A DIMENSÃO ÉTICA NO PENSAMENTO TRADUTÓRIO DE … · 4 RESUMO O presente trabalho dará atenção...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CURSO DE LETRAS BACHARELADO COM ÊNFASE EM ESTUDOS DA TRADUÇÃO A DIMENSÃO ÉTICA NO PENSAMENTO TRADUTÓRIO DE FRANZ ROSENZWEIG NATASHA PEREIRA SILVA CURITIBA 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

CURSO DE LETRAS

BACHARELADO COM ÊNFASE EM ESTUDOS DA TRADUÇÃO

A DIMENSÃO ÉTICA NO PENSAMENTO TRADUTÓRIO DE FRANZ ROSENZWEIG

NATASHA PEREIRA SILVA

CURITIBA

2009

2

NATASHA PEREIRA SILVA

A DIMENSÃO ÉTICA NO PENSAMENTO TRADUTÓRIO DE FRANZ ROSENZWEIG

Monografia apresentada à disciplina de Orientação Monográfica II do Curso de Letras, no Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Letras, com habilitação dupla Português-Alemão e ênfase em Estudos da Tradução. Orientador: Prof. Dr. Mauricio Mendonça Cardozo.

CURITIBA

2009

3

À minha família

4

RESUMO

O presente trabalho dará atenção à questão da ética na tradução a partir das reflexões

tradutórias do filósofo alemão de origem judaica Franz Rosenzweig. Primeiramente, serão

apresentados seus comentários à própria prática de tradução, no posfácio de sua tradução dos

poemas de Jehuda Halevi e nos ensaios A Escritura e Lutero e O segredo da forma narrativa

bíblica, no qual Rosenzweig define algumas especificidades dos hinos religiosos e da

Escritura, além de explicitar escolhas justificadas e motivações pessoais de suas traduções.

Esses argumentos, embora não façam parte de um projeto do autor de estabelecer uma ética

na tradução, baseiam-se na abertura ao diálogo, o que parece ser produtivo para se pensar e

discutir a ética da responsabilidade.

ZUSAMMENFASSUNG In der vorliegenden Arbeit geht es um die Frage nach der Ethik bei der Übersetzung

ausgehend von den Gedanken über Übersetzung von dem deutschen Philosoph jüdischer

Herkunft Franz Rosenzweig. Zuerst werden seine Kommentare über seine eigene

Übersetzungspraxis im "Nachwort zu den Hymnen und Gedichten des Jehuda Halevi" und in

den Essays "Die Schrift und Luther" und "Das Formgeheimnis der biblischen Erzählungen"

vorgestellt, in welchen er jene Besonderheit der religiösen Hymnen und der Schrift bestimmt,

sowie die Begründungen seiner Entscheidungen und die persönlichen Gründe seiner

Übersetzungen. Diese Argumente, obwohl sie innerhalb einer Ethik der Übersetzung

entstehen und nicht zu einem Projekt des Autors gehören, basieren auf dem Interesse an dem

Dialog. Das scheint ein produktiver Ansatz zu sein, die Ethik der Verantwortung zu

diskutiren und darüber nachzudenken.

ABSTRACT

This paper focuses on the subject of ethics in translation, based on reflections of renderings on

of the Jewish origin german philosopher Franz Rosenzweig. Firstly, will be presented his

comments on the translation practice itself, in the postface of Jehuda Halevi’s poems and in

the essays Scripture and Luther and The Secret of Biblical Narrative Form, in which he

defines some specifities of the religious hymns and the Scripture, as well as exposes justified

choices and personal motivations in his translations. These arguments, albeit not part of an

author’s project of establishing a translation ethics, are based on dialogue, which seems

productive for the purpose of thinking and discussing an ethics of responsibility.

5

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Profa. Maria Clara C. de Oliveira, da Faculdade de Letras da Universidade

Federal de Juiz de Fora, UFJF, ao Prof. Geraldo Luiz de Carvalho Neto, também oriundo da

UFJF, ao Prof. Ricardo Timm de Souza, do Departamento de Filosofia da Pontifícia

Universidade Católica do Rio Grande do Sul, ao Prof. Paulo A. Soethe e a meu orientador

Mauricio M. Cardozo que gentilmente me ajudaram com as referências para que eu pudesse

desenvolver esse trabalho.

Agradeço também imensamente a dedicação de fundamental importância de algumas

pessoas durante esses vários anos de graduação: dos meus professores Mauricio (também

Orientador), Sandra, Caetano, Paulo, Patrícia e Luis Bueno. Meus colegas da ênfase dos

Estudos da Tradução, principalmente os colegas da Orientação Monográfica, pelas discussões

e companheirismo. Agradeço também a amizade e apoio constante da Catarina, Fernanda

Baukat, Sirlene, Simone, NORMA (também pela revisão do texto diretamente de Passau).

Nessa lista não poderiam estar de fora os heróis que aturaram as crises monográficas: pai,

mãe, Junior e João Paulo (talvez eles estejam mais felizes que eu com o cumprimento dessa

etapa).

6

SUMÁRIO Introdução..................................................................................................................................7 Capítulo 1 - As reflexões tradutórias de Franz Rosenzweig...............................................14 1.1. À tradução de hinos e poemas de Jehuda Halevi...............................................................15 1.2. À tradução da Escritura.....................................................................................................17

1.2.1. A Escritura e Lutero................................................................................................19 1.2.2. O segredo da forma narrativa bíblica......................................................................22

Capítulo 2 - A dimensão da ética no pensamento tradutório de Franz Rosenzweig..............................................................................................................28 Considerações finais................................................................................................................33 Referências Bibliográficas......................................................................................................35

7

1. Introdução

O tradutor e pensador da tradução Franz Rosenzweig (1986-1929) nasceu na

Alemanha, estudou medicina, mas logo se dedicou a suas áreas de grande interesse: a história,

a filosofia e a teologia. Negar ou afirmar-se na tradição judaica de seus ancestrais foi durante

algum tempo uma dúvida para ele, assim como para seus colegas, que viviam nos países da

Europa ocidental neste mesmo período, final do século XIX e início do XX, no qual muitas

das famílias judias se encontravam num processo de incorporação da cultura dominante que

as rodeava, de maneira que, aos poucos, desligavam-se de suas crenças e tradição. Alguns

desses judeus chegaram a se converterem ao cristianismo, outros, porém, sentiram-se

motivados a resgatar, de alguma forma, sua tradição.

A questão do deslocamento e, apesar dele, o esforço para manter algum vínculo com

sua cultura, povo e religião são fatos constantemente presentes no judaísmo. A história mostra

que esse foi um povo marcado por diásporas. Seu primeiro exílio ocorreu na Babilônia, no

ano de 586 a.C., com a destruição de seu primeiro Templo, lugar por excelência do estudo,

ensino e prática da religião e cultura judaicas. Mesmo assim, mantiveram uma identidade

enquanto povo e a esperança lhe permitiu levar a cabo a construção de um novo templo. No

entanto, no ano 70 d.C., esse foi também destruído e o exílio se estendeu ao Egito e à Roma.

A partir dessa mudança determinante, não havia mais um templo onde, como ocorria

anteriormente, pudesse ser discutida a lei da Escritura, ou seja, da Bíblia hebraica e, a partir

desse debate, foi determinada uma Lei Oral a ser seguida (OLIVEIRA, 2000, p.15-16).

Com essa condição, mecanismos tiveram de ser criados na tentativa de manter um elo

entre os judeus. Assim, surgem as figuras dos rabinos, mestres e entendidos na lei judaica,

que para além do estabelecimento oral de leis, foram responsáveis pelo chamado midrash,

registro escrito de suas exegeses e interpretações sobre a Escritura, de maneira a torná-los

disponíveis e acessíveis para seu povo e auxiliar na consolidação do elo entre os judeus que

viviam em grupos isolados em meio a outras comunidades (ibidem, p. 14).

Essa prática deu origem ao livro judaico Talmud, reunião das leis orais judaicas e das

anotações interpretativas dos rabinos ao longo dos séculos. Em cada uma das páginas desse

8

livro é possível observar vários textos, cada um de um estudioso diferente, proveniente de um

determinado tempo e espaço, que orbitam em torno de uma determinada passagem bíblica em

discussão. Trata-se, portanto, de uma estrutura circular, em que a passagem da Escritura e

também seus comentários já registrados suscitam novas anotações que condizem com o

contexto temporal e espacial em que foram realizadas. Assim, essa estrutura não propõe uma

hierarquização entre esses textos (idem). Esse tipo de interpretação da Escritura, que não

privilegia exclusivamente uma única interpretação do texto e que, em conseqüência, não

exclui ou invalida as demais possibilidades, dá-se por conta da busca recorrente e incessante

de explicação. Para isso, reconhece-se a importância de considerar e de registrar essas

variações de entendimento, para que elas possam impulsionar outras interpretações.

Essa forma rabínico-judaica de interpretação (em oposição à concepção da tradição

ocidental, que buscava através da interpretação uma verdade unívoca) estava restrita aos

guetos. Mas duas mudanças ocorrem no século XVIII: a emancipação judaica, que promove o

reconhecimento dos direitos dos judeus por parte das sociedades ocidentais em que viviam; e

o movimento “iluminista” judaico, o chamado Haskalá, que ocorre na Alemanha e pretende

adaptar a cultura judaica aos costumes e cultura ocidentais. Nesse sentido, a secularização da

tradição judaica possibilita uma influência de mão dupla entre culturas. Se de um lado alguns

judeus distanciam-se cada vez mais de suas tradições, o mundo ocidental, ao procurar aceitar

o diferente, passa a entrar em contato com elementos que a ele eram desconhecidos, o que

proporciona novas entradas a assuntos já discutidos. A exemplo disso, temos a concepção de

interpretação judaico-rabínica que contribui para a reflexão a respeito da interpretação, além

da aplicação aos textos da Escritura judaica. OLIVEIRA (2000), ao tratar desse assunto, cita

os estudiosos Harold Bloom e Susan Handelman, que aplicam essa concepção de

interpretação ao desenvolverem crítica literária (ibidem, p.16-17) e desenvolve em seu

trabalho argumentos que individualizam o pensamento tradutório proveniente do contexto

judaico.

O filósofo Franz Rosenweig também conviveu com esse processo de secularização da

tradição judaica e de assimilação à tradição ocidental européia. Apesar de existir por parte

dele o desejo de resgatar o judaísmo, havia a consciência de que o tradicionalismo já perdera

9

espaço. Em A Estrela da Redenção1, principal obra filosófica de Rosenzweig, ele se utiliza de

elementos importados da teologia e do judaísmo e dá a elas uma nova reelaboração. Ele faz

isso para dar validade à tradição, mesmo que em suas obras as questões de religião não sejam

centralmente discutidas (SOUZA, 1999, p. 57). Isso fica claro na sua produção filosófica e

também em sua reflexão sobre tradução, que passaremos a discutir em breve.

Da mesma forma, sua produção enquanto tradutor esforça-se em resgatar a questão

judaica. De acordo com essa preocupação, Rosenzweig empreendeu esforços para traduzir, do

hebraico para o alemão, textos que tinham alguma correlação com essa tradição. Descontente

com as traduções já existentes, por achar que elas não atingiam o objetivo por ele pretendido,

traduziu cuidadosamente os seguintes textos: a oração do Tischdank (assim seus convidados,

amigos cristãos ou judeus que não falavam hebraico puderam tomar parte das preces feitas

após a refeição de maneira participativa) (ABDULKADER, 2003, p. 271-272); poemas de

Jehuda Halevi (1083-1140), poeta espanhol-judeu da Idade Média, que escreveu centenas de

canções hebraicas de adoração a Deus; e a Bíblia hebraica em parceria com Martin Buber2.

A partir das duas últimas práticas de tradução citadas, Rosenzweig desenvolve, muito

embora não sistematicamente, uma interessante reflexão teórica. É possível encontrar

exemplos dessas formulações que apontam para seu pensamento a respeito da tradução em

trechos de A Estrela da Redenção, em rápidos comentários críticos que têm em vista o

trabalho de outros tradutores, em posfácio3 e notas à tradução dos poemas de Jehuda Halev, e,

por fim, em ensaios e cartas endereçadas a colegas e a seu parceiro de tradução Martin Buber.

Em A Estrela da Redenção, Rosenzweig faz alguns comentários que reaparecem nas

demais reflexões tradutórias: considera que uma tradução possui o mesmo valor que o texto

1 Essa obra foi escrita enquanto Rosenzweig prestava serviço militar na Primeira Guerra Mundial, mas só veio a ser efetivamente publicada em 1921. Há tradução dessa obra, dentre outras línguas, para o inglês, The Star of Redemption, e para o espanhol, La Estrella de la Redención, mas ainda não há para o português. 2 Franz Rosenzweig não consegue completar esse seu último trabalho de tradução, que iniciara em 1924, em razão de seu falecimento, em 1929, decorrente de uma esclerose lateral amiotrófica, que desde 1922 já dificultavam sua capacidade de fala e movimento (em maio de 1923 perdera a capacidade de fala e de praticamente todos os movimentos; há relatos de que foi sua mulher que o ajudara a transmitir seus pensamentos para o papel, através de um sistema de sinalização de cartões com o alfabeto mostradas por ela e que ele, com movimento da pálpebra, sinalizava). 3 Nachwort zu den Hymnen und Gedichten des Jehuda Halevi, texto datado dos anos 1922/1923, foi traduzido para o português, Observações sobre os hinos e poemas de Jehuda Halevi, por Marie-Anne Kremer. Porém, o meu trabalho tem apenas o texto em alemão como referência.

10

de partida, principalmente quando se trata da Escritura (ROSENZWEIG, 2002 (1921), p.

407), argumenta pela necessidade de traduzir, pois seria uma forma de revelar4 o amor de

Deus (idem), e aponta o fato de que um poeta só poderia apreciar sua própria obra se a

encontrasse em tradução (ibidem, p. 271). Assim, a partir do estranhamento e do

distanciamento necessários, o poeta teria a oportunidade de admirar sua própria obra. Já nos

seus artigos sobre história e filosofia sua contribuição, para a reflexão tradutória, restringe-se

a comentários valorativos da tradução de um livro (um exemplo disso seria seu comentário

sobre a segunda edição da tradução de uma certa obra que teria recuperado o “aspecto

filológico” que não havia na tradução anterior)5. Por serem as reflexões tradutórias nessas

duas fontes muito breves, optou-se por não as ter como objeto de análise para este trabalho.

Esse trabalho dará atenção às duas outras fontes. Em suas observações sobre sua

própria tradução dos hinos religiosos de Jehuda Halevi, Rosenzweig comenta sobre sua

insatisfação com determinadas traduções que, por tentar recriar em alemão um poema

acabariam por apagar a voz do texto de partida e, por isso, sentiu a necessidade de escolher

uma estratégia de tradução que resultasse na visibilidade da letra e da língua de partida, o

hebraico. Na coletânea Schrift und ihre Verdeutschung6, reunião de cartas e ensaios nos quais

estão reflexões sobre a tradução da Escritura, Martin Buber explica que, com os textos que a

integravam, eles não tinham como proposta a discussão de questões teológicas; mesmo que

elas tenham aparecido no fim, o que visavam era debater os objetivos do encargo de tradução

da Escritura, qual seja, criar um espaço para que os alemães de origem judaica pudessem

resgatar as suas tradições, pois muitos já não podiam ler hebraico. Portanto, esses alemães

precisavam deste acesso a partir de um texto em alemão que tivesse sido escrito com esse

propósito e que fosse endereçado a eles (BUBER, 1994 (1936), p. 1-3).

4 A Revelação é uma metáfora do contexto judaico clássico que compreende, primeiramente, a revelação de Deus na criação do mundo e, em seguida, a revelação de Deus que precisaria ocorrer constantemente, através da ação humana e das relações homem, Deus e natureza. A pesquisadora Maria Clara Castelhões de Oliveira, em seu trabalho de doutoramento, discute a utilização dessa metáfora para pensar a tradução por Walter Benjamin e Franz Rosenzweig, ambos de origem judaica. 5 Em Frentes Intercambiadas, tradução para o espanhol de Alejandro Martinez Rodrigues, com o título em alemão “Vertauschte Fronten”, publicado pela primeira vez em 1929 e reimpresso em Der Mensch und Sein Werk, Martin Nijhoff, La Haya, 1976-1978, vol. III, p. 235-237. 6 Em 1936, portanto após a morte de Franz Rosenzweig, por Martin Buber reuniu em Schrift und ihre Verdeutschung ensaios e cartas sobre questões da tradução conjunta da Escritura. Há textos de Buber, de Rosenzweig, ou escritos em parceria por âmbos. À tradução para o inglês, Scripture and translation, por Lawrence Rosenwald e Everett Fox, são acrescentados outros textos no apêndice que não estavam presentes na edição alemã.

11

No desdobramento dessas duas fontes que serão o foco deste trabalho para a discussão

da dimensão ética nas reflexões tradutórias de Rosenzweig, o que se pode constatar como

característica comum é, em poucas palavras, a questão da abertura ao diálogo. Rosenzweig

parece entender a tarefa do tradutor como dar ouvidos a um e revelá-lo a outro; buscar colocar

aquele em diálogo com o outro; e colocar-se, ele mesmo, no diálogo com o um e com o outro.

Ao reconhecer a complexidade nessa dinâmica de relações, a tradução, na teoria, parece ser a

impossibilidade de “servir a dois senhores” (ROSENZWEIG, 1984 (1926), p. 749). Porém, na

prática, na necessidade de experiência com o outro, a tradução é necessária e acontece

(ibidem, 749). Somente no cumprimento do dever de traduzir é que as palavras vivas do

original recebem uma resposta, tornam-se audíveis ao outro em outro tempo e espaço. Nesse

cenário, o outro não aparece isento de estranhezas, há marcas linguísticas na maioria das

vezes, pois quando elas estão presentes o texto de partida, ganha voz própria e algo é

provocado no leitor; apenas nesse momento o outro é realmente revelado. Essas relações que

são pautadas por uma demanda de responsabilidade, nos remetem à dimensão ética

determinada na prática tradutória.

O presente trabalho procura discutir essa dimensão ética da tradução na prática

tradutória nos termos em que ela é entendida, mesmo que não sistematicamente, por

Rosenzweig. Não se trata, portanto de levantar uma ideia de código de ética dos tradutores

que surge, principalmente, com o reconhecimento profissional desta classe e com um

movimento de conscientização da necessidade de, através de normas, assegurar

comprometimento entre tradutor e seus clientes, uma retribuição financeira adequada, o

reconhecimento da propriedade intelectual do autor do texto original e do trabalho do tradutor

com a atribuição dos créditos, além de estabelecer princípios norteadores da prática. Afinal,

não é devido a essa conscientização profissional que muitos trabalhos dos Estudos da

Tradução7 virão a dar ênfase à ética, pelo menos não seria um motivo exclusivo. A evidência

da dificuldade de determinar sempre o certo e o errado na tradução, pode significar uma

irrelevância em se fazer essa tentativa. Essa tendência pode ser entendida como reflexo de um

contexto social onde o racionalismo como valor universal entra em crise.

7 A tentativa de institucionalização de uma área para os “estudos da tradução” é algo recente, ocorreu somente nos setenta do século XX, e, até hoje, seu caráter multidisciplinar gera questionamentos quanto a legitimidade da institucionalização dessa nova área e, ao mesmo tempo, é uma característica que a justificaria.

12

É nesse cenário que parece fazer sentido uma discussão sobre essa dimensão ética.

Atualmente, como o teórico Anthony Pym o apresenta, em The Reurn to Ethics in Translation

Studies – síntese dos artigos contemplados na edição da revista “The Translator”8 – o tema da

Ética seria uma tendência (PYM, 2001: 137-138). Embora essa questão não apareça sempre

com os mesmos pressupostos, há traços comuns entre os trabalhos dos teóricos, pois, em

geral, o conceito de ética concebido pelos autores nesta edição da revista promove discussões

mais profícuas que aquelas que partem de noções como fidelidade ou equivalência lingüística,

pois abordam a tradução em seu contexto político, social, cultural, dando atenção não apenas

ao texto, mas também aos indivíduos envolvidos, com foco na interpretação e no diálogo

(idem). Na mesma revista há trabalhos que apontam para a existência de uma tensão entre as

normas deontológicas, que possuem caráter aplicado e instrumental, e as questões de uma

ética dita mais geral e filosófica (ibidem, p. 133). Outros partem das limitações e contradições

de um código de normas de conduta para eleger como mais importante uma compreensão

sobre tradução no campo ideológico, como compromisso com a alteridade. Outros, ainda,

delineiam as relações a serem obtidas na atividade de tradução e, a partir disso, buscam

encontrar princípios norteadores dessas diversas relações profissionais. Portanto, reconhecem,

cada um a sua maneira, a necessidade de olhar além da deontologia em busca da ética (idem).

A questão central para todos eles parece ser o reconhecimento da complexidade da

atividade tradutória, das diversas dimensões que ela compreende (como a política, a

lingüística, a cultural, a ética) e das relações múltiplas que ela incita (entre línguas, culturas,

pessoas). Como desenvolve CARDOZO (2007), se nenhuma dessas dimensões ocupa, de

saída, posição hierarquicamente superior às outras, e se todas essas dimensões são igualmente

pertinentes, então a dificuldade está na prática, na tentativa de equacioná-las (CARDOZO,

2007, p. 4-5). Aqui a reflexão de Rosenzweig sobre tradução, que tem como elementos

centrais a atenção a essas diversas dimensões (compromisso com a tradição judaica, com o

autor, o leitor, bem como suas respectivas línguas e culturas) a fim de buscar promover o

diálogo e suscitar resposta, parece contribuir para a discussão sobre a dimensão ética na

tradução.

8 A revista “The Translator” é publicada pela St. Jerome Publishin, editora americana especializada em tradução e estudos interculturais. Cada edição é temática, sendo a número 2 do volume 7, de 2001, sobre Ética (The Translator: The Return to Ethics).

13

No primeiro capítulo deste trabalho serão apresentadas as reflexões teóricas de

Rosenzweig sobre questões da tradução presentes em Observações sobre os hinos e poemas

de Jehuda Halevi (1937) e nos ensaios A Escritura e Lutero (1925) e O segredo da forma

narrativa Bíblica (1928). A escolha de trabalhar com esses textos, e não com outros, foi feita

sob o critério de que nestes encontra-se com maior centralidade a discussão em torno da

tradução propriamente dita. Será visível, porém, no decorrer da exposição destes textos, que o

último deles dá maior ênfase para a especificidade da forma narrativa bíblica do que para a

tradução. De qualquer modo essa reflexão também parece ser importante para se fazer uma

leitura e subtrair dela temas centrais presentes nesta seleção. É importante ressaltar que o

objetivo não é encontrar uma unidade e sistematicidade no pensamento de Rosenzweig, mas

analisar a reflexão tradutória nos textos selecionados.

No segundo capítulo, o objetivo é compreender a dimensão ética na reflexão

apresentada no Capítulo 1, ou seja, a partir dos elementos centrais para Rosenzweig: o dever

de traduzir, a necessidade de abertura ao diálogo, de responder e suscitar resposta e a ênfase

na experiência pessoal do indivíduo9. Nessa segunda parte será feita uma aproximação da

dimensão ética presente nessas reflexões e a noção de ética de responsabilidade.

9 A consciência da necessidade de resposta e de diálogo também está presente na filosofia de Franz Rosenzweig. As características de sua filosofia parecem influenciar decisivamente a reflexão teórica sobre tradução que ele faz. Porém o objetivo desse trabalho não é o de promover essas aproximações e nem discutir longamente sobre o tipo de filosofia que ele propõe. Portanto, aqui não se estão entendendo as suas observações teóricas como mera aplicação de conceitos filosóficos; elas por si só são autônomas para a discussão aqui levantada.

14

Capítulo 1 - As reflexões tradutórias de Franz Rosenzweig

Segundo relato de Rosenzweig em carta, de 1922, a Margarete Susman, foi na ocasião

da tradução dos poemas de Jehuda Halevi que ele entrou em contato com Matin Buber,

pedindo sua opinião a respeito do produto final da tradução dos poemas (ABDULKADER,

2003, 9. 272). Já nesse momento desenvolveram-se conversas profícuas sobre as questões que

envolvem a tradução. Daí em diante é possível reconhecer a relevância desses debates

tradutórios e colocações de Buber na reflexão de Rosenzweig, assim como o inverso. Por

questões de espaço não será possível fazer aqui, neste trabalho, uma análise comparativa entre

a reflexão tradutória de um e de outro10. Uma das discussões pertinentes para este trabalho,

mesmo antes da concretização da parceria entre os dois tradutores, é a possibilidade de

tradução da Escritura sagrada. De fato, haveria diversas formas para empreender esse

trabalho, seja com uma recriação do texto em língua alemã, seja com uma revisão de uma

tradução já existente. No início, Rosenzweig acreditava não ser possível traduzir a Bíblia do

hebraico para o alemão e que quem quisesse lê-la teria que recorrer ao original (OLIVEIRA,

2002, p. 147-161). Posteriormente ele já mostra interesse em aceitar esse encargo, mas propõe

que seja feita uma revisão minuciosa na tradução de Lutero, para adequar as passagens por ele

julgadas não de acordo com sua proposta (BAUER, 1992, p. 327). Porém, já no primeiro

momento, na tradução do primeiro livro bíblico, seu parceiro lhe apresenta uma tradução

própria, que encanta Rosenzweig: “não há mais pátina, é reluzente como novo, e isso já tem

seu valor” 11 (ROSENZWEIG, 1936, apud BAUER, 1992).

Depois dessa discussão, sobre o procedimento inicial de sua tradução, passaremos para

a apresentação, primeiro, das Observações aos hinos e poemas de Jehuda Halevi, para situar a

reflexão tradutória de Rosenzweig anterior à tradução da Escritura.

10 Essa espécie de abordagem poderia ser desenvolvida em um próximo trabalho. 11 Tradução nossa de „Die Patina ist weg, dafür ist es blank wie neu, und das ist auch was wert.“. apud In: BAUER, Anna Elisabeth. Rosenzweigs Sprachdenken im "Stern der Erlösung" und in seiner Korrespondenz mit Martin Buber zur Verdeutschung der Schrift. Frankfurt am Main; New York: P. Lang, 1992, p. 327.

15

1.3. À tradução de hinos e poemas de Jehuda Halevi

Poeta e filósofo Jehuda Halevi, nasceu em 1075, em Tudela, cidade espanhola

pertencente à região cristã, no sul desse país. Halevi foi educado também em hebraico e opta,

posteriormente, quando escreve suas poesias, pelo uso da língua hebraica. Devido ao seu

vínculo com a tradição judaica, dedicou boa parte de sua vasta produção poética ao contexto

religioso. E foram principalmente esses poemas e hinos que se fizeram presentes em língua

alemã através de traduções do poeta e jornalista austríaco Seligmann Heller, que os traduziu

no ano de 1893, “com uma verdadeira melodia hebraica” (BROCKE, 2003, p. 1), e do

filósofo e historiador alemão, também de origem judaica, Gehard Scholem, em 1918 (idem).

Com a intenção de ampliar esse trabalho de tradução e oferecer a sua contribuição,

Rosenzweig, em torno do ano de 1923, decide por iniciar sua experiência como tradutor pelos

poemas em hebraico de Jehuda Halevi. Durante esse trabalho, ele, recorrentemente,

correspondeu-se com Martin Buber pedindo conselhos. A admiração pelo resultado final dos

poemas traduzidos e as discussões que surgiram nessas conversas, sobre a traduzibilidade da

Escritura por exemplo, serviram de incentivo para que Buber viesse a convidá-lo,

posteriormente, para iniciar a parceria no trabalho de tradução.

Em carta a Margarete Susman, com data do ano de 1922, Rosenzweig comenta, que

aspessoas próximas para quem ele havia mostrado suas traduções dos poemas, teriam reagido

negativamente, dizendo que sua escrita estava muito estranha e que essa não era alemão; ele

teria então mostrado o seu trabalho para Buber que de pronto enaltece sua estratégia. Segue o

trecho da carta:

[...] e preciso de outros que me digam que algo, finalmente foi conseguido. No momento crítico [para o Jehuda Halevi] esse “outro” foi Buber. Sem ele o livro jamais chegaria a ser escrito. [...] eu o traduzi [o primeiro poema de Halevi que Rosenzweig traduziu], e vivi logo a experiência que aparentemente vem junto com traduções como essa: as três mulheres importantes da minha vida, que por acaso se achavam reunidas à volta daquele novo produto, unanimemente julgaram-no “terrível” e fizeram pouco de mim. E me aconteceu a mesma coisa que tem acontecido desde então: eu quase acreditei nelas, mas só por conta de ter também uma opinião externa, enviei a tradução a Buber, que salvou o poema e o livro que dele nasceu. (ROSENZWEIG, 1922, apud GLATZER, 1998, p. 123, apud ABDULKADER, 1997, p. 272).12

12 Tradução para o português de ABDULKADER a partir da tradução em inglês do alemão.

16

Ele faz a opção por produzir um estranhamento no produto da tradução para trazer ao

leitor a outridade do texto de partida. Para isso, ele marca as características do hebraico no

texto em língua alemã. Rosenzweig também procede dessa maneira para a sua tradução da

Escritura. E este modo de traduzir com vistas ao outro passa a ser, para ele, uma tarefa e um

dever de todos. Nessa estratégia estará presente também o distanciamento necessário e

desejável para que o leitor possa reconhecer no texto esse outro como outro, e não meramente

a voz do tradutor que adapta e recria.

A tradução, assim como a própria língua, fala algo para alguém; “uma língua

estrangeira fala em sua própria língua através de uma tradução”13 (BAUER, 1992, p. 329).

Assim, teriam tradução e fala a mesma origem e o mesmo objetivo, ou seja, dizer alguma

coisa a alguém. Não basta então traduzir palavra por palavra, pois se o tradutor deseja dar voz

ao texto de partida e falar algo novo, que mereça ser ouvido, através da tradução, ele precisa

criar esse algo novo na sua própria linguagem. Essa renovação da língua para qual o tradutor

traduz é permitida pela língua do texto de partida que reaparece no texto de chegada.

Mesmo que Rosenzweig compreenda que a tradução tenha que dizer algo em alemão,

ele esclarece que não foi seu objetivo criar a falsa impressão no leitor de que estivesse lendo

poemas escritos no mais perfeito alemão da época. Ele tinha a consciência de que gostaria de

apresentar em sua tradução a voz de Jehuda Halevi, um poeta deslocado, que escreveu em

hebraico, na Espanha, em solo cristão, por volta do século XI, com o intuito de enaltecer sua

origem judaica (ROSENZWEIG, 1922/23, p. 200). Rosenzweig não tinha como propósito

germanizar14 nem tornar contemporâneo o texto estrangeiro e datado. Com essa consideração,

ele descarta a possibilidade da tradução como recriação, mesmo quando há a dificuldade de

traduzir o texto em verso de uma língua que proporciona mecanismos formais atípicos para a

língua de chegada. As características formais são de extrema importância na correlação com o

conteúdo dos poemas, portanto, se não é possível ter os mesmos efeitos em alemão, a solução

que ele descreve é a de sinalizar na tradução elementos que pertencem a um contexto outro ao

do leitor. Portanto precisa causar estranhamento.

13 Tradução nossa de „Durch eine Übersetzung spricht eine fremde Sprache in die eigene Sprache hinein.“. In: BAUER, Anna Elisabeth. Rosenzweigs Sprachdenken im "Stern der Erlösung" und in seiner Korrespondenz mit Martin Buber zur Verdeutschung der Schrift. Frankfurt am Main; New York: P. Lang, 1992, p. 329. 14 Nesse contexto, “germanização” aparece como tradução do substantivo Eindeutschung.

17

1.4. À tradução da Escritura

Traduzir um texto sagrado, não importa de qual crença ou religião que ele seja, parece

agravar ainda mais a questão da relação do tradutor com o texto de partida e com o leitor do

produto dessa tradução, principalmente quando essa tradução não tem um caráter apenas

documental ou estético, pois se trata de traduzir um texto no seu contexto religioso, da crença,

da fala divina. Para Rosenzweig, a tarefa de traduzir, mesmo que o texto seja a Bíblia, não

significa traduzir com correspondência linguística ou equivalência, e muito menos fazer uma

tradução literal. Historicamente, a concepção de tradução para esse livro foi diferente em

diversos momentos e a isso acrescenta-se ainda questões de fundo que motivaram a tradução.

A tradução da Bíblia do hebraico para o grego, a Septuaginta, ou LXX, feita no século

II a.C. a pedido do Rei Ptolomeu II, que teve o propósito de servir aos judeus exilados no

Egito, já carrega o sentido de tradução unívoca do texto sagrado. Em torno do nome dessa

tradução, conta-se que ela teria sido realizada por 72 intelectuais em 72 dias e há ainda relatos

no Talmud, coletânea das leis orais judaicas e das suas exegeses (midrashim) pelos rabinos, de

que ela teria sido feita por 70 sábios, que apesar de terem trabalhado em ambientes diversos,

fizeram traduções idênticas. Outra famosa tradução bíblica é a Vulgata, de São Jerônimo, que

parte tanto do texto original em hebraico, para o Antigo Testamento, quanto da Antiga Versão

Latina (que nesse momento ganha status de original), para o Novo Testamento. A partir de

então, é o texto em latim que passa a ser a referência, como que um original. Nesse caso

também havia a noção de equivalência linguística entre os textos.

Em sua tradução da Bíblia para o alemão, Martinho Lutero (1483-1546) opta pelos

textos de partida hebraico e grego. Por ter a questão da religião como elemento mais

importante Lutero traduziu com atenção especial ao conteúdo e não à forma, apesar de a

Escritura apresentar formas diversas, como narrativas, canções, orações (ROSENZWEIG,

1984 (1928), p. 817-819). Ainda a respeito da tradução para o alemão, mas no contexto

judaico, foi proposta a tradução do Pentateuco pelo filósofo e rabino judeu-alemão Moises

Mendelssohn (1729-1786). A posição social e política de Mendelssohn certamente motivou e

influenciou escolhas nessa sua produção tradutória (OLIVEIRA, 2002, p. 155-156). Ele foi

precursor da Haskalá, movimento judeu pós Emancipação judaica com traços da filosofia

iluminista que se dá no século XVIII, que tinha o propósito de dissolver o confinamento dos

18

guetos nos quais moravam os judeus e integrá-los aos valores da cultura ocidental (idem); um

reflexo do contexto histórico no qual viviam os judeus na Alemanha daquele século. Era

necessário que definissem seu posicionamento com relação à tradição. Mendelssohn

acrescentou a sua tradução comentários provenientes das interpretações ditas literais do texto

Bíblico, pois estavam atreladas às questões linguísticas, os chamados Biur, para que os judeus

que moravam na Alemanha pudessem aprender sobre a língua alemã. Portanto, tinha o intuito

de propiciar a ligação com a cultura alemã dentro do judaísmo clássico e atender à

necessidade e ao desejo de adequação ao contexto em que viviam (idem).

Por volta de 1924, Rosenzweig, a convite de Martin Buber, aceita esse encargo de

tradução da Escritura em parceria. Essa tradução, ao contrário da tradução de Mendelssohn,

tinha o propósito de propiciar um espaço para a sobrevivência da tradição judaica e, ao

mesmo tempo, para a convivência com a tradição alemã, afinal, a tradução foi para a língua

alemã e seria recebida por judeus que viviam na Alemanha. Embora esse trabalho tenha sido

para Rosenzweig, a princípio, uma proposta cuja realização seria impossível, pois que, para

ele, a tradução dos textos religiosos escritos em hebraico era impossível, e quem quisesse os

conhecer teria então que lê-los no original, ele percebe também que não havia como lutar

contra o fato de que povo judeu distanciava-se de sua tradição e reconhece que grande parte

deles não aprenderia o hebraico (idem).

Assim, com a tradução proposta por Buber junto com Rosenzweig, deu-se voz à

cultura judaica, mas sem apagar a voz da cultura alemã. Uma tentativa de deixar as duas

realidades conviverem e se conciliarem sem, no entanto, haver apagamento de alguma delas.

Passemos agora a apresentação da reflexão tradutória presente em A Escritura e

Lutero e em O segredo da forma narrativa bíblica.

19

1.4.1. A Escritura e Lutero

O ensaio A Escritura e Lutero15 foi escrito em julho de 1926, por Rosenzweig, ou seja,

já dois anos depois do início da parceria na tradução da Escritura, e foi publicado na época,

portanto anteriormente à coletânea de 1936 com os textos mais significativos a respeito da

tradução da Bíblia por Buber e Rosenzweig.

Logo nas primeiras frases o filósofo expõe reflexões relevantes: “traduzir significa

servir a dois mestres. Porém, isso ninguém consegue”16 (ROSENZWEIG, 1984 (1926), p.

749). A conclusão a que se chegaria nesse caso seria a de que: servir a dois senhores não é

possível, logo, se traduzir é servir dois senhores, traduzir é impossível. Porém, não é

exatamente isso que o texto irá defender, o que seria incoerente, já que o próprio Rosenzweig

faz justamente isso: traduz. Ele considera essa impossibilidade somente no âmbito da teoria,

pois na prática, mesmo que não seja possível de fato servir a dois senhores, traduzir é uma

tarefa necessária, que de fato se faz (ibidem, p. 749-750). Assim, a prática tradutória não

podendo servir a um ou a outro senhor, operaria equacionando esses dois extremos (idem).

Para contemplar algumas das formas de traduzir, a fim de podermos vislumbrar em

qual Rosenzweig se enquadraria enquanto tradutor, ele próprio aponta três momentos. O

primeiro, uma tradução interlinear modesta, que pretendesse ser apenas uma ajuda ao leitor do

original. Nesse modo de traduzir seria permitida a adaptação livre e a recriação para trazer o

sentido do original ao leitor. Em um segundo momento, haveria a junção entre, segundo ele, o

“espírito” do texto original e o contexto do texto traduzido; nesse caso, o tradutor iria querer

trazer o original para a sua própria língua, com fidelidade ao sentido. No terceiro, Rosenzweig

acrescenta a questão da religião à individualidade nacional (em última análise, à língua

nacional); assim, mesmo que o livro sagrado seja de outro tempo e espaço, com essas

características ele ganha força nacionalmente. Contrapontos desses três modelos seriam, para

Rosenzweig: a idolatria pela Escritura como ponto de partida e o entendimento das palavras

desse texto como soberanas, o que acaba por criar dificuldades no manejo com as palavras.

15 Texto sem tradução para o português, com o título no original em alemão “Die Schrift und Luther” e na tradução em inglês “Scripture and Luther”. 16 Tradução própria de “Ubersetzen heißt zwei Herren dienen. Also kann es niemand.” In: ROSENZWEIG, Franz. Die Schrift und Luther. In: Zweistromland: Kleinere Schriften zu Glauben und Denken. (Gesammelte Schriften III), Dordrecht/Boston/Lancaster: Martinus Nijhoff Publischers, 1984. p. 749.

20

Rosenzweig comenta sobre a tradução de Lutero, cujas características o fizeram

perceber que, de fato, o que ele e Buber pretendiam realizar teria que ser algo além de uma

revisão da tradução de Lutero. Rosenzweig considera sim que a tradução de Lutero, a qual

pretendeu ser escrita em um alemão claro e compreensivo, obteve um grande sucesso no

sentido de ter características contemporâneas que permitiram o acesso dos leitores alemães

(ibidem, p.750); portanto o movimento que se deu foi do texto de partida em direção ao leitor,

e não o contrário, de trazer o leitor ao texto (idem).

Embora essa tradução tenha tido seu grande alcance, sem esquecer também do

interesse na consolidação de uma língua nacional nesse momento histórico, a obra de Lutero

afastou-se completamente do hebraico. Segundo Rosenzweig, a questão político-religiosa

também exerceu sua influência, pois no prefácio à sua tradução dos Salmos17, Lutero

esclarece que algumas escolhas de palavras se deram no sentido de estabelecer já no Antigo

Testamento alguma relação com a ideia de Jesus Cristo, pois assim, além de aplicar algo que

já lhe era conhecido, ele estaria aproveitando a riqueza de que a língua dispõe para melhor se

expressar nela (ibidem, p. 751-753). Lutero coloca a preferência pela língua de chegada em

primeiro plano; isso é contraposto claramente pela tradução de Rosenzweig e Buber que

apresenta, mesmo no texto em alemão, a língua hebraica. Para Rosenzweig, outra questão

importante, que parece ser um desdobramento dessa questão, é a falta de unicidade formal da

tradução de Lutero, que ora quer manter apenas o sentido, ora quer conservar a palavra

(tradução literal), mesmo que em certas passagens o declarado já se fizesse compreensível – o

exemplo citado por Rosenzweig é o da tradução “prisões aprisionadas”, no Salmo 68,18.

O texto sagrado tem sua forma originariamente oral. No entanto, tem-se a Escritura,

como o nome já diz, na sua forma escrita, o que, segundo Rosenzweig, por conseqüência,

engessa e desacelera o desenvolvimento da língua, já que a forma escrita propicia ainda mais

o caráter de servidão a um dos senhores. Mesmo assim, alguns mecanismos formais da

Escritura podem estar a serviço do resgate da característica da oralidade. Porém, ao examinar

a tradução de Lutero, Rosenzweig percebe a complexidade dos termos empregados, que

impedem o vernáculo de ser expresso vivamente na oralidade, como seria em seu caráter

inicial, o que para ele apresenta o “domínio do livro sobre a língua” (ibidem, p. 754).

17 Esse prefácio de Lutero a sua tradução foi impresso em torno do ano de 1525.

21

Embora as situações histórica e político-científica de Lutero tenham marcado, segundo

Rosenzweig, de maneira desinteressante a tradução do século XVI, não seria uma tradução

científica, por exemplo, portanto em certa medida afastada dos propósitos anteriores, que

resolveria as questões importantes para esse novo projeto (ibidem, p. 762-764). Rosenzweig

conclui que para essa tradução que fosse buscar o outro enquanto outro, a língua hebraica e o

contexto judaico, não se permitiria que a voz do livro passasse a ser válida apenas para um

único espaço, nem apenas dentro de uma Igreja ou para um só povo; essa voz deveria estar

fora de qualquer espaço, mas ao mesmo tempo em todos eles (ibidem, p. 758), como o céu,

que está em todos os lugares, mas não tem ligação exclusiva com nenhuma terra.

22

1.4.2. O segredo da forma narrativa bíblica

O ensaio de Rosenzweig Das Formgeheimnis der biblischen Erzählungen (1928), ou

“O segredo da narrativa bíblica”, publicado primeiramente em 1928 pela revista alemã do

final do século XIX e primeiro terço do XX “Der Kunstwart”, tematiza as especificidades da

forma narrativa bíblica que, segundo ele, foram percebidas por Martin Buber enquanto eles

traduziam em parceria a Escritura. Não se trata de um ensaio exclusivamente sobre tradução,

como ocorreu, de certa maneira, nos outros dois textos já apresentados. Porém, essa reflexão

contribui para a discussão do segundo capítulo sobre a ética de responsabilidade e a dimensão

ética das reflexões de Rosenzeeig, e portanto, sempre que possível, será incluída a

apresentação dos seus argumentos que definem a forma da narrativa bíblica e uma avaliação

de como isso se manifesta na tradução.

Na primeira parte, é problematizada a questão de se privilegiar na tradução o conteúdo

em detrimento da forma, ou o contrário. Rosenzweig lembra do conselho de Goethe (1749-

1832), aos jovens tradutores, em sua autobiografia Aus meinem Leben: Dichtung und

Wahrheit, de que traduzissem com atenção especial ao conteúdo, o que, portanto, legitima a

tradução de um texto em verso para um texto em prosa. Essa consideração remete

Rosenzweig à tradução da Bíblia por Lutero, que teria sido feita de maneira a diluir em uma

forma só os diversos gêneros, estilos e tons (o lírico, o histórico, o didático) que compõem os

textos da Bíblia, como se pertencessem a um só molde, privilegiando, portanto, o conteúdo e

a questão da religião (ROSENZWEIG, 1984 (1928), p. 817). Para Goethe, apenas após esse

primeiro movimento é que se poderia tentar traduzir as formas poéticas, para traduções em

verso e com as demais característica que elas acarretam, como ocorreu com o livro de Jó e

com os Salmos (idem). Assim, uma tradução simples seria, para ele, sempre melhor. E a

tradução que quisesse competir com o original serviria somente para entreter os eruditos.

Goethe, portanto, reconhece a questão formal, mas coloca em oposição o conteúdo

religioso e a forma estética (ibidem, p. 819). Rosenzweig prefere aventar que a poesia e a

prosa não podem ser consideradas como completamente distintas, afinal não existe qualquer

expressão desprovida de forma (idem). Para Rosenzweig não deve existir uma linha divisória

entre o “religioso” e o “estético”, já que eles não são elementos isolados e nem podem ser

totalmente separados. Se o estético ou o religioso se dessem por absoluto, perderiam a

23

conexão com a realidade e não transmitiriam o seu conteúdo; essa transmissão ocorreria de

maneira adequada pela “graça no momento flutuante da oralidade expressiva” (idem, p. 818-

819). Essa máxima da convivência da forma e do conteúdo pode ser aplicada à tradução, pois

se o leitor é privado das características formais e orais da Escritura sagrada, ela seria menos

rica e não teria a capacidade de causar algum impacto sobre os leitores (idem).

De acordo com esse raciocínio, não se trata de manter a forma que está presente no

texto de partida apenas porque ela está no texto de partida, mas sim porque é essa forma que

vai propiciar ao leitor o acesso ao conteúdo como um todo; a forma é importante quando

permite a conexão dela com o conteúdo expresso. Rosenzweig cita o exemplo do hexâmetro

datílico da Odisséia, que se conecta de algum modo com as palavras individuais do verso

(ibidem, p. 818). Desta maneira, para Rosenzweig, traduzir é, na verdade, traduzir essa

relação entre a forma e conteúdo, por isso, faz-se necessário apontar a análise que ele mesmo

faz sobre essa relação na própria narrativa bíblica. É quando o tradutor faz essa relação ser

mais uma vez sentida, vivenciada e reconhecida pelo seu leitor que ele tradutor receberá

elogios por conseguir atingir esse desafio nada simples e nem sempre possível de se alcançar.

Na segunda parte do ensaio, Rosenzweig define, primeiramente, um dos motivos pelos

quais alguém conta uma história. O primeiro motivo é quando alguém narra algum fato que

acabou de acontecer, portanto algo de um passado recente, pois aquilo é algo ainda não

conhecido e que a pessoa que ouve o recado precisa saber, pois diz respeito diretamente a sua

vida e saber desse fato ou não poderia, inclusive, mudar seu destino. A transmissão dessa

história deve ocorrer logo após o evento narrado, sob o risco de outro narrador se antecipar,

fazê-lo antes, ou da notícia perder a importância (idem, p. 819). Nesse caso, três são as

características principais desse tipo de narrativa: necessidade, naturalidade e presença tanto no

tempo do narrador quanto do ouvinte. Nessa situação, não há como o ouvinte fazer muito

mais que ouvir, pois ele não conseguirá reverter a situação narrada. Apesar disso, este

despende atenção especial naturalmente, não precisa ser estimulado com algum meio artificial

(idem). Um exemplo apontado por ele disso é um mensageiro de uma catástrofe na tragédia

clássica.

Há também aquele narrador que conta uma história pelo amor por contá-la, e aqueles

que ouvem meramente por prazer. Para isso, conta com o uso de artifícios que vão despertar a

emoção. Nesse caso, o ouvinte não está sendo reportado a um passado de um evento

24

imediatamente precedente, nem para o passado do seu presente, mas sim a um passado

ilusório e ficcional (ibidem, p. 820-821). Um dos recursos utilizado pelo narrador é este dizer

que foi uma “testemunha ocular do que relata”, portanto suas histórias, nessa situação, teriam

como referência um passado não muito distante, para garantir a verossimilhança externa

(idem)18.

À terceira parte do ensaio pertence a descrição de outra forma de narrativa: quando em

resposta a um ouvinte conta-se uma história de um passado muito remoto, com o desejo de

ensinar algo de maneira sutil. O ouvinte, que espera ansiosamente por uma resposta ouve o

narrador atentamente, já que aquela narrativa representa uma resposta a uma pergunta, a um

estímulo (ibidem, p. 820-822). Esse tipo de narrativa sempre quer dizer algo além da

seqüência dos fatos, tem um desfecho e uma conclusão. Esse desfecho servirá como um novo

estímulo que pede resposta àquele ouvinte. Porém, Rosenzweig observa que também nessa

forma narrativa, assim como na primeira forma descrita como narrativa natural e necessária,

há uma interrupção de um suposto diálogo, já que um pergunta, outro responde e aquele não

introduz mais uma resposta ao estímulo oferecido (idem). Há, portanto, uma lógica de

resposta, mas não de contra-resposta ou pergunta.

A forma narrativa bíblica, segundo Rosenzweig, não se enquadraria em nenhuma das

duas primeiras definições, pois nem quer deslocar o ouvinte para um passado ilusório, não

quer romper a ligação com o seu presente, nem quer tê-lo apenas como ouvinte apagado e sem

(contra-) ação. Também não se enquadraria na terceira, pois, mesmo que a narrativa bíblica

fale ao homem, é ele que precisa evocar o ensinamento (idem). Essa forma de narrativa deseja

que o ouvinte escute com atenção e que pense em seu presente atual, pois a história poderia

dizer respeito ao próprio ouvinte em suas condições reais e atuais. Isso poderia ser

característica da primeira forma narrativa descrita, porém com a retificação da questão

temporal do narrador e do ouvinte, pois não tem importância quando se dá a história bíblica

ou se ela de fato aconteceu. O importante é que a narrativa provoque algum efeito no presente

imediato do ouvinte (ibidem, p. 821). Por esse motivo, há a abertura ao diálogo com o

ouvinte, a quem será revelado e ensinado algo.

18 O caso dos épicos, ou romances (na definição como empregada aqui, seriam sinônimos), históricos é apontado por Rosenzeig como casos de exceção, com especificidades diversas (RPSENZWEIG, 1984 (1928), p. 819).

25

Na quarta parte do ensaio, Rosenzweig retoma a questão da forma e do conteúdo

intrinsecamente envolvidos. Ele dá alguns exemplos de passagens da Escritura que

apresentam uma forma que permitiria tanto a mensagem reveladora quanto o ensinamento que

foi solicitado pelo homem. Uma das passagens bíblicas que Rosenzweig (ibidem, p. 823)

analisa é da narrativa sobre Jacó – filho mais novo de Abraão, que se faz passar por Esaú,

para receber do pai a benção dada somente ao filho mais velho. Abraão menciona a palavra

“trapaça” ao reconhecer Esaú posteriormente. Esse seria um estímulo que o leitor, tanto da

Escritura em hebraico, quanto da tradução que mantivesse a característica formal, poderia

reconhecer em alguns capítulos adiante, no qual aparece Jacó a trabalhar por sete anos para

Labão para poder se casar com a filha Rahel, porém no final desse período, Labão lhe oferece

outra filha para casar com ele; mas, com a condição de que trabalharia mais sete anos, Labão

permitiria o casamento com Rahel. Jacó submete-se a esse trabalho, apesar de desconcertado

com a quebra da promessa original de Labão, e em uma conversa com ele, Jacó o questiona e

usa a palavra “trapacear” (idem). Assim, o leitor pode observar a relação formal e de conteúdo

entre essas duas passagens e recupera a passagem anterior. Na narrativa, um estímulo foi dado

na voz de Abraão, que fora enganado, e depois Jacó sofre a traição. Portanto, não há um

ensinamento didatizado na Escritura hebraica, pois este pode ser apreendido pelo leitor.

Portanto, a narrativa bíblica age no presente imediato do momento da leitura, que é quando o

leitor solicita o ensinamento e ao mesmo tempo o interpreta; assim, apesar de possuir sua

temporalidade, a narrativa também tem a característica de eternidade, já que a cada leitura

essa relação se refaz.

Essas duas propriedades que parecem ser contraditórias compõem a metáfora da

revelação no judaísmo clássico, que consiste na revelação divina que ocorreu na criação da

natureza e do homem, e que precisa ser rememorada a todo instante e estápresente em cada

ação humana, para que se mantenha sempre a esperança do alcance da redenção. Essa

metáfora aplicada ao conceito judaico de significação pode tanto nos remeter à forma

interpretativa rabínico-judaica, na qual não é valorizada apenas uma das interpretações do

texto, e a uma concepção de tradução que pode ser vista como fruto dessa tradição, na qual o

tradutor tem o dever de revelar a voz do outro no seu presente (marcação temporal que é

sempre atualizada, e, portanto, acaba por eternizar o dever dessa tarefa). Uma interpretação ou

uma tradução é resposta ao texto de partida, que posteriormente se concretiza como estímulo,

ao leitor do presente, e como promessa de presença, às gerações futuras.

26

Na última parte do ensaio, Rosenzweig considera não restrita à Escritura uma forma

reveladora e consciente, pois se a metáfora da revelação compreende em si a concepção

judaica de significação. Essa característica está presente, portanto, em outros textos. Porém,

parece que na narrativa bíblica essa recorrência formal torna-se mais evidente, já que é muito

fácil encontrar nesse caso um elemento que venha a se repetir, constituindo esse recurso

formal (ibidem, p. 827). Isso torna a Bíblia um livro muito importante pela sua capacidade de

suscitar interação com o leitor. Diante disso, Rosenzweig não quer considerar esse livro como

o mais bonito, profundo, verdadeiro ou sábio, pois atribuir uma dessas características seria

contar com a disposição e inclinação espiritual ou religiosa do leitor; de todo modo, este

poderá sim, nem que por conta de seu valor histórico, considerar a relevância da Escritura

(ibidem, p. 828).

Assim, é fundamental a voz da narrativa bíblica despertar resposta, seja em que língua

for. A narrativa não se estrutura, portanto, como um monólogo, mas incorpora elementos do

diálogo e da compreensão da existência de um outro para o qual se narra, para o qual se

traduz a voz de alguém. Desta maneira, a importância de uma alternância entre questão e

resposta, entre tese e antítese. Essa é o princípio da forma narrativa bíblica19 (ibidem, p. 829)

e de sua respectiva tradução. Para Rosenzweig, a mera descrição dos acontecimentos não

atingiria o cumprimento desse princípio (idem).

Quando os salmos são falados em oração, quando as leis são seguidas, quando as

profecias são acreditadas, o homem responde ao estímulo da Escritura. Para Rosenzweig, as

características da narrativa bíblica, da unicidade e recorrência de termos-guias, chamam o

leitor para um diálogo circular, que não cessa. É um diálogo entre o homem que escuta e Deus

que ouve, entre Deus que fala e o homem escuta e, mais que tudo, um diálogo entre os

homens e suas experiências e buscas para encontrarem a redenção através da revelação

(idem).

O ouvinte é despertado, através da narrativa, a ter o princípio do amor e da esperança.

Por isso a busca incessante pelo conhecimento dos ensinamentos da Escritura e o dever de

transmitir e buscar travar diálogos em torno das questões lá presente. O diálogo é despertado

19 Lembremos que, como Rosenzweig assevera, a característica da oralidade e do princípio de interesse em promover uma resposta também é característico de outros gêneros presentes na Escritura, como é o caso dos Salmos, do discurso dos profetas, da análise da lei. Porém, nesses outros casos, tal princípio não aparece com tanto vigor como ocorre na narrativa bíblica (idem, p. 829).

27

no leitor como um ato de amor e de esperança, e isso só é possível por ser a narrativa bíblica

um misto da forma anedótica e ensinamento com uma história de um passado distante, pois

assim é promovido um distanciamento necessário para que a resposta e o diálogo, em última

análise, ocorram (idem). Rosenzweig sintetiza essa relação circular, na qual a Escritura

oferece a seus leitores conhecimento, ensinamento e revelação, e esses leitores são os que a

revelam nesse ato de amor, de esperança e diálogo.

28

Capítulo 2 - A dimensão ética no pensamento tradutório de Franz Rosenzweig

A discussão sobre ética na tradução tem ganhado cada vez mais espaço nos Estudos da

Tradução. Cada vez mais estudiosos e pensadores sentem-se instigados em discutir sobre a

questão. Porém há mais de uma forma de abordar esse assunto. O teórico da tradução Andrew

Chesterman dividiu em quatro categorias as possibilidades de abordar a ética na tradução: a)

ética de representação, que se refere à relação do tradutor com o autor do texto de partida, ou

com esse próprio texto; b) ética da prestação de serviço, a do tradutor para com o

cumprimento do acordo com o cliente ou iniciador da tradução; c) ética de comunicação, que

tem uma acepção mais filosófica e que está pautada pelo sentimento de alteridade do tradutor;

d) ética da das normas de conduta, que representa ou cumprimento o não às regras de caráter

instrumental estabelecidas previamente (PYM, 2001, p. 130). Ou seja, a ética do

compromisso estaria presente em todas as categorias e seria o que justificaria a motivação do

tradutor e as suas escolhas durante o ato de traduzir (idem).

Porém, é claro que uma classificação estanque como essa não conseguiria dar conta de

todas as modalidades do debate que se diz ser sobre ética, mas já apresenta a ideia de que

existem discussões que apresentam diferentes tipos de pressupostos.

As discussões, por exemplo, que partem de noções como fidelidade ou equivalência

linguística poderiam ter resultado em uma “ética da equivalência”, porém essas, que possuem

este determinado tipo de princípios articuladores (fidelidade e equivalência), vêm perdendo

espaço por uma tendência de se compreender a tradução em suas diversas dimensões que não

só a linguística – porém, não é possível dizer um ano exato para esse acontecimento, visto que

se trata de um processo, e que ainda há pessoas que sentem necessidade, de discutir tradução

nesses termos. Com essa tendência, o questionamento sobre a consistência desses

pressupostos e o desinteresse por essa pesquisa pouco abrangente motivaram outros formatos

de trabalhos sobre a tradução.

Ao considerar o contexto de Rosenzweig, que traduziu sempre do hebraico, ou mais

especificamente das palavras antigas judaicas, para o alemão, com a finalidade de oferecer à

comunidade judaica, que viveu durante muito tempo no isolamento, ou que,

29

contemporaneamente a ele, começava a abandonar quase que completamente a tradição para

adequar-se à cultura européia ocidental, uma nova possibilidade de entrada na sua própria

cultura e tradição renovadas. Trata-se, assim, de traduções que sem sombra de dúvidas

clamariam a atenção do leitor que espera ouvir algo novo (renovado).

Rosenzweig, apesar de pensar no outro quando traduz, não pretendeu em sua reflexão

teórica da tradução desenvolver um tratado sobre ética na tradução. Seu pensamento

tradutório não aparece de forma sistematizada na sua obra, nem nos seus textos que abordam

o assunto. Mesmo assim, a partir da análise dos três textos privilegiados por esse trabalho, são

reconhecidos diversos elementos que apontam para a presença de uma dimensão ética no

pensamento tradutório de Rosenzweig. Para ele a tradução é uma necessidade, um dever, uma

tarefa que pretende a revelação de um outro enquanto outro. Além disso, tradução também é,

para ele, estímulo para o leitor e resposta do tradutor ao texto de partida.

Portanto, suas observações sobre tradução sempre estão baseadas no interesse pelo

diálogo entre tradições, culturas, línguas, pessoas. Porém esse diálogo não se dá de forma

ideal. Ele usa a metáfora do judaísmo clássico revelação, que compreende a imediatidade de

um certo resultado no presente da ação e, ao mesmo tempo, a eternidade do processo e da

seqüência de experiências. Além disso, está inserido na tradição da qual se originou o modo

de interpretação judaico-rabínica, que não privilegia apenas uma das anotações de um

estudioso rabino que procurou, na sua época e espaço, compreender certa passagem bíblica.

Deste modo, Rosenzweig entende também uma tradução como algo necessário que não atinge

o ideal teórico de representar igualmente a voz do texto de partida, pois nem ele mesmo atinge

uma compreensão ideal por parte do leitor. Portanto, quando se considera a pluralidade, cada

manifestação na direção do encontro entre as culturas já seria uma tentativa válida.

O filosofo contemporâneo americano Robert Gibbs (GIBBS, 2000) propôs questionar

a questão da ética em seu livro Why ethics?: Signs of Responsibilities não a partir da filosofia

tradicional ocidental, que representa, para ele, um monólogo no qual o orador propõe diversas

questões e que é ele próprio que as responde, mas sim a partir de uma filosofia que não dê a

resposta, mas que suscite as respostas possíveis através da experiência com o outro num jogo

de estímulos e respostas. Com esse propósito, Gibbs elege discutir diversos atos humanos que

propiciam a experiência, como ouvir, falar, escrever, ler, comentar, julgar, perdoar, e também

30

traduzir, a partir de alguns filósofos de origem judaica, entre eles Benjamin, Cohen, Derrida,

Rosenzweig e Levinas.

Portanto, para Gibbs, a ética teria como tema central a responsabilidade, no sentido de

respostas contínuas a estímulos, sem, no entanto, procurar valorar cada uma dessas respostas.

Na filosofia tradicional ocidental, a responsabilidade é assimétrica (ibidem, p. 4). Assim,

considerar a tradição judaica também foi uma forma de responder a quem solicitava resposta.

A resposta, e portanto a atenção especial a alguém, pode se dar de diversas maneiras. No

desenvolvimento de seu argumento, ele faz um levantamento das diversas práticas que são

realizadas através dos signos (ouvir, falar, escrever, ler, traduzir, julgar, confessar, arrepender-

se, perdoar, rememorar). No momento em que ele fala sobre o porquê da tradução, ele

apresenta o “novo pensamento” de Rosenzweig (ibidem, p. 286-290), que integra o seu

sistema filosófico na obra A Estrela da Redenção. O fundamento desta obra está numa

filosofia que é realizada através da vivência e da experiência pessoal, que são ambas marcas

do tempo e do espaço em que isso ocorre. Trata-se, assim, da busca pelo diálogo, pela

resposta e pelo convívio com o outro, e que essas tentativas se façam de maneira responsável

para que a experiência construtiva possa se concretizar. Esse pensamento teve uma grande

influência nas reflexões de Rosenzweig sobre a linguagem e também sobre tradução (idem).

Mas não é apenas no seu “novo pensamento” que é possível reconhecer elementos que

favorecem essa construção de definição de uma dimensão ética fundada na condição da

responsabilidade, Nas observações aos poemas de Jehuda Halevi, também. Quando

Rosenzweig opta por traduzir os poemas e hinos religiosos, mesmo já havendo outras

traduções correntes em alemão, ele busca dar uma resposta nova ao texto e quer promover a

interação do novo texto, ou seja, da tradução com o leitor e com a tradução anterior. Para criar

o distanciamento necessário para a apreciação e resposta ao estímulo, o leitor terá que ter

contato com palavras vivas que clamam por atenção, interpretação e resposta. Rosenweig

narrou em posfácio de sua autoria às traduções que ele manteve a característica formal que

estava intimamente ligada ao conteúdo e a característica estrangeira do texto. Para cumprir

com o seu propósito, na sua tradução em alemão ele coloca características do hebraico.

No ensaio “O segredo da forma narrativa bíblica”, Rosenzweig descreveu e

exemplificou elementos que definem esta forma narrativa, como a recorrência de palavras,

ideias ou expressões, que faz o leitor retomar a história anteriormente acontecida. Portanto,

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levar às últimas consequências uma tradução que privilegia o conteúdo religioso, em

desatenção a forma, não cumpriria a intenção dessas palavras-motivadoras que chegam até o

leitor como uma história de um passado remoto, mas que clama por repercutir na sua própria

vida presente. Assim, mais uma vez a tradução clamaria por resposta a cada leitura, pois

quando o leitor entrar em contato novamente com a Escritura ele sofre influência do que

procura e pede em seu tempo presente. Desta maneira, tanto um novo contato com o texto,

seja por outro leitor seja por outro tradutor, oferece outra possibilidade de resposta a ele.

Assim, considera-se a pluralidade de leituras e de traduções.

Depois da tentativa frustrada de Buber e Rosenzweig de fazer uma revisão das

traduções já existentes da Escritura, este escreveu um artigo para explicar os motivos do

insucesso. Parece lógica a consideração de que unificar a forma narrativa da Bíblia, e também

de outros “gêneros” nela presentes, como fez em certa medida Lutero, não seria a melhor

estratégia para Rosenzweig que gostaria de promover, através da narrativa de um passado

distante, o estímulo para a resposta para suprir uma necessidade imediata do homem. O

tradutor está entre os dois senhores e como ele não consegue, ao mesmo tempo, servir aos

dois, na prática ele precisa fazer uma escolha que ao menos não invalide ou apague um dos

dois. Em conformidade com a pretensão de Rosenzweig de tentar estabelecer o convívio e o

diálogo ente os dois senhores, o tradutor não se sente à vontade em simplesmente traduzir

para a língua de um dos senhores. Este não conseguiria compreender que se tratava de um

texto. Por isso, não podendo optar por uma língua ou outra, o tradutor cria uma nova língua

para resolver este embate.

É nessa nova língua que a tradução oferece que dimensão ética fica mais evidente ao

demonstrar que está servindo mais a um que a outro. Por isso, ele tenta equacionar essa

balança de um lado dando voz a um dos senhores em uma língua estrangeira e de outro essa

língua estrangeira, aqui pensada como a língua de partida, não pode ser soberana, por isso

Rosenzweig inclui nela marcas da língua do outro senhor.

Em última análise, a tradução serve para dizer algo que já foi dito, mas que ainda não

é conhecido pelo leitor, de maneira nova. Desta forma, o leitor tem a motivação para

responder e ele, por sua vez, também tem interesse por respostas a suas próprias

manifestações. A resposta que ele dá e o estímulo que ele vai provocar ocorrem para tentar

suprir as necessidades do seu presente imediato. Não se trata de repetir, portanto, as mesmas

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palavras da língua de partida em uma outra língua. Isso seria muito pouco e não suscitaria

resposta, pois o ouvinte não poderia ouvir com atenção a voz que o tradutor pretendeu

repassar, já que, como pode-se apreender da análise de Rosenzweig da narrativa bíblica e de

suas considerações sobre a importância da presença da língua de partida no produto da

tradução, o estranhamento pede disposição do leitor para reconhecer o outro, tentar conviver

com ele e dar-lhe algum tipo de resposta.

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4. Considerações finais

O pensamento tradutório de Franz Rosenzweig apresenta uma dimensão ética que

pode ser definida pelo compromisso do tradutor com o outro do texto de partida, a quem ele

ouve com cuidado e oferece resposta. Essa resposta é elaborada pelo tradutor de tal maneira

que permita a expressão da voz vivente e particular daquele texto, de outro indivíduo, que

escreveu em outra língua, que pertence a outro espaço, tempo, cultura. Toda fala ou escrita é

manifestada com algum propósito, o que o narrador quer quando conta uma história é ser

ouvido e suscitar alguma emoção ou reação no ouvinte. Não é diferente na tradução.

Da análise de três textos que foram contemplados neste trabalho, nos quais

Rosenzweig discute questões de tradução a partir de sua prática, foi possível observar o

interesse em ouvir o outro e oferecer-lhe uma resposta e, mais que isso, dar-lhe voz para

revelá-lo. O resultado do trabalho do tradutor será um texto que, da mesma forma, vai

solicitar ser lido e respondido, uma vez que é tanto a leitura quanto a resposta ao texto o que

concretiza a revelação.

Essa compreensão gera um movimento circular de jogo de estímulos e respostas. Ou

melhor, ela define uma situação mais complexa que essa, pois os eventos desse processo

ocorrem entre indivíduos distintos e em tempos e espaços diversos, e nem sempre causam os

mesmos resultados, já que se compreende a complexidade da tarefa tradutória. Portanto, não é

possível ter uma circunferência que toque em todos os pontos de contato de uma mesma

superfície plana. Essa dinâmica seria mais bem definida por uma linha curva que se desenrola,

de maneira irregular sobre a perspectiva de mais de um eixo e que tende ao infinito.

Mesmo com essa característica da eternidade da recorrência dos atos como a fala, a

escrita, a interpretação, a tradução, a comunicação, sempre na busca pelo diálogo ideal, que

não se concretiza no mundo real, esse modelo transmite um conforto já na tentativa, na busca,

no processo. Estabelecer como necessidade de traduzir, dever de todos, pode representar uma

esperança na concretização desse diálogo, e, ao mesmo tempo, uma conscientização de que na

prática se faz apenas o possível. A dimensão ética da reflexão de Rosenzweig reside na

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responsabilidade e na abertura para o diálogo, mesmo que ele não a venha acontecer de

maneira ideal.

Portanto, o pensamento tradutório de Rosenzweig aponta para questões que são

debatidas na prática de tradução, mas, por estar sob a influência da cultura judaica, à qual,

entre outras coisas, pertence a tradição de interpretação judaico-rabínica, a metáfora da

revelação, a tentativa de convívio desde muito tempo com outros povos e culturas (por conta

das diásporas), acaba por usar esses elementos estranhos que chegam até nós com o algo novo

e que merece atenção.

Então, apesar de esse tipo de abordagem não apresentar uma regra prática de como

traduzir – mesmo que Rosenzweig defenda a tradução não etnocêntrica e que mantenha viva a

língua do original e cause estranhamento –, ele nos permite refletir sobre a possibilidade

prática de dar voz ao outro de maneira responsável, de fazer com que esse outro conviva na

cultura e no contexto do texto de chegada e de fazer com que o leitor também conviva com

esse outro, com esse estrangeiro.

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