserção junto a Buarque com a ideia de apartação social (1993) que
nortearam a discussão nesta área. Dessa forma, pretendeu-se compreender como se dá este
processo de exclusão do aluno, através de uma comparação sobre a legitimização da lógica
hegemônica perpetuada pela escola e comparando com a possibilidade de superação da
mesma através do reconhecimento da equidade cultural. Para tal foram abordados também a
sociologia das ausências e a ecologia dos saberes (Santos, 2007).
Por fim, analisou-se o Teatro do Oprimido (TO) (Boal, 1968) como uma tecnologia
social e uma abordagem etnográfica para compreender a dialogicidade entre a realidade e o
conhecimento dos alunos e alunas no Complexo da Maré. Para tal, estão sendo utilizados
instrumentos de pesquisa etnográficos, tais como a observação participante do grupo de TO
3
Maremoto, no complexo da Maré e entrevistas qualitativas com estes e com os alunos do
Projeto Enter Jovem (EJ) na escola Estadual Olga Benário em Bonsucesso, também na Maré.
OBJETIVOS
Estudar o Teatro do Oprimido como tecnologia social dialógica entre realidade e
conhecimento a partir de uma análise com alunos e alunas do Complexo de favelas da Maré.
Objetivos Específicos
1. Analisar a relação entre dois conceitos de exclusão subjetiva; desinserção e
apartação social, com a dialogicidade e a perspectiva de educação como
reconstrução da experiência.
2. Investigar o processo dialógico entre a realidade dos alunos e o conhecimento
através da utilização do TO tanto no grupo Maremoto quanto no projeto Enter
Jovem (EJ).
METODOLOGIA
A metodologia utilizada para o estudo proposto é a abordagem qualitativa e de cunho
etnográfico, combinada com revisão da literatura. Entende-se que a fundamentação teórica
não serve somente como base para a investigação de campo, como ainda amplia o
conhecimento sobre o tema, de modo a facilitar possíveis generalizações, que são limitadas
quando do uso exclusivo da pesquisa de campo (Mattos, 2013).
Dessa forma, primeiramente, foram amplamente estudados os conceitos de exclusão e
sua relação com a escola em diferentes perspectivas, focando em Freitas, Gaujelac, Leonetti e
Buarque. Para a análise de pontos de vista sobre a educação como reconstrução da
experiência a visão de Dewey, Doll, Teixeira e Freire, para que em seguida fosse verificada
como a dialogicidade, defendida por este último, é trabalhada na relação entre a realidade dos
alunos e alunas do Complexo da Maré tendo o Teatro do Oprimido como tecnologia social
neste processo.
Paralelamente à construção destas análises conceituais, tem-se realizado a pesquisa de
campo com observação participante, através de anotações em cadernos de campo, registros
em audiovisual e entrevistas junto aos participantes do GTO Maremoto em encontros
presenciais aos sábados durante seis meses, e através de entrevistas qualitativas com os
participantes do projeto Enter Jovem na escola estadual Olga Benário. Busca-se compreender
4
a percepção dos alunos de ambos os campos de pesquisa quanto à utilização do TO como
tecnologia social dialógica com suas realidades.
Estas entrevistas qualitativas serão realizadas com os participantes do GTO Maremoto
e do programa EJ, curingas deste GTO, gestores da escola Olga Benário Prestes, pais dos
participantes do EJ e coordenadores pedagógicos do mesmo, para aprofundar os
conhecimentos adquiridos com a pesquisa de campo e relacioná-las com o conhecimento e as
possibilidades de utilização desta tecnologia social neste espaço de aprendizagem. Através
destas entrevistas será possível entender a visão dos alunos sobre a possibilidade de relacionar
o conhecimento escolar com a sua experiência social, principalmente no que tange sua
realidade sócio-cultural e as opressões sociais que impactam o seu aprendizado e a sua vida.
Por fim, será realizada uma triangulação entre os dados levantados com a pesquisa
teórica, os registros do caderno de campo e as imagens do GTO Maremoto e os resultados das
entrevistas qualitativas feitas com os participantes do Maremoto, os curingas do grupo e os
participantes do projeto EJ.
A triangulação se dá com a inter-relação de informações, fatos, registros provenientes
de sujeitos e/ou instrumentos de pesquisa diferentes, onde haverá uma confirmação sobre
hipóteses levantadas pelo proponente deste projeto. Através destas realizar-se-á uma análise
indutiva sobre os dados coletados, onde segundo Mattos e Castro (2011, p. 33) parte-se de
dados particulares para o geral e através de objetivos ou afirmações argumentativas,
ampliando-se o foco das análises para um universo mais generalizado. Este tipo de análise,
além de possibilitar a compreensão sobre questões sociais mais amplas às atividades
específicas que foram registradas na pesquisa de campo, compactua diretamente com um dos
principais princípios do Teatro do Oprimido, a “ascese”. Neste, Boal (2008) coloca a
importância de que no Teatro Fórum as questões partam de situações individuais mas sejam
contextualizadas a questões sociais, ampliando-se a perspectiva que se enxerga a temática
estudada.
Dessa forma, pretende-se com a triangulação destes dados compreender a relação
entre a exclusão a educação como reconstrução da experiência e o trabalho dialógico com a
realidade do aluno através do Teatro do Oprimido, de forma que possibilite a visualização
quanto às potencialidades desta tecnologia social na educação.
5
DISCUSSÃO TEÓRICA
Trabalhar temáticas que envolvam o interesse do educando e seu capital sociocultural
no processo educativo, deriva do fato que o conhecimento elaborado surge a partir de
reflexões sobre a vida diária (Heller, 1985) e que estabelecer uma necessária “intimidade”
entre os saberes curriculares e a experiência social que eles têm como indivíduos (Freire,1996)
possibilita decodificações de situações problematizadoras que tem o potencial de estruturar
um aprendizado emancipatório (Iden,1970).
A reforma sobre a relação do educando e o conhecimento escolar é alvo de
questionamentos no Brasil desde o Manifesto dos Pioneiros de 1932 e foi inspirada por
pensadores desde no fim do século XIX. John Dewey e Willian James já sinalizavam a
importância de tornar vivo o aprendizado do aluno, que necessita de uma educação que
consiga “reincorporar os temas de estudo na sua experiência” (Dewey, 1902, p.285). Este
processo envolve certas complexidades, principalmente quando se encontra em sala de aula
sujeitos provenientes de realidades socioculturais muito diferentes, oriundos de localidades de
vulnerabilidade social que influenciam diretamente o comportamento, o aprendizado e sua
relação com o conhecimento escolar.
Assim, entende-se que aproximar a escola e o/a aluno/a, conhecimento e a realidade
do mesmo, consiste em buscar a reformulação dos valores aplicados dentro do ambiente
escolar, como a quebra de hierarquia, o estímulo ao diálogo em todas as estâncias, a geração
de autonomia, o senso de responsabilidade e o respeito à individualidade. A partir destas
condições pedagógicas se compreende que a centralidade no aluno não significa a renúncia do
papel do professor, mas a ressignificação do seu protagonismo pedagógico, aliado a
compreensão do saber cotidiano do jovem que a partir de então torna-se “inundado” de
possibilidades de aprendizagem.
Esta relação não diz respeito apenas às questões socioculturais que estão em seu
cotidiano, o que se propõem, a partir de Freire (1970) é a busca pela compreensão crítica da
totalidade em que o sujeito está inserido, para em seguida separar ou isolar os elementos do
contexto, fazendo uma cisão que dá mais claridade à totalidade analisada não apenas em um
processo de investigação temática, mas na gestação da educação problematizadora que se
defende. Segundo o autor:
6
Numa visão libertadora da educação, o seu conteúdo programático já não
involucra finalidades a serem impostas ao povo, mas, pelo contrário,
porque parte e nasce dele, em diálogo com os educadores, reflete seus
anseios e esperanças. Daí a investigação da temática como ponto de partida
do processo educativo, como ponto de partida de sua dialogicidade (Freire,
1970, p.59).
Entende-se que a educação dialógica pode ser vista como um processo de relação
entre as partes na ampliação do conhecimento. Esta relação influencia a percepção de
sociedade e o levantamento de temas geradores provenientes dela, compreendendo sua
dinamicidade e seu caráter transformador (idem). É neste ponto que Freire reforça o papel do
professor, como um mediador entre este sujeito cognoscente com o objeto cognoscível
(mundo), capaz de tornar esta relação significante a ponto do aluno almejar decodificar seus
elementos e entende-los como fatores sociais, passíveis de alteração.
Compreende-se então que a negação deste diálogo, a antidialogicidade também é um
fator de exclusão. Assim, neste trabalho será elaborada uma linha conceitual sobre diferentes
percepções quanto ao tema, buscando compreender como distintas pressões sociais excluem,
como esta exclusão acontece na escola, e posteriormente como ela é intensificada na
desconsideração do capital cultural do aluno em detrimento de uma cultura hegemônica que
não dialoga com sua realidade.
Segundo Freitas (2007) as formas dissimuladas que as políticas públicas educacionais
são colocadas em funcionamento têm a finalidade de reduzir custos econômicos, sociais e
políticos nas formas de exclusão objetivas (repetência e evasão) “sem alterar em essência a
seletividade da escola, criando um campo de exclusão subjetiva, no qual a responsabilidade da
exclusão recai sobre o próprio excluído” (2007, p.1). Segundo o autor, o aluno é incluído no
ambiente escolar, mas desconsidera-se a qualidade deste, postergando apenas seu processo
de eliminação dos espaços sociais hegemônicos.
Através de outras perspectivas, identifica-se os excluídos não apenas como rejeitados,
mas como sujeitos não pertencidos e com valores não reconhecidos (Xiberras, 1993), que ao
saírem de uma situação de exploração direta, passam por uma incorporação forçada ao
sistema capitalista, que os considera apenas como mão de obra barata, mas desconsidera sua
participação como sujeito cultural, social e humano.
A partir deste entendimento encontra-se dois conceitos com diferentes ângulos que
discutem sobre a funcionalidade da exclusão: a desinserção (Gaujelac e Leonetti, 1994) e a
7
apartação social (Buarque, 1993). O primeiro questiona a própria existência da pessoa
enquanto indivíduo social que resulta de uma falha em três níveis: econômico, social e
simbólico, sendo esta última a essência da exclusão. Sua abordagem conecta-se em relação à
utilidade social do sujeito, revelando dois pontos interessantes; a sociedade como “avaliadora”
desta utilidade e o peso das representações coletivas ligados aos fenômenos de identidade e
subjetividade dos sujeitos. Nesta linha, entende-se que a valorização do indivíduo como tal
pode ser dificultada por este não integrar as redes de consumo. Além disso a assistência social
provida pelo Estado garante o mínimo de sua participação econômica ao mesmo tempo é
incapaz de criar ligações simbólicas entre pessoas, mantendo seu processo de desinserção
social.
O Segundo conceito, de apartação social, provém de uma adaptação do autor ao
termo “apartheid” que coloca as questões sociais vividas no país não apenas como
desigualdades, mas como divisões claras entre sujeitos provenientes de classes diferentes.
Define ainda esta divisão sendo violento de tal forma, que o sujeito excluído não é apenas um
desigual, mas um ser expulso do gênero humano.
Estas reflexões em torno da exclusão nos fazem perceber que excluir consiste em algo
além da marginalização física e a negação ao acesso a serviços básicos, que não tange apenas a
renda e o local de moradia, mas que constitui uma rede de subjetividades e desconsiderações
que coloca o sujeito numa redoma de impossibilidades. Estas por sua vez são “normatizadas”
por instituições que mantêm o controle social e ao invés de fornecer as ferramentas para a
libertação e emancipação do sujeito, o domestica e o aprisiona. Esta é inclusive, uma das
práticas do que Martins (1997) classifica como inclusão precária, formas de inserir as classes
oprimidas nos processos econômicos, mas em locais pré-estabelecidos, com pouca ou
nenhuma chance de ascensão, que como reitera Veras (1999) as torna menos inclinadas ao
conflito social e mais adequadas ao funcionamento da ordem sócio-política.
É neste viés que será estudada a exclusão na educação, a partir da desconsideração da
realidade sociocultural do educando em seu processo de aprendizagem, referida por Dewey
em seus estudos sobre a educação como reconstrução da experiência e posteriormente por
Doll e Teixeira.
Doll, fala sob uma ótica pós-moderna de currículo, onde acredita haver um “fascinante
reino onde ninguém possui a verdade e todos têm o direito de ser compreendidos. Neste
espaço a realidade existe não apenas para ser descoberta, mas para ser interpretada a partir
8
de diferentes pontos de vistas e múltiplas perspectivas” (Doll, 1993, p.155, tradução nossa). O
autor ainda defende o que chama de “currículo dançante” que deve ser modelado de forma
única, inerente à relação interativa entre “professor e conhecimento, professor e educando e
educando e conhecimento” (p.103).
Já Teixeira, desde seu primeiro livro Deweyniano, Educação Progressiva já
demonstrava o rompimento com o pensamento dualista e dicotômico. Desde então passou a
repensar a escola tradicional, que trabalhava conteúdos afastados do cotidiano do educando,
tornando a ação pedagógica esvaziada de significado. Defendia uma escola que trabalhasse a
reflexão e a crítica social, preparando sujeitos para viver e transformar uma sociedade
dinâmica em constantes mudanças. Bortoloti e Cunha (2010) ao tecerem a relação entre
Teixeira e Dewey enfatizam que este “percebe que as contradições da sociedade estão
presentes dentro da escola, mas que esta deve assumir a mudança social como uma tarefa,
contribuindo para formar uma nova mentalidade por meio de programas escolares
sintonizados com a realidade social (2010, p.6). Teixeira, afirmava que a escola deveria basear
a construção de seu conhecimento em experiências e atividades, considerando a vida
cotidiana como o principal gerador temático de seu programa (Iden, 2000). O autor ainda
sustenta que a escola deve estar baseada na noção de movimento, já que toda sociedade e
toda produção de conhecimento estão em constante transformação, a educação deve usufruir
dessa dinâmica de forma a absorver tais fatos e criar junto a eles, propagando um movimento
contínuo.
A partir disso, percebe-se que para romper esta lógica segregatória é interessante
repensar a hierarquização dos saberes e culturas predominantes, onde a razão científica é
superposta a saberes populares. Nesta linha Boaventura defende a “sociologia das ausências”
(Santos, 2007) onde traz a necessidade de se considerar a diversidade de modos de
pensar/sentir/saber/fazer para a multiplicação de realidades que nos fazem repensar as
racionalidades monolíticas. Para tal, instaura a ecologia dos saberes, que propõem a
constituição de um pensamento horizontalizado entre as diferentes possibilidades de cada
campo cultural (Santos, 2002). Através destas, passamos a trazer a consciência um
pensamento crítico de educação e sociedade, onde diversas formas de conhecimento são
relacionadas de forma equânime.
9
Não há, pois, nem ignorância em geral, nem saber em geral. Cada
forma de conhecimento reconhece-se num certo tipo de saber que
contrapõem certo tipo de ignorância, a qual, por sua vez, é
reconhecida como tal quando em confronto com esse tipo de saber.
Todo saber é saber sobre uma certa ignorância e, vice-versa, toda a
ignorância é ignorância de um certo saber (Santos, p.78, 1985).
Neste cenário, são pensadas estratégias que considerem esta multiplicidade de
saberes, que aprofundem o diálogo com a educação escolar e o conhecimento que perpassa a
instituição, onde a realidade e o interesse do educando sejam não apenas considerados no seu
desenvolvimento educativo e pessoal, mas situados como ponto base de qualquer
aprendizado não hierárquico, gerador de criticidade e que encaminhe realmente para a
liberdade e a emancipação. Mclaren considera no que chama de pedagogia crítica (1989), a
importância da luta sobre a produção de significado, onde grupos sociais marginalizados
estariam habilitados a nomear, identificar e desenvolver etapas iniciais para transformar as
fontes de sua opressão. Neste conceito, desenvolve a importância destes sujeitos de não
serem apenas receptores de cultura e conhecimento, mas produtores ativos neste processo:
“Se enfatiza a importância de se adquirir uma alfabetização
crítica – onde alfabetização é definida como uma prática de
refletir, analisar e fazer julgamentos críticos em relação às
questões sociais, econômicas e políticas -, convida grupos
subordinados a representar, através da interação na sala de aula
e do diálogo, sua realidade vivida tanto para solidificar suas
crenças, valores e experiências quanto para desafiá-la”
(Mclaren, 1992, p.92).
Pensando sobre interpretar e recriar realidades vividas, Boal (2009) defende a
importância dos oprimidos serem protagonistas do processo estético e não apenas fruidores
de conhecimento e arte. Destaca a relevância deste sujeito quando possui um papel ativo na
construção de conteúdo e cultura, principalmente quando este é articulado com sua
experiência sociocultural. O autor, que sistematizou a tecnologia social nomeada de Teatro do
Oprimido, critica a filosofia da caridade hierárquica que institui levar a cultura o povo, quando
10
deveria propor “meios estéticos necessários para o desenvolvimento de sua própria cultura”
(2009, p.166).
O Teatro do Oprimido consiste nesta tecnologia social, sistematizada a partir de 1968
pelo teatrólogo Augusto Boal na busca de instrumentos estético teatrais que incluíssem
minorias oprimidas na discussão sobre o seu não pertencimento na sociedade e sua busca pela
liberdade. Ela se manifesta a partir da Estética do Oprimido e consiste basicamente em “três
grandes transgressões”. A quebra da hierarquização que divide o palco e a plateia, onde todos
podem usar do potencial de cena; A quebra da hierarquização entre o espetáculo teatral e a
vida real, onde se compreende ambas não em posições dicotômicas, mas sobrepostas e inter
relacionadas; e a quebra da hierarquização entre artistas e não-artistas, onde “todos podem
pensar por meios sensíveis – arte e cultura” (2009, 185).
Na educação, o Teatro do Oprimido foi utilizado pela primeira vez em um contexto
escolar em 1986 quando Boal foi convidado por Darcy Ribeiro para liderar o Projeto Fábrica de
Teatro Popular, nos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPS) onde formou um grupo de
35 animadores culturais provenientes de diferentes municípios com o objetivo de que
multiplicassem as ferramentas do Teatro do Oprimido (TO) em suas respectivas localidades.
Vinte anos depois, o Centro do Teatro do Oprimido no Rio de Janeiro desenvolveu o Projeto
Teatro do Oprimido na Escola, realizado durante 2006 e 2007.em parceria com o Ministério da
Educação, através da SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, e com as Secretarias de Educação de sete municípios visando à capacitação de
Multiplicadores da Estética do Oprimido, para a promoção de atividades artísticas dentro de
escolas municipais durante os finais de semana, no programa Escola Aberta. O projeto foi
desenvolvido em 33 escolas municipais, de onde se formaram 20 grupos de Teatro-Fórum que
realizaram 42 apresentações públicas dentro e além dos muros escolares, sensibilizando mais
de 6.000 pessoas entre corpo escolar e comunidades. O presente trabalho aprofundará nas
próximas etapas o estudo em relação ao Projeto TO na escola a fim de compreender os
formatos em que a tecnologia social já esteve presente na educação.
No campo acadêmico, foram realizados trabalhos que envolvem o TO e a educação,
principalmente no que diz respeito a medidas sócio-educativas, educação popular e educação
comunitária, com predominância de análises comparativas a obra de Paulo Freire,
principalmente à Pedagogia do Oprimido. Para este trabalho, nos basearemos nas obras de
Pedroso (2006), revelando o TO como instrumento útil numa educação libertadora; Teixeira
11
(2007) associando o Teatro do Oprimido à Pedagogia do Oprimido, tendo por base ações sócio-
educativas; Paranhos (2009) também estabelecendo relações entre as obras de Freire e Boal,
Cassiano (2011) discutindo o Teatro do Oprimido como metodologia para resolução não
violenta de conflitos nas escolas e Marques (2012), que realiza uma análise sobre o Teatro do
Oprimido e a educação popular no campo.
RESULTADOS
O presente projeto está em andamento, com um trabalho paralelo entre o
desenvolvimento dos estudos teóricos previamente levantados e o trabalho de campo junto
ao GTO Maremoto e o Projeto Enter Jovem. O trabalho de campo está sendo realizada desde o
dia 19 de Maio de 2016 com encontros semanais de aproximadamente quatro horas no Museu
da Maré, no bairro Nova Holanda, próximo a passarela sete da Avenida Brasil. O grupo é
formado por seis jovens (cinco meninos e uma menina) de 18 a 21 anos, todos recém
formados no ensino médio, com dois deles cursando Letras na UFRJ no primeiro período.
O grupo existe há dois anos e fez parte (até o fim de2015) do projeto TOnamaré, que
contava com o patrocínio da Petrobrás e trabalhava com três Grupos de Teatro do Oprimido
(GTO) dentro da Maré. No ano passado atuava com quinze participantes e dois curingas.
Atualmente o grupo é formado por seis participantes, muito engajados, que não recebem mais
o auxílio financeiro que recebiam pelo projeto ano passado (R$150,00 mensais), proposta para
que não necessitassem entrar no mercado de trabalho e pudessem fazer o teatro sem a
pressão dos pais.
A Peça deste ano é uma reformulação da peça do ano passado que chamava Marcha
Borboleta e retrata basicamente o machismo que oprime a personagem Duda dentro de sua
casa a partir de seu pai (opressor). Essa história é baseada em experiências pessoais vividas por
esta participante do grupo, que durante os encontros narra situações diárias vividas em
relação ao tema. A curinga do grupo, espécie de professor diretor, é Marcela, argentina
radicada no Brasil há cinco anos e que trabalha no Centro de Teatro do Oprimido.
Até o momento, tem-se feito anotações quanto aos principais temas presentes nestes
encontros semanais relacionados à montagem da peça, mas também a realidade destes jovens
e à cultura que trazem do local onde moram e estudam. Também foram registrados algumas
imagens e vídeos de apresentações do grupo que retratam a interação da plateia em diálogos
sobre a opressão discutida, entrando em cena na dinâmica do Teatro Fórum.
12
No Projeto Enter Jovem, no qual o presente proponente é professor, tem-se
trabalhado o Teatro do Oprimido como tecnologia transversal, onde através dos jogos e
exercícios que o compõe são levantadas reflexões que fazem parte dos eixos temáticos do
projeto. Entretanto, tem-se como premissa partir do universo temático do educando, e
considerando os interesses e as experiências que partam do universo sócio-cultural do mesmo,
desenvolver as capacidades que o projeto propõe. Estas são primordialmente ligadas à
reflexão e o pensamento crítico em torno dos eixos: sociedade, cultura, pertencimento,
território, engajamento e identidade. A partir destes, são colocados em pauta as possibilidades
de transformação do indivíduo como ser individual e coletivo, ponderando-se as possíveis
trajetórias que este possa ter em busca de sua emancipação sócio-econômica.
Neste projeto que é realizado no contra-turno de escolas estaduais do município do
Rio de Janeiro, também tem se feito registros em caderno de campo e audiovisuais. Através da
coleta de material de ambos os grupos, pretende-se identificar possibilidades da escola
aproximar-se da realidade dos alunos e do seu repertório cultural, para que assim este se sinta
sujeito pertencente e ativo na construção do conhecimento escolar, criando uma dialogicidade
constante e horizontal nos processos e espaços de aprendizagem.
Até o presente momento, tem-se identificado diversos espaços e possibilidades de
inserir a pedagogia crítica como uma pedagogia da possibilidade (Simon, 1984), onde através
da dialogicidade com temas geradores de seus cotidianos, muitas vezes ligados a problemas
sociais vividos na região onde moram e estudam, é possível problematizar paradigmas
natuzalizados na contemporaneidade, inserindo conteúdos que auxiliem no desvelamento
destes.
Pode-se perceber que, como acreditava Dewey, a reconstrução da experiência dentro
do espaço escolar é fundamental para que as realidades possam tornar-se conhecimento, visto
que existem diversas questões no emaranhado da vida social, que a partir do momento que
passam por um processo de decodificação (FREIRE, 1987) passam a produzir significados
complexos e aplicáveis às questões do cotidiano social daqueles que participam deste
processo.
Durante as aulas do projeto Enter Jovem e os encontros com o grupo Maremoto,
levantaram-se temáticas relacionadas à: sexualidade, homossexualidade, patriarcado, cultura
de periferia, cultura pop, autonomia de trabalho, aborto, gênero, cisgênero, assexualidade,
socialismo, criminalidade, tráfico, legalização, linguagens de acordo com grupos sócio-
13
culturais, dentre outros. Até o dado momento, foi percebido que ao partir destes temas
geradores, provenientes de suas urgências e realidades, podem-se trabalhar múltiplas
possibilidades teóricas e práticas, aprofundando a reconstrução da experiência destes sujeitos.
Ao iniciar os trabalhos com jogos e exercícios de Teatro do Oprimido, que funcionam
em uma lógica dialógica, abertos para as percepções e a expressividade dos participantes, há
uma tendência de engajamento e participação, visto que se percebeu o envolvimento sensível
e simbólico (BOAL, 2009) dos educandos. A assimilação e a transformação do conteúdo em
aprendizagem parece transitar de um nível racional (pensamento simbólico) para um nível
emocional (pensamento sensível), não criando uma bipolarização entre os dois campos, mas
interagindo com ambos em um processo que Boal denomina “ascese”, onde as questão do
cotidiano são analisadas em perspectivas micro e macro sociais e onde passam de uma
compreensão individual para contextos mais amplos e coletivos.
A partir destas análises e com a permanência por pelo menos mais seis meses neste
trabalho de campo, pretende-se elaborar o questionário das pesquisas qualitativas, que
permitirão aprofundar as reflexões feitas até agora e abrir nossas possibilidades de diálogo
com os participantes destes grupos e com as pessoas que vivem em seus contextos familiares
e educacionais. Dessa forma, pretende-se até o fim de 2017, apresentar conclusões mais
concretas que permitam estender a compreensão sobre as possibilidades do Teatro do
Oprimido como tecnologia social dialógica na educação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido, Rio De Janeiro, Garamond, 2008, 256p.
_____________. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. São Paulo: Cosac Naify, 2013
224p.
BUARQUE, Cristovam. Apartação: o apartheid social no Brasil, Brasiliense, 2003
DEWEY, John. The Child and the Curriculum. U.C. Press, 1902
DOLL, Willian. A Post-modern Perspective on Curriculum. Teachers College Press, vol. 9, 1993.
DUARTE JUNIOR, J. F.. O que é realidade. São Paulo: Brasiliense, 1990.
FERRARO, Alceu. Diagnóstico da escolarização no Brasil. XXII Anped, Caxambu, 1999 .
14
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra., v.21, 1987.
_____________. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários a prática educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 1996.
FREITAS, Luiz. A Internalização da Exclusão. Educ. Soc., Campinas, v. 23, n. 80, setembro/2002,
p. 299-325.
GAUJELAC, Vincent; LENOETTI, Taboada. La Lutte des Places: insertion et desinsercion.
Marseille, et Paris, 1994
HELLER, A.. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 1985.
LOPES, Alice. Conhecimento Escolar Ciência e Cotidiano, Eduerj, Rio de Janeiro, 1999.
MATTOS, Carmen; CASTRO, Paula. Etnografia e Educação: conceitos e usos, Campina Grande:
Eduepb, 2011.
MARTINS, José de Souza. Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997.
MCLAREN, Peter. Life in Schools, Longman, New York, 1989, p.257.
TEIXEIRA, Anísio. Educação não é privilégio. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994. 250p.
_______________. John Dewey, Verone Lane Rodrigues (org.). – Recife: Fundação Joaquim
Nabuco, Editora Massangana.2010.136 p.: il. – (Coleção Educadores)
VERAS, Maura. Os impasses da crise habitacional em São Paulo ou os nômades urbanos no
limiar do século XXI, Revista São Paulo em Perspectiva, vol.1. São Paulo: Sead.