A DIFERENÇA ENTRE IMAGEM (EIDÓLON) E SÍMILE … · âmbito contextual e histórico, pois as...

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1 doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03037 A DIFERENÇA ENTRE IMAGEM (EIDÓLON) E SÍMILE (EIKÓN) DE HOMERO À PLATÃO MESTI, Diogo Norberto (UFMG/CAPES) Introdução Num primeiro momento desta pesquisa sustentei que havia uma distinção na República entre o uso socrático dos símiles (eikónes) e a crítica filosófica às imagens (eídola). Isso foi feito porque os principais símiles compostos por Sócrates: o do timoneiro 1 (VI 487e ss.), o do sol (VI 506d ss.), o dos prisioneiros na caverna (VII 515a ss.), o dos tipos psíquicos dos governantes (IX 588b ss.) estão envolvidos num contexto argumentativo em que são utilizados derivados adverbiais e verbais de eikón (como eikazo, etc.). Essa postura socrática parecia estar em franca oposição ao uso das imagens (eídola) que no livro VII são vistas pelos prisioneiros no fundo da caverna e no livro X aparecem como se fossem produtos exclusivos da fabricação dos poetas. Essa hipótese se mostrou equivocada porque o próprio Sócrates também fabrica um eídolon e com ele apresenta o significado da justiça na República. Trata-se de um conceito de justiça apresentado numa imagem que não é capaz de esgotar ou de levar adiante a pesquisa pelo que é a justiça em si mesma. Nesse argumento, Sócrates propõe uma imagem onírica da justiça (IV 443b) segundo a qual cada parte de um todo (seja esse todo a cidade ou a alma) faz aquilo que lhe cabe por natureza. Ao notarmos que se tratava de um eídolon utilizado para explicar a justiça, corrigimos nossa postura frente à denegação do uso de imagens (eídola) por Sócrates. Diante disso, é preciso avaliar como essa imagem se encaixa no discurso filosófico e, por conseguinte, investigar como a cultura poética e sofística anterior à Platão trabalha a 1 O símile do timoneiro mostra como o símile da ideia do bem no horizonte do piloto é tomado como uma exigência para diferenciar o filósofo dos outros.

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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03037

A DIFERENÇA ENTRE IMAGEM (EIDÓLON) E SÍMILE (EIKÓN) DE

HOMERO À PLATÃO

MESTI, Diogo Norberto (UFMG/CAPES)

Introdução

Num primeiro momento desta pesquisa sustentei que havia uma distinção na

República entre o uso socrático dos símiles (eikónes) e a crítica filosófica às imagens

(eídola). Isso foi feito porque os principais símiles compostos por Sócrates: o do

timoneiro1 (VI 487e ss.), o do sol (VI 506d ss.), o dos prisioneiros na caverna (VII 515a

ss.), o dos tipos psíquicos dos governantes (IX 588b ss.) estão envolvidos num contexto

argumentativo em que são utilizados derivados adverbiais e verbais de eikón (como eikazo,

etc.). Essa postura socrática parecia estar em franca oposição ao uso das imagens (eídola)

que no livro VII são vistas pelos prisioneiros no fundo da caverna e no livro X aparecem

como se fossem produtos exclusivos da fabricação dos poetas.

Essa hipótese se mostrou equivocada porque o próprio Sócrates também fabrica um

eídolon e com ele apresenta o significado da justiça na República. Trata-se de um conceito

de justiça apresentado numa imagem que não é capaz de esgotar ou de levar adiante a

pesquisa pelo que é a justiça em si mesma. Nesse argumento, Sócrates propõe uma imagem

onírica da justiça (IV 443b) segundo a qual cada parte de um todo (seja esse todo a cidade

ou a alma) faz aquilo que lhe cabe por natureza. Ao notarmos que se tratava de um eídolon

utilizado para explicar a justiça, corrigimos nossa postura frente à denegação do uso de

imagens (eídola) por Sócrates.

Diante disso, é preciso avaliar como essa imagem se encaixa no discurso filosófico

e, por conseguinte, investigar como a cultura poética e sofística anterior à Platão trabalha a

1 O símile do timoneiro mostra como o símile da ideia do bem no horizonte do piloto é tomado como uma exigência para diferenciar o filósofo dos outros.

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diferença entre imagem e símile para, então, tentarmos diferenciar o uso socrático dos

termos “símile” e “imagem” para falar da alma.

Referencial Teórico

A lacuna que essa pesquisa pretende suprir tem como foco a ausência de um

comentário de vulto que englobe as imagens e os movimentos da alma2. A solução a ser

desenvolvida neste projeto propõe o estudo do movimento da alma em uma perspectiva

sincrônica: a alma sofre e age, ao mesmo tempo, segundo a imagem que ela mesma produz

de si mesma. O sucesso de tal estudo dependerá de uma visão unificada da República em

que, sem perder o foco da psicologia platônica como referencial teórico, serão abordados

outros temas que se entrecruzam na imagem da justiça e no símile do bem.

Objetivos

O objetivo desta pesquisa é compreender o uso que Sócrates faz do eídolon e do

eikón3 na República, para explicar suas funções nos movimentos psíquicos de

racionalização (epistemológicos, de busca da ciência, e ontológicos, de busca do ser),

impetuosidade (de convencimento e de consenso) e desejo (de satisfação e de prazer). Os

objetivos específicos a serem expostos nesse projeto definitivo são: (i) explicar as

conseqüências filosóficas do fato de a justiça ser apresentada por Sócrates através de uma

2 Alguns exemplos podem ser citados. Robinson (2007), Reis (2009; 2010), tratam do movimento; Desclos (2000), Vernant (1975), Saïd (1987), Canto (1985), tratam das imagens.

3 Nenhum tradutor diferenciou os termos usados para designar as imagens na obra platônica. No presente trabalho, traduziremos eikón por símile e eídolon por imagem, no geral, ou por imagem, quando a referência for homérica. Isso se justifica porque a justiça é apresentada por um tipo específico de imagem, o eídolon, que possui uma fundamentação teórica distinta dos eikónes e não pode ser considerada sinônima destas. Se persistirmos defendendo uma univocidade semântica do vocabulário das imagens em Platão, quando se trata de uma plurivocidade não só terminológica, mas também conceitual, estaremos cometendo o mesmo equívoco ocorrido nas traduções de idea, ousia e eídos só por Forma.

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imagem (eídolon); (ii) compreender como a alma percebe, significa e é capaz de agir

sincronicamente através de imagens (eídola) e símiles (eikónes); (iii) detalhar como as

partes da alma são afetadas diferentemente pela imagem e pelo símile.

Metodologia

O caminho para explicar as imagens da alma na República exige: (i) a explicitação do

âmbito contextual e histórico, pois as noções de eikón e de eídolon fazem referência crítica

ao contexto retórico, poético e filosófico de Atenas, no qual os diálogos nascem (cultura

homérica e oral) e para o qual eles tendem (cultura agonística grega das assembléias). Este

estudo exige ainda uma dimensão (ii) filológica, pois o símile e o ídolo precisam ser

traduzidos de acordo com o contexto em que aparecem, uma vez que defendemos que

esses termos são parte essencial do recurso estilístico que Platão designa ao filósofo na

República. Por fim, apenas uma obra de Platão será analisada, recorrendo a passagens

específicas de outras obras de modo auxiliar.

Desenvolvimento

Farei uma divisão cronológica da noção de eidólon. Primeiro, tratando do aspecto

religioso do eidólon em Homero, quando ele fala dos fantasmas do Hades; segundo, da

teoria da percepção e da parapsicologia na acepção do eidólon em Demócrito e, terceiro,

do aspecto político do eidólon de Helena na guerra de Tróia, na referência que Platão faz a

Górgias no livro IX da República. A hipótese desta comunicação é que o eidólon usado por

Platão é uma crítica a Homero e a Demócrito. O caso de Górgias é mais complexo, por que

em parte há crítica, mas em parte há incorporações feitas por Platão.

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No penúltimo capítulo da Ilíada, um trecho mostra a imagem4 (eidólon) de Pátroclo

dizendo a Aquiles.

Com toda pressa sepulta-me, para que no Hades ingresse, Pois os imagens (eidola) cansados dos vivos, as almas me exortam Não permitindo que o rio atravesse para a elas juntar-me. Por isso, vago defronte das portas amplíssimas do Hades. Dá-me tua mão, é chorando que o peço, não mais a tua frente Conseguirei retornar, quando o fogo me houver consumido. (XXIII, vv. 72-77)

Pátroclo aparece para Aquiles, clamando que este lhe sepulte para finalmente poder

entrar no Hades e não ficar vagando pela porta do mesmo. As imagens cansadas dos vivos,

são como imagens que aparecem nos sonhos dos guerreiros na Ilíada e que de certo modo

guiam as batalhas. Esta imagem de Pátroclo é semelhante à aparência do corpo do mesmo,

tanto que, sem sucesso, Aquiles tenta lhe abraçar, mas se desequilibra como se abraçasse o

ar. Numa outra passagem da Ilíada que relaciona alma e imagem, Aquiles conclui que:

“Ora, a certeza adquiri de que no Hades, realmente, se encontram / Almas e imagens dos

vivos, privados, contudo, / De alento” (XXIII, vv. 103-104).

As imagens da alma daqueles que habitam no Hades aparecem aos vivos como um

aspecto visível daquele que morreu e que convence os vivos pela semelhança com os

aspectos físicos do morto, pois “a alma do mísero Pátroclo é assaz parecida com ele”

(idem). Contudo, é uma imagem vazia de sentimento, sem algo que possa ser abraçado.

No caso da noção do eidólon em Demócrito, há uma discussão, feita por Walter

Burket (1977, p. 103), a respeito das divergências entre os comentadores de Demócrito e

sua respectiva doxografia, sobre onde estaria situada no pensamento deste uma teoria do

eidólon, se competiria a uma teoria da percepção ou a uma parapsicologia, a qual diz

respeito à aparição dos deuses e à previsão. É importante dizer que estudar Demócrito

4 Escolhi traduzir por imagem porque ele engloba tanto a aparição de um defunto, no sentido incorpóreo, e com a aparência do corpo da pessoa, podendo significar fantasma, quanto também admite uma coisa vazia, falsa e que ilude, bem como o sentido gráfico de uma impressão sensível, onde graficamente tem-se os contornos da forma da coisa.

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neste caso é difícil, pois em sua maior parte o eidólon aparece em testemunhos e aquela

divergência sobre o lugar da teoria do eidólon é uma divergência dos próprios testemunhos

antigos, como bem mostra Morel (1996, p. 306-308).

Retomamos a posição de Plutarco: “Plutarco distingue claramente a posição

democritiana da tese epicurista. Epicuro, segundo ele, segue Demócrito sobre os princípios

da teoria dos simulacros, mas não detem o mais interessante: o fato que os simulacros

transportem nào somente as imagens dos corpos, mas também as imagens dos movimentos

da alma”.

A interpretação que adotaremos a respeito do eidólon é a de uma teoria da

percepção, mas que não seria estranha se dissesse respeito também à aparição dos

daimones da religião grega, de um modo semelhante ao caso da imagem (eidólon) de

Pátroclo. Ambas as noções de eidólon poderiam ser definidas do mesmo modo: um aspecto

sensível que aparenta ser a coisa mesma que ele imita, mas que é vazia de conteúdo, que

está sintetizada no seguinte fragmento DK 68 B 195: “Imagens belas de se ver pelas vestes

e adornos, mas vazias de coração”.

Assim, a acepção de uma teoria da percepção em que “a percepção ocorria por

efluentes físicos dos objetos que atingiam o olho” (Cf. TAYLOR, 1999, 109) que “retendo

a forma aproximada de sua superfície constituem imagens deles” (BURKET, 1977, p.103),

não está em plena contradição com a imagem do corpo de Pátroclo ou a imagem de um

deus no sonho, que também devem ter a forma aproximada daquilo que apresenta e que

deixa uma marca.

Traduzir eidólon por imagem, como estamos propondo aqui, resolveria o problema

de Demócrito, pois assim não é preciso decidir afinal se eidólon diz respeito a uma imagem

gráfica gravada e impressa nos olhos, ou a um fantasma de algum daimon. O nome

imagem dá conta das duas acepções, e em ambos os casos, representam imagens vazias das

formas físicas dos homens, das coisas ou também dos deuses. Preservamos imagem em

razão da interpretação que faremos de Platão, mas para sermos mais corretos com

Demócrito deveríamos traduzir eidólon por espectro, caso que não se aplica sempre em

Platão.

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Para entender a concepção que Platão tem do eidólon, é importante relembrar uma

passagem da República em que é relatado o retorno do dialético à caverna, num resumo do

símile dos prisioneiros onde o dialético é obrigado a usar suas próprias imagens. A crítica à

imagem (eidólon) nesta passagem consiste em uma crítica a apreensão de uma imagem

vazia:

Se alguém não for capaz de definir pela razão (logon) a ideia do bem, distinguindo-a

(apheiro) de todas as outras e, como numa batalha (machêi), passando através de todas

objeções (elenchôn), não estiver disposto a não refutá-las segundo a opinião, mas segundo

a essência (ousian), não atravessar essas dificuldades com uma razão inabalável (lógos), se

for esta a postura dele, afirmarás que ele não conhece nem o bem em si ou algum outro

bem. Mas, se apreende um imagem (eidólon) do bem, é pela opinião que o apreende, não

pela ciência, e a vida agora passa sonhando e cochilando, sem despertar antes de chegar ao

Hades e lá dormir completamente. (VII 534b-d)

O final da passagem da batalha do dialético se refere ao sonho dos moralistas. A

crítica que se faz a eles é confundir a imagem com a própria coisa, pois desconhecem a

diferença entre os múltiplas imagens do bem e o próprio bem. As referências ao sonho, na

República, ocorrem geralmente em relação a alguém que confunde uma imagem com

aquilo a que a imagem se parece. Assim, do mesmo modo que os moralistas sonham com

uma imagem vazia (eidólon) do bem pensando que é o próprio bem, os matemáticos

sonham com as figuras geométricas pensando que é o próprio triângulo, quadrado e etc. Na

República, o maior exemplo é Trasímaco, que discursa sobre uma gama enorme de

concepções de justiça, sem entender a própria justiça. Trasímaco seria um daqueles que

viveriam dormindo e sonhando vendo as sombras do Hades.

É no enfrentamento contra as sombras (schiamachêi, 520c) no fundo da caverna

que o dialético disputa (agônizesthai) “nos tribunais ou em outro lugar qualquer a respeito

das sombras (skiôn) da justiça ou a sombra (skiai) das estátuas, lutando a respeito disso

conforme as interpretações que lhes dão os que jamais contemplaram a própria justiça”

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(517d). Aqui o dialético torna-se um político utilizando “símiles5 [...] mais nítidos” (VI

511a) (e clareza, afinal, é verdade) daquilo do que é em si mesmo, se opondo aos nomes e

às imagens vazias, contra o “retrato sombreado da virtude” produzido por Trasímaco,

contra a imagem (eidólon) do bem (VII 534 d) e contra os simulacros dos poetas (X 600e).

Contudo, a posição de Platão frente ao eidólon não pode ser vista somente sobre a

perspectiva crítica. Num momento crucial da República Platão formula a justiça por um

eidólon. A função da imagem é mais nebulosa, pois ela é comparada a algo visto num

sonho.6 A dimensão onírica da imagem não é abordada por nenhum comentador e

tampouco é mencionado que o contexto em que aparece tal imagem é o da formulação da

alma tripartite, pois a imagem diz que a justiça será um acordo entre as três partes da alma.

Para esclarecer, primeiro, essa relação entre sonho e imagem é preciso mencionar que

Homero já utilizava eidólon para imagens oníricas.

Em algumas circunstâncias da Odisséia, Ulisses está controlando o seu thymós, o

seu ímpeto, o mesmo thymós que o levou a pensar que a imagem (eídolon) de sua mãe era

a própria Anticléia e que o incitou a abraçá-la. Ulisses narra assim o encontro com sua mãe

no Hades: “Desejei aproximar-me / com ternura daquela que me deu a vida, abraçá-la. /

Três vezes tentei estreitá-la nos braços, guiado pelo / coração (thymós, ímpeto). Três vezes

ela me escapou. Era só sombra (skía), / sonho (oneíro)” (Odisséia, XI, vv. 210-224). Esse

engano de Ulisses traz à tona (i) o sonho que está presente na imagem (eídolon) da justiça

e (ii) uma relação de controle entre razão e ímpeto, elogiada por Platão em Ulisses. Diante

disso, podemos dizer que a imagem da justiça composta por Platão pode ser projetada no

fundo da caverna para convencer os prisioneiros de que a justiça é cada parte fazer o que

lhe cabe, criando uma imagem (eídolon) destinada a servir de pista para o convencimento

do ímpeto (thymós).

5 Símile tem um significado parecido com o de eikón porque, tal como eikón é derivado de eioke, que significa semelhança, o símile é derivado de semelhante, e designa a qualidade de algo semelhante, que se semelha, e que é análogo àquilo com o que parece, baseado na similitude entre este tipo de imagem e as coisas ou os seres que reproduz.

6 O termo usado por Platão não é oneíro mas enunpnion, cujo significado é especificamente algo visto no sonho ou uma visão no sonho. A diferença é cirúrgica, já que nesta passagem ele está se referindo a um eídolon da justiça que aparece num sonho e isso é feito para explicar metaforicamente a visão de uma imagem da justiça que ele teve naquele momento crucial.

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O elogio que Platão faz do auto-controle que Ulisses tem de seu ímpeto se estende

por toda a República e demonstra um acordo7 psíquico entre as diferentes partes da alma: a

razão deve tentar convencer o ímpeto de que o melhor para este é segui-la e não aos

desejos. As bases deste convencimento serão as imagens (eídola), que, como as imagens

(eídola) em Homero, iludem o coração e o ímpeto. Assim, a imagem da justiça serve para

selar um acordo inicial entre o ímpeto (que é a parte que desde Homero é seduzida pelo

eídolon como se estivesse num sonho) e a razão.8

A passagem do eídolon da justiça na República é a seguinte:

eis que nosso sonho (enýpnion) já está completo e perfeito... Aquele que, como supusemos / conjecturamos (hypopteýsai9) logo que iniciamos a fundação de nossa cidade, fazia-nos assinalar que um deus podia bem fazer-nos chegar ao princípio e a um certo tipo (týpos) da justiça. Glaucon: Sem dúvida. Sócrates: Ah! Esse modelo, Gláucon, era – e isso nos ajuda – uma imagem da justiça (eídolon ti tés dikaiosýnes). É justo que aquele que, por natureza, é sapateiro fabrique sapatos e nada mais faça, que o construtor construa e, quanto aos outros, também seja assim? Gláucon: Parece. (443b-c).

7 No contexto argumentativo em que Sócrates investiga a justiça, é necessário haver um acordo entre partes que se aplica à alma, à cidade e aos interlocutores do diálogo. No jogo dramático, o acordo ocorre sempre entre os interlocutores que estão discutindo, tanto que Sócrates primeiro diz que chegaram a “um acordo de que a justiça é cada um possuir o que é seu e realizar o que lhe cabe” (IV 434a), depois disso, ele insere a tripartição da alma, e o acordo que Sócrates pretende instaurar passa a ser psíquico.

8 No Timeu, Platão expõe uma teoria em que a razão pode enviar eídola para o coração agir. As imagens da justiça e da tripartição da alma na República são justamente imagens deste tipo e visam convencer o coração ou ímpeto (o thymós) a seguir o caminho escolhido pela razão. Esse eídolon refletiria no fígado e então o coração poderia vê-lo e seria convencido por ele.

9 Lidell e Scott mostram que ὑποπτ-εύω significa “A. to be suspicious, X.Hier.2.17, Lys.1.10; ὑ. ἔς τινας c. inf. fut., have suspicions of them that . . , Th.4.51. 2. merely, suspect, guess, suppose, opp. ἱκανῶς συννοῶ, Pl.Tht.164a, cf. X.HG5.4.29; have an inkling of, Pl.Grg.453b; “ὁ ἵππος ὑ. τι” X.Eq.6.14:—Pass., to be conjectured, Pl.Lg.967b. II. trans., suspect, hold in suspicion, τινα S.El.43, Th.8.39; “θὴρ ὑ. κυναγώς” Theoc.23.10; ὑ. τινὰ ἔς τι of something, Hdt.3.44:—Pass., to be suspected, mistrusted, Th.4.86; “εἴς τι” Id.6.92, rist.Rh.Al.1437a1: impers., ὡς ὑπωπτεύετο as was generally suspected, X.HG5.4.20. 2. c. acc. pers. et inf., suspect that he (…)”.

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Nesse horizonte, o acordo entre as partes que está sendo proposto aqui é uma

petição de princípio de caráter hipotético, pois o que se almeja é que a razão e o ímpeto

criem um acordo sobre a necessidade de eles conviverem sempre em acordo, ou melhor, é

um acordo sobre o que é a justiça entre as partes da alma que precisa de um bom e justo

relacionamento para ser possível.

O próprio símile dos prisioneiros na caverna e a direção do dialético ao sol,

compreendido como um desdobramento do símile do bem que é o sol, representa a

linguagem do dialético que se opõe à construção daquelas imagens e tenta mostrar também

alguns símiles da virtude quando mostra a imagem do movimento da alma do dialético em

direção ao bem.

A discussão é sobre o critério das imagens. O que faz do eidólon diferente do

eikón? Uma interpretação possível para a limitação da imagem (eidólon) é por ela se ater

ao som corpóreo das coisas, como o critério de Crátilo no diálogo que leva seu nome, onde

a sonoridade dos nomes é o critério para a compreensão de sua natureza. Do mesmo modo

que o pintor na República dá atenção apenas às cores quando parece ser capaz de “todas as

imitações porque só alcança uma pequena parte de cada coisa, e isso é apenas um

simulacro” (X 598b ). É como se os aspectos materiais e sensíveis gravados na memória,

como os sons das palavras e as cores das pinturas, não significassem o conceito, mas

apenas uma corporeidade sem essência, uma marca sem preenchimento, uma imagem

vazia, enquanto o critério do eikón é o inteligível.

No caso de Górgias, a relação com Platão é mais complexa. Górgias possui dois

textos que podem ser utilizados para entender a dimensão ontológica e política da crítica de

Platão aos imagens: Tratado do não-ente e Elogio de Helena. O primeiro é de transmissão

indireta, mas não sofre tantas divergência quanto os textos de Demócrito. O objeto de

discussão entre Platão e Górgias é a questão retórica presente no caso de Helena de Tróia

“caso exemplar de beleza servindo como instrumento de persuasão” (COELHO, p.8), e

neste caso Homero está no pano de fundo da discussão.

No Tratado do não-ente, Górgias se refere a prova final da sua segunda asserção:

sendo a primeira, que nada existe; a segunda, que se existe, é inapreensível pelo homem, e

a terceira, que mesmo se for apreendido, é incomunicável e indescritível ao outro. No

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segundo caso ele diz: “Saudável e salvador é ter a conseqüência: ‘se as coisas pensadas não

são entes o ente não é pensado’. As coisas pensadas pelo menos (deve-se antecipar) não

são entes como sustentaremos: logo, o ente não é pensado” (78).

O argumento de Górgias se sustenta numa exclusividade acerca do que pode ser

pensado, se, por um lado, o que é pensado é o ente, então o não-ente não é pensado, por

outro lado, no entanto, se o não ente é pensado, então o ente não é pensado e este é o caso

para Górgias. Ele lembra que muitas coisas pensadas não possuem qualquer existência

certa e efetiva, e é absurdo “ao não ente não ser pensado”, pois também “Cila e Quimera e

muitos dos não-entes são pensados” e disso ele deduz: “Logo, o ente não é pensado” (p.

13, 79-80).

A questão ontológica de Górgias funda o absurdo de atribuir ao mesmo espaço do

pensar coisas contrárias, excluindo a possibilidade de se pensar o ser porque o não-ente é o

que pode ser pensado e coisas diferentes não podem estar localizadas no mesmo lugar. A

impossibilidade de se pensar o ser diz respeito à impossibilidade do homem apreender e

entender o ser das coisas, e não apenas as coisas fantasiosas.

Platão resolverá isso afirmando que o ser e o não-ser podem ser pensados,

afirmando o ser do próprio não-ser. Isto é, tanto o que é, quanto o que não-é, uma imagem

por exemplo, podem ser pensados conjuntamente. Como, por exemplo, no caso do

produtor de moveis na República, onde o artista ao produzir uma mesa “não produz o que

é, mas algo que parece com o que é, mas que não é. Se alguém afirmasse a respeito do

trabalho do moveleiro ou de outro artífice que é de maneira perfeita (teleôs) aquilo que ele

é, correria o risco de fazer afirmações não-verdadeiras” (X 597a). Isto é importante para

entender a diferença entre os tipos de imagens em Platão, na medida em que é possível

produzir um tipo especial de imagem que comunique o pensamento que se tem sobre o ser

do bem e das virtudes da alma.

Cila e Quimera, as referências do próprio Górgias para refutar a possibilidade de se

pensar e apreender o ser, aparecem no momento em que Sócrates produz um símile, algo

que não é o que é, mas que é de um modo imperfeito, para tentar entender o símile (eikón)

da alma do homem injusto e também do justo:

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Moldemos em pensamento uns símiles (eikóna) da alma a fim de que aquele indivíduo

venha a saber que tipo de afirmações ele fez.

Gla. Que imagem?

Sócr. Um símile como aqueles de que falam os antigos mitos: a Quimera, a Cila, o Cérbero

e muitos outros monstros que, graças à sua natureza, segundo dizem, assumem muitas

formas em único corpo.

É o que se diz.

Pois bem! Modela o tipo (idea) de um animal que seja de muitas cores e muitas cabeças,

tanto de animais mansos como de animais selvagens, dispostas em círculo, e que seja capaz

de mudar essas formas tirando de si mesmo todas essas formas.

[...]

A quem diz que para aquele homem é vantajoso ser injusto, mas não é útil praticar a

justiça, digamos que o que ele afirma nada mais é que, para ele, é vantajaso nutrir com boa

comida o multiforme animal tornando-o forte e que faça o mesmo com o leão e com os

outros bichos que estão com ele; ao homem, porém, faça passar fome e perder suas forças

de forma que ele se deixe arrastar para onde quer que os outros dois queiram e não deixem

que se habitue com o outro nem se tornem amigos, mas, ao contrário, permita que se

mordam e entredevorem lutando.

Isso é o que afirmaria quem elogia a injustiça.(IX 588b-589a).

Além de fazer referência à Cila e Quimera, esta passagem alude também ao Elogio

de Helena quando se refere à plasticidade do lógos. No Elogio de Helena de Górgias, onde

ele defende as coisas “pelas quais era verossímil ter ocorrido a partida de Helena para

Tróia” (5) e levanta várias hipóteses a respeito do motivo que fez Helena ir para Tróia, ele

começa a defender Helena como alguém ou que sofreu o rapto e foi contra sua vontade, ou

que “foi pelo discurso que persuadiu e iludiu a sua alma” já que “nascendo junto com a

opinião da alma, o poder do encantamento fascina, persuade e altera essa alma pelo

enfeitiçamento” (10).

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Ele prossegue antecipando o que Platão admitirá quando falará que “o lógos é mais

moldável do que cera”, afirmando que “e quantos, a quantos, acerca do quanto persuadiram

e ainda persuadem tendo modelado um falso discurso” (11) e conclui então, “que causa

impede considerar que também Helena, semelhantemente, sob o domínio das palavras

partiu contra vontade do mesmo modo como se raptada pela violência dos violentos?” (12).

A conclusão deste passo mostra ainda o seguinte: “Que a persuasão, unindo-se ao discurso,

também molda a alma da maneira que quer” [...] (13). E nisto consiste a farmácia do lógos

para Górgias, podendo servir de remédio ou de enfeitiçamento (14), na medida em que “os

similes (eikónas) das coisas vistas a visão inscreveu no pensamento” (17). Isso aparece em

Platão no Filebo, onde há a metáfora de homenzinhos desenhando símiles no interior da

nossa alma (39a-b).

Naquela mesma passagem do livro IX sobre o lógos ser mais moldável do que cera,

há a composição dos símiles dos tipos da alma do homem, de um modo parecido com os

símiles que ficam gravados no pensamento daqueles que, para Górgias, vêem coisas

terríveis na guerra e que param de refletir aterrorizados. No mesmo livro IX, o que também

está em questão, como em Górgias, são os símiles que guiam a alma dos homens ou das

mulheres e que, por conseguinte, guiam a política. Esta proximidade entre eles ocorre

apesar de haver uma divergência ontológica sobre o pensamento do ser.

Por um lado, os símiles aparecem na República no movimento pedagógico de

reorientação da alma, explicada no símile dos prisioneiros na caverna, onde são os símiles

do caráter do bem (agathou eikóna êthous) (III 401b) que devem orientar a alma; por outro

lado, isso ocorre nas imagens do movimento de alteração dos tipos psíquicos (eikóna

plasantes tês psykhês, IX 588b-c), para explicar a mudança nas formas de governo, onde

Platão expõe como a política depende também da educação do indivíduo e das imagens

que seu governante se acostumou a ver.

No livro IX, Sócrates está falando dos tipos dos prazeres e explica o prazer do

filósofo, diferenciando-o do prazer do homem que visa só o lucro e do homem que

ambiciona a fama, pois neste caso “eles reproduzem com sombras (skiagraphêmenê) os

contornos do prazer”, e prossegue explicando como é este tipo de prazer:

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Será então que não são obrigados a conviver com prazeres misturados com dores, imagens

(eidólon) do verdadeiro prazer que, delineados com sombras, assumem colorido quando

prazeres e sofrimentos se sobrepõem de forma que uns e outros parecem muito intensos e

são objetos de disputa como a imagem de Helena, que como diz Estesícoro, por ignorância

da verdade, veio a ser objeto de disputa? (IX 586b-c).

Estesícoro é conhecido por ter feito uma palinódia a Helena, afirmando que só o

sua imagem havia ido para Tróia, enquanto a verdadeira Helena ficou no Egito. Sua

imagem vazia tornou-se objeto de uma acirrada disputa política (IX 586c). O livro IX da

República não representa apenas um elo entre Platão e Górgias, mas também entre Platão e

o próprio Homero, já que as sombras, as almas e Helena são assuntos homéricos comum

aos gregos. Seja na vertente homérica, na concepção que ele tem do Hades, da

religiosidade de uma imagem que aparece de onde vivem as sombras dos homens, seja na

vertente psicológica da teoria de como a alma percebe em Demócrito ou seja na vertente

retórica e política de como ocorreu a ida da imagem de Helena a Tróia, Platão critica, em

todos esses casos, a relação doentia que a imagem estabelece com a alma, na relação

fundada pelo engano.

O verdadeiro prazer do qual o outro é uma imagem é o prazer do dialético, que

sente com as coisas que ele aprende e com as imagens corretas que ele usa. Estas críticas

não estão separadas e fazem parte de uma tensão que atravessa toda a República, o que

pode ser notado pela dramatização do diálogo, já que Platão encerra a República, contra o

eidólon dos poetas, dos retóricos e dos peri phuseos, do mesmo modo que iniciou contra a

falsa veste daquele que parece justo, sem ser, quando recusa a tese que pode ser atribuída a

Trasímaco de que bastaria delinear “um círculo a sua volta, como fachada e forma exterior

(schêma), um desenho sombreado (skiagraphian) da virtude” (II 365c) para receber as

glórias da justiça na cidade.

Em resumo, as imagens que o poeta fabrica criam “uma constituição (politeía) má

dentro da alma de cada um, porque favorecem o que ela tem de irracional e não discerne

nem o maior nem o menor, mas, ora julgas grande, ora pequenas as mesmas coisas, criando

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imagens vazias (eidola), mantendo-se bem afastado da verdade” (X 605c). É válido notar

que Politeía é o título original em grego desta obra traduzida geralmente por República.

Conclusões

Portanto, a imagem (eidólon) tem um caráter dúbio na República de Platão

sobretudo porque possui ao mesmo tempo um caráter positivo impensável na boca de

Sócrates quando ele chega a uma imagem (eídolon) da justiça e um caráter negativo que

pode enganar os homens quando produzidos pelos poetas com a intenção de ludibriar os

outros pela perspectiva de um desenho, por exemplo. Enquanto a imagem tem um caráter

dúbio e duplo, o símile (eikón) desempenha na República um papel filosófico central que

pode ser ancorado nas matemáticas, na medida em que é o tipo de imagem que Sócrates

mais utiliza para falar dos aspectos envolvidos na formação da constituição da alma como

se houvessem homenzinhos desenhando símiles no interior da nossa alma. Ele é o tipo de

imagem especial que deve ser mostrado aos jovens quando o que se tem como paradigma

são as formas das virtudes (III 401b-402b), é usado na comparação entre o filósofo e o

timoneiro (VI 488e), para explicar o bem, pelo símile do sol (VI 506b), e também o

movimento da alma do dialético em direção a este bem, no símile dos prisioneiros (VII

515a), símile este que não deve ser chamado de mito e nem de alegoria, por se tratar de

uma imagem e, mais especificamente, de um símile, além de elucidar os tipos psíquicos

presentes no interior de todos os homens (IX 588b).

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