A DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA PÓS INTERMEDIAÇÃO … · trabalho do diretor de fotografia no cinema....
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL
DEPARTAMENTO DE CINEMA E VÍDEO
ANA CAROLINA CHERMAN PERDIGÃO DE OLIVEIRA
A DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA PÓS INTERMEDIAÇÃO DIGITAL:
As possibilidades e desafios da transição tecnológica
Niterói
2014
ANA CAROLINA CHERMAN PERDIGÃO DE OLIVEIRA
A DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA PÓS INTERMEDIAÇÃO DIGITAL:
As possibilidades e desafios da transição tecnológica
Projeto Experimental apresentado por Ana Carolina Cherman Perdigão de Oliveira, matrícula 109.57.025, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Cinema e Audiovisual.
Orientadora: Prof. Marina Tedesco
Niterói
2014
RESUMO
Este trabalho visa analisar as principais mudanças ocorridas na direção de fotografia brasileira
a partir do advento da intermediação digital. Através de uma reflexão história acerca das
manipulações fotográficas no processo fotoquímico, da descrição das ferramentas de
finalização digital disponíveis hoje, assim como de entrevistas com fotógrafos e coloristas,
esta monografia pretende compreender os avanços e retrocessos da nova tecnologia nos
campos metodológico, estético e das relações profissionais.
Palavras-chave: direção de fotografia, cinematografia, correção de cor, intermediação digital
AGRADECIMENTOS
À Nina Tedesco, pela orientação e carinho. Por acreditar em mim apesar das idas e vindas,
entre as inúmeras filmagens e projetos que me afastavam de escrever.
Aos entrevistados Mauro Pinheiro Jr, Affonso Beato, Ricardo Della Rosa e Fábio Souza pela
disponibilidade e gentileza em dedicar parte de seu tempo livre a essa troca de conhecimento
e experiências.
Ao João Luiz Vieira, Cezar Migliorin, Maurício Bragança, Mariana Baltar, Simplício Neto,
Fred Benevides, e demais professores da UFF, pelas aulas inesquecíveis que faziam a
travessia da ponte valer a pena. Um agradecimento especial a banca, Fernando Morais e
Elianne Ivo, pelo apoio e disponibilidade em plena Copa do Mundo.
Aos companheiros da UFF, pela inspiração, amizade e troca; que me ensinaram que
felizmente não se faz cinema sem grandes parceiros.
Ao meu irmão, por me respeitar e me incentivar sempre, apesar das nossas (grandes)
diferenças.
Ao meu pai, que me inspira a escrever, pelos conselhos e calma nos meus momentos de crise;
à Flávia, por reservar com carinho uma escrivaninha nesse lar de escritores.
À minha mãe, por ser mãe, amiga e leitora atenciosa. Por me amar acima de tudo, vibrar
sempre com minha felicidade e nunca me deixar desistir.
À todos os meus amigos, que são os melhores do mundo : pelo apoio, pelo carinho, pelas
risadas, pelo amor.
“Até mais, e obrigada pelos peixes!”
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .........................................................................................................................6
1. A FINALIZAÇÃO CINEMATOGRÁFICA NA ERA PRÉ-INTERMEDIAÇÃO DIGITAL
1.1 A cadeia fotoquímica ...............................................................................................9
1.2 As intervenções do fotógrafo na cadeia fotoquímica .............................................10
2. A FINALIZAÇÃO DIGITAL NO SÉCULO XXI : NOVAS FERRAMENTAS E POSSIBILIDADES
2.1 Breve Histórico ......................................................................................................17
2.2 Primeiras experiências no Brasil ............................................................................19
2.3 As ferramentas de correção de cor .........................................................................21
3. O FOTOGRAFO E A FINALIZAÇÃO DIGITAL :
NOVOS AGENTES, NOVAS FORMAS DE TRABALHAR …………………………...….33
CONSIDERAÇÕES FINAIS ………………………………………..………………...……..47
BIBLIOGRAFIA ………………………………………………………………...…………..49
ANEXO – Entrevistas ………………………...………………...……………………………50
6
INTRODUÇÃO
A indústria cinematográfica passa, atualmente, por um progressivo processo de
digitalização. Ao longo dos anos 90, desde as primeiras experiências em intermediação
digital1, o processo fotoquímico foi pouco a pouco sendo substituído pelo digital nas etapas de
produção, pós-produção e exibição cinematográfica.
Mas antes mesmo que a película fosse majoritariamente substituída por câmeras e
projetores digitais, o processo de intermediação digital se tornou padrão, ampliando
consideravelmente as possibilidades de criação e transformação da luz e cor no cinema. Este
processo teve repercussões no trabalho de quase todos os profissionais envolvidos com a
produção de filmes, sendo os fotógrafos especialmente afetados.
Ainda que o trabalho do diretor de fotografia nunca tenha se limitado a captação das
imagens durante as filmagens, e os processos laboratoriais de revelação e marcação de luz
ótica sempre tenham feito parte do processo criativo fotográfico, a correção de cor digital
ampliou em muito as possibilidades de manipulação da imagem, abrindo caminho para novas
formas de fotografar.
O interesse para o estudo deste tema surgiu a partir do questionamento de como as
novas tecnologias digitais, recentes e já tão paradigmáticas na indústria, influenciam o
trabalho do diretor de fotografia no cinema. Este trabalho se justifica pela importância de
analisar a influência da finalização digital, como uma nova etapa histórica marcada por
mudanças no modo de produção, assim como na estética dos filmes contemporâneos.
A intenção de focar nas repercussões desta tecnologia no trabalho do fotógrafo, à
partir das relações estabelecidas desde a pré-produção até a finalização, pretende preencher
uma lacuna no campo do estudo cinematográfico brasileiro de investigação das suas próprias
experiências práticas de produção.
Percebemos, no estudo e ensino da fotografia cinematográfica contemporânea, uma
ausência do retorno do conhecimento prático adquirido a cada nova produção audiovisual,
principalmente no que diz respeito às novas tecnologias. Para uma nova geração de fotógrafos
e aspirantes, já formados em meio aos processos de correção de cor e finalização digital,
torna-se ainda mais importante entender as mudanças propiciadas por esses processos, as
novas possibilidades estéticas, assim como abandono de algumas práticas fotográficas (e suas
possíveis consequências a curto e longo prazo).
1 Processo pelo qual a película cinematográfica passa por um scanner de alta definição para digitalização e tratamento digital, posteriormente sendo impressa de volta em negativo para a reprodução e projeção.
7
O estudo mais aprofundado desta passagem tecnológica na práxis cinematográfica
também se justifica por permitir ir além de uma visão generalista da tecnologia, para entender
que sua influência repercute de formas diferentes de acordo com o contexto econômico-
cultural de cada produção e com as influências técnicas-estéticas de cada fotógrafo.
Para esta monografia, resolvi abordar a questão através do caso cinematográfico
brasileiro, ainda que o processo tenha se dado de forma semelhante em diversos outros países
do mundo. Me concentrei também no contexto de longa–metragens, exibidos em salas
comerciais, onde acredito que as possibilidades fotográficas das novas tecnologias sejam
apropriadas pelos fotógrafos com menor limitações orçamentárias (ainda que alguns filmes de
baixo-orçamento possam ser citados).
No primeiro capítulo do trabalho, apresento uma breve retrospectiva histórica de como
era feita a finalização fotoquímica no cinema pré-intermediação digital. Neste capítulo
identifico como se dava a intervenção do fotógrafo durante todo o processo de produção, da
escolha da película à revelação, no método que prevaleceu no cinema por quase todo o século
XX.
No segundo, introduzo o processo de intermediação digital, das primeiras experiências
à chegada no Brasil, assim como o processo atual. Farei também um breve resumo das
ferramentas de correção de cor disponíveis, como elas são operadas, e até onde podem atuar
na imagem. Partindo de um workflow híbrido2, comum a maioria dos filmes produzidos hoje,
busco explicar como a intervenção do fotógrafo e colorista ocorre no momento da pós-
produção. Para isso, utilizarei o programa Da Vinci Resolve, disponível hoje tanto como
plataforma para suítes de correção quanto como software para uso doméstico 3 , para
exemplificar as ferramentas mais utilizadas na maioria dos programas.
Finalmente, no terceiro capítulo, discuto as principais mudanças no trabalho do
fotógrafo com a nova tecnologia. Investigo aqui as diferenças no processo de fotografar um
longa-metragem utilizando as ferramentas de finalização digital. O que mudou nas diversas
fases de um filme – preparação, filmagem, finalização ? Quais as novas possibilidades
estéticas e desafios técnicos oferecidos ao fotógrafo pelas novas ferramentas ? Qual a relação
que se estabelece entre fotógrafo, colorista e produtor ? Houve uma migração de
investimentos (de tempo e orçamento) da filmagem para a finalização? Existe perda de
importância ou de status do fotógrafo no processo atual? 2 Workflow híbrido: Cadeia cinematográfica em que se utiliza tanto a película (seja na captação ou na cópia final), quanto o digital (na captação, intermediação e/ou exibição). 3 Para exemplificação neste trabalho uso a versão Da Vinci Lite, disponível gratuitamente para download no site da Black Magic (http://www.blackmagicdesign.com/products/davinciresolve).
8
Fundamento essas respostas à partir de entrevistas realizadas com fotógrafos e
coloristas que vivenciaram em suas carreiras essa mudança de paradigma, aprendendo a lidar
com as novas possibilidades e desafios de forma construtiva e colaborativa. Através da análise
destas entrevistas, busco finalizar este capítulo com reflexões mais amplas sobre este novo
momento tecnológico, analisando também as tendências no trabalho do diretor de fotografia
no futuro próximo.
9
1. A FINALIZAÇÃO CINEMATOGRÁFICA NA ERA PRÉ-INTERMEDIAÇÃO DIGITAL
1.1 A cadeia fotoquímica
Até que as primeiras experiências com manipulação digital se tornassem viáveis e
tecnicamente equivalentes à qualidade exigida pela indústria cinematográfica, a finalização
fotoquímica permaneceu como o padrão ao longo de todo o final do século XX. As principais
etapas na cadeia de produção pouco mudaram inicialmente com o advento da intermediação
digital, que apenas acrescentaria uma etapa de manipulação digital no meio do processo, e
ainda servem como base conceitual mesmo para as cadeias totalmente digitais.
A cadeia fotoquímica se iniciava com a filmagem, ou seja, com a exposição da
película à luz através de uma câmera cinematográfica. A maioria dos longa-metragem de
ficção, à partir da década de 50, era filmada em negativos coloridos tripack, de diferentes
sensibilidades, que ofereciam uma grande latitude de exposição e boa reprodução das cores4.
O filme exposto era então levado ao laboratório onde seria revelado de acordo com as
recomendações do fotógrafo.
Após revelado o negativo, o laboratório gerava, inicialmente, o chamado copião,
primeira cópia utilizada para visualização do material captado pelo diretor, diretor de
fotografia, diretor de arte, e demais membros da equipe. Era à partir desta cópia que o filme
seria montado, enquanto o negativo original era arquivado no laboratório. A montagem era
feita na mesa de montagem (que ficou popularmente conhecida pelo nome de sua principal
marca Moviola), onde os montadores manipulavam fisicamente a película, cortando e
emendando os planos do filme.
A edição manual na mesa de montagem foi substituída nos anos 90 pela digital em
computadores. Podemos considerar, a princípio, a montagem não-linear digital como a
precursora da intermediação digital, ainda que ela fosse neste momento incompleta. O digital
era apenas um meio facilitador, já que a película era digitalizada em telecines de baixa
qualidade, que serviam apenas como referência para montagem. Após montado o filme
digitalmente, o copião era conformado através de uma EDL (Edit Decision List, ou Lista de
Decisão de Edição), para finalmente o negativo original ser montado. 4 Era possível também filmar em películas positivas (reversíveis) e em películas preto-e-branco, mais utilizadas para televisão ou documentário. Ainda que desde a década de 30, já fosse possível filmar em negativos coloridos Technicolor, o preto-e-branco perdeu realmente a importância após a introdução dos negativos tripack de única emulsão, muito mais sensíveis, mais práticos e com cores mais fiéis do que o processo Technicolor. À partir das décadas de 50/60, o uso do preto-e-branco se restrigiu à documentários, alguns programas de televisão e filmes de arte.
10
Imagem 1 - Moviola Prevost
Fonte: Site Cinema Web5
Seja no método tradicional da moviola ou no método digital, o produto ao final da
montagem era a película original montada6, que daria origem à todas as cópias do filme.
Neste momento era realizado o processo de marcação de luz ótica, onde o negativo passava
por uma máquina com vidro despolido iluminado e o fotógrafo escolhia junto ao colorista o
ajuste da luz de copiagem (entre os componentes vermelho, verde e azul) para cada plano ou
cena. Este ajuste era anotado e utilizado para gerar a cópia zero, e sendo esta aprovada,
serviria de base para todas as cópias do filme.
1.2 As intervenções do fotógrafo na cadeia fotoquímica
1.2.1 A escolha do negativo
A escolha do negativo talvez fosse na cadeia fotoquímica a primeira escolha estética
do fotógrafo. Antes do surgimento da intermediação digital, havia uma maior diversidade de
5 Disponível em: http://cinema.web-libero.it. Acesso em abril/2014. 6 O processo mais seguro contaria também com a fabricação de um interpositivo e de um internegativo, à partir do qual seriam feitas as cópias. Apesar de recomendável para a preservação da película original, no Brasil alguns filmes pulavam esta etapa por limitações orçamentárias.
11
películas no mercado. Na década de 90, o fotógrafo tinha a sua disponibilidade negativos
Kodak, Fuji e Agfa, de diferentes sensibilidades, cada um com suas particularidades.
Normalmente, antes da escolha final da emulsão, o fotógrafo realizava diversos testes
com as possíveis películas a serem utilizadas em diferentes condições de luz, cenário, figurino
e maquiagem do filme. Cada emulsão possui características específicas de latitude, contraste,
cor, além de serem preparadas para o uso em luz do dia (Daylight) ou fontes de luz
Tungstênio. Elas também podem reagir de forma diferente a diferentes tipos de revelação e
manipulação.
Ricardo Della Rosa (2014) explica que isso perdeu o interesse à partir do DI7: Porque a película tem uma etapa a mais, mesmo que seja a finalização digital. (…) você não faz isso numa Alexa, você só tem o Log C, sempre vai ter aquela latitude. Tem negativo, sei lá, que a latitude é mínima. Então já vem contrastado pra caramba. Apesar que a evolução do negativo também foi voltada pra isso, mais latitude, mais latitude. Tem isso. É muito mais interessante pra todo mundo, você ter a informação do todo e decidir o que você quer depois.
1.2.3 Tratamentos especiais no laboratório
O processo de revelação dos negativos e cópias também tem na cadeia inteiramente
analógica uma função importante na impressão do estilo fotográfico do filme. Cada emulsão
possui como base as químicas e procedimentos de revelação recomendados para garantir seu
melhor aproveitamento. Ao modificar esse procedimento padrão, é possível, entretanto, obter
uma alteração considerável de contraste, apresentação de cores e textura (grão).
7 DI: Digital Intermediate, termo inglês para Intermediação Digital.
Imagem 2 – Exemplo de processamento usual da película na cadeia fotoquímica.
12
Fonte: Kodak Education8
Por conta disso, os fotógrafos sempre se interessaram em pesquisar, em conjunto com
os laboratórios, o uso de procedimentos especiais de revelação que permitissem desenvolver
novos looks, indo de encontro com o estilo de cada projeto. Para Mauro Pinheiro Jr., essa era
a principal ferramenta do fotógrafo para não “ficar na mão da Kodak”, principalmente no caso
das filmagens em exterior. (PINHEIRO, 2014). Ele cita em entrevista, o processo de
experimentação laboratorial de seu primeiro longa-metragem Cinema, Aspirinas e Urubus
(Marcelo Gomes, 2005): Eu fui pro Sertão, com o Marcelo, a gente foi ver locação, aí eu levei minha Bolex, com reversível e negativo, levei uns 30 rolos de negativo, sei lá, na época era um 250 ASA e um 50 ASA rebobinados nas bobinas de câmera fotográfica. Aí tirei 4 filmes na viagem inteira, com 3 exposições cada foto. E tirei 20 filmes, de menos 4 até mais 4, de 3 situações, que eu parei na viagem pra fotografar, e comecei a fazer essa pesquisa. Mandei pro laboratório e falei “um revela normal, um revela puxando, um sub-revela”. Aí a gente via esse material e eu falava “Marcelo, gostei muito desse contraste, mas gostei da saturação daquele, que que a gente faz? Você gosta assim também?” e ele “É, acho que pode ser bacana isso”. Aí a gente ligava pra Marta Reis, na Mega, e falava “Marta, é o seguinte: o contraste do puxado foi legal, mas ele ficou muito saturado, a dessaturação do revelado é boa, então vamos tentar um bleach de 2/3?”, “Aonde? Na revelação ou no internegativo?” Aí a gente revelou 10, 15 rolos, cada rolo de uma maneira diferente.até a gente chegar em um e falar “esse a gente gostou”. E o que a gente gostou era exposição +2, e um internegativo de 2/3 de bleach. E aí a gente pegou aqueles 4 rolos que eu tinha feito da viagem inteira, das casas, das pessoas, e revelou neste processo que a gente escolheu.
Dentro dos processos laboratoriais mais utilizados estão:
a) Revelação Puxada ou Rebaixada
A revelação puxada é uma técnica muito utilizada quando se precisa expor um
negativo de determinada ISO a uma condição de luz inferior à recomendada. Podemos, por
exemplo, expor um negativo ISO 500 à ISO 1000 ou 2000. Para isso, o laboratório super-
revela o filme, aumentando o tempo do banho revelador. Este processo, além de compensar a
subexposição, altera as características normais do filme, diminuindo a latitude e aumentando
o grão e o contraste consideravelmente. Ele pode ser usado em apenas alguns rolos do filme,
quando o fotógrafo não dispõe da emulsão de sensibilidade necessária, mas também como
uma opção estilística, no filme inteiro ou em sequências pré-determinas.
O inverso desse processo, ou seja, a revelação rebaixada é utilizada para aumentar a
latitude da película, diminuir o contraste e obter um resultado mais limpo, menos granulado.
8 Disponível em: http://motion.kodak.com/motion/Education/. Acesso em abril/2014.
13
Com a evolução na qualidade e definição das películas mais modernas, esta revelação passou
a ser muito pouco utilizada.
Ambos os processos, apesar de simples, alteram o fluxo automático de revelação no
laboratório, e aumentam os riscos de erros, apresentando portanto um custo maior do que o da
revelação comum. Por conta disso, foram praticamente abandonados à partir da intermediação
digital.
b) Revelação Bleach Bypass (ou sem branqueamento)
O bleach bypass consiste em pular o banho branqueador do processamento, fazendo
com que o filme mantenha o grão de prata acoplado ao pigmento cromógeno da película.
Como resultado, se obtém um filme muito mais contrastado e granulado, com um aumento da
saturação das cores primárias e desaturação dos meio-tons. O resultado final pode ser bem
intenso, e por isso o fotógrafo realiza vários testes com o negativo, nas condições de luz e
exposição que se pretende utilizar.
Na década de 90 este procedimento se popularizou bastante e os laboratórios
desenvolveram técnicas para realizar o branqueamento parcial, já que o bleach bypass por
completo era muitas vezes bastante radical. Outros procedimentos de retenção da prata
também foram desenvolvidos, como o ENR9, que acrescentava uma segunda revelação com
químicos para película preto-e-branco na cópia positiva. O resultado era parecido com o
bleach bypass, porém era possível obter resultados mais sutis e controlados, e com maiores
nuances nas áreas de sombra. Como a retenção da prata era feita nas cópias, isso gerava um
aumento considerável nos custos de laboratório, indesejável na maioria das produções. Outro
problema era que mesmo buscando uma escala gradativa e comparativa do sistema, muitas
vezes uma cópia ficava diferente da outra (ainda mais cópias realizadas em laboratórios de
regiões diferentes), comprometendo a coerência estilística do filme.
As cópias em processo bleach bypass também apresentam uma questão para a
preservação cinematográfica. A não retensão da prata diminui bastante o tempo de vida do
material sensível. Essa particularidade se torna ainda mais grave no caso de filmes em que o
processo é utilizado diretamente no negativo original.
Um grande exemplo de bleach bypass utilizado no Brasil foi o filme Madame Satã
(Karim Ainouz, Brasil, 2002) fotografado por Walter Carvalho. Foram realizados uma série
9 ENR: iniciais do laboratorista Ernesto Novelli Rimo, da Technicolor Rome, responsável pela criação deste processo de retenção de prata à pedido de Vittorio Storaro.
14
de testes para descobrir qual seria o melhor processo de revelação a ser utilizado. Walter
ousou ao adotar o bleach bypass integral no negativo, mesmo que por conta disso tivesse que
refilmar algumas cenas (SOUZA, 2014). Dessa forma, ele garantia uma fotografia com pretos
profundos e cores desaturadas, de forma mais vibrante do que quando feito na revelação das
cópias10.
Imagem 3 - Frame de Madame Satã, com revelação bleach bypass em todo o negativo.
Fonte: Print screen elaborado pela autora.
c) Flashagem
A flashagem ou pre-flashing é o processo pelo qual se expõe a película a uma
quantidade homogênea de luz, anteriormente a sua exposição normal na câmera. Esta pré-
exposição da película faz com que o filme ganhe mais informação nas áreas de preto e reduz o
contraste geral da imagem (os pretos se tornam menos pretos, mais leitosos, acinzentados).
Como o contraste tem uma forte influência na percepção de definição da imagem, este
processo cria uma imagem mais doce, suavizada. Pode ser realizado com luz branca ou
colorida. Enquanto a branca só produz o efeito de diminuição do contraste e saturação, a luz
colorida pode dar uma tonalidade à imagem, em especial às zonas de sombra.
O pre-flashing pode ser realizado tanto em câmera (tanto a Arri quanto a Panavision
deselvolveram ao longo dos anos 80 e 90 acessórios para tal função), quanto em laboratório,
em ambiente controlado. De ambas as formas, sempre foi um procedimento arriscado, pois
10 AINOUZ, Karim. Entrevista concedida à Allen Frame, 2003.
15
nem todos os filmes reagiam da mesma forma e o risco só poderia ser avaliado após a
filmagem e revelação do filme. O processo foi especialmente utilizado em conjunto com o
bleach bypassing, que compensava seu efeito de diminuição do contraste, mantendo a
tonalidade diferenciada das sombras.
d) Revelação Cruzada
A revelação cruzada talvez seja o mais radical desses processos, tendo sido portanto
menos utilizada na cinematografia comercial. Ela consiste em revelar um película positiva
(como por exemplo o Kodak Ektachrome) pelo processo ECN-2, desenvolvido para a
revelação de negativos. O resultado é o aumento considerável do contraste e saturação da
imagem, assim como a distorção de algumas cores, que podem variar de acordo com a
temperatura de luz e exposição utilizadas. É muito comum a intensificação dos tons magentas
e cianos nas áreas de altas e baixas luzes.
Esta técnica, por ser bastante arriscada e muitas vezes apresentar efeitos inesperados,
exige uma série de testes de laboratório anteriores a filmagem e tem um alto custo de
produção. Seu efeito diferenciado e impactante, entretanto, fizeram que ela fosse bastante
copiada digitalmente com o advento da correção de cor digital.
Imagem 4 - Exemplo de negativo Kodak com revelação cruzada.
Fonte: Kodak11
11 Disponível em: http://www.kodak.com/global/en/service/tib/tib5200.shtml. Acesso em abril/2014.
16
c) A marcação de luz ótica
A marcação de luz ótica tem papel equivalente no processo inteiramente fotoquímico à
correção de cor no digital. Antes do advento da intermediação digital, era a única forma que o
fotógrafo possuía de equilibrar ou alterar as diversas condições de luz reveladas do negativo
para a cópia final.
No processo de marcação de luz tradicional, só é possível alterar o balanço de cores e
densidade da imagem através dos três canais primários de luz: vermelho, verde e azul. Não é
possível modificar uma região específica, cor ou mesmo alterar separadamente altas e baixas
luzes. Essa correção de base ficou posteriormente conhecida nas ferramentas digitais como
correção primária.
Os aparelhos de marcação, chamados de Color Analyzer possuem uma regulagem em
pontos, que vão de 1 a 50, e definem a percentagem de luz em cada canal de cor a ser
utilizado na copiadora. A cada 6 pontos, corrige-se o equivalente a um stop de luz. Após
alguns testes de marcação, quando a copia é finalmente aprovada pelo fotógrafo, o colorista
imprime uma lista com a pontuação de copiagem, que será utilizada para reproduzir todas as
cópias do filme.
Como a marcação de luz ótica oferece bem menos liberdade ao fotógrafo do que a
digital, menos elementos estéticos eram deixados para serem definidos na finalização. Ainda
assim, não podemos diminuir a importância desta ferramenta de manipulação fotográfica, já
que muitos filmes de estética inovadora foram realizados no passado servindo-se apenas desse
processo.
Até hoje, os filmes que são transferidos do digital para a película passam na hora da
cópia pelo processo de marcação de luz ótica. Como as imagens já foram tratadas
digitalmente, entretanto, a marcação é neutra, apenas garantindo a coerência das cópias.
17
Imagem 5 - Color Analyser da Filmstate
Fonte: Elaborada pela autora (Labocine, Rio de Janeiro).
2. A FINALIZAÇÃO DIGITAL NO SÉCULO XXI : NOVAS FERRAMENTAS E POSSIBILIDADES
2.1 Breve Histórico
Podemos considerar o advento do telecine, na década de 70, como precursor da
finalização digital e manipulação de cor cinematográfica. Neste primeiro momento, as
máquinas de telecine eram utilizadas para transformar o negativo filmado em sinais
eletrônicos de vídeo, e serviam apenas a produção de produtos comerciais e de teledifusão.
Era possível realizar pequenos ajustes de densidade de luz e temperatura de cor na máquina,
em tempo real. Ainda que a perda de qualidade no processo fosse grande, e as possibilidades
restritas a manipulação linear, algumas experiências criativas de alteração de cores no ramo
dos videoclipes e comerciais, instigaram diretores e fotógrafos ao seu futuro uso na cadeia
cinematográfica.
Com o surgimento dos programas de edição não-linear, no final da década de 80 e
início de 90, o telecine passou a servir a cadeia fílmica como intermediário. Os filmes eram
digitalizados e montados em softwares de edição, que geravam uma Edit Decision List (EDL).
Essa lista servia como guia para a montagem na moviola do negativo original. A correção de
cor no telecine, entretanto, continuava servindo apenas aos produtores de vídeo ou televisão.
Jack James (2005) comenta sobre este período: “Você via aqueles comerciais e clipes
18
absolutamente incríveis e isso deixava os caras do cinema, que não podiam fazer aquilo,
bastante invejosos”12.
Ao longo da década de 90, o desenvolvimento dos softwares de efeitos especiais e
CGI13 impulsionou a busca por um sistema de escaneamento do negativo que garantisse
qualidade para uma posterior reimpressão em película. Alguns filmes passariam a utilizar o
transfer em película apenas na sequências de efeitos, já que sua qualidade não era suficiente
ou era um processo caro demais para ser usado em todo o filme.
O lançamento da Cineon, da Kodak, em 1993 marcou uma nova fase na intermediação
digital. O sistema que englobava do scanner a máquina de transfer14, e já trabalhava com
resoluções de 2K15 e RGB 10 bit-log16, definiria por um bom tempo o padrão de qualidade em
intermediação digital. Ele havia sido resultado de uma ampla pesquisa da Kodak tanto na área
de scanner em CCD (charged-coupled devide) e gravação a laser em película, quanto no
desenvolvimento de espaços de cor compatíveis com o armazenamento da informação da
ampla latitude dos negativos17.
Em paralelo à Cineon, o aperfeiçoamento das máquinas de telecine apresentava
sistemas cada vez mais complexos de correção de cor. No final da década de 90, mesas de
correção como a Da Vinci e Pogol já eram acopladas às maquinas de telecine. Os telecines
também se desenvolviam chegando a produzir arquivos HD em tempo real. Faltava apenas a
combinação do processo de escaneamento logaritmo de negativos e o transfer com a
manipulação de cores já realizada nos telecines.
Em 1998, A vida em preto e branco (Pleasantville, de Gary Ross, Estados Unidos,
1998) foi o primeiro filme a ser inteiramente escaneado, processado digitalmente e reimpresso
em película. O filme, que narra a história de dois garotos que entram no mundo da televisão,
construía uma narrativa pautada na transformação do preto-e-branco em colorido, em apenas
algumas regiões da imagem. O processo entretanto, foi realizado plano a plano por artistas de
efeitos especiais, pois o workflow de DI por completo não estava perfeitamente amadurecido.
12 “You would see these absolutely incredible commercials and music vídeos and this made the film guys that couldn’t do this very jealous” , JAMES, 2005. (Tradução da autora.) 13 Sigla para Computer Generated Imagery, ou imagens geradas por computador. 14 Transfer: Impressão do arquivo digital para película. 15 2K: Termo genérico usado para resolução horizontal de imagem da ordem de 2 mil pixels. 16 Neste espaço de cor, cada canal (R, G e B) possui 10 bits log por pixel, ou seja, 1024 níveis de cor, ao invés de 256 no espaço de 8 bits. 17 As pesquisas da época indicaram que o negativo não deveria ser codificado em bits lineares, já que assim precisaria de 12 a 16 bits de cor, mas em bits logarítmicos, que respeitavam a curva sensitométrica natural da película.
19
O longa-metragem E aí, meu irmão, cadê você? (O Brother, Where Art Thou?, Irmãos
Cohen, Estados Unidos, 2000), foi finalmente o primeiro filme de Hollywood a ser tratado
inteiramente em DI. Ele utilizou o recém-desenvolvido scanner 2K Spirit Datacine e a estação
Pandora Mega-Def para a correção de cor.
O impacto de suas imagens causou uma verdadeira revolução na cinematografia
mundial. Diferente de outros casos, em que a manipulação digital havia sido utilizada como
ferramenta para os efeitos visuais, o filme possuía pouquíssimos efeitos, sendo o DI focado
essencialmente no tratamento de cor. Sua palheta de cores bem definida, trabalhava a pele
alaranjada em contraste com o céu azulado de uma forma nunca antes vista. O visual
marcante do filme incentivou diretores e fotógrafos pelo mundo a experimentar as novas
tecnologia.
Imagem 6 - Frame de E aí, meu irmão, cadê você? (Irmãos Cohen, 2000)
Fonte: Print screen elaborado pela autora.
Ao longo da primeira década dos anos 2000, houve uma imensa evolução nos
softwares de correção de cor. Em 2001, a Da Vinci lança em seu sistema o Power Grade e um
sistema de galeria que permitia arquivar stills de referência para correção de cor. Essas
ferramentas facilitavam muito a comparação de planos e estilos, agilizando a pós-produção.
Ainda em 2001, a empresa 5D desenvolve o software Colossus, especialmente para a
correção de cor da trilogia do Senhor dos Anéis. Esse software apresentava um sistema
inovador de correção de primárias e secundárias e foi posteriormente renomeado Lustre
(licenciado pela Autodesk). À partir de 2003, a Da Vinci correu atrás aprimorando seu
software Resolve e a Quantel lançando o Pablo. Os três sistemas citados, em conjunto com o
Assimilate Scratch e o Baselight, permaneceram como as principais suítes de correção de cor
no mercado cinematográfico.
20
2.2 Primeiras experiências no Brasil
A primeira experiência de longa-metragem com pós-produção inteiramente digital no
Brasil foi O Invasor (Beto Brant, Brasil, 2002). Devido ao baixo orçamento do filme, o
fotógrafo Toca Seabra optou por filmá-lo em Super 16mm e finalizá-lo em HD, para transfer
em 35mm. O digital lhe proporcionava uma melhor qualidade que a ampliação ótica em
35mm e permitia trabalhar com menos luz e criar os efeitos de cor desejados na finalização.
O filme foi todo telecinado em HD, em espaço de cor linear18. Na época, já se
reconhecia que este não era o workflow ideal para um filme com cópia final em película, mas
ainda era inviável no Brasil fazer de outra forma. José Augusto de Blasis, supervisor de
finalização na Mega, disse em entrevista à Sessão ABC (2002): “Nos EUA eles têm uma coisa que é o DATACINE - um telecine que converte a
imagem da película em dados, não em vídeo como o HD. Agora, fazer um longa
inteiro no Brasil com essa tecnologia é economicamente inviável. Eu acho que o HD
é o tamanho da possibilidade do Brasil e a gente tem que trabalhar com ele, pelo
menos por enquanto.”
Imagens 7a e 7b – Frames de O Invasor: Noturnas saturadas e esverdeadas e diurnas contrastadas e desaturadas (inspiradas no bleach by pass).
Fonte: Print screens elaborado pela autora.
O primeiro longa com finalização 2K no Brasil foi Casa de Areia (Andrucha
Waddington, Brasil, 2005), fotografado por Ricardo Della Rosa. Antes disso, ele já havia
finalizado Olga (Jayme Monjardim, Brasil, 2004) digitalmente, mas em HD. Ricardo comenta
que nesta época, o processo ainda estava numa fase de transição, em que se buscavam
resultados muito próximos do processo ótico:
18 Espaço de cor linear é o espaço de cor utilizado em vídeo e televisão, com curva de gama retilínea. Em cinema, é recomendável a utilização de um espaço de cor logarítimo, que respeite as características sensitométricas da película sem perda de informação.
21
Então, eu lembro que o desafio inicial na finalização digital era assim : “como é que a gente vai fazer um bleach by pass ?”, o processo sem branqueador... Como é que a gente simula isso digitalmente ? E aí a gente pensava, vamos fazer isso na película, e ai depois a gente vê aquilo que a gente quer. Eu cheguei a fazer testes, rodados em película, finalizados em película e depois filmados de novo e finalizados em digital para tentar reproduzir aquilo digitalmente. Então eu acho que o digital veio para simular tudo aquilo que o filme fazia : todo tipo de revelação, a alquimia toda que você tinha no laboratório, […] ai aparecerão novos técnicos, com ferramentas diferentes. Eram pessoas que vieram do photoshop, do mundo digital, com pouco conhecimento da parte química. Então esse início foi bem delicado. Porque você falava termos tipo « mais dois pontos de verde », que é uma linguagem do laboratório, « menos um de magenta » […] Você ia colocando gelatininha ponto a ponto no laboratório. Então quando você falava assim “põe quatro, menos dois” eles não entendiam… a velha geração muito mais do que eu já estava acostumada, mas eu também tinha alguma experiência com laboratório. O que acontece, quando a fotografia passou para o território digital, teoricamente, todo mundo acreditava que facilitou a fotografia. Que você faria a fotografia no telecine. Que você só tinha que imprimir ok, com informação, que depois você fazia tudo na marcação de cor. Porque até os coloristas vendiam isso… O que não era uma verdade. Cada vez mais é uma verdade, mas na época tinha muitas limitações, pelo menos no início aqui no Brasil. (DELLA ROSA, 2014)
Ainda que se acreditasse que era possível fazer de tudo com as novas ferramentas, os
softwares eram muito novos e as técnicas de correção pouco desenvolvidas. Ao longo da
década, a correção de cor evoluiu bastante, permitindo aos fotógrafos deixarem para a
finalização muitas manipulações de luz e cor que antes eram feitas na filmagem e revelação.
2.3 As ferramentas de correção de cor
Vivemos atualmente um momento verdadeiramente híbrido na produção
cinematográfica. Um longa-metragem, independente se foi captado em película ou câmeras
digitais, possui quase sempre um workflow híbrido, já que passa pela intermediação digital
(em que montagem e correção de cor serão feitas digitalmente) e é posteriormente distribuído
tanto em digital, quanto em película19.
Existe hoje uma série de ferramentas de correção de cor disponíveis, que se adaptam
aos mais variados workflows. Eles vão desde suítes completas de correção, presente nos
laboratórios, aos softwares mais leves de computador, para uso independente e doméstico.
Com tantos programas disponíveis (ex: Assilate Scratch, Lustre, Baselight, Da Vinci, etc),
fica a critério do colorista e da casa de finalização com quais eles preferem trabalhar e quais
se adaptam ao seu orçamento e equipamento.
19 Há uma tendência mundial de digitalização de toda a cadeia, já que cada vez menos filmes são rodados em película. Entretanto, ainda que captados digitalmente, muitos filmes são ainda transferidos para película, visto que o parque exibidor brasileiro ainda possui muitas salas sem projeção digital (ou com projeção de baixa qualidade).
22
Nos últimos anos, ocorreu um progressivo barateamento dos programas de correção de
cor. Hoje, fotógrafos e estudantes podem trabalhar suas imagens em softwares gratuitos em
seu computador pessoal, desde que esse possua alguns requisitos básicos de processamento, o
que facilitou o aprendizado e a entrada de novos profissionais autodidatas no mercado.
O grande diferencial das suítes de correção de cor das casas de finalização é que
possuem máquinas muito mais potentes, permitindo o trabalho com arquivos pesados (em
Raw, em 2K e 4K) em tempo real. Além disso possuem monitores e projetores calibrados e
hardwares de scopes profissionais (waveform 20 , vectorscope 21 e parade 22 ) ferramentas
essenciais para uma correção fidedigna e constante durante todo o processo.
Neste capítulo, utilizarei o software Da Vinci Resolve Lite, versão gratuita da Black
Magic, para exemplificar a maioria das ferramentas básicas utilizadas pelos coloristas, nos
principais softwares de color grading. Tenho como objetivo não a exposição e explicação
detalhada dessas ferramentas, mas a forma como são utilizadas cotidianamente e as
possibilidades oferecidas por elas aos coloristas e fotógrafos na manipulação criativa de suas
imagens.
2.3.1 Monitoração
Imagem 8 - Exemplo de sala de correção de cor: software de correção de cor, scopes e projetor de alta definição calibrado.
Fonte: Site do Twitch Post23
20 Gráfico de luminância usado para monitorar todas as partes do sinal de vídeo - amplitude (voltagem) no eixo vertical e tempo no eixo horizontal. 21 Gráfico circular de monitoração que exibe somente informações sobre a porção de crominância (cor) do sinal. 22 Gráfico semelhante ao waveform de luminância, porém divido entre os três canais de cor RGB. 23 Disponível em: http://www.twitchpost.com/2010/04/twitch-launches-new-grading-suite/. Acesso em maio/2014.
23
Antes mesmo de começar a correção de cor é preciso garantir que podemos confiar no
material visualizado na sala de correção. A sala de correção deve conter pintura e iluminação
neutra, e ficar o mais escura possível, simulando uma sala de exibição. As imagens devem ser
exibidas em monitores de vídeo ou projetores calibrados de acordo com o formato do produto
final desejado. No caso de obras a serem veiculadas no cinema, é essencial um projetor que
trabalhe em alta resolução (2K ou 4K) e em um espaço de cor compatível com o espaço CIE
XYZ do DCP (Digital Cinema Package)24.
As imagens brutas, sejam em formato DPX25 (vindas do escaneamento do negativo)
ou nos formatos RAW/Log C/etc (vindas de câmeras digitais profissionais) precisam passar
por um LUT26, antes de serem manipuladas. Ele é responsável pela conversão de espaços de
cor, necessária para monitorar da maneira correta, em um projetor digital (de espaço de cor
linear), a imagem que será impressa na película (logarítmica) ou empacotada para o cinema
digital (DCP).
Além de monitores calibrados, os coloristas utilizam os scopes para checar a correção
das imagens de forma objetiva. Eles são fundamentais para garantir, por exemplo, que o sinal
do material está dentro dos limites legais de preto, branco e saturação, definidos pelas
emissoras de TV. Além disso, servem como referência para garantir que o colorista não está
“acostumando o olhar” com certa estética e manipulando as imagens de forma cada vez mais
radical.
Apesar dos programas como o Da Vinci já possuirem scopes integrados, a maioria dos
coloristas prefere utilisar scopes externos de marcas confiáveis (ex: Tektronix, VideoTek,
OmniTek, etc) para análise. A vantagem dos scopes externos é que eles possuem processador
próprio e analisam a imagem em alta definição. Como os internos consomem muita energia
da máquina de correção, eles são quase sempre simplificados, ou seja, analisam uma a cada
duas ou quarto linhas da imagem. Além de serem imprecisos, eles podem apresentar atrasos
de visualização em relação ao playback, e não possibilitam a seleção de linhas específicas ou
zoom partes da imagem.
24 DCP: Formato padrão definido pelo DCI (Digital Cinema Initiatives) para empacotamento dos arquivos de imagem, som e data para exibição de Cinema Digital. 25 DPX: Formato de imagem, derivado do sistema Cineon da Kodak, utilizado hoje para intermediação digital e efeitos especiais. Ele representa a densidade de cada canal de cor de um negativo escaneado em modelo logarítimo sem compressão, preservando as características originais do negativo, e garantindo a flexibilidade necessária para o tratamento de cores. 26 LUT: Abreviação para o inglês Look-Up Table, ou tabela de visualização.
24
Imagem 9 - Exemplos de monitores de vídeo scopes Tektronix, com diversas funções de análise embutidas.
Fonte: Site Tektronix27
Para os fotógrafos, essas ferramentas garantem que seu produto está dentro dos limites
corretos para a exibição, mas são pouco relevantes do ponto de vista criativo. Na criação de
um estilo para o filme, eles precisam poder confiar na imagem visualizada na projeção. As
variações sutis de luminância, contraste, e saturação, e os limites subjetivos desses ajustes
muitas vezes só podem ser medidos visualmente, instintivamente, e variam muito de projeto
para projeto.
2.3.2 Correções Primárias
Correções primárias são aquelas que afetam a imagem por completo. São as correções
mais básicas de exposição, contraste, saturação, etc. Em geral, são os primeiros ajustes feitos
há uma imagem, visando corrigir possíveis erros de exposição e balanço de branco, equilibrar
planos dentro de uma sequência, ajustar o contraste etc.
No caso do Da Vinci Resolve, as ferramentas de correção primária ficam do lado
esquerdo da tela, dentro da aba Color, sendo a principal delas as Color Wheels.
27 Disponível em: http://www.tek.com/. Acesso em maio/2014.
25
Imagem 10 a e 10 b - Da Vinci Resolve 10 – aba Color - Color Wheels
Fonte: Elaborado pela autora.
Dentro das Color Wheels é possível fazer ajustes separadamente em três zonas: Lift
(baixas luzes), Gamma (médias) e Gain (altas luzes). No gráfico circular, Color Balance,
podemos corrigir desvios de cor presentes em qualquer uma dessas zonas, como por exemplo
no caso de um filme (ou preset digital) calibrado para luz tungstênio exposto a luz daylight
(azulada). Também é possível criar desvios propositais, como por exemplo dar um tom
azulado às baixas luzes, ao mesmo tempo que esquentamos (puxando para o amarelo) as altas.
26
O botão de rolamento horizontal, chamado de Master Wheel, é onde aumentamos ou
baixamos a luminância de cada uma dessas zonas. Um ajuste comum, principalmente quando
a tendência atual é de captar imagens com menos contraste (garantindo informação em todas
as zonas da imagem), é o aumento de contraste através da diminuição das baixas luzes e o
aumento das altas.
Imagem 11 - Imagem antes e depois ajuste de contraste.
Fonte: Elaborado pela autora.
Embora as correções primárias sejam uma primeira etapa de balanceamento das
imagens, elas também podem ser usadas para definir como base um “look” estilizado para o
filme todo ou determinada sequência, e então partir para os ajustes finos, realizados através de
correções secundárias. Um exemplo é no caso de um filme que opte por uma estética bleach
bypass, com forte contraste e cores dessaturadas.
Imagem 12 - Exemplo de correção primária utilizada para criar efeito bleach bypass.
Fonte: Elaborado pela autora.
27
2.2.3 Correções Secundárias
Correções secundárias são correções que afetam apenas uma parte selecionada da
imagem. Elas são o principal diferencial da correção de cor digital e foi através delas que os
softwares de correção de cor se desenvolveram ao longo dos anos. Hoje em dia, é possível
selecionar de forma bem precisa uma zona de cor ou área geométrica da imagem, em apenas
alguns cliques. Isso agiliza muito o trabalho do colorista e possibilita a criação de diversos
efeitos que antes só seriam possíveis com muito tempo (e investimento) de pós-produção.
O Da Vinci, assim como a maioria dos outros softwares modernos , trabalha com duas
formas de seleção de máscaras. A primeira delas é a seleção HSL (Hue/Saturation/Luminance,
ou Matiz/Saturação/Luminância). Através dessa ferramenta, é possível selecionar zonas de
cor especificas e aplicar ajustes somente a elas. É muito usada para aplicar ajustes específicos
às tonalidades de pele, ou alterar a cor do céu, vegetação, etc.
Imagem 13 - HSL Qualifier: seleção de máscaras através da matiz, saturação e luminância.
Fonte: Elaborado pela autora.
No exemplo abaixo, o colorista utiliza a ferramenta de seleção para dar vida aos tons
de pele, deixando-os mais rosados, enquanto mantém o fundo mais frio e dessaturado como
na imagem original.
28
Imagem 14 - Correção de tons de pele.
Fonte: Da Vinci Resolve Colorist Reference Manual28
Outra forma de delimitar máscaras de atuação é através de Power Windows, máscaras
vetoriais, com formas geométricas pré-definidas ou desenhadas livremente através de pontos
de contorno. As Power Windows funcionam muito bem quando é preciso selecionar uma área
como o céu, uma janela, um rosto, e aplicar efeitos apenas a ela ou seu exterior. Elas também
podem ser utilizadas para criar efeitos de vinhetagem ou degradês, que desviam sutilmente o
olhar do espectador para áreas de interesse da imagem.
28 Disponível em: http://www.blackmagicdesign.com/support. Acesso em abril/2014.
29
Imagem 15 - Windows: criação de máscaras por formas vetoriais, degradês, inversões e combinações.
Imagem 16 - Máscara para selecionar personagem, criada através da aba Windows.
Fonte (15 e 16): Elaboradas pela autora.
É possível ainda misturar esses dois tipos de seleção. Ao criar uma máscara para o
azul do céu, e ainda assim delimitar uma área retangular de atuação na imagem, o colorista
garante que apenas o céu será afetado, nada irá atingir as nuvens ou o azul do mar.
No exemplo abaixo, através da seleção HSL não seria possível isolar apenas o rosto da
personagem, já que o mesmo alaranjado da pele estava presente em outros objetos do fundo.
Neste caso, adicionamos uma máscara oval delimitando a área de seleção do qualificador
anterior, e obtemos apenas a pele da personagem. Ao optar pela combinação de Power
Windows é preciso ficar atento, pois no caso de movimentação de personagens ou câmera, a
máscara deverá ser trackeada, deslocada ao longo do tempo.
30
Imagem 17 - Máscara por qualificação de cor HSL Imagem 18 – Adição de máscara Power Window
Fonte (17 e 18): Da Vinci Resolve Colorist Reference Manual29
Toda correção secundária pode ser animada ao longo de sua duração através de
keyframes. Keyframes são frames-chave escolhidos na linha do tempo de um clipe, onde o
colorista determina uma mudança de correção. O software calcula então todos os frames
intermediários, criando rapidamente animações e transições de correções.
No caso das máscaras, a maioria dos softwares como o Da Vinci disponibiliza uma
ferramenta de tracking de objetos em movimento. Para que a máscara acompanhe um
personagem em movimento, ele identifica pontos característicos contidos dentro da máscara
(ou selecionados manualmente pelo colorista) e segue-os durante o playback.
Imagem 19 - Pontos de tracking são automaticamente posicionados pelo software para acompanhar um personagem.
Fonte: Da Vinci Resolve Colorist Reference Manual30
A ferramenta de tracking representou um grande avanço nos softwares de correção de
cor ao longo dos anos. Hoje é possível rapidamente realizar ajustes tão finos quanto alterar a
cor de um figurino e garantir que a máscara se mantenha precisa ao longo de toda uma
29 Disponível em: http://www.blackmagicdesign.com/support. Acesso em abril/2014. 30 Idem
31
sequência. Esta mesma ferramenta também pode ser usada para acompanhar movimentações
de câmera e estabilizar vibrações na imagem.
2.2.4 Galeria
Outra ferramenta importantíssima dos softwares de correção e aliada do colorista na
manutenção de uma estética coerente pro filme é galeria de stills. O colorista pode adicionar
diversos frames na galeria de stills, organizando e catalogando as correções já feitas ao longo
do trabalho. Essas stills servem de referência na hora de corrigir novos planos e podem ser
visualizadas lado a lado com o frame atual sendo corrigido. No caso abaixo, vemos dois
planos sequenciais sendo postos lado a lado para comparar a continuidade de cor do azul do
céu. Podemos imaginar a dificuldade de fazer determinado ajuste sem a referencia visual de
comparação proposta pela galeria.
Imagem 20 - Galeria de Stills usada como referência para a comparação de planos lado a lado.
Fonte: Elaborada pela autora.
Através da galeria também é possível copiar e colar looks básicos já utilizados em
outras sequências do filme. Ao identificar uma sequência com características semelhantes à
outra já salva na galeria, o colorista pode visualisar os nodes de correção aplicados ao clip
salvo e copiá-lo para na imagem a ser corrigida. Essa ferramenta agiliza muito o processo de
correção, permitindo que o investimento de tempo do colorista e do laboratório seja melhor
empregado nas correções mais específicas e detalhadas.
32
2.2.5 Organização por nodes
Uma das principais diferenças dos softwares de correção profissionais é que a maioria
deles trabalha com nodes. O sistema de nodes é uma forma de organizar diversas correções
em um fluxograma de transformação da imagem. Cada node pode conter uma ou várias
correções primárias e secundárias, mas quanto mais especifico é um node, mas se torna fácil a
visualização e organização do colorista.
Os nodes podem ser encadeados em série, em paralelo ou no sistema de camadas
(mais usado em composição). Os nodes em série são a forma mais simples de trabalhar uma
imagem. A imagem alterada em um node passa ao próximo node e é sucessivamente alterada
de forma linear.
Imagem 21 - Exemplo de organização de nodes em série
Fonte: Blog do colorista Alexis Van Hurkman31
Em alguns casos, entretanto, é mais interessante organizar os nodes de forma paralela.
O caso mais recorrente é quando queremos fazer dois ou mais ajustes na imagem que partam
de uma primeira imagem comum como base. Um exemplo seria caso o fotógrafo desejasse
esquentar a tonalidade da pele dos personagens, ao mesmo tempo em que diminui a saturação
de toda a imagem. Se então, o colorista diminuísse a saturação do plano em um node anterior
ao ajuste de pele, ficaria mais difícil selecionar a cor de pele por HSL, já que a pele estaria
dessaturada. Organizando os nodes de correção em paralelo, entretanto, tanto o ajuste de pele
quanto o ajuste geral de saturação tomam como ponto de partida a mesma imagem inicial
saturada. O resultado final é uma combinação balanceada desses dois ajustes.
31 Disponível em: http://vanhurkman.com/wordpress/. Acesso em abril de 2014.
33
Imagem 21 - Exemplo de fluxograma de nodes em paralelo
Fonte: Blog do colorista Alexis Van Hurkman32
Cada colorista desenvolve, ao longo de seu trabalho, uma forma específica de utilizar
essas ferramentas e organizar suas correções por nodes. A maioria trabalha das correções mais
gerais às mais especificas, voltando a correções gerais de ajuste fino ou de suavização de
ajustes no final do processo. Ao longo do caminhar do filme e das discussões com o fotógrafo,
essa organização lhes permite voltar a alterar antigos ajustes, ou criar novos ajustes de forma
gradual e não destrutiva.
32 Disponível em: http://vanhurkman.com/wordpress/. Acesso em abril de 2014.
34
3. O FOTOGRAFO E A FINALIZAÇÃO DIGITAL : NOVOS AGENTES, NOVAS
FORMAS DE TRABALHAR
O começo dos anos 2000, marcado pelo lançamento do filme E aí, meu irmão, cadê
você? (O Brother, Where Art Thou?, Irmãos Cohen, Estados Unidos, 2000), deu início a era
em que a finalização digital, especificamente a correção de cor, tomou frente, na indústria
cinematográfica, ao tradicional processo de finalização ótica. Era uma questão de tempo para
que mesmo os mais resistentes fotógrafos passassem a utilizar essa ferramenta como parte
fundamental no seu processo criação cinematográfica.
É importante notar que o início da correção de cor foi marcada por incertezas e falsas
promessas. Os softwares ainda eram muito básicos e os técnicos pouco experientes. Além
disso, a intermediação digital não apresentava resultados fidedignos no momento das cópias,
o que decepcionava muitos fotógrafos que optavam por adotá-la. Fábio Souza, colorista da
Labocine, lembra desta fase inicial: As primeiras experiências foram trágicas. Porque você estava acostumado a trabalhar com a película...Aqui na Labocine, demorou um pouco o investimento na parte digital. Então eu via material chegando de transfer de outros laboratórios. E a imagem...eu sempre via os diretores e os diretores de fotografia muito frustrados. E como eu já tinha uma bagagem legal com a parte ótica, conhecendo todo mundo, com uma bagagem bacana, eles começaram a trazer os filmes pra cá, achando que eu poderia resolver. [...] Então eu tive que começar a usar, nessa época, os positivos que eu tinha na mão pra tentar solucionar certos problemas. Tinham materiais que eram pra ser copiados em Kodak, que quando a copia chegava ela estava extremamente contrastada, muito contrastada, e eu não conseguia eliminar esse contraste. A cópia ficava lavada e não se chegava a um resultado legal. Então pra esses casos eu começava a usar o Fuji, porque tinha um contraste baixo, dessaturava mais os tons, embora ele priorizasse o verde, características mesmo do negativo que a gente já conhecia. Isso nos primórdios... Aconteceu com Zuzu Angel, foram vários filmes... (SOUZA, 2014)
A principal razão para este problema era a falta de experiência dos laboratórios
brasileiros na criação de LUTs (Look Up Tables), tabelas responsáveis por converter a curva
logarítmica do negativo para a curva de gama impressa na cópia positiva. O resultado
observado nos monitores e projetores das salas de marcação eram, portanto, muito diferentes
do que era obtido na cópia em película. E aí a gente ia olhando a tela no monitor, e muitas coisas que nós marcávamos a luz, por mais que tivesse calibrado e tentando se fazer o misterioso LUT, as imagens não saiam exatamente quando eram “printadas”. Então foram sendo necessários anos de pesquisa, de ajuste, de investimento, até a gente conseguir chegar e ter um ambiente como esse que você tá vendo aqui, de você olhar na tela e você marcar com segurança o que você tá vendo, e isso responder na cópia. (SOUZA, 2014)
35
Além da inconsistência do processo, os diretores de fotografia conheciam mal as
ferramentas, e portanto arriscavam pouco no que poderia ser feito na finalização. Ricardo
Della Rosa conta como em seu primeiro filme finalizado digitalmente, Olga (Jayme
Monjardim, Brasil, 2004), o uso da correção de cor era praticamente dispensável: O Olga tinha umas coisas assim, tinha uma parte de neve na Alemanha. Tinha campos de concentração na Polônia. Tinha umas coisas que foi tudo filmado no Rio, no verão. Só que eu não tinha o conhecimento nessa época, desse mundo digital, o quão profundo poderia ser, como tenho hoje. Então isso aí seria muito mais fácil. Então o que que fazia? Filmamos tudo, para que se finalizasse ótico ou digital funcionasse. Eu não sabia o recurso. Então a neve, eu cobria tudo, azulava as luzes, fazia o que eu queria. Hoje, tá muito mais fácil...talvez não cobrisse, deixasse o sol porque depois eu sabia que podia baixar o brilho. Ah, Rio de Janeiro no verão, meio quente, sem nada pra esfriar, muda a temperatura. [...) Só que era um filme que a gente filmou em 14 semanas. Hoje, provavelmente, só em função disso levaria 8 semanas. Isso em termo de dinheiro é um absurdo. Pensando nessa evolução, hoje eu entendi muito mais as ferramentas da pós e entendi quão longe dá pra chegar. Então hoje eu acredito mais na filmagem...” (DELLA ROSA, 2014)
Alguns fotógrafos, experientes nos processos de experimentação laboratorial,
resistiram alguns anos a adotar a intermediação digital. Mas fatores econômicos (os
processos especiais em laboratório eram caros e muitas vezes arriscados), assim como
práticos (já que alguns laboratórios deixaram de oferecer serviços óticos como o de ampliação
e trucagem), fizeram com que o processo digital fosse quase integralmente adotado pela
indústria.
No caso específico da captação em película 16mm para ampliação ótica em 35mm, a
perda de qualidade no processo tradicional era notável. A ampliação através do digital não
apresentava perdas, preservando a definição do negativo original. Eu gosto sempre de citar o Waltinho, porque ele experimenta muito e eu acabo passando por essas situações com ele. Ele estava muito resistente em relação digital. Então na época a gente ia fazer o Baixio das Bestas. Ele ia ser fotografado em 16mm e fazer a ampliação ótica. E você tinha truca, porque você tinha que fazer alguns efeitos. Então quando você fazia a marcação de luz, além da truca, você tinha que fazer pra um máster e depois fazer o internegativo. Quando você fazia a imagem já perdia a qualidade. Toda vez que você fazia um máster pra gerar um internegativo, a qualidade caía. [...] E quando tinha truca então, você pegava uma luz, marcada pra determinada situação e pegava uma outra situação, com outra luz marcada. [...] A truca gerava um internegativo dessa junção, e nisso já tinha uma perda de definição. E isso era encaixado antes de se fazer um máster, pra que ele não tivesse emenda. Então nas suas imagens normais você perdia definição, digamos que uns 30%...As imagens de truca, já tinham menos definição, então quando eram finalizadas perdiam 50%...Então nunca ficava perfeito. Depois que nós pegamos esse material, escaneamos e printamos, nós vimos que não perdia definição. Foi quando o Waltinho viu que valia mais a pena printar no internegativo, só nisso já se ganhava muito. (SOUZA, 2014)
Outra vantagem do DI em relação aos procedimentos laboratoriais tradicionais era que,
mesmo quando usado apenas imitando o resultado desses processos, ele garantia a
36
fidedignidade das cópias através de um sistema de processamento e transfer totalmente
calibrado, que gerava um internegativo a ser copiado de forma padrão em qualquer
laboratório. No caso de filmes que obtinham resultados semelhantes através do bleach bypass
de cópias, por exemplo, o resultado poderia variar levemente de acordo com o laboratório em
que fosse feita a cópia e químicas utilizadas.
Além disso, quando se fotografava em película, a intermediação digital permitia
aproveitar toda a latitude do negativo. Ainda que as películas negativas tivessem evoluído
muito nas últimas décadas, o processo ótico obrigava o fotógrafo a dar preferência a apenas
uma parte da curva de exposição na hora da cópia, pois o positivo possuía menos latitude.
Fábio Souza explica como ficou mais fácil de se trabalhar com essa questão à partir do digital: Pra você trabalhar com a película, ficou muito mais fácil de você trabalhar agora, você tem muito mais facilidade agora do que com o processo totalmente ótico. Porque no laboratório, você tem de 1 ponto de luz até 50 pontos de luz na marcação ótica. Então se o seu material, se ele vinha dentro de uma casa no interior e lá fora você tinham pessoas conversando na varanda...Você tinha que optar pra onde você ia marcar. Se era aqui pra dentro ou lá pra fora [...] Embora o negativo tivesse um curva bem redondinha, o positivo não. O positivo tem uma curva mais brusca, ele enxerga menos. Então você tinha que pegar o que você queria nesse negativo e encaixar aqui, ou a parte de baixo ou a de cima. Hoje em dia, que que acontece, esse material é escaneado em 4K (ou em 2K, depende do projeto). E o scanner pega todo esse negativo aqui, mais uma margem nas baixas e outra nas altas. E ele traz tudo pra você fazer a correção de cor. Então eu tenho toda essa informação. [...] E depois quando você volta e printa o seu material que está no computador, ele volta ao internegativo, já na curva do internegativo e com essa latitude toda ajustadinha aqui dentro. E daí quando ele passa para o positivo, ele passa já na curva do positivo, porque estava tudo previsto antes. Então eu não preciso mais escolher qual parte que eu quero. Eu posso colocar tudo junto. Eu posso querer ver você aqui, e as pessoas que tão lá fora, trazendo tudo de altas luzes, tudo de baixas luzes, e a gente pode ir buscando um contraste entre elas, isso que é bacana de se trabalhar... (SOUZA, 2014)
Mas a principal vantagem da intermediação digital foram as possibilidades ampliadas
de manipulação da imagem, antes apenas experimentadas na marcação em máquinas de
telecine pelos diretores de clipes e comerciais. Affonso Beato destaca a capacidade dessas
ferramentas de trabalharem cada cor ou região da imagem de forma isolada: Os sistemas anteriores, sistemas fotoquímicos, a marcação de luz ou a criação do teu máster negativo era muito limitado. No sentido de que você só tinha filtros, na hora de copiar o negativo pro positivo, você tinha filtros em que você cancelava os vermelhos, você aumentava os vermelhos, abaixava, enfim… Você tinha uma possibilidade em RGB e densidade. Hoje num DI, você pode ter isso em cima do quadro que você está operando, em cima de uma janela...ou então você pode ter um controle muito maior, você pode separar as cores, você pode contrastar as cores, você pode dessaturar uma cor. Você pode trabalhar em cima de cada canal. (BEATO, 2014)
Como resultado, houve uma progressiva mudança na forma desses profissionais
planejarem e trabalharem a fotografia. No caso da correção de cor secundária, a precisão com
37
que essas ferramentas possibilitavam selecionar zonas específicas da imagem permitiu que
algumas intervenções visuais do fotógrafo deixem de ser feitas na filmagem e passassem a ser
feitas na pós. Um exemplo bem comum é o recorte de luz em cenários: Você tem uma cena, aí você vê a parede lá atrás de linha, ela tá muito clara. Então, se eu fosse cortar isso no fotoquímico, eu teria que por bandeiras nas janelas pra escurecer aquela parede e tal. Isso aí levava muito mais tempo. Então, o que eu posso fazer? Eu sei que eu tenho um controle dessas coisas no DI, então eu não faço na hora da filmagem. Ganho tempo, me dedico a outras coisas. Por exemplo uma luz melhor pro rosto dos atores, … Então isso faz com que a fotografia moderna ou a cinematografia moderna fique muito mais livre pra uma série de outras coisas… (BEATO, 2014)
A economia de tempo e recursos na filmagem são ainda mais significativas se
considerarmos as cenas que dependem de luz natural e de horários específicos do dia.
Podemos citar aqui o caso das “noites americanas”, cenas noturnas filmadas à luz do dia. Por
mais que este processo tenha sido bastante utilizado historicamente na finalização
fotoquímica, o digital permitiu realizar essas conversões com muito mais facilidade e
realismo. Isso sem considerar o caso crítico das cenas de entardecer. Por mais bela e
dramática que seja a luz rosa alaranjada desse momento do dia, sua curta duração fazia com
que cenas neste horário precisassem ser rodadas ao longo de vários dias, alongando o plano de
filmagem. As possibilidades de manipulação do DI ampliaram o tempo passível de gravação
dessas sequências, e a continuidade pode ser preservada com ajustes finos de finalização.
O filme A Deriva (Heitor Dhalia, Brasil, 2009), fotografado por Ricardo Della Rosa,
possui belas cenas à beira-mar, que seriam praticamente impossíveis de serem realizadas sem
o recurso dessas ferramentas: Tem uma cena do A Deriva...Se fosse em outros tempos, acho que nem iluminada eu conseguiria fazer. Na praia, uma menina correndo durante 4 minutos. Menina correndo na praia, noite. Chega no mar, você tem que ver o mar, tem que ver o olho dela. Como é que você faz isso? Ou você faz na hora mágica e você tem um take pra fazer... 4 minutos e é isso... Ou você fala pro diretor, vamos fazer esse plano dia, muda muito? Ou então vamos fazer uma coisa assim, ela tá correndo com um lampião. Você ia ter que interferir mais na história. Esse daí eu achei que não ia dar certo. Era de dia, fim de tarde mas com tempo pra rodar pelo menos uns 5 takes, com folga. Achei que o céu tava muito mais claro, achei que não ia dar tempo. Mandei pro Serginho...Falei pra produção que tinha que ser o primeiro plano do filme, que dá tempo dos caras testarem isso, qualquer coisa a gente refilma. Tava preocupado. Senão ia fazer isso, uma solução tipo ela correr com uma lanterna na cara...ou filmar de dia...aí o Sérgio começou a me mandar uns vídeos, eu falei “opa, isso aqui tá bonito pra caramba, funcionou”. Então essa foi uma cena que não faria de outro jeito.
Outro exemplo significativo das possibilidades da intermediação digital são as
alterações de nuances de cores específicas, em objetos que podem estar em movimento e
serem trackeados pelo software ao longo do plano. Ricardo cita um exemplo, dessa vez na
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publicidade, em que através da manipulação exclusiva da cor de pele foi possível em alguns
cliques fazer o que através da maquiagem e iluminação demoraria muito mais tempo: Você consegue cores hoje que antes você não conseguia. Você consegue nuances. […] Você quer uma pele super branquinha, num ambiente sei lá...é mais fácil falar de um trabalho… eu fiz uma campanha da Sky com Gisele Bundchen, que tava meio bronzeada. Só que no filme ela tinha que ser uma mafiosa, branca, tal. Antigamente, sem ter essa finalização, era ou uma maquiagem animal, que não teria tempo hoje. Ou você não teria como fazer, não teria como selecionar só a pele dela... Chegou na hora todo mundo ficou preocupado. Aí cheguei pro DIT: “faz uma máscara nela, separa do chroma, tira o tom, deixa ela branquinha. E todo o resto mantém”. […] Isso a gente não conseguia antes. Conseguia no tempo, hoje você consegue com menos tempo. (DELLA ROSA, 2014)
Fica evidente, portanto, que a redução do tempo de filmagem foi uma mudança
considerável nas produções cinematográficas da última década. O set ficou mais dinâmico, e é
possível investir o tempo ganho em outras prioridades. A agilidade em set é mais do que
valorizada, é exigida aos profissionais contemporâneos. O deslocamento para a pós de
algumas decisões, que antes eram tomadas de forma definitiva na filmagem, pode, entretanto,
apresentar alguns riscos ao fotógrafo.
O risco principal seria a criação de uma mentalidade de adiamento de decisões
criativas, um movimento que tende a prejudicar boa parte dos departamentos. A escolha por
manipular um elemento da imagem na correção de cor não significa deixar de refletir sobre o
resultado final no momento da pré-produção. A reflexão pode e deve ser seguida de testes
criteriosos, para definir os melhores caminhos a seguir durante o filme. Infelizmente, algumas
produções, por entenderem os testes como menos necessários neste novo momento
tecnológico, abrem mão de tempo e investimento na fase de preparação dos filmes,
inviabilizando a pesquisa artística. Eu acho que muita gente entendia que os testes que eram feitos em película, era pra ver se aquilo ia dar certo, se ia imprimir, se ia sei lá o que... Enquanto não é uma questão de insegurança... É uma questão de pesquisa, que imagem que aquilo vai ter mesmo... (PINHEIRO, 2014)
Uma forma de justificar esses testes diante da equipe seria explicar que eles possuem
extrema importância para todos os departamento do filme. Para Mauro Pinheiro, o diretor de
arte é possivelmente um dos mais afetados nesses casos, já que seu trabalho depende muito de
como os materiais e cores serão impressos no produto final: “Porque eventualmente ele fez
um trabalho se preparando pra alguma coisa, mas aí chega na pós e transforma tudo em outra,
e pra ele não era tão bom. Ou ele poderia ter feito diferente se soubesse que era assim”
(PINHEIRO, 2014).
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Felizmente, depois de mais de uma década de intermediação digital, as produções
amadureceram e, na maioria dos casos, respeitam a importância de visualizar a imagem bruta
transformada em resultado final antes do início das filmagens. Mesmo no caso de filmes
captados em câmeras digitais, com brutos em formatos RAW ou Log, altamente manipuláveis,
os sensores oferecem diferentes sensibilidades, latitudes e definição, podendo reagir melhor
ou pior de acordo com o look desejado. Fábio Souza explica a importância da parceria com o
colorista desde o início do processo, assegurando ao fotógrafo que suas escolhas de
iluminação e exposição reagirão como desejado na suíte de correção: Tive com o Ivo Lopes, há duas semanas atrás. E ele veio trazer um teste de fotografia pro look que ele queria seguir, junto com a Sandra Kogut. E aí ficamos aqui trabalhando e chegamos a um resultado bacana, “pronto, é isso que a gente quer seguir”. Porque eles estavam testando entre duas câmeras e escolheram a câmera que deu o resultado melhor. Então eles pegaram essa câmera pra fotografar o filme. No meio do segundo dia de filmagem, o Ivo pede pra vir aqui na sala, porque ele estava inseguro com algumas coisas que ele estava fazendo, porque ele achava que não estava reagindo bem. Então ele pegou essas cenas que ele achava mais complicadas, pegou as outras que ele fotografou que ele achava que estavam num caminho melhor, e quando ele chegou aqui ele ficou apaixonado, viu que ele estava no caminho certo... (SOUZA, 2014)
Outro risco corrido pelo fotógrafo ao captar uma imagem mais flat33 é que essa
imagem possa ser reinterpretada de formas indesejadas na pós-produção. Por conta disso, a
questão da autoria vem sendo largamente discutida nos debates acerca da direção de
fotografia contemporânea.
Embora menos comum no nicho de um cinema mais autoral, onde o fotógrafo
continua tendo a palavra final sobre os resultados fotográficos do filme, o mesmo pode não
ocorrer em produções mais comerciais, em que a identidade fotográfica se configura como
menos prioritária do que a aparição de um elenco popular ou de uma marca comercial. Para
Ricardo Della Rosa, mais do que nunca é importante que o fotógrafo reconheça as pessoas
com que trabalha e forme verdadeiras parcerias profissionais. Eu fiz um filme lá [nos Estados Unidos], um filme de ação, que no meu contrato eu tinha que marcar cor. Chegou na hora da marcação de cor, o diretor falou “não, não quero você aqui dentro”. “Não, mas eu queria dar uma olhada pelo menos”, “não, não, não”. Não fui, ficou uma merda, ficou totalmente diferente do que eu tinha feito. [...] Eu levo muito em consideração, pra pegar um projeto, quem tá envolvido. Porque eu sei que se o diretor quiser e acreditar naquilo, vai ser daquele jeito. Mas se o diretor, como na maioria das comédias, por exemplo... pouco tempo pra filmar, elenco global... a fotografia não tá nem na lista das 20 primeiras prioridades. As prioridades são outras. Então vai ficar daquele jeito, mais ou menos... (DELLA ROSA, 2014)
33 Termo muito usado para definir a captação de imagens menos contrastadas e menos saturadas, visando garantir o máximo de informação das baixas às altas luzes, proporcionando a seguir maior liberdade para na correção de cor.
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Uma relação fundamental neste novo momento vai ser a parceria entre diretor de
fotografia e colorista. Se a relação com o laboratório e com o marcador de luz sempre fora
importante para garantir os resultados almejados na cópia final, com a migração de parte da
criação estética para pós-produção, a escolha deste profissional, e sua participação ao longo
do processo, se tornou um elemento fundamental à criação artística. Sobre esta relação,
Ricardo comenta: Eu tenho os meus dois finalizadores digitais, que eu não consigo fazer filme mais sem os caras. Faço questão que eles estejam em todas reuniões de conceito. Porque eles que vão segurar minha onda lá. Então acho que tem isso agora, mudou um pouco a maneira de se chegar a isso. Porque eu acho assim, no nosso caso aqui, que é o que faz a diferença hoje num filme. Às vezes, se tiver que abrir mão de uma luz, pra ter o colorista que eu quero, finalizar onde eu quero, é uma vantagem. Eu fico sem luz, mas preciso ter esses caras. Entendeu? É uma coisa que não se dispensa mais. (DELLA ROSA, 2014)
A profissão do colorista certamente evoluiu nos últimos anos. Ele deixou de ser
apenas um técnico operando máquinas com agilidade para se tornar um colaborador artístico
do filme. Se alguns afirmam que o fotógrafo perdeu um pouco do controle sobre a imagem,
sobre sua autoria, podemos dizer que o colorista é responsável por resguardá-la, e contribuir
com seu olhar. Por conta disso, é importante que ambos estejam em sintonia, para que o
colorista possa inclusive defender o conceito fotográfico do filme frente a um produtor que
pergunte “este plano não está muito escuro?”.
Fábio Souza, colorista da Labocine, discorda da ideia de que ele tornou-se também
“autor” da imagem. Para ele, ainda hoje, “o mérito é todo do diretor de fotografia”: “Eu posso
ficar duas horas corrigindo uma cena, mudando tudo, mas se ele não gostar, tira-se tudo. Tem
mérito sim, mas ele sabe onde ele está chegando e ele sabe quem ele usa” (SOUZA, 2014).
Fábio não nega, entretanto, que a sensibilidade deste profissional pode contribuir muito com o
filme: Eu vejo como uma questão de sensibilidade. Eu tenho uma sensibilidade. Então você vai fazer um filme comigo ele vai ficar de um jeito, se for fazer com outro colorista, ele vai ficar de outro jeito. Então a equipe que você trabalhou torna o filme único. Um diretor de fotografia se adapta melhor a um, ou a outro, ele prefere trabalhar com um ou outro, ele vê os resultados na tela. A meu modo de ver, a subjetividade é de cada um. Porque além de técnicos, quando você passa acima da técnica, você alcança a arte. [...] Porque às vezes você domina a técnica, mas você põe uma imagem na tela e ela não fica plástica. E os diretores olham assim...e acham que a imagem talvez ainda não esteja lá. Mas ele não sabe dizer o que que é o lá. Então você que tem que saber o que que é o lá. E tem que saber chegar lá. Às vezes um toque, 20% de saturação a mais ou a menos, é a diferença entre estar maravilhoso, estar bom ou estar ruim. (SOUZA, 2014)
Outra mudança possibilitada pelos softwares de correção de cor que vem sendo
utilizada pelos diretores de fotografia em filmagens com captação digital foi a criação de
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looks de visualização. Durante a pré-produção, o fotógrafo leva algumas imagens testes para o
colorista, que cria um look para o filme, ou alguns looks, no caso de grande variação de estilo
entre as sequências. Esses looks são gravados em um cartão e podem ser usados para
monitoração do material bruto no set. Isso evita que o diretor, assim como os outros membros
da equipe, se acostumem com a imagem flat, que na maioria dos casos está muito longe do
resultado final.
No caso dos filmes que pretendem trabalhar ainda mais as imagens no set, para que o
diretor já chegue à montagem com uma versão mais próxima do resultado final, existe hoje
laboratórios digitais portáteis, como o White Gorila34. Esse sistema oferece um kit de
logagem e correção de cor para criação de dailies digitais35, além de conversão do material
off-line para o formato desejado na montagem. Essa pré-marcação também pode ser usada
como referência na hora de realizar a correção de cor final, meses depois. Ricardo Della Rosa
explica o diferencial dessa ferramenta: Em processos mais longos, diferente da publicidade, o diretor convive tanto tempo com aquele material na montagem, na filmagem, que ele acaba se apaixonando pelo todo. E depois você não consegue reverter. Por isso o White Gorila...por isso no “Penetras”, eu trouxe o Serginho, porque eu queria que o Andrucha montasse o filme bem próximo do que ficaria. Porque depois seria quase que impossível mudar. (DELLA ROSA, 2014)
Fábio Souza concorda que chegar à finalização com um look base para o filme agiliza
o processo e garante coerência do início ao fim do projeto. É importante lembrar, entretanto,
que assim como os copiões em película, esses looks ainda estão muito longe do trabalho final,
e diretor e fotógrafo sempre podem mudar de ideia durante o processo.
Para Mauro Pinheiro, esse trabalho reduz um problema muito enfrentado em película
na era pré-intermediação digital, já que os copiões eram quase sempre revelados de forma
rápida e pouco minuciosa e os telecines feitos nas madrugadas entre filmagens. Como a
marcação de luz final só viria meses depois, era necessário confiar no fotógrafo e na unidade
conceitual estabelecida nas reuniões de pré-produção. Normalmente vem um telecine off-line mais ou menos, de um colorista menos experiente de madrugada, então não dá pra confiar muito. No Aspirinas por exemplo, eu mandei uma série de fotos do nosso teste e o cara todo dia olhava praquelas fotos antes de trabalhar no telecine. E eu tinha que defender o material, porque eu estava sobrepondo dois stops, já era uma coisa arriscada. Eu tinha muita pouca tolerância pro erro, porque eu já estava trabalhando no limite da latitude. E daí eu tinha que
34 White Gorila é a principal empresa que oferece serviços de gerenciamento de arquivos digitais no Brasil, entre eles o pequeno laboratório de correção de cor e logagem chamado Snow Flake. Informações no site: http://www.whitegorilla.com.br. Acessado em abril de 2014. 35 Dailies digitais são o equivalente hoje de um copião eletrônico pré-corrigido para revisão do material no fim do dia.
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defender: “não é assim, esse telecine veio errado, acredita em mim...” E o Marcelo acreditava. Mas não é confortável essa posição. [...] E isso que você falou...do material de edição...é ruim mesmo quando o material de trabalho tem um distanciamento do trabalho final, porque as pessoas se acostumam com aquela imagem. Pro bem e pro mal né... Mas pra mim isso só tem um jeito de resolver. Muita conversa antes.
Se concluirmos que o método de trabalho evidentemente se modificou à partir da
evolução da intermediação digital, o que dizer sobre a estética, os resultados fotográficos
dessa nova fase? O que foi feito com as possibilidades ampliadas de manipulação de cores?
Há uma tendência a produzir resultados que sigam uma linha menos naturalista do que com o
processo fotoquímico?
Primeiramente, é importante falar que assim como toda grande revolução tecnológica
no cinema, houve inicialmente um deslumbre com as ferramentas de correção de cor. Mauro
Pinheiro explica que esse deslumbre inicial possivelmente teve como consequência filmes
“esquizofrênicos” e pouco coerentes, mas foi progressivamente dissipado e a correção de cor
é hoje usada de forma mais madura e justificada: Você começou a ter coloristas de publicidade, marcando cor dos longas, claramente você tinha a junção de duas coisas. Você tinha diretores e fotógrafos que trabalhavam com RGB na marcação de luz e de repente podiam tudo. Você vai do Analyser no RGB e passa a dividir a cor em milhões. Então acho que rolou um deslumbre por um tempo. Dos longas começarem a ter uma estética meio esquizofrênica. Porque você perdia o controle da própria ferramenta que estava ali na tua frente né...Talvez isso sendo maior que a sua conversa conceitual anterior...Acho que teve isso sim. Agora acho que a coisa se normalizou. Acho que tá normal e você pode fazer um filme sem tanta interferência sem achar que está sendo careta. (PINHEIRO, 2014)
A intermediação digital possibilita hoje que o fotógrafo pense a palheta de cor de cada
filme de forma específica e com todo controle sobre a variação de nuances. Affonso Beato
compara a correção de cor atualmente com um processo quase de pintura: A intermediação do digital abriu um campo artístico, uma possibilidade artística muito grande de intervenção. O diretor de fotografia chega até um ponto quase de pintura, quer dizer, você tem um controle artístico da imagem no final quase na área da pintura. Você pode interferir em tudo que você quiser. Você tá entendendo? Quase beirando o “visual effect”. Tanto é que os primeiros filmes que foram feitos...aquele primeiro filme que foi feito dos irmãos Coen, “Oh Brother...”? Então, […] houve uma revolução assim de visualização. Porque ele pegou as árvores, todas as árvores que eram verdes, as árvores ficam todas amarelas. Então o filme tem um negócio de pintura maravilhoso. Eu fiz isso um pouco em “Deus é brasileiro”, filme do Cacá, eu mudei tudo. Assim, você podia passar de uma coisa altamente realista para uma coisa totalmente surrealista ou não realista, como o pintor pode fazer. Pode interpretar as cores. Então, eu acho que essa capacidade...fez com que a cinematografia mudasse, que aliás é uma coisa que eu ensino. Que hoje em dia, a cinematografia é design. (BEATO, 2014)
Se por um lado, a liberdade de criação abre portas para uma variedade gigantesca de
looks singulares, quando analisamos os filmes dentro de uma filmografia comercial como a de
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Hollywood, há uma tendência notável para a homogeneização das cores e estilos. Essa é uma
possível consequência da perda de autoria dos fotógrafos frente ao paradigma de captar flat e
nem sempre possuir o controle da etapa de finalização, onde a imagem será verdadeiramente
trabalhada.
Outra possível causa desse predomínio estético é a rápida entrada de novos coloristas
autodidatas no mercado, impulsionada pelo barateamento dos softwares de correção, trazendo
profissionais muito técnicos e com pouco refinamento artístico. A maioria deles acaba
reproduzindo a estética dominante e funcional da palheta de cor laranja (pele) / azul-petróleo
(fundo, céu, sombras) sem grandes questionamentos.
Essa combinação parte do princípio de cores complementares, que ao serem
justapostas se realçam. No caso da cinematografia, como a maioria dos planos possuem o tom
de pele em quadro, essa cor é reforçada e contraposta com o azul esverdeado do fundo. Não à
toa vemos um verdadeiro boom de tutoriais na internet que ensinam como chegar ao “summer
blockbuster look” presente na grande maioria dos filmes de ação americanos, como
Transformers (Michael Bay, Estados Unidos, 2007), Iron Man (Jon Favreau, Estados Unidos,
2008), entre outros.
Imagem 22 e 24 - Frames de Transformers 2 (Michael Bay, Estados Unidos, 2009), onde o uso da palheta laranja-azul é
levado ao exagero.
Fonte (23 e 24): Blog Into The Abyss36
36 Disponível em: <http://theabyssgazes.blogspot.com.br/2010/03/teal-and-orange-hollywood-please-stop.html>. Acesso em maio de 2014.
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Imagem 25 – Print do site kuler demonstra a complementariedade direta do laranja pele com o azul-petróleo.
Fonte: Fonte: Blog Into The Abyss37
Apesar de visualmente agradável à primeira vista, a hegemonia (e muitas vezes
exagero) desse look empobrecem a cinematografia contemporânea. Felizmente, apesar de
sofrermos a influência da palheta de cores hollywoodiana, o cinema brasileiro, por ser
relativamente menos industrial, consegue apostar mais em estilos que vão ao encontro da
proposta conceitual do filme.
Mauro Pinheiro comenta a importância de se buscar a estética subjetiva do filme à
partir do próprio roteiro e das conversas com o diretor: Quando você tenta se posicionar tanto seguindo uma estética corrente, quanto se opondo a ela, você olha pro lado né...Você não tá olhando pra dentro, pro seu projeto, pro seu roteiro...E acho que isso é meio louco. Porque as vezes eu leio um roteiro e penso “esse filme é pra ser amarelo amarelo, verde verde, sem interferência, o mais clássico possível”. E isso não é ser careta, não mexer não é ser careta, é simplesmente uma opção que você escolheu... O Aspirinas não foi feito daquele jeito porque era pra ser diferente, porque era pra ser inovador não. Ele foi feito por que tinham razões no roteiro que a gente pensava daquele jeito.” (PINHEIRO, 2014)
Para ele, o cinema autoral está livre de algumas das obrigações do cinema comercial e
publicidade, de seguir uma tendência, ou inovar. Sendo assim, ele ganha muito ao trabalhar
sua estética das próprias discussões conceituais. Pra alguns lugares do audiovisual, ineditismo é muito importante. Ou pelo menos estar ali atualizado. Eu acho que no caso do cinema, algum cinema mais comercial passa por isso também, mas eu acho que a maior parte dos filmes que eu faço não tem um compromisso de ser diferente, de ser inédito, de nada. Tem um compromisso com o roteiro. Então você lê o roteiro e sai de dentro dele, o que que esse roteiro tá me dizendo...Então eu acho que esse assunto é um assunto pra 3, 4 pessoas: diretor, diretor de arte, fotógrafo e produtor. (PINHEIRO, 2014)
37 Disponível em: <http://theabyssgazes.blogspot.com.br/2010/03/teal-and-orange-hollywood-please-stop.html>. Acessado em maio de 2014.
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Podemos concluir então, que quanto mais consistente é o conceito de um filme,
discutido nas reuniões de pré-produção, e mais em sintonia estiverem os cabeças de equipe,
menos se corre o risco da maioria dos inconvenientes de “perda de autoria” e
“homogeneização estética” resultados da má utilização da intermediação digital. Enquanto a
nova tecnologia, em poucos anos de existência, revolucionou os métodos de se fotografar e
ampliou as possibilidades de manipulação da imagem, é preciso tomar muito cuidado para
não cair nas armadilhas que alguns elementos facilitadores proporcionam a fotógrafos menos
experientes.
Um risco grande, por exemplo, de compartilhar parte das ferramentas de construção da
imagem com o colorista, é que o fotógrafo fique mais relaxado, menos atento ao seu papel
artístico durante a filmagem. Então eu acho que ao mesmo tempo que teve tudo isso. Facilidades, caminhos que você pode ir mais longe de cor, contraste. As pessoas hoje precisam se aprofundar menos. O fotógrafo não precisa se aprofundar tanto. Eu me incluo nisso. Você sabe que você divide essa autoria com muita gente agora. Então não tem aquele negócio do cara que desenvolveu uma lâmpada, usou uma gelatina que virou uma coisa única só pra aquele cara. (PINHEIRO, 2014)
É importante lembrar que apesar do interesse em captar as imagens em um formato
mais flat para garantir a flexibilidade de manipulação na pós, “você capta flat, mas tem que
fotografar com consistência” (PINHEIRO, 2014). Fatores importantíssimos na construção dos
planos como direção e natureza da luz dificilmente são modificados através da correção de
cor.
Finalmente, a revolução tecnológica obriga os profissionais do cinema a repensarem
seu papel nos filmes, se recolocarem enquanto novos agentes diante de um mundo em
transição. A mudança às vezes assusta, e alguns fotógrafos temem perder seu poder de
influência, frente a um mundo digital onde as informações são muito mais difundidas, e
diretores e produtores conhecem bem as amplas possibilidades proporcionadas pelo DI. Esse
medo, entretanto, é herdado de um momento em que os diretores de fotografia se
beneficiavam do poder um tanto autoritário de dominar uma tecnologia tida como “mágica”
para a maioria das pessoas. Por um bom tempo, na película, não tinha uma certa relação de transparência, entre o fotógrafo e o produtor. Então, por exemplo,...por que que você ilumina uma sequência? Tem vários motivos pra você iluminar...Você pode iluminar porque um lugar simplesmente não tem luz suficiente, você pode iluminar porque você não gosta da luz que existe (ela é suficiente, mas você não acha adequada pra sequência), ou você pode iluminar porque a luz é linda, ela tem intensidade suficiente, mas ela vai durar 15 minutos (porque o sol vai entrar atrás da árvore e aí acabou)... Então são vários motivos que te fazem iluminar. O segundo motivo que falei agora é o mais difícil de defender...Porque ela implica numa subjetividade que gera custos e
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tempo. Então muitas vezes um produtor, ou um diretor-produtor, pode falar assim: “Me desculpas, eu te entendo, até acho que essa luz que você propôs é melhor. Mas não vai dar tempo, a gente precisa filmar agora, porque se não, não vai dar pra parar os caminhões por mais tempo, etc...”. Então o motivo “não tem luz suficiente”, ele é o mais fácil. Eu via muitas vezes quando eu era assistente de câmera o fotógrafo falar “vou ter que iluminar, não tem jeito!” E hoje em dia esse discurso, ele não existe, ele não pode existir mais. Porque todo mundo tem uma câmera, um Iphone, e a pessoa sabe que imprime. Então esses acordos tem que ser mais transparentes...” “Eu acho que nunca foi tão fácil de ser compreendido enquanto fotógrafo nesse sentido. O lado ruim é que você vai ter defesas consistentes contrárias ao que você queria...E você vai ter que dar argumentos...Eu acho que a coisa fica mais equilibrada e as decisões passam a ser de grupo, e nem sempre a que você queria. Se você for pensar de forma egoísta é ruim, se for pensar no projeto maior, é bom. (PINHEIRO, 2014)
Se olharmos pelo lado positivo, o fotógrafo contemporâneo não se sustenta mais
apenas pelo acúmulo de conhecimentos e de sua superioridade técnica. Para ser capaz de
produzir uma fotografia forte e que colabore genuinamente com o filme, ele deve ser capaz de
ir além, de trabalhar como um verdadeiro parceiro criativo do diretor e diretor de arte. Mauro
Pinheiro fala sobre a importância da subjetividade nas relações profissionais no cinema: O poder está muito relacionado à insegurança e segurança. Por exemplo, pessoas que têm formações diferentes. Nem todo diretor tem a mesma formação, nem todo fotógrafo tem a mesma formação. Isso faz com que cada relação profissional seja diferente. Muitas vezes eu demoro pra saber qual é a minha posição do filme. Eu faço isso há muitos anos, mas eu não sei o que se espera de mim a cada filme. Tem filme que o diretor decupa e fala direto com o câmera. Tem filme que o diretor não decupa. Tem filme que o diretor quer decupar junto. Tem filme que o diretor descreve uma luz e quer aquilo. Tem filme que o diretor mesmo que ele não goste da luz ele não vai criticar sua luz, por respeito. [...] Então qual é a função do diretor de fotografia? Eu não sei, cada filme eu tento entender qual é a minha função ali naquele filme. (PINHEIRO, 2014)
Podemos concluir que toda mudança tecnológica introduz uma série de novas
possibilidades e incertezas, que vão desde o aspecto técnico ao artístico e as relações entre
equipe. Sendo o cinema possivelmente a mais colaborativa das artes, não é estranho observar
como esse último aspecto tão pessoal e subjetivo exerça tamanha influência no processo de
criação cinematográfica.
Finalmente, a importância histórica de estudar essas mudanças hoje, quando a
intermediação digital já se consolidou como padrão de finalização, é conhecer os riscos e
possibilidades deste novo processo, para que os fotógrafos que estão começando se
aproximem com consciência e os experientes se adaptem de forma construtiva. Adaptar-se,
entretanto, não deve significar abandonar completamente as práticas e a experiência do
modelo anterior, mas entender qual a sua importância na construção artística e processual da
cinematografia hoje, para abrir-se à nova tecnologia de forma madura e sem medo das
armadilhas anunciadas.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando optei inicialmente por limitar o objeto deste trabalho às mudanças
fotográficas impulsionadas pela intermediação digital, deixando de lado as outras facetas da
digitalização cinematográfica, como a captação digital, meu interesse principal era reduzir o
campo de estudo abordado, permitindo uma análise mais aprofundada da importância deste
processo. Não poderia a princípio afirmar que essa mudança tecnológica havia sido mais
significativa, no campo das transformações artísticas, do que a evolução das câmeras digitais.
Ao longo desde trabalho, entretanto, me surpreendi ao perceber que ainda hoje as inovações
propulsionadas pelo advento do DI foram muito mais revolucionárias, na visão dos diretores
de fotografia, do que a evolução das câmeras digitais.
Enquanto a captação com câmeras digitais não apresentou até hoje uma grande
melhoria em termos de qualidade de imagem38, não há dúvida que a correção de cor trouxe
avanços significativos na forma de se trabalhar luz e cor, alcançando nuances antes
inimagináveis através do processo fotoquímico. (SOUZA, 2014)
Affonso Beato comenta aqui o que mostrou-se consenso entre os fotógrafos e o
colorista entrevistados: Artisticamente, [a intermediação digital] deu um poder muito maior de expressão pro diretor de fotografia, não tenho a menor dúvida. Essa parte eu acho que é a melhor parte. A parte da captação não. [...] Eu entendo que uma câmera digital te dá um “deixar você dormir tranquilo...”. Mas até hoje a câmera fotoquímica, é muito melhor do que a digital. Já o processo de intermediação, é muito melhor no digital, sem dúvida nenhuma. Seria hipócrita em não admitir isso. (BEATO, 2014)
Foi fundamental para mim este trabalho, enquanto parte de uma geração de estudantes
que já ingressaram no cinema pós intermediação digital, entender como se dava o processo
fotoquímico, e como trabalhava o fotógrafo naquele momento. A partir disso, busquei, no
segundo capítulo, apresentar as principais ferramentas de correção de cor disponíveis hoje, e
como elas modificaram a forma de se trabalhar a fotografia antes e depois da filmagem.
No terceiro capítulo, analiso as principais mudanças técnicas, estéticas e das relações
profissionais a partir do desenvolvimento da intermediação digital. Ainda que seja evidente
que essas ferramentas trouxeram uma grande evolução na forma de se trabalhar a fotografia, é 38 Podemos considerar como o grande avanço das câmeras digitais a evolução da sensibilidade. Câmeras como a Alexa, da Arri, podem trabalhar com ISOs de 1600, ou mais, sem apresentar ruídos significativos. (No caso da película, a maior sensibilidade disponível hoje é o negativo de ISO 500.) Ainda assim, para Fábio Souza, a imagem do negativo ainda é imbatível: “A imagem vem com um peso diferente. [...] a película ela tem um grão, ela tem a textura que é dela. E nas altas luzes, a película tem o soft clip...a luz não estoura, ela não vai reto e estoura, ela tem uma gradação diferente... E as cores são muito bem separadas.” (SOUZA, 2014)
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preciso ficar atento para que o abandono de algumas práticas tradicionais do trabalho do
fotógrafo não seja feito de forma inconsequente e acabe por prejudicar ao invés de contribuir
para o avanço da cinematografia.
As entrevistas realizadas com Mauro Pinheiro Jr., Affonso Beato e Ricardo Della Rosa,
três experientes fotógrafos, cada um na sua área de atuação, assim como com o colorista
Fábio Souza, da Labocine, foram sem dúvida a parte mais enriquecedora desta monografia.
As questões levantadas, tanto as que haviam sido formuladas anteriormente por mim, quanto
as surgidas a partir do diálogo com esses profissionais, compõem um material de pesquisa
inédito, que não havia sido encontrado em nenhuma fonte bibliográfica.
A importância desta troca com profissionais atuantes na produção de cinematográfica
reforça mais uma vez a necessidade de preencher esta lacuna no campo acadêmico do retorno
do conhecimento adquirido com a prática da filmagem. Acredito que este trabalho seja uma
pequena contribuição neste sentido e espero que inspire outros estudantes a pesquisarem
também a evolução da tecnologia, do método de criação, dos processos artísticos e seus
resultados no cinema.
Anexo aqui, então, a transcrição integral das entrevistas realizadas, na esperança de
que possam servir de material algum dia para um estudo mais aprofundado dos assuntos
levantados.
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BIBLIOGRAFIA
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SOUZA, Fábio. Colorista da Labocine em entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 2014.
PINHEIRO, Mauro. Diretor de fotografia em entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 2014.
DELLA ROSA, Ricardo. Diretor de fotografia em entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 2014.
BEATO, Affonso. Diretor de fotografia em entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 2014.
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ANEXO - Entrevistas
ENTREVISTA COM RICARDO DELLA ROSA
(Rio de Janeiro, Março de 2014)
Ricardo Della Rosa : Quando começou a intermediação digital no Brasil ? Você deve estar
sabendo melhor do que eu… Eu sei que fiz o primeiro filme finalizado em 2K (no Brasil), que
foi o Casa de Areia, antes era finalizado em HD.
Ana Carolina : Mas antes disso você já tinha feito algum filme que foi todo em digital ?
R : Eu fiz o Olga, que foi todo finalizado em HD, não foi em 2K.
AC : E em processo todo ótico ?
R : Só publicidade […]
Eu acho que é interessante a gente falar por exemplo, que o digital veio pela rapidez, para
baratear, mas ele veio e até hoje com um conceito de tentar reduzir [o custo] do que o ótico
fazia, não é que veio para mudar a linguagem. Então a gente filma em digital mas a gente quer
que pareça filme, uma loucura... Eu lembro que o desafio inicial na finalização digital era
assim : “como é que a gente vai fazer um bleach by pass ?” Entende ? O processo sem
branqueador... Como é que a gente simula isso digitalmente ? E aí a gente pensava, vamos
fazer isso na película, e ai depois a gente vê aquilo que a gente quer. Eu cheguei a fazer testes,
rodados em película, finalizados em película e depois filmados de novo e finalizados em
digital para tentar reproduzir aquilo digitalmente. Então eu acho que o digital veio para
simular tudo aquilo que o filme fazia : todo tipo de revelação, a alquimia toda que você tinha
no laboratório, […] ai apareceram novos técnicos, com ferramentas diferentes. Eram pessoas
que vieram do Photoshop, do mundo digital, com pouco conhecimento da parte química.
Então esse início foi bem delicado. Porque você falava termos tipo “mais dois pontos de
verde”, que é uma linguagem do laboratório, “menos um de magenta” […] Você ia colocando
gelatininha ponto a ponto no laboratório. Então quando você falava assim “põe quatro, menos
dois” eles não entendiam… a velha geração muito mais do que eu já estava acostumada com o
laboratório, mas eu também tinha alguma experiência...
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AC : Então,você estava falando da transição, que era uma coisa inicialmente de fazer a
mesma coisa que você faria [na película], sem usar as outras ferramentas que o digital
proporciona.
R : Que são enormes…tanto que os primeiros coloristas eram os coloristas de laboratório, que
tentaram se adaptar ao digital, tiveram médio sucesso...aí veio a galera nova que tinha
domínio do digital e que tomou o negócio.
[…]
O que que acontece, quando a fotografia passou para o território digital, teoricamente, todo
mundo acreditava que facilitou a fotografia. Que você faria a fotografia no telecine. Que você
só tinha que imprimir ok, com informação, que depois você fazia tudo na marcação de cor.
Porque até os coloristas vendiam isso… O que não é uma verdade. Cada vez mais é uma
verdade, mas na época tinha muitas limitações, pelo menos no início aqui no Brasil.
Hoje em dia, funciona um pouco diferente. A boa câmera, é aquela que você tem latitude, que
tem informação no preto e no branco, ou seja, que você tem tudo realmente. Pra realmente
fazer acontecer na pós. Na época da película, se escolhia o negativo que tinha mais latitude,
menos latitude, já tinham os pretos mais pretos desde o início. Até porque, era uma coisa de
louco, a relação do fotógrafo com o diretor era diferente, porque na película você conseguia
imprimir uma coisa meio que sem volta. […] Essa sempre foi a eterna briga, os fotógrafos
sempre queriam o filme com mais contraste e o diretor queria ver mais os olhos dos atores.
Então você tinha recursos que você fazia quimicamente, o sem branqueador era um desses,
que era alto contraste e não tinha volta. Ou na revelação… O digital mudou hoje
completamente. E ficou mais fácil…mais fácil não sei, mas ficou diferente. Com mais
“range”. E abriu o campo pra muita gente entrar. Antes os fotógrafos eram super fechados.
Tinha aquele grupo, e depois ninguém entra. Quando eu entrei era um boicote geral. Depois
de uns 3 anos trabalhando, já tinha fotografado bastante coisa na faculdade, mas eu não
conseguia emprego. Porque era isso, era uma ditadura dos fotógrafos. O visor, só fotógrafo
olhava no visor. Então você via aquele video-assist meia-boca pra caramba e todo mundo
acreditava que o fotógrafo sabia o que estava fazendo e ia ficar legal. Então mudou um pouco
o poder.
AC: Eu passei um ano agora na França, numa escola de cinema lá. E aí tinha um professor
que era super tradicional. Nos primeiros cursos que a gente fez, ele falou “sem vídeo assist”.
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Você vai fotografar sem vídeo assist porque eu quero que você tenha a experiência, de confiar
em você [...]
R: Mas hoje em dia, passa a mulher do cafezinho lá atrás e fala “pô, você não acha que tá
muito claro aquela parede, Ricardo?”. Fala desse jeito, virou um negócio democrático pra
caramba.
AC: Aí eu vi um debate com uns fotógrafos ingleses e de Hollywood discutindo o corte final,
o que seria o corte final do fotógrafo. O fotógrafo tá perdendo o poder, a gente tem que ter o
nosso contrato o corte final da cor, com as produtoras opinando muito, você perde o domínio.
O que acha disso?
R: Eu fiz um filme lá [nos Estados Unidos], um filme de ação assim, que no meu contrato eu
tinha que marcar cor. Chegou na hora da marcação de cor, o diretor falou “não, não quero
você aqui dentro”. “Não, mas eu queria dar uma olhada pelo menos”, “não, não, não”. Não fui,
ficou uma merda, ficou totalmente diferente do que eu tinha feito.
AC: Aí é o contrário você tem que ter no seu contrato que você quer marcar a cor...
R: Exatamente. Tem o outro lado da moeda.
AC: Mas então, falando dos seus primeiros longas que ainda estavam nessa transição. O que
você acha que mudou? Você estava falando desse processo, você ainda tentava mais
reproduzir uma coisa da película e hoje se pensa diferente?
R: É, hoje pensa um pouco diferente. Na verdade a película continua sendo a grande
referência. Porquê? Finalização ótica hoje só se realmente o filme não tiver grana nenhuma...
Hoje aqui no Brasil, acho que nem se consegue finalizar ótico, o laboratório aqui no Rio
fechou, São Paulo fechou. Mas hoje não faz muito sentido...
A finalização digital faz você ganhar tempo no set. O lugar onde você faz uma sombra
naquela parede, colocar ali uma bandeira, vai perder um tempo, não sei o que. Não, deixa eu
faço uma máscara no telecine. Normal. No ritmo que a gente filma hoje, no plano de
filmagem que tem, se não tivesse finalização digital ia ser uma merda. Então é difícil você
pensar.
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Hoje eu li uma matéria por coincidência, dois fotógrafos franceses falando que... eu acho que
são os grandes fotógrafos franceses, um é o Bruno Delbonnel e outro, como é que chama? Eu
já lembro... Eles falam que tiveram a sorte de não rodar nenhum filme em digital. Nos últimos
projetos, com três diretores diferentes, que foi: os irmãos Cohen, esse último aí, Inside
Llewyn Davis, Fausto, e, esqueci o terceiro. Todos os produtores vieram falar “vamos fazer
digital” e ele falou assim “eu nunca filmei digital, não sei filmar digital. Gostaria de fazer em
película. Vamos ver quais são os prós e contras”. Os três diretores são muito visuais, então
vamos fazer em película. Isso a captação. Aí ele diz assim “Mas eu não consigo hoje
finalizar”. São os caras tipo peso pesado.
Eu tenho os meus dois finalizadores digitais, que eu não consigo fazer filme mais sem os
caras. Faço questão que eles estejam em todas reuniões de conceito. Porque eles que vão
segurar minha onda lá. Então acho que tem isso agora, mudou um pouco a maneira de se
chegar a isso. Porque eu acho assim, no nosso caso aqui, que é o que faz a diferença hoje num
filme. Às vezes, se tiver que abrir mão de uma luz, pra ter o colorista que eu quero, finalizar
onde eu quero, é uma vantagem. Eu fico sem luz, mas preciso ter esses caras. Entendeu? É
uma coisa que não se dispensa mais.
AC: É um mudança de poder ?
R: Exatamente. Então é isso, hoje é uma parceria do fotógrafo muito importante. No meu
caso, por exemplo, sempre fiz todos os filmes com o mesmo colorista. Que eu acho
fundamental...quando me chamam, eu falo assim “gente arruma alguma coisa, diminui o meu
cache, mas eu preciso fazer com esse cara”. Que é o Serginho, que é um cara que é meu
parceiro. No Penetras não sei se você lembra, a gente teve aquele White Gorila no set. Aí
trouxe ele no dia pra sentar lá com a Júlia, DIT, marcar o look mais ou menos como era.
Deixou meio pré-setado, porque ele ia fazer o pra valer.
Então esse conceito de equipe mudou muito. Acho que o acabamento em pós produção hoje...
por exemplo ontem teve a pré estreia de um filme em São Paulo e aí falei com algumas
pessoas “como é que foi?”, “oh o acabamento tá incrível”. É uma coisa assim, foi bem feito o
negócio. Antes não se falava nisso. Acabou, acabou ...
AC: Eu tava perguntando sobre como isso mudou, falando da sua experiência, a sua forma de
fotografar no set? Você já falou do negócio de às vezes não se perder tempo com algumas
coisas...
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R: Acho que é isso, hoje você mais ou menos tem que ficar dentro daquela latitude digital,
aperta lá o Log C pra ver, “ah, tem toda a informação, eu consigo resolver”. Não é nas coxas,
mas assim, é um pouco mais folgado do que antes, aquela tensão do produtor, como é que vai
ficar a revelação...como é que vai ficar a cópia. E às vezes ficava nós dois sem dormir
esperando o material chegar.
É óbvio que tem coisas que são irreversíveis. Você não vai fazer uma luz de frente e achar
que depois na marcação, você vai fazer outra luz. [...]
Ficou mais folgado pra se trabalhar. Que tem o lado bom e tem o lado ruim que eu te falei,
porque você perde um pouco a autoria. Porque você vai apresentar, no caso de um longa-
metragem pro diretor, ele vai entrar lá e dizer “quero mais claro”. O cara vai apertar um
botãozinho, vai ficar mais claro. Não é o que você quer, não é o que você imaginou...
E hoje você nem consegue, como antigamente, escolher como você ia finalizar oticamente, a
revelação, tudo. Que você conseguia realmente ser irreversível. O preto é preto, não tem...hoje
não tem isso. Pede pra ficar cinza...
Então tem o lado bom, acho que só tem lado bom... Mas tem o lado que é assim, tem filmes
que eu vejo, que eu tenho certeza que o cara pagou o cachê mais alto pra aquele cara e o cara
quer que ele apareça...e em uma visão não artística do produtor, que acha que quanto mais
claro melhor.
AC: Então como se faz pra manter a autoria?
R: A primeira coisa é a escolha do diretor. Aquele cara tem olho? Ou é um cara que
realmente só preza produtor... E papo né? É muito importante aí a parceria. Por exemplo, o
Serginho, porque? Porque o Serginho é o cara que vai me proteger. Na hora que o diretor
falar..., ele vai falar “cara, esse é o limite”. A real é que pode não ser de fato. Mas é o limite
dentro do artístico, que a gente concebeu. Se o cara quiser voltar e pagar mais, até pode, mas
ele vai ficar e vai me defender junto.
Mas se você entrega totalmente, esquece. Uma pessoa, que você não sabe se tem um olho que
combina com o seu...
AC: E isso você acha que é diferente mesmo hoje, quando você filma em película, ou em
digital, tem alguma diferença em relação a finalização?
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R: Porque a película tem uma etapa a mais, mesmo que seja a finalização digital. Você tem a
etapa da revelação, duas na verdade, revelação e escolha de negativo. Que você não faz isso
numa Alexa, só tem o Log C, sempre vai ter aquela latitude. Tem negativo, sei lá, ASA 50,
que a latitude é mínima. Então já vem contrastado pra caramba. Apesar que a evolução do
negativo também foi pra isso, mais latitude, mais latitude. É muito mais conveniente pra todo
mundo, você ter a informação do todo e decidir o que você quer depois. Só que o orçamento
hoje é caro, a pós produção digital. É muito mais caro que o ótico, pra fazer bem feito. Então
muitas vezes, o que acontece? Como é a última fase do filme, estourou tanto filme, que vai
acabar pós produzido de uma maneira mais ou menos. E aí o que acontece? Você não vai
conseguir a casa que você queria, os técnicos que você queria, que são muito mais caros,
provavelmente. Então, quando estoura lá o orçamento, o cara não quer saber. “Não, é isso
aqui, vai ser desse jeito”, diz o produtor. Ok, que eu vou fazer? É dinheiro, eu não vou pagar
pra fazer.
Eu acho que mudou um pouco sim. Eu levo muito em consideração, pra pegar um projeto,
quem tá envolvido. Porque eu sei que se o diretor quiser e acreditar naquilo, vai ser daquele
jeito. Mas se o diretor, como na maioria das comédias, por exemplo, pouco tempo pra filmar,
elenco global, que ganha uma grana. A fotografia não tá nem na lista das 20 primeiras
prioridades. As prioridades são outras. Então vai ficar daquele jeito, mais ou menos. Não vão
gastar o dinheiro com isso. Então eu acho que hoje o fotógrafo ele tem que saber por onde ele
tá caminhando e também o pessoal. Eu levo isso em consideração bastante. No mundo digital,
tudo você pode fazer. Noite virar dia, dia virar noite. [...] Mas eu tou falando das coisas ruins,
tem muita coisa boa...
AC: Uma pergunta desse trabalho é...o que mudou na forma de fazer? Essa coisa que você
falou de filmar mais rápido, isso é claro, acho que é uma consequência disso. Mas o que você
acha que mudou na estética do que se faz hoje, que não dava pra fazer antes? Ou que era
muito difícil e não se pensava?
R: Acho que aumentou as possibilidades[...] Hoje realmente, a finalização digital tá num
nível muito alto. Você pega uns filmes, sei lá, Hugo Cabret, vê o resultado final e vê o que
filmaram. É um nível muito alto... E os filmes, que tão ganhando o Oscar... São todos filmes
de pós produção pesadíssima digital. Inclusive, tá até tendo uma conversa agora na ASC que é
a Associação Americana de Cinematografia, que fala que devia ter dois prêmios. Filme que é
finalizado no digital e filme que não é finalizado no digital. Só que o não finalizado digital
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hoje em dia não é não finalizado com marcação de cor, é que não tem tanta interferência do
digital.
AC: É difícil saber os limites...
R: Exato. Eu acho que, pra mim, hoje, fazer um filme sem finalização digital é inconcebível.
Eu acho que mantendo o ritmo de que tem filmar, de cronograma...
AC: E você também não tem algumas opções, por exemplo, de variedade de negativo?
R: Não tem. Fora isso, você quer revelar um material, o laboratório tá com aquela máquina
parada há um tempo.
O último filme que fiz comercial pra Natura, que até hoje só pode fazer em película,
aconteceu isso, perderam dois rolos. Porque a química tava parada, não sei o que, fizeram
alguma coisa errada. Acontece isso, que também já acontecia antes. Era um risco pro produtor,
tinha que fazer seguro da diária caso desse problema no laboratório.
Hoje em dia, qual o maior problema que você tem? Tem um backup lá que pode perder? Pode.
Pode ter dez backups com problema? Pode. Mas é uma chance menor. Eu acho que...
Esteticamente o mundo digital é muito amplo. Você pode falar assim, deixa eu finalizar um
filme que não tem nenhuma interferência de pós, é só marcar cor. [...] Ou você tem esse tipo
de filme que só marca cor, vira um arquivo e você manda pra todos os cinemas. Ou ainda vai
passar por computação, vai ter, sei lá, multiplicação de gente, fazer cenário. O próprio
Penetras que a gente fez, a gente filmou tudo chroma. Então falar hoje, pós produção digital
hoje é o que? É tudo isso.
AC: Vamos falar da parte de cor... Em termos do que você acha que foi o avanço da correção
de cor? Você mudou a forma de pensar a fotografia?
R: Acho que mudou. O primeiro filme que eu fiz finalizado em digital foi o “Olga”. Que o
“Olga” tinha umas coisa assim, tinha uma parte de neve na Alemanha. Tinha campos de
concentração na Polônia. Tinha umas coisas que foi tudo filmado no Rio, no verão. Só que eu
não tinha o conhecimento nessa época, esse mundo digital, o quão profundo poderia ser,
como tem hoje. Então isso aí seria muito mais fácil. Então o que que fazia? Filmamos tudo,
para que se finalizasse ótico ou digital funcionasse. Eu não sabia o recurso. Então a neve, eu
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cobria tudo, azulava as luzes, fazia o que eu queria. Hoje, tá muito mais fácil...talvez não
cobrisse, deixasse o sol porque depois eu sabia que podia baixar o brilho. Ah, Rio de Janeiro
no verão, meio quente, sem nada pra esfriar, muda a temperatura. [...) Só que era um filme
que a gente filmou em 14 semanas. Hoje, provavelmente, só em função disso levaria 8
semanas. Isso em termo de dinheiro é um absurdo. Pensando nessa evolução, hoje eu entendi
muito mais as ferramentas da pós e entendi quão longe dá pra chegar. Então hoje eu acredito
mais na filmagem, como assim eu me viro. Então, continuidade, esse era o problema, às vezes.
A mesma sequência fazia durante 3 manhãs. Porque eu achava que depois das 10:00 da
manhã não dava mais. Hoje eu sei que não, a gente começa filmar de manhã, vai até o fim de
tarde. Dá uma forçada daqui, uma forçada de lá, mas vai chegar. [...] Ganhou-se muito em
tempo, consequentemente em dinheiro. Isso que eu te falei também, essas coisas da bandeira.
Você deixa de pôr uma bandeira que antes era sombra, tem uma máscara lá pra colocar. Mas
sempre confiando também que você tem a pessoa que vai mexer naquela máquina. Que a
máquina é o de menos, é quem vai botar lá, que é uma pessoa que você confia. Eu acho assim,
cada filme também já é pensado desde o início, como que vai ser o produto final. Qual o
resultado que você quer? Então eu acho que até por isso que hoje eu estou mais confiante
porque você vai fazer testes específicos pra aquele caso... Então na hora que você vai fazer a
reunião lá de plano de filmagem, o assistente de direção pergunta “você faz esse plano em 2
horas?” Você sabe que você faz. Eu faço em uma, pode por aí no plano. Então deu essa
confiança.
AC: Como que você trabalha estes testes de antes da filmagem e durante a filmagem, no caso
com o White Gorila. Como você faz pra trabalhar isso?
R: Os testes? Eu gosto de fazer os testes antes. Chegar num resultado, apresentar pro diretor,
produtor, “olha é isso aqui que eu quero chegar”, “gostamos, não gostamos”. Sempre vai
mudar no final, eles não querem mais aquilo, querem outra coisa. Mas você já encaminhou
pra um lugar que é confortável de você estar.
Então se o filme inteiro, a gente não vai poder filmar a noite porque não tem grana pra
iluminar a noite. Dá pra fazer tudo noite americana? Vamos fazer um teste.
“A Deriva” foi assim, tinha uma cena que tinha que ser noite na praia, só que teria que
iluminar. Fizemos um teste pra ver como é que ia ser noite americana, funcionou, ficou pronto,
foi. Senão ia ser caminhão de luz, filmar a noite mesmo. Eram coisas...assim, o teste deixa
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todo mundo tranquilo na hora de filmar. Por mais que você filme, tá olhando de um jeito que
não tá convencendo, depois você sabe no que vai se transformar.
AC: E você já trabalhou com aplicação de look na filmagem...pro diretor já ver, você acha
que isso faz diferença ?
R: Faz. Acho que faz muita diferença. Porque em processos mais longos, diferente da
publicidade, o diretor convive tanto tempo com aquele material na montagem, na filmagem,
que ele acaba se apaixonando pelo tudo. E depois você não consegue reverter. Por isso o
White Gorila...por isso no Penetras, eu trouxe o Serginho, porque eu queria que o Andrucha
montasse o filme bem próximo do que ficaria. Porque depois seria quase que impossível
mudar. [...] Então, acho que é isso. Hoje, você na caixinha lá, você tem um cartãozinho já
com looks, e fala assim “oh, experimenta esse aqui. Faz um testinho 2, 3. Tá bom, joga isso
aqui pro vídeo”.
AC: Que seria uma forma de garantir o que a gente estava falando antes?
R: Exatamente. Teve um comercial, que a gente tava lá todo mundo e ele fala “ah, tô achando
muito frio isso aqui.” “Ah, peraí, que você acha disso aqui?” Então já muda o look e deixa
fechado, que todo mundo fica tranquilo. Se você deixa, o Rec 709, nem sempre é tão próximo
do que você pode fazer. Então eu acho que isso é o essencial hoje em dia. Andar com uns
lookzinhos...
AC: Vamos falar sobre o estético, que a gente não falou tanto... O que pode ter mudado no
resultado final? O que mudou no olhar?
R: Eu acho que assim, esteticamente o que mudou na finalização digital? Eu acho que assim,
você consegue cores hoje que antes você não conseguia, em película. Você consegue nuances.
Você quer um céu mais ciano, antes não conseguia. Você chega a lugares muito mais
distantes...
Você quer uma pele super branquinha, num ambiente sei lá...é mais fácil de um trabalho
assim, eu fiz uma campanha da Sky com Gisele Bundchen, que tava meio bronzeada. Só que
no filme ela tinha que ser uma mafiosa, branca, tal. Antigamente, sem ter essa finalização, era
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ou uma maquiagem animal, que não teria tempo hoje. Ou você não teria como, fazer não teria
como selecionar só a pele dela...
Chegou na hora todo mundo ficou preocupado. Aí cheguei pro DIT “Faz uma máscara nela
separa do chroma, tira o tom, deixa ela branquinha. E todo o resto mantém”. Ela “incrível
isso”. Isso a gente não conseguia antes. Conseguia no tempo, hoje você consegue com menos
tempo. Pegava essa maquiagem e rodava um teste, “chegou lá?”, “mais ou menos”. Um
pouquinho mais de vermelho e o contrário também.
Nessa mesma campanha da Gisele, tinha a Claudia Leite. Ela queria aparecer morena,
aparecer bronzeada. Porque ela achava que ela tinha que aparecer assim... só que ela não tava,
tinha passado um tempo fora. Mesma coisa, entendeu? Te dá recursos muito rápidos...
Só que o principal além disso, criativamente são os lugares que você pode chegar. Fazer uma
máscara que vai tendendo pro azul. Sei lá, acho que tinha uns caras bons que sabiam fazer, eu
nunca soube. Então acho que criativamente gerou um mundo gigantesco. Só que todo tipo de
evolução nesse sentido, que te abre o leque, abre pra você, mas ao mesmo tempo, tira um
pouco o poder de escolha. Porque você pode gostar do azul e o cara do amarelo, o diretor. Vai
ser amarelo, abriu pra todo mundo isso.
AC: Agora todo mundo tem conhecimento...
R: É, conhece os recursos [...]
Então de qualquer maneira, mesmo pra agência de comercial, o cara sabe hoje que ele pode
criar um filme de neve, filmar aqui nas ruas de Cabo Frio, que vai ficar incrível. Que vai
funcionar e vai custar barato porque é só dar uma azuladinha nas altas. Então, já traz um
conceito geral de criação da fotografia, que às vezes nem vem do fotógrafo. Vem de
referências fotográficas que a agência fez, que o cara fez no Photoshop lá... E ele sabe que
você vai chegar, “e aí cara, você acha que chega?”, “chega”. Então, criativamente, se a gente
não fala de uma coisa muito específica, é difícil falar.
AC: Então fala assim, de um longa recente seu. Como você pensou algo na fotografia que
você não pensaria antes? Você estava falando do “A Deriva”...
R: Tem uma cena do “A Deriva”...Se fosse em outros tempos, acho que nem iluminada eu
conseguiria fazer. Na praia, uma menina correndo durante 4 minutos. Menina correndo na
praia, noite. Chega no mar, você tem que ver o mar, tem que ver o olho dela. Como é que
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você faz isso? Ou você faz na hora mágica e você tem um take pra fazer... 4 minutos e é isso...
Ou você fala pro diretor, vamo fazer esse plano dia, muda muito? Ou então vamo fazer uma
coisa assim, ela tá correndo com um lampião. Você ia ter que interferir mais na história. Esse
daí eu achei que não ia dar certo. Era de dia, fim de tarde mas com tempo pra rodar pelo
menos uns 5 takes, com folga. Achei que o céu tava muito mais claro, achei que não ia dar
tempo.
Mandei pro Serginho...Falei pra produção que tinha que ser o primeiro plano do filme, que dá
tempo dos caras testarem isso, qualquer coisa a gente refilma. Tava preocupado. Senão ia
fazer isso, uma solução tipo ela correr com uma lanterna na cara...ou filmar de dia...aí o
Sérgio começou a me mandar uns vídeos, eu falei “opa, isso aqui tá bonito pra caramba,
funcionou”. Então essa foi uma cena que não faria de outro jeito. Mas é difícil dizer...
AC: Acho muito interessante isso, o que muda na estética. Porque óbvio que existe uma
coisa autoral, mas existe uma coisa que muda no gosto, digamos assim, das pessoas... Você
falou da cor, de você chegar em lugares, sei lá, mais artificiais talvez. E o gosto vai se
aproximando disso né?
R: Exatamente. Vai mudando. As novas gerações vem com esse olhar. Eu, por exemplo,
continuo achando que as melhores fotografias não tão no mundo digital. Tem uns filmes que a
gente olha e fala “nossa, que loucura isso”. Ainda são antigos. [...] Pode ser um pouco de
saudosismo? [...]
Então eu acho que ao mesmo tempo que teve tudo isso. Facilidades, caminhos que você pode
ir mais longe de cor, contraste. As pessoas hoje precisam se aprofundar menos. O fotógrafo
não precisa se aprofundar tanto. Eu me incluo nisso. Você sabe que você divide essa autoria
com muita gente agora. Então não tem aquele negócio do cara que desenvolveu uma lâmpada,
usou uma gelatina que virou uma coisa única só pra aquele cara. Você não consegue fazer
hoje. Consegue, mas você vai apanhar. E outra coisa, no mundo digital se um faz uma coisa
que ficou legalzinha, principalmente na publicidade, todo mundo já começa a seguir esse
caminho. De repente você vê e está todo mundo com aquele look Alexa. Tudo assim bem
lavadinho, com pele bem rosinha. [...]
Hoje em dia, o mundo da publicidade é uma loucura. O cara na agência, pega uma foto no
Instagram, põe um filtro, diz o que quer...Então assim virou muito democrático, pro bem e pro
mal.
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AC: E essa coisa do Instagram é muito doido. Porque teoricamente o cara fez o aplicativo pra
reproduzir efeito de filmes velhos e e aí vira uma coisa...
R: Moderna, contemporânea...é que na verdade já fizeram de tudo, a gente só vai voltando pra
lá e pra cá. Se você olhar mais longe, os pintores... os caras realmente fizeram uns telecines
animais.
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ENTREVISTA COM MAURO PINHEIRO JR.
(Rio de Janeiro, Maio de 2014)
Ana Carolina : Qual o primeiro longa que você fotografou? Já era finalização digital ou
ainda foi processo ótico?
Mauro Pinheiro Jr. : Foi o “Aspirinas...”39. Foi ótico, mas foi contra-corrente. Foi ótico já
num momento que todo mundo dizia que era loucura fazer ótico.
[...]
Meu primeiro curta foi em 92, e aí de 92 até 2003, quando eu fiz o meu primeiro longa, eu fiz
todos os meus curtas óticos. Basicamente o que eu sentia que quando a gente filmava exterior
dia a gente ficava muito na mão da Kodak. Esse era o negativo novo da Kodak, essa vai ser a
cara do meu filme. E aí eu comecei a procurar o laboratório, porque eu queria saber como
mexer nisso um pouco. E a UFF tinha uma relação muito boa com a Labocine. Então eu tinha
acesso aos caras. E eu fazia longa como assistente de câmera e eu era bem rato de laboratório
durante os longas. Eu era contratado pra fazer aquelas semanas de filmagem mas eu colava
nos fotógrafos, tanto antes quanto depois. Então eu andava lá por dentro, os caras super me
conheciam. Eles ficavam a vontade com minha presença lá. E aí eu comecei a ter acesso aos
caras e eu falava “E se a gente fizer um pouco disso, um pouco daquilo?” A Labocine nem era
um laboratório que tinha essa tradição de pesquisa, como era a Marta Reis depois na Mega,
que foi a pessoa responsável pelo “Aspirinas” no laboratório. Mas eu já fazia bleach bypass,
já puxava, já subrevelava, já fazia várias coisinhas nos curtas. E o “Aspirinas” foi o meu
trabalho de pesquisa de laboratório mais forte. Só pra falar disso como exemplo pra ver a
diferença de método né. Eu fui pro Sertão, com o Marcelo, a gente foi ver locação, aí eu levei
minha Bolex, com reversível e negativo, levei uns 30 rolos de negativo, sei lá, na época era
um 250 ASA e um 50 ASA rebobinados nas bobinas de câmera fotográfica. Aí tirei 4 filmes
na viagem inteira, com 3 exposições cada foto. E tirei 20 filmes, de menos 4 até mais 4, de 3
situações, que eu parei na viagem pra fotografar, e comecei a fazer essa pesquisa. Mandei pro
laboratório e falei “um revela normal, um revela puxando, um sub-revela”. Aí a gente via esse
material e eu falava “Marcelo, gostei muito desse contraste, mas gostei da saturação daquele,
que que a gente faz? Você gosta assim também?” e ele “É, acho que pode ser bacana isso”. Aí
a gente ligava pra Marta Reis, na Mega, e falava “Marta, é o seguinte: o contraste do puxado
39 “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes, lançado em 2005.
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foi legal, mas ele ficou muito saturado, a dessaturação do revelado é boa, então vamos tentar
um bleach de 2/3?”, “Aonde? Na revelação ou no internegativo?” Aí a gente revelou 10, 15
rolos, cada rolo de uma maneira diferente.até a gente chegar em um e falar “esse a gente
gostou”. E o que a gente gostou era exposição +2, e um internegativo de 2/3 de bleach. E aí a
gente pegou aqueles 4 rolos que eu tinha feito da viagem inteira, das casas, das pessoas, e
revelou neste processo que a gente escolheu.
E aí você chega com um compromisso... o diretor de arte, que tava com a gente na viagem,
vendo essas fotos... ele conhece o lugar, ele viu aquelas pessoas, aquelas casas, e ele sabe
como isso imprime. Então ele começa a trabalhar em cima disso.
Aí a gente fez outros testes, aí eu filmei. Peguei um 16mm e filmei, pra poder amarrar como
seria o processo inteiro mesmo. Pra ver grão...porque eu tava com foto estática 35mm e o
filme era 16mm...Foi um super trabalho de pesquisa, que envolve os outros departamentos.
Então tem o lado bom e o lado ruim da intermediação digital né. A gente se preparava mais. A
gente pesquisava mais, e eu sinto que as produções eram mais abertas pros testes...porque não
era fácil negociar com o laboratório [...] Por outro lado, ficava eu, Marcelo e Marta Reis
analisando os resultados na projeção de slides do Mega. Isso não custa quase nada, a não ser o
tempo da Marta, que é precioso, mas que era funcionaria e o nosso tempo. Se eu entrar numa
máquina de correção, ai tá contando o taxímetro da máquina, a intermediação digital é cara
[...] Ou seja, ficou mais caro o processo de pesquisa. Essa cozinha, ou seja, de experimentar
os temperos, ficou muito mais cara. A sensação que eu tenho é que os filmes se concretizam
mesmo na pós, hoje em dia. Só que aí é um pouco cruel pro diretor de arte né? Porque
eventualmente ele fez um trabalho se preparando pra alguma coisa, mas aí chega na pós e
transforma tudo em outra, e pra ele não era tão bom. Ou ele poderia ter feito diferente se
soubesse que era assim. E aí a gente transfere as decisões, hoje em dia, muito pra depois...
Eu gosto de tentar antecipar as decisões, pra todo mundo tentar participar das consequências
das decisões, porque o cinema é coletivo né...Então isso é um aspecto que eu sinto que mudou
bastante. Os tempos de preparação tem diminuído muito. Ninguém tira uma semana de
filmagem, mas se tira da pré. Também se tira da filmagem, mas até você tirar uma semana de
filmagem, já tirou da pré antes.
A questão positiva, por exemplo, eu hoje estou fazendo televisão. [...] Que seria o outro
extremo disso. Que é...não em tempo, é muito rápido, e é assim que é. Não é porque deu
errado, é porque é assim que é. Tem que ser rápido, porque é televisão, porque é um
mecanismo industrial que tem suas características. Hoje a TV se beneficia dessa mesma
questão que a gente nos longas se beneficia. Antigamente a gente ficava mesmo, esperando
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dois caras subirem lá em cima pra botar uma bandeirinha pra fazer uma sombra na parede.
Hoje em dia você não faz mais isso. Então a gente pré-cozinha a imagem na filmagem. A
gente sabe que vai terminar a imagem depois. E eu acho que isso é muito positivo pra
dinâmica do set. Eu me sinto muito mal se eu tenho que interromper, agora porque vamos
inverter o eixo, eu tenho que interromper o fluxo do elenco, o elenco está numa emoção, e eu
tenho que interromper porque eu tenho que mexer uma coisinha ali no fundo. Coisinha ali no
fundo, depois a gente faz. Aí a filmagem ganha uma dinâmica onde as prioridades viram
outras, é um aspecto muito positivo...
AC: E como você trabalha, você falou que você gosta de antecipar...No caso da
intermediação digital, como você trabalha? Você já tem o colorista antes? Você tenta já
trabalhar um look antes?
MP: Eu sempre tento, e depende muito da capacidade de compreensão das produções disso.
Mas sinto que cada vez mais as pessoas entendem isso. O diálogo com o laboratório é
fundamental, antes. Por exemplo, o “Sudoeste”, que é o filme do Eduardo Nunes, ex-aluno da
UFF também...Ele tem uma questão que é de imagem, que é de laboratório mas não é
processamento de imagem, que é a questão do aspecto dele, da janela que é 2.35. Aquilo, a
gente foi pra locação, tirou umas fotos, veio aqui pra casa, ficou recortando as fotos. E eu
comecei a achar que por algum motivo eu tava recortando as fotos muito horizontais. E a
gente começou a discutir o motivo disso. E a gente começou a entender que o motivo era
muito precioso e que a gente devia tentar levar isso adiante. No caso do filme o filme é a
história de uma menina que envelhece 80 anos num dia, enquanto o resto do mundo passa no
tempo real. A gente achava que o tempo era uma coisa muito importante, era um personagem
do filme. E eu ficava meio encucado, porque eu achava que um plano longo não seria
suficiente, precisava de alguma coisa a mais. E aí quando eu fazia os recortes, a gente
entendia que tinha muito mais assunto que um close. A pessoa deixava de ser a medida das
coisas num quadro. Quando a gente fala plano americano, plano médio, tem sempre um ser
humano de referência...[...] A gente começou a acreditar que aquilo ali fazia com que o tempo
de visualização do plano mudasse, era importante...
Isso, por exemplo, não dava pra descobrir depois, tinha que descobrir antes. [...]
Isso é uma coisa muito simples de fazer, do ponto de vista digital, é só cropar. Mas a
elaboração disso, que é o que a gente fez durante o set, é o que faz com que dê certo...Uma
sacação de pós ali, ficaria frágil.
65
[...]
AC: Uma questão que tem surgido é... Com a finalização digital, de certa forma, abriu uma
série de possibilidades, aumentou o campo de trabalho. Mas ao mesmo tempo, se facilitou
muito, como que você mantém a autoria, o conceito, uma proposta do início ao fim do
trabalho?
MP: Eu acho que, na verdade, existem processos criativos que são muito diferentes né? Por
exemplo, em várias instâncias do audiovisual, você tem que ser inovador, ou no mínimo
seguindo uma tendência. Pra alguns lugares do audiovisual, ineditismo é muito importante.
Ou pelo menos estar ali atualizado. Eu acho que no caso do cinema, algum cinema mais
comercial passa por isso também, mas eu acho que a maior parte dos filmes que eu faço não
tem um compromisso de ser diferente, de ser inédito, de nada. Tem um compromisso com o
roteiro. Então você lê o roteiro e sai de dentro dele, o que que esse roteiro tá me
dizendo...Então eu acho que esse assunto é um assunto pra 3, 4 pessoas: diretor, diretor de
arte, fotógrafo e produtor. E eu acho que quanto mais as ferramentas pra essa pesquisa
tiverem a mão, quanto menos você tiver que contar com uma estrutura...Por exemplo, pra
mim, ficar com o laptop aberto mexendo as fotos que eu tirei do lado do diretor, ficar
discutindo, isso é muito mais importante do que eu ir para uma sala de marcação de luz de um
laboratório. Porque eu vou ter aqui, quantas horas quiser ficar olhando essas imagens, pra
tentar descobrir o que faz parte, o quê que do filme tem dentro dessa foto e o quê que não tem.
[...]
Eu não sei quem conta essa história, acho que foi o Waltinho, que foi pra algum lugar, e tinha
um artesão fazendo girafas à partir de madeira, de tronco. E ele perguntou: “como você
consegue fazer essa girafa desse tronco?”. E ele falou: “ É muito fácil, eu olho pro tronco, e
tudo que não é girafa eu tiro.” Que é um jeito muito bacana de se pensar...Que você tem um
lugar, você faz uma imagem e o que que pertence ao filme dessa imagem? O que que você
tem que manter e o que tem que transformar? [...]
AC: Você tem uma forma de trabalhar hoje, que facilite, manter essa imagem, esse conceito
pensado antes com o diretor?
66
MP: Eu tento simplificar muito a filmagem. Simplificar significa, por exemplo, o Sudoeste
que era um filme em preto e branco, eu botava a minha câmera pra visualizar em jpeg preto e
branco. Sem ficar futucando no preto e branco, sem botar no laptop o tempo todo. [...]
Eu acho que tem uma questão que passa pela formação, como você foi formado na fotografia.
Porque eu acho que tanto a pintura, quanto a escultura, o cinema, a fotografia...o que faz o
produto final é a imagem que a gente tem na cabeça. Então o pintor, enquanto ele pinta ele
tem uma imagem na cabeça. O escultor também, o fotografo também.
Existe uma relação da fotografia hoje na formação que é estranha pra mim. [...] Antes de tirar
a foto, é importante você ter uma reflexão sobre o que você tá olhando. Quem aprendeu a
fotografar em película, em negativo, tem isso por formação, não tem como você perder isso.
Quando eu comecei a fotografar, garoto, eu demorava 2, 3 dias pra ver a foto. Então não dava
pra eu sair clicando, aleatoriamente e concertando depois...
[...]
Por exemplo, esse exercício de olhar pra uma imagem e não ver a imagem que você tá vendo,
mas a imagem que tá na sua cabeça, é muito importante...Você olha pra uma imagem colorida,
mas você está vendo em preto e branco. Você está olhando uma imagem sem contraste mas
você está vendo o contraste nela. Eu se fosse um professor de faculdade, eu ia tentar estimular
isso nas pessoas, porque isso é uma questão de trabalho, é um exercício. Porque isso faz com
que mude toda a relação com isso que você tá falando. Não necessariamente eu preciso ver
um monte de coisa no set. Eu preciso ver, mas eu não preciso usar as ferramentas pra que
aquilo apareça pra mim. [...]
AC: E você acha que hoje, mesmo que a finalização digital seja a mesma, você trabalha
diferente com película e com digital? Ou está mais próximo?
MP: No set, como eu tento trazer o diretor mais próximo dessas decisões, eu acho que os
diretores... Isso é bem importante, quando a gente filmava a 15/20 anos atrás, as cameretas
eram muito ruins. Então essa relação de confiança, era absurda. Eu fiz alguns filmes sem
vídeo-assist. Que aí é brutal a relação de confiança, chega a incomodar, porque você quer
dividir uma opinião e você não pode, porque a pessoa não viu, não tem como ter uma opinião.
Mas eu sempre tento trazer os diretores nesse momento de pré, pra ver junto. Eu nunca filmei
um longa em digital, então talvez essa seja uma questão difícil. [...]
Normalmente vem um telecine off-line mais ou menos, de um colorista menos experiente de
madrugada, então não dá pra confiar muito. No “Aspirinas” por exemplo, eu mandei uma
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série de fotos do nosso teste e o cara todo dia olhava praquelas fotos antes de trabalhar no
telecine. E eu tinha que defender o material, porque eu estava sobrepondo dois stops, já era
uma coisa arriscada. Eu tinha muita pouca tolerância pro erro, porque eu já estava trabalhando
no limite da latitude. E daí eu tinha que defender: “não é assim, esse telecine veio errado,
acredita em mim...” E o Marcelo acreditava. Mas não é confortável essa posição...
Nos últimos longas que eu fiz, eram 35mm, eram boas cameretas, mas não é uma imagem de
2K né...
[...]
Eu já tive isso, esse ator tá em evidência...era uma sequência de sexo, meio escura...”vamos
abrir uns 2 pontos, só o rosto dele”. Já tive...Mas tranquilo também né, nada que
comprometesse a fotografia...
[...]
Eu lembro de fazer uns filmes gringos, como assistente de câmera, que os caras só
trabalhavam com monitor preto e branco. Porque os caras não queriam que o diretor, que as
pessoas, tivessem na filmagem as cores...que as características daquela imagem que são
consequência, não da opção do fotógrafo, mas da tecnologia do equipamento, que as pessoas
não ficassem apegadas aquilo. E isso que você falou...do material de edição...é ruim mesmo
quando o material de trabalho tem um distanciamento do trabalho final, porque as pessoas se
acostumam com aquela imagem. Pro bem e pro mal né...
[...]
Mas pra mim isso só tem um jeito de resolver. Muita conversa antes. [...] É lógico que eu faço
poucos trabalhos por ano, 3 longas por ano... Então isso faz com que talvez eu não tenha que
ter tantos métodos diferentes ao longo do ano. Tipo, hoje estou filmando em 5d, amanhã estou
filmando com uma 35mm que tem um camereta que não é HD, aí amanhã estou filmando com
uma Alexa...Não, eu me beneficio de ter o mesmo equipamento durante 2 meses, todo dia. E
eu me beneficio da conversa ser a mesma durante todo esse tempo, do ponto de vista
estético...isso cria uma coesão. [...]
Hoje em dia, por exemplo, você usando uma correção de cor no set, eu ainda não
experimentei isso. Mas eu tenho uma desconfiança da falta de tempo do set...que horas que eu
saio do set pra fazer isso mesmo se eu não consigo nem sair pra ir no banheiro?
AC: É meio que na hora do almoço né...
68
MP: É muito louco isso...Eu não acho que isso seja mais sólido que a conversa antes... Acho
que completa né? Mas a conversa é muito importante...
[...]
O cinema comercial, as vezes exige outros métodos né. Por conta da rapidez. Por exemplo, na
TV, na Globo, onde eu estou filmando hoje, existe o departamento que cuida das chamadas.
Eles pegam nosso bruto, não pegam o material marcado. Então as chamadas da série tem uma
cor, e a série vai ter outra...Então tão bem, por conta desses acidentes todos...Quando eu
estava falando de terminar as imagens depois...Não dá pra fotografar “flat”. Você capta “flat”,
mas tem que fotografar com consistência. Que tem uma diferença muito grande. É engraçado
isso... Eu conversando com o colorista que faz o material lá... Como que ele interpreta aquela
imagem? Que artifícios que você coloca naquela imagem que faz ele ir pra lá ou pra cá na
correção se ele não tiver conversado com você. É curioso. Não tem uma distância tão
grande...várias vezes eu olho a chamada e penso “po, tá legal a chamada”. Porque tem um
caminho no bruto...A imagem também não pode ser qualquer coisa né. As vezes não dá tempo
de ir lá, as vezes eu só vou lá no final, pra concertar. Não é um trabalho que dá pra fazer cada
plano, cada fusão. Mas é engraçado como ele entende o caminho que estava sendo proposto
no set. E com o tempo, ele acerta cada vez mais...
AC: Então, voltando a falar do seu trabalho do “Aspirinas”, do seu trabalho de laboratório,
pra discutirmos mais sobre a transição. Quando você sentiu uma mudança, ao longo dos anos,
que você deixou de trabalhar com experimentos no laboratório e passou a ser mais um
trabalho de correção de cor?
MP: O “Aspirinas” foi meu primeiro filme. Meu terceiro foi uma coprodução com a França
[“Mutum”]. Aí tinha que ser num laboratório francês. Mas como eu não tinha um diálogo com
esse laboratório, eu nem conhecia as pessoas, eu fiz uma pesquisa no Mega, mesmo que não
fosse o laboratório final...Era meio louco, não sei nem se eu lembro...
Eu usava um Fuji 500 ASA, sub-expunha dois pontos, pra super-revelar. E aí em Paris, a
ideia era flashar o negativo...era cheio de coisa...
Mas aí eu fiz o Mutum...E naquele ano o Mega parou de fazer ampliação de 16mm, por
exemplo.
E a cada ano que fazia, fechava um laboratório que fazia ampliação de 16mm. E aí foi
restringido o trabalho nesses filmes, que tinham um orçamento menor, que era pra fazer em
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16mm mesmo... E aí começou a ficar inevitável que fosse uma finalização eletrônica, por que
aí não dava mais pra fazer...
AC: E como você já tinha essa experiência com laboratório, com essa passagem pro
eletrônico, eu queria entender... como que foi isso em termos de processo? Porque é muito
diferente né, eu imagino, de trabalhar na revelação e trabalhar no digital... Você ainda faz
revelação em bleach bypass, por exemplo? Ou faz na pós?
MP: É difícil dizer...Por que mesmo com revelação padrão...Por exemplo, no “Sudoeste”, eu
liguei pra Fuji e pedi os negativos pra eles, pra fazer os testes. A Kodak me mandou três
negativos e a Fuji me mandou dois, ou três. Aí eu fui lá na locação, com uma câmera 16mm,
filmei um pouquinho de cada. A sensação que eu tinha é que o grão da Kodak, a latitude da
Kodak ia funcionar melhor. Mas eu cheguei no teste, na Labocine... Eu sabia que gostava do
negativo 500 ASA da Fuji, mas não gostava do 50 ASA. Eu já tinha feito um longa com a
Fuji, mas com 250 e 500 ASA, porque não gostava do 50. Mas eu cheguei na Labocine, e ele
foi o que deu o melhor grão, pra um filme PB, na Labocine... Agora eu não posso dizer que é
o melhor negativo pra isso...Porque é uma conjugação de fatores... a revelação da Labocine,
com aquele negativo, para aquela finalização digital... deu o melhor resultado. Mas é por isso
que eu digo, mesmo quando as coisas parecem simples, óbvias, elas precisam ser testadas.
AC: E houve uma mudança nos negativos mesmo? À partir da finalização digital...
MP: Claramente. Isso foi de propósito. Por exemplo, o 50 ASA Daylight da Kodak, ele era
incrível. Eu fiz um teste com ele e cheguei a conclusão que tinha mais latitude que o 500. De
novo, naquele laboratório, naquela revelação...por que isso muda muita coisa, né? Se por
acaso, naquele laboratório, ele tem um banho que contrasta mais o negativo, você não vai ter
o mesmo resultado, não vai conseguir avaliar. Mas é uma pena, porque os negativos estavam
ficando cada vez mais poderosos. E eu parei de usar o negativo...faz um ano e meio que não
filmo em película...mas foi quando eu estava mais satisfeito com o negativo, não existia uma
crise de relação. Estava muito bom o negócio, é estranho interromper assim...
AC: Você percebe uma mudança estética, e aí você pode falar no seu trabalho ou no trabalho
de outros fotógrafos, do que que se passou a trabalhar à partir da correção de cor digital?
Você pensa cor de uma forma diferente? Existe uma tendência a uma certa estética?
70
MP: Quando eu era assistente de câmera, nos longas, a chance que você tinha era trabalhar
com os filtros. Tinha gente que usava Tabaco, Coral, era a chance que você tinha de ter uma
cara no filme. E aí era engraçado isso, porque tinha uns fotógrafos que tinham seus filtrinhos,
o seu truque, né? Eu comecei a brincar de revelação, eu nunca fui muito fã de filtro não... Eu
era mais fã de revelação, que também era muito mais fácil pra um curta, que é rápido, são
poucos rolos...Num longa que tem banhos diários por 2 meses, mexer em revelação é mais
delicado...
Quando a intermediação digital apareceu, aconteceu uma coisa que foi curiosa. Assim como a
gente lê que no Cinema Novo, a questão do laboratório, os filmes expondo pra sombra, e os
laboratoristas querendo trazer o filme pra exposição correta, porque tentavam achar um
padrão...e os fotógrafos tentando fugir do padrão. Da mesma forma que você tinha um
colaborador e você tinha que buscar uma frequência com ele, ter um diálogo...até que ponto
isso interfere positivamente ou negativamente na sua imagem...e isso aconteceu. Você
começou a ter coloristas de publicidade, marcando cor dos longas, claramente você tinha a
junção de duas coisas. Você tinha diretores e fotógrafos que trabalhavam com RGB na
marcação de luz e de repente podiam tudo. Você vai do Analyser no RGB e passa a dividir a
cor em milhões. Então acho que rolou um deslumbre por um tempo. Dos longas começarem a
ter uma estética meio esquizofrênica. Porque você perdia o controle da própria ferramenta que
tava ali na tua frente né...Talvez isso sendo maior que a sua conversa conceitual
anterior...Acho que teve isso sim. Agora acho que a coisa se normalizou. Acho que tá normal
e você pode fazer um filme sem tanta interferência sem achar que está sendo careta.
AC: Acho que isso é normal com toda mudança de tecnologia né? Acho que existe uma
tendência em qualquer tecnologia nova a ter um certo deslumbre né, e depois as pessoas se
adaptarem e cada um achar o seu equilíbrio...
MP: Porque na época você tinha os marcadores de luz que só faziam longa e os coloristas que
só faziam publicidade. E hoje você tem os coloristas que só trabalham com longa e também
os que fazem os dois...
AC: Mas ao mesmo tempo eu acho que tem uma certa nostalgia, de estéticas que lembrem
mais a película, não acha?
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MP: Talvez. Mas o fato é que tanto um raciocínio quanto o outro não é o melhor né... Porque
em ambos está se olhando para o lado. Eu lembro que antes, principalmente no mundo da
publicidade, vários diretores entravam no telecine e falavam “mostra aí que que você tem
feito”. Aí viam o comercial dos colegas, pra poder fazer o deles depois...Você está olhando
pro lado né... Quando você tenta se posicionar tanto seguindo uma estética corrente, quando
se opondo a ela, você olha pro lado né...Você não tá olhando pra dentro, pro seu projeto, pro
seu roteiro...E acho que isso é meio louco. Porque as vezes eu leio um roteiro e penso “esse
filme é pra ser amarelo amarelo, verde verde, sem interferência, o mais clássico possível”. E
isso não é ser careta, não mexer não é ser careta, é simplesmente uma opção que você
escolheu né...
O “Aspirinas” não foi feito daquele jeito porque era pra ser diferente, porque era pra ser
inovador não. Ele foi feito por que tinham razões no roteiro que a gente pensava daquele jeito.
Eu lembro que nas primeiras conversas com o Marcelo, ele achava que o início do filme tinha
que ser mais claro, como se aquilo fosse uma adaptação do alemão a região. Aí eu questionei:
“mas o alemão se adapta?”. Aí ele: “não”. Então por que que a imagem tem que se adaptar?
Porque a imagem não é toda mais clara? Mas alguma adaptação tem... Aí a gente chegou ao
plano inicial do filme, que vai do branco ao super-exposto que é o normal do filme. Isso foi
uma conversa, no ar-condicionado, quatro meses antes de começar a filmar. Foi por que o
Marcelo tinha convicção que aquela luz tinha que ser mais forte, que tinha que incomodar o
olho claro dele o filme inteiro. Depois a gente lembrou do “Vidas Secas”, depois a gente
lembrou de outros filmes, outras estéticas que dialogam. Mas a origem é outra...a origem é o
personagem, aquela situação...
AC: E depois de tantos testes, o que foi decidido, em termos de revelação, pro produto final?
MP: Então, na Mega, você não tinha a opção de passar parcialmente pelo branqueamento. [...]
Aqui no Brasil, na Labocine também, você tinha a opção de não passar totalmente pelo banho.
“Madame Satã” foi feita assim, eu tinha feito alguns curtas assim também. Mas aí não passa
pelo banho absolutamente. Lá fora, o que você consegue é determinar o tempo que você passa
pelo banho. Por exemplo, na Swiss Effects, você tinha uma escala de 0 a 100. Mas eles
faziam na Arri, em Munique, essa parte. E aí você poda pedir 56% de bleach, e pra eles era
uma conta. Aqui não. Na Mega você tinha uma escala que ia de 0 a 1, e era feito na revelação,
simulando o bleach bypass. Então a gente tinha feito uns testes, e chegado a 2/3. E era 2/3 no
internegativo. Então eu super-expunha 2 pontos todos os exteriores dia, e as minhas noturnas
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a 0, na exposição correta. Aí montava o negativo, fazia o interpositivo normal. E no
internegativo fazia o efeito bleach 2/3. Do ponto de vista da produção, era melhor fazer no
interpositivo. Porque o interpositivo só tem um...Se você precisa fazer vários internegativos
pra distribuição no exterior é mais fácil você já ter um interpositivo padrão e os filhotes dele
vão sair assim. Mas pra gente não era tão legal. Aí a gente conseguiu convencer a produção
que seria o internegativo que seria interferido...E aí no final acho que o filme nem tem muitos
internegativos mesmo. No Brasil o filme foi lançado com umas 10 cópias, enfim...
Porque essa era uma outra questão na época né, o seu controle dependia, por exemplo... O
“Madame Satã” eu lembro que o bleach era no negativo de revelação...Eles tiveram que
refilmar cenas por causa disso...Fazer depois é muito menos arriscado...Por outro lado quando
entra a distribuição você não tem mais controle disso, a gente nunca marca luz de cópia de
lançamento né... Depois que o distribuidor entra você não é mais parte disso...E hoje em dia
não tem mais esse risco...
AC: E foi seu último filme feito todo ótico?
MP: Não. Eu fiz meu primeiro, meu segundo filme todo ótico. Meu terceiro também. [...]
Acho que “Os famosos duendes da morte” foi meu primeiro filme finalizado digital. E à partir
daí nunca mais fiz ótico... Mas eu também não tenho fetiche.
[...]
Eu não acho, voltando agora para outras coisas...Eu não acho que a gente precise acatar o
método vigente, acho que a gente pode escolher o nosso método de trabalho independente das
facilidades que a gente tenha. [...] Por exemplo, as pessoas falam muito de filmar em locação
ou filmar em estúdio. Quando você tem uma parede que você não pode ultrapassar isso
interfere na sua linguagem. É mais confortável filmar em estúdio? É. Mas tem gente que
prefere não poder tirar aquela parede, porque isso vai imprimir...Então você está usando os
limites daquilo a seu favor, isso pode ser bom. Então se você tem uma facilidade tecnológica
e eventualmente você não usar essa facilidade porque você acha que de alguma forma aquilo
vai te colocar uma reflexão, te mudar um comportamento...Então por exemplo, quando você
falou de fazer um exercício de não usar vídeo-assist. Isso pode ser legal, isso pode ser
interessante pra um filme.
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AC: As vezes acho que uma coisa que se perdeu, pelo menos nos mais jovens, é que não se
testa mais tanto...Se você fazia um monte de teste em película, porque com a finalização
digital, que é tão ampla, a gente testa menos?
MP: Bom...acho que o fato de que tinha uma mágica, uma alquimia ali na película que
transformava um pedaço de plástico em uma imagem...Eu acho que muita gente entendia que
os testes que eram feitos em película, era pra ver se aquilo ia dar certo, se ia imprimir, se ia
sei lá o que... Enquanto não é uma questão de insegurança... É uma questão de pesquisa, que
imagem que aquilo vai ter mesmo...
AC: Mas a insegurança de certa forma justifica o custo de produção né?
MP: Justifica...Porque o cara pensa “realmente eu tenho que dar o teste do cara, porque se
não ele vai fazer isso como?” Agora que todo mundo tem um celular, uma câmera que aponta
e filma, acho que o propósito do teste tem que ser realmente entendido. Porque ele ficava
muito escondido dentro dessa questão do “Po, vou ter que ajudar esse cara. Porque precisa de
uma mágica mesmo pra essa imagem existir...”. Mas aí é que tá...Também existe uma coisa
muito importante que é parar de pensar que o teste fotográfico é um teste do fotografo. Porque
é um teste da direção, é um teste da arte também...Eu acho que esse é o caminho pra propor
um teste pra um filme, e que ele seja aprovado, é pensar, esse é um teste pra todo mundo, pro
filme que estamos fazendo juntos. Pras pessoas saberem se é aquilo que elas tão pensando...
Algum diretor de arte me falou disso um dia, que quando um diretor chega num cenário e fala
“Nossa, ficou incrível! Nunca imaginei que isso fosse ficar assim.” Ele não fica feliz, ele fica
puto. Como assim? Eu apresentei os croquis, eu apresentei a maquete, alguma falha de
comunicação rolou aí. Era pra ele achar bonito, mas não pra não imaginar que ia ser assim.
Estava planejado pra ser assim. Então, quando a surpresa é muito grande, pro bom ou pro
ruim, demonstra uma falha de comunicação no meio do negócio.
E eu acho que imagem é muito difícil de você descrever. As pessoas não tem vocabulário para
imagem. Se você chega para um médico e diz que está com uma dor. Como é a dor? Os
médicos tem milhões de adjetivos pra definir a dor: se ela é uma pontada, uma fisgada, se ela
é constante, se ela oscila...A gente não sabe falar de dor, dói... Muita gente não sabe explicar
uma imagem e usa termos trocados. Por exemplo, escuro é uma coisa, contrastado é outra.
Contrastado pressupõe alta luz. Escuro é escuro. Eles podem significar a mesma coisa, mas
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podem significar o contrário. Então a visualização daquilo antes é o melhor jeito né, pra você
construir um senso comum...
[...]
Ao mesmo tempo, a gente tem que entender esse momento da informação também. Por um
bom tempo, na película, não tinha uma certa relação de transparência, entre o fotógrafo e o
produtor. Então por exemplo...por que que você ilumina uma sequência? Tem vários motivos
pra você iluminar...Você pode iluminar porque um lugar simplesmente não tem luz suficiente,
você pode iluminar porque você não gosta da luz que existe (ela é suficiente, mas você não
acha adequada pra sequência), ou você pode iluminar porque a luz é linda, ela tem intensidade
suficiente, mas era vai durar 15 minutos (porque o sol vai entrar atrás da árvore e aí acabou)...
Então são vários motivos que te fazem iluminar. O segundo motivo que falei agora é o mais
difícil de defender...Porque ela implica numa subjetividade que gera custos e tempo. Então
muitas vezes um produtor, ou um diretor-produtor, pode falar assim: “Me desculpas, eu te
entendo, até acho que essa luz que você propôs é melhor. Mas não vai dar tempo, a gente
precisa filmar agora, porque se não não vai dar pra parar os caminhões por mais tempo, etc...”.
Então o motivo “não tem luz suficiente”, ele é o mais fácil. Eu via muitas vezes quando eu era
assistente de câmera o fotógrafo falar “vou ter que iluminar, não tem jeito!” E hoje em dia
esse discurso ele não existe, ele não pode existir mais. Porque todo mundo tem uma câmera,
um iphone, e a pessoa sabe que imprime. Então esses acordos tem que ser mais transparentes...
E aí tem o lado bom e o lado ruim disso. Porque fantasiando o lado bom, o ideal fosse que
todo mundo tivesse conhecimento suficiente pra você poder falar daquilo que você está
falando mesmo e conseguir ter um interlocutor. Eu acho que nunca foi tão fácil de ser
compreendido enquanto fotografo nesse sentido. O lado ruim é que você vai ter defesas
consistentes contrárias ao que você queria...E você vai ter que dar argumentos...Eu acho que a
coisa fica mais equilibrada e as decisões passam a ser de grupo, e nem sempre a que você
queria. Se você for pensar de forma egoísta é ruim, se for pensar no projeto maior, é bom. [...]
Um dia eu estava numa mesa de debate, e um cara perguntou se eu não tinha medo da
profissão acabar. Na medida que ela ficava mais acessível, e as pessoas não precisam mais ter
tanto conhecimento técnico, a profissão podia acabar. E aí eu perguntei pra ele “Você
cozinha? E você vai a restaurante por quê”. Porque tem vários motivos que faz uma pessoa
que cozinha e gosta da sua comida ir num restaurante...porque ele gosta daquele tempero
específico, porque está sem saco de cozinhar naquele dia...
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AC: Acho que é legal o que você falou no sentido de o diálogo estar mais claro, as pessoas
terem mais conhecimento (ou verem mais), muita gente enxerga como uma perda de poder.
Mas as pessoas esquecem que também pode haver uma troca, que pode se pensar soluções
melhores para o filme. [...]
E talvez, quanto mais a técnica se torne banal, por outro lado a diferença entre os fotógrafos
fica realmente em como você olha aquela imagem, uma habilidade muito mais subjetiva do
que técnica...
MP: Acho interessante que quando você fala do poder, o poder está muito relacionado a
insegurança e segurança. Por exemplo, pessoas que tem formações diferentes. Nem todo
diretor tem a mesma formação, nem todo fotógrafo tem a mesma formação. Isso faz com que
cada relação profissional seja diferente. Muitas vezes eu demoro pra saber qual é a minha
posição do filme. Eu faço isso a muitos anos, mas eu não sei o que se espera de mim a cada
filme. Tem filme que o diretor decupa e fala direto com o câmera. Tem filme que o diretor
não decupa. Tem filme que o diretor quer decupar junto. Tem filme que o diretor descreve
uma luz e quer aquilo. Tem filme que o diretor mesmo que ele não goste da luz ele não
criticar sua luz, por respeito. [...] Então qual é a função do diretor de fotografia? Eu não sei,
cada filme eu tento entender qual é a minha função ali naquele filme. [...]
Por exemplo, um diretor que tem menos relação com a imagem, que é escritor. Ele pode dizer
“Cara, nessa cena aqui, escrito ela tem uma ambiguidade. E na imagem, era pra ser ambíguo,
ele ele tá confuso, se ele tá com raiva, mas na imagem aqui ele claramente tá com raiva, e eu
não sei mais o que fazer...” E aí você pode criar uma imagem que te tire elementos visuais,
porque você não quer definir qual é a emoção daquele cara. Aí essa construção junto, que
você fala das suas fraquezas pro outro. Esse terreno da exposição na parceria para o outro, de
falar sobre suas inseguranças pro outro, isso forma parcerias muito sólidas. Que é o contrário
da disputa de poder que a gente estava falando. [...]
76
ENTREVISTA COM AFFONSO BEATO
(Rio de Janeiro/Los Angeles, Abril de 2014)
Ana Carolina: Então, eu vou te falar mais ou menos o que que é o meu trabalho. É sobre
mudanças na fotografia de cinema a partir da intermediação digital. O interesse é no que que
mudou nos processos, em como fotografar e também no que você acha que mudou
esteticamente.
Affonso Beato: Tá. Isso é uma longa conversa. Mas vamos começar de umas coisas assim
fundamentais. Primeiro isso aí é um plano tecnológico entende, que vem da ciência. Vamos
puxar as coisas assim devagarinho, mais criteriosamente. A mídia tá sempre tentando ver
melhor. O que é tentando ver melhor? Ver mais perto do que a visão humana vê. Então, a
visão humana é um negócio maravilhoso, entende? Existem vários aspectos que hoje a gente
considera. O campo de visão, full vision, a gente vê 180º. O cinema, a mídia em geral,
televisão, você só tá usando 28º, uma meleca...30º por aí. É uma visão que a gente tá
historicamente ligado. Se você quiser ler sobre esse troço, no meu site tem uma matéria sobre
a história do 3D que eu escrevi e que tem uma reflexão sobre isso, sobre o campo de visão.
Isso é uma coisa.
Segunda coisa é o seguinte. A visão humana, ela tem um poder de sensibilidade imenso. A
noite você pode ver até coisas iluminadas só com a luza das estrelas, não necessariamente
nem com a luz da Lua. Isso aí se você for comparar com a sensibilidade do filme ou com a
sensibilidade dos sensores hoje, a diferença é brutal. A gente tem assim sensibilidade de 12
mil, 8 mil ISO e hoje os sensores tão por volta de 800, não é isso? Depois, a visão
humana...tem uma coisa chamado latitude ou então, como chama isso, tô pensando em
português...dynamic range. Você sabe o que são essas coisas? Então é a capacidade de você
ver contraste. E a visão humana vê por volta de 22, até um pouquinho mais, é difícil de medir,
mas por aí. E os materiais hoje, quer dizer, o filme vê no máximo 16 stops em dynamic range
ou latitude. E as câmeras digitais veem por volta dos 14.
E aí tem uma outra coisa, que é a quantidade de cores que a gente pode ver. Isso aí é meio que
imensurável. Mas enfim, o sistema nosso ótico humano, ele é analógico. Então, ele vê o que
existe dentro da tua fisiologia. Umas pessoas veem mais, outras pessoas veem menos...mas
enfim, nós vemos uma gama, um espectro incrível. Então, você olha na pintura, as pessoas
veem matizes de cores e tal. E mostram que elas são sensíveis a matizes diferentes através da
história da arte. [...]
77
Agora é o seguinte, em termo de resolução o negativo até hoje bate o digital. Porque o filme
colorido vê mais ou menos 16K. E hoje em dia, as câmeras, os sensores melhores tão vendo
8K. E a maior parte das pessoas trabalham até com 4K. Na maior parte das produções ou até
HD, 1920, 2K. Bom aí, o filme vê 16 stops. Os equipamentos digitais veem 14 stops. Filme
vê cor de uma forma analógica, ou seja, lê todas as cores. Basicamente todas as cores que são
apresentadas são gravadas no filme fotoquímico. Hoje em dia, as câmeras veem 10, 12 bytes,
14 bytes. A F65 agora vê 16 bytes, que é uma coisa extraordinária. Muito bem.
Então, primeira coisa que é assim, você tem digitais e digitais. Então, hoje em dia, o melhor
DI, que aliás eu fiz “O Tempo e o Vento” aqui [em LA] na Sony, com a maior quantidade de
cores e 16 bits, com esse processo novo chamado Aces que é um workflow novo. Mas se eu
tivesse feito essa captação em filme, e se eu tivesse escaneado esse filme, eu ainda só teria 65
mil cores por canal. Mas no negativo, estaria tudo ali. Que dizer, o DI não passa daquilo que a
capacidade instalada de cada DI tem. Aí depende também o que você vai fazer com esse DI.
Se você vai fazer os teus DCPs, que é a nova forma de você distribuir filme digitalmente... Se
vai ser um DCP em 4k ou em 2k. Ou se você vai jogar só pra televisão e vai em 1920.
Então isso aí é coisa técnica, não sei se interessa a tua tese ou não.
Esteticamente ou operacionalmente, o que te pode proporcionar é o seguinte. Os sistemas
anteriores, sistemas fotoquímicos, a marcação de luz ou a criação do teu máster negativo era
muito limitado. No sentido de que você só tinha filtros, na hora de copiar o negativo pro
positivo, você tinha filtros em que você cancelava os vermelhos, você aumentava os
vermelhos, abaixava, enfim. Você tinha uma possibilidade em RGB e densidade. Hoje num
DI, não só você tem isso, mas você pode ter em cima do quadro que você está operando, em
cima de uma janela...ou então você pode ter um controle muito maior, você pode separar as
cores, você pode contrastar as cores, você pode dessaturar uma cor. Você pode trabalhar em
cima de cada canal. Além disso, você hoje tem instrumentos que são semelhantes ao
Photoshop. Hoje uma mesa de DI é um super Photoshop. Você pode mudar a cor da tua blusa,
eu posso pegar a tua blusa que é branca e dizer “olha, o que é branco, agora vai ser azul”. E
posso criar uma máscara e posso fazer com que essa máscara ande dentro do quadro,
dinamicamente. Se você andar por aí, só vai mudar a cor da tua blusa. Porque a máscara vai
seguir a tua blusa, não é isso? Então isso propicia uma criatividade, a quem faz, espetacular.
A um nível quase de efeitos visuais. Então, eu diria que o DI te permite uma possibilidade
artística muito maior do que era o fotoquímico... E também, você sabendo que você tem esses
instrumentos todos, te facilita muito na hora de filmar. Quando você filma com película ou
com uma câmera digital é a mesma coisa. Você tem uma cena, aí você vê a parede lá atrás de
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linha, ela tá muito clara. Então, se eu fosse cortar isso no fotoquímico, eu teria que por
bandeiras nas janelas pra escurecer aquela parede e tal. Isso aí levava muito mais tempo.
Então, o que eu posso fazer? Eu sei que eu tenho um controle dessas coisas no DI, então eu
não faço na hora da filmagem. Ganho tempo, me dedico a outras coisas. Por exemplo uma luz
melhor pro rosto dos atores, enfim ... E aí eu faço isso no DI, no digital intermediate, porque
eu tenho essa facilidade.
Então isso faz com que a fotografia moderna ou a cinematografia moderna fique muito mais
livre pra uma série de outras coisas do que ficar fazendo corte ou ficar precisando
temperaturas de cor porque o controle no digital é enorme.
AC: Eu queria falar também um pouco do processo inicial, da passagem do ótico pro digital
assim. Como foi pra você essa passagem?
AB: Vamos falar disso, que eu acho que é uma boa pergunta. Eu acho que realmente foi uma
grande revolução. O fotoquímico passou pro digital justamente no DI, na descoberta do DI.
Como é que isso aconteceu? Primeiro, sempre foi um grande problema, quando você faz um
fotoquímico... Você tinha que mandar no laboratório, revelar, aquilo custava dinheiro e tudo.
Você tinha que ter um cinema pra ver o copião... Aí você tinha que ir no laboratório ou
encontrar um cinema. Se você tivesse filmando numa cidade no interior, o cinema não era tão
bom, então isso era um problema. Então começou uma coisa chamada telecine, não é isso?
Que foi a passagem, a gravação nos dailies pro sistema digital, essa foi a primeira invenção.
Isso aí é dos anos, sei lá, 70 por aí. Final dos anos 70, começou a acontecer isso. Aí chegou a
um certo ponto, em que não era mais telecinar negativo, mas sim escanear. Escanear era uma
coisa diferente do telecine. No telecine você botava o filme em movimento, era um
escaneamento em movimento que não agarrava toda a potência que o negativo te dá. Era uma
coisa somente para fatura de dailies e copião. Então num certo ponto assim começou... Foi até
a Kodak que inventou esse sistema chamado Cineon, que isso é usado até hoje, que deu
origem ao arquivo dpx. Que é usado nos DIs, a maior parte dos DIs são feitos na plataforma
dpx. Então, o que aconteceu foi o seguinte. Fizeram scanners que são máquinas que leem
fotograma por fotograma, escaneam todos os fotogramas e transformam aquilo num arquivo
digital, de alta qualidade. Então, esse é o arquivo. Então, o dpx é um arquivo.. 10 bytes. Que
vem sendo usado até agora. E a última modificação foi feita há dois atrás, com esse processo
Aces, que já usa um arquivo open. E usa 16 bytes, ou seja, ele puxa 65 mil cores. É a melhor
coisa que existe.
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AC: Mas esse processo Aces é pra escaneamento também?
AB: É pra tudo. Ele reconhece tudo que você tá fazendo, escaneamento também. Bom, mas aí
vamos voltar. Você tá falando da passagem. A primeira passagem foi telecine, todo mundo
falou “opa, genial, a gente até pode montar de uma outra forma e tal”. Depois a segunda
passagem foi o escaneamento, quer dizer, você transformar película em digital, em arquivo
digital. Bom, nesse momento o que se chamou workflow no processo, o fluxograma do
processo se tornou híbrido. Então, a maior parte dos filmes, até hoje muitos são feitos assim.
A gente filma em película porque a película é a melhor forma de captar e você passa aquilo
pro digital. Porque o digital é a melhor forma de você depois manipular, como eu estava te
falando. O que você pode fazer no DI é muito mais do que se fazia no laboratório fotoquímico
antigamente. Então, essa foi a primeira...esses foram os dois passos assim, em termos de
revolução tecnológica da passagem do filme pro digital, não é isso? E aí é uma coisa que a
gente amadureceu há pouco tempo, mas que sempre os diretores de fotografia, os diretores, os
produtores tinham problema. Com filme e com processo fotoquímico, ou você filma um dia e
você só vai ver as coisas no outro dia. Se alguma coisa tava dando errado, a câmera e tudo,
você só vai saber no outro dia. E isso, às vezes você perde um dia de produção. Que custa
uma enormidade, uma fortuna. Principalmente em filmagens aqui, o dia custa 200 mil dólares,
300 mil dólares, não levando em consideração o preço de ator, atriz e tudo. Então, eu já fiz
filmes...eu fiz um filme na Colômbia com co-produção inglesa, americana. O negativo ia pra
Londres, era processado lá, aí eles mandavam um arquivo pra Califórnia que depois fazia uma
redução e mandava pela via internet pra eu ver, dois dias depois, três dias depois o meu
copião. Isso cria uma incrível ansiedade e uma falta de controle no processo.
E tem várias pessoas. É o diretor que quer ver como que a cena estava pra ver se muda
alguma coisa. É o produtor que quer ver se o produto que ele tava vendo e tal. Então, o que
acontece? Hoje no processo digital, você vê tudo na hora. Você vê o que a câmera tá vendo,
se você tiver uma boa monitoração. Você tá vendo, você sabe que você tá gravando aquilo
que você tá vendo. E evidentemente tem uma série de cuidados, backup, porque o digital é
muito efêmero. Então, se toma uma série de cuidados, mas você vê os troço lá. Então, esse eu
acho que é o elemento, a monitoração em “real time”, que realmente levou a indústria ir toda
para o digital. Porque o digital não é tão mais barato do que filme, do que o processo
fotoquímico. Hoje, os grandes laboratórios tão fechando. Enfim, as câmeras fotoquímicas
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tão...ninguém mais produz as câmeras fotoquímicas. O próprio filme tá deixando de ser
produzido, não é isso? Então, houve essa passagem, através do DI...
AC: Então, qual foi o seu primeiro filme feito todo com intermediação digital? Você sabe?
AB: Deixa eu pensar aqui, não me lembro direito...eu acho que foi um filme americano
“Ghost World” Foi no ano de 2000, eu acho, com a Scarlet Johanson. Enfim, eu acho que foi
a primeira vez que usei esse processo...
AC: E o que que você acha que mudou nesses anos? Não só assim, tecnologicamente, mas se
antes se tentava copiar processos da película...hoje você acha que...
AB: Olha, o negócio é o seguinte. A intermediação do digital abriu um campo artístico, assim
uma possibilidade artística muito grande de intervenção. O diretor de fotografia chega até um
ponto quase de pintura, quer dizer, você tem um controle artístico da imagem no final quase
na área da pintura. Você pode interferir em tudo que você quiser. Você tá entendendo? Quase
beirando o “visual effect”. Tanto é que os primeiros filmes que foram feitos...aquele primeiro
filme que foi feito dos irmãos Coen, “Oh Brother...”? Então esse foi o primeiro filme, que
houve uma revolução assim de visualização. Porque ele pegou as árvores, todas as árvores
que eram verdes, as árvores ficam todas amarelas. Então o filme tem um negócio de pintura
maravilhoso. Eu fiz isso um pouco em “Deus é brasileiro”, filme do Cacá, eu mudei tudo.
Assim, você podia passar de uma coisa altamente realista para uma coisa totalmente
surrealista ou não realista, como o pintor pode fazer. Pode interpretar as cores. Então, eu acho
que essa capacidade...fez com que a cinematografia mudasse, que aliás é uma coisa que eu
ensino. Que hoje em dia, a cinematografia é design. É uma arte de design, é uma arte de
controle das coisas. Porque é uma palavra que a gente usa, não só pela unidade fotográfica,
digamos de um filme inteiro. Mas às vezes de sequências diferentes, isso é o que a gente
chama de “look”. Um “look” é um desenho para aquele sequência ou um desenho para o
filme inteiro. O filme inteiro pode ter um “look” só ou o filme inteiro pode ter “looks”
diferentes. Porque as sequências, os momentos diferentes pedem “looks” diferentes. Então,
isso é conseguido através de elaborações digitais. A gente agora cria uma coisa que são os
filtros digitais, que são os LUTs. Você produz isso em cada sequência pra você ter um “look”
diferente. E essas coisas, por exemplo, podem ser aplicadas no monitor. A câmera tá vendo a
realidade de um jeito, mas eu ponho um “look” no monitor eletronicamente e o diretor, os
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produtores, eu mesmo, o fotógrafo, estamos vendo a coisa de uma forma já interpretada. Já
desenhada. Então, essa capacidade...isso aí modificou muito. Você vê hoje em dia as séries de
televisão, cada uma tem um “look” diferente, que vem também da iluminação e tudo. Mas
passa por um filtro eletrônico e que você pode controlar. Então hoje, a cinematografia, a
interferência digital é feita a partir do que você recebe da câmera. A gente não usa isso dentro
da câmera porque a gente quer captar sempre o mais possível. E elaborar esse “look” depois
no DI. Mas você pode ver até na hora de monitorar, você pode por aquele “dream look” que é
um desenho da sequência. Então você põe aquilo, o diretor tá vendo aquela sequência “Olha,
essa sequência vai ficar assim, não vai ficar assado”. Não vai ver como a câmera tá vendo. A
câmera tá vendo de um jeito, mas você já modificou ali.
AC: Mas e falando assim pra gente comparar mesmo o processo quando era feito todo ótico e
a partir da intermediação digital. Você acha que mesmo hoje, quando você fotografa um filme
em película, você fotografa diferente?
AB: É. Eu fotografo diferente porque eu sei que na intermediação digital eu tenho tantas
ferramentas que eu não preciso fazer isso e aquilo.
AC: Fala um pouco mais assim...
AB: Deixa eu te contar uma coisa prática. Não vou mencionar nomes... Mas diretores... os
fotógrafos gostam que as pessoas, assim dinamicamente, entram numa sala entre uma zona de
sombra, vai no escuro e depois volta. Você sabe quem é o ator. Aí o ator chega perto da
câmera, então aí fala e tem uma luzinha. Tem diretor que quer ver o rosto do ator o tempo
todo. Você tá entendendo? Então, por exemplo, na intermediação digital eu estou vendo você
aqui na tela... Eu crio uma máscara pra você, eu pego uma ferramenta que analisa a cor da tua
pele. Então eu tou vendo a tua pele, e é diferente aqui da blusa que é branca. Então tá. Aí
disso, eu crio uma máscara que é a máscara Carol. Então, eu pego essa máscara e digo pro DI,
pra as ferramentas que eu tenho no Di. Então, trackea, segue esse elemento aonde tiver ela
tiver um quadro. Então, por exemplo, se eu achar que o seu rosto tá um pouco escuro do jeito
que eu tou vendo, eu atuo somente naquela área e re-ilumino o teu rosto. [...] Aí eu aperto o
botão e quando a cena voltar de novo, essa máscara te persegue aonde você andar aí dentro
desse quarto. Então, eu tenho um controle total de zonas de cor. Porque esse é o processo.
Processo de criação de máscaras. Aí, por exemplo, eu tô vendo que você tem um quadro lá
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atrás. Então, eu pego...aquele quadro tá muito escuro ou aquele quadro tá muito marrom. Não,
a gente precisa de um elemento amarelo. Então eu vou lá, abro uma janela, que a gente chama
de “power window”, como você faz em Photoshop. Aí eu interfiro ali. Agora eu vou passar na
frente do quadro, o sistema é tão complexo que não importa. Você pode entrar pelo quarto,
voltar, entrar na frente do quadro e sair. Quando você sai da frente do quadro, o quadro é
amarelo. Então, eu não tenho que chegar na hora da filmagem, chegar pra “art director” e
dizer “ah, esse quadro é tão marrom... Vai lá buscar outro quadro, um quadro amarelo. Porque
tá falando amarelo aqui nesse ambiente”. Porque eu posso mudar aquele troço pra amarelo.
Quer dizer, o poder da intermediação digital, ela é tão grande que eu tô te dizendo, ela chega
ao ponto dos efeitos visuais, os efeitos de pintura. Então, eu não tenho que me preocupar na
hora de filmar com tantas coisas. Agora, evidentemente, que a intermediação digital, só pra
tua informação, custa por volta de mil dólares a hora. Então, o que que você pode fazer
naquela hora? Porque também você não tem um ano pra produzir um filme. Por exemplo, no
“Tempo e o Vento”, que apesar de ter tido um apoio incrível da Sony aqui, eu tive 15 dias pra
fazer. Eu passei uma semana ajustando tudo com o colorista. Aí depois chegou o diretor e eu
passei uma semana ouvindo o diretor, o que ele queria mudar, o que a gente queria melhorar.
Então, isso tudo também tem um custo. Você tem que fazer as coisas mais importantes que
você pode fazer no set com iluminação, você faz no set. Mas eu tenho coisas que eu deixo de
fazer no set porque eu sei que vou fazer no DI.
AC: E você faz testes antes pra mostrar pro diretor?
AB: Faço. É uma boa pergunta. Eu crio aquilo que eu estava te dizendo, que são os “looks”.
Então, por exemplo, é uma coisa que eu ensino. O Jaime me convidou pra fazer essa série
Maysa. Então, vou falar um pouquinho sobre isso. Na história toda sobre a cantora, ela tinha
três momentos. O roteiro era um roteiro todo baseado num flashback. Porque a Maysa, na
cena inicial, ela sai de casa de carro, ela fala com os pais. Ela sai de carro e quando ela chega
ali na Ponte Rio-Niterói, ela sofre um acidente brutal e morre. Mas entre ela sair de casa e
chegar nesse acidente, ela faz uma série de flashbacks porque a estrutura da história é assim.
Então, o diretor me disse “Olha, Affonso, os flashback são de três tempos, essa história tem
três tempos”. Uma quando ela era criança e a relação dela com o pai, que era uma relação
linda, ela era uma criança feliz. Depois a carreira dela ficou muito importante, ela teve um
sucesso danado como cantora, então é o segundo momento. Então, ela tem um terceiro
momento, em que o marido começou a brigar com ela, porque ela é cantora e nos 60, aquilo
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não era uma coisa pra uma mulher de família, ela casou com um Matarazo... Enfim, a história
é assim, ela era oprimida e tal. E a carreira dela entrou, digamos, em decadência até o
momento da depressão e tal...até o momento do acidente. Bom, então são três momentos.
Então eu falei “vamos fazer três looks”. Vamos fazer três “looks” pra essa história. Então eu
peguei câmera e abri câmera pra três ambientes mais ou menos que eu sabia que ela ia tá.
Então, uma coisa lá no Palácio Guanabara, que é bonito, que tem uns ilustres. Aí foi num
lugar assim campestre, num jardim, até aonde as cenas dela quando criança. E depois foi num
ambiente no Museu de Arte Moderna, nas locações, abri um pouquinho de câmera que eu
sabia que ali ia ter umas coisas da decadência dela. Levei isso pro computador, aí tinha uns
programas que eu podia desenhar esses “looks”. Aí eu peguei esses arquivos e coloquei.
Então, por exemplo, você sabe que numa filmagem às vezes você...você vai filmar com uma
criança, você só pode filmar 4 horas. Então, eu vou fazer uma cena quando ela era criancinha,
que é outro ator, outra atriz. Eu aperto o botão e o monitor tá me mostrando o “look” quando
ela era criancinha. Então, eu tou ali na frente do monitor e já tô vendo o “look” dela como
criancinha. Quarta. Bom, vamos filmar um show dela, sei lá, no Copacabana Palace. Ela tá no
auge da carreira. Eu aperto outro botão, aparece um “look” que é totalmente diferente. Que eu
desenhei...as primárias são mais elaboradas. O “look” dela quando criancinha era tudo meio
douradinho, tudo meio esfumaçado e tal. Aí quando ela vai entrar em decadência, aperto outro
botão. Bom, agora a coisa é meio azulada, esverdeada, uma coisa sabe mais triste, dessaturada,
com os pretos mais enterrados, enfim... Então, eu já pré-desenho essas coisas. Agora, esses
“looks” são “looks” somente de monitoração. Eu tou gravando com as câmeras os
originais...eu não tou mexendo nos originais, eu tou gravando aquilo que a câmera tá vendo.
Então, quando eu chego no DI, na intermediação digital, eu tenho os “looks” como referência.
Aí o cara carrega lá na máquina, aí vem a cena, ele aperta o botão, o “look” entra lá. Só que
agora, eu tou com a minha imagem, plena imagem, com todos os detalhes que eu peguei e tal.
E aí a gente corrige aquilo numa tela grande, com todo o carinho e com toda a possibilidade
que você tem com toda a instrumentação.
AC: E assim falando da relação com os outros profissionais, o que você acha que
mudou...assim, se antes era uma coisa mais definitiva no negativo o que você fazia? Como é
que você acha que hoje, essa relação mudou assim?
AB: A relação é a mesma, o profissional é que mudou. Então, no laboratório fotoquímico
havia o que se chamava de colorista, mas ele sabia fazer aquilo com filtros, com aquela
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limitação. Quando a intermediação digital começou a aparecer, apareceu o colorista digital,
que é um cara que trabalha...um cara que sabe mexer com Photoshop. Uma pessoa que
entende dos arquivos eletrônicos. É quase uma coisa de engenharia eletrônica, digamos... E
uma pessoa que também tem uma sensibilidade artística pra aquilo. Então, por exemplo,
existe um colorista muito famoso que eu conheço, já trabalhei com ele, que é o cara que fez a
“Amélie Poulain”, você deve gostar. E ele fez, ainda no fotoquímico, ele fez esse filme
“Seven” que foi uma revolução, ainda fotoquímica, mas era uma revolução de “look”. Esse
colorista chama Ivan Lukas. É um francês. E ele era muito importante na França e aí os
Estados Unidos importaram e ele tá aqui. E eu fiz um filme com ele há um tempo atrás. Ele é
amigo, amigo meu, amigo do Waltinho. E ele é uma pessoa assim... ele tem uma cultura
europeia. Os coloristas americanos não tem a mesma formação que uma pessoa que estudou
belas artes na Europa. Então, hoje em dia o que modificou é que você quer descobrir essas
pessoas que tenham uma sensibilidade e uma velocidade. Porque o cara também tem que
trabalhar rápido, porque aquilo tem muitas ferramentas. Então existe uma série de fatores,
mas assim artisticamente você tem que encontrar essa pessoa. O colorista se tornou uma
figura muito importante no processo.
AC: Eu tava na França, eu fiquei um ano lá. Agora de 2012 a 2013 na França, eu fui naquele
Festival Camerimage na Polônia. Eu fui num debate que teve com alguns fotógrafos sobre
essa questão da intermediação digital. E eles brincando...falando sobre como eles iam ter que
exigir...assim como tinha diretores que tinham o “director’s cut”, que eles iam ter que exigir a
correção de cor final assim...
AB: Infelizmente nós perdemos esse bonde totalmente, ao contrário. Aliás isso é uma coisa
muito bem colocada. Porque isso acontece muito, aconteceu comigo. Você fotografa uma
coisa, aí hoje em dia aquilo tá aberto, você tá em log. Você fotografou original, tá lá, não tem
“look” no original. [...]
É uma brincadeira triste porque realmente...isso aconteceu comigo a pouco tempo. Eu fiz um
filme pra HBO, vim aqui corrigi tudo direitinho. E tinha uma sequência, que o dia tava caindo,
aí a gente queria “não, vamos fazer uma coisa mais perto da noite”. Porque a sequência
posterior já seria noite. Eu tirei os filtros, ficou tudo azulado, enfim escureci. No DI me levou
um tempo danado. E eu tinha uma diretora de pós produção da HBO. Depois o diretor foi pra
Nova York, eu fui pra outro lugar. Quando a gente virou as costas... a colorista me chamou
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dois meses depois e falou “oh Affonso, essa mulher veio aqui e mudou tudo”. Aquela
sequência... É a cabeça dela e a gente não pode fazer nada. Eu não posso fazer nada.
E não adianta você ficar reclamando que os caras tem põe numa “black list”, você não
trabalha mais. Diretor de fotografia como um grande autor, isso já foi o tempo. É de uma
importância danada, não tô diminuindo a importância. Mas é que autoria é um negócio sério...
AC: E você faz alguma coisa durante a filmagem assim ou na própria coisa de mostrar os
looks, que já tente influenciar o DI...
AB: Tem diretores de fotografia que gravam o look original. Mas isso não é um bom caminho.
O que eu tou te falando é o seguinte. Esses filtros digitais, às vezes eles são tão radicais.
Porque os LUTs se dividem em undestructable ou destructable LUT. Ou seja, você pode fazer
um look ou um LUT. E quando ele mexe muito com o original, se você gravar aquilo em cima
do original, você não pode voltar mais pro original. Por exemplo, o teu cabelo é loiro. Aí eu
vou dizer “não, eu quero cabelo escuro, muito mais escuro. Totalmente escuro”. Aí eu aperto
aqueles preto do teu cabelo. Se eu gravar esse look em cima da imagem, o teu cabelo não vai
voltar a ser loiro, porque eu matei, acabei com a informação que estava ali no original. Se eu
pegar uma parede lá no teu quarto, meio esverdeada e transformar aquilo em vermelho. Eu
não vou ver mais o original... Então, o caminho mais certo é você andar com a tua intenção, o
teu look andar num caminho paralelo... Você leva como referência para a intermediação
digital...
AC: Uma última pergunta que eu queria fazer. Vamos tentar pensar esteticamente...o quê que
você acha... do seu trabalho, do trabalho de outras pessoas... o quê mudou?. O próprio gosto
estético mudou com tudo isso?
AB: Eu acho que mudou muito porque o DI abriu, como eu já te disse, uma instrumentação
enorme que a gente não tinha antes. Antigamente, no fotoquímico, você passava 6 meses sem
ver teu material, você não podia fazer nada até aquele outro momento, quando você ia fazer a
correção de cor. E a correção de cor era muito limitada. Se você for ver os filmes até o ano
2000 por aí. Os filmes eram até lindos, existem coisas lindas...mas tudo era feito na fotografia,
tudo era feito na luz e alguma coisinha era feita no laboratório. Tem filmes extraordinários...
O Storaro inventou um sistema, o ENR...esse próprio Ivan Lukas, no “Seven”, eles fizeram
um troço chamado “bleach bypass” nas cópias. Eu usei essa história no filme do Waltinho,
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“Água Negra”. Ficou bonito a beça. Então, a gente fazia coisas. Mas dizer que depois disso,
não ficou muito melhor, não é verdade. E do DI, a gente pode voltar de novo pra filme
também.
Mas artisticamente, deu um poder muito maior de expressão pro diretor de fotografia, não
tenho a menor dúvida. Essa parte eu acho que é a melhor parte. A parte da captação não. Até
hoje eu acho que filme é muito melhor do que qualquer câmera digital. Eu entendo que uma
câmera digital te dá um “deixar você dormir tranquilo...”. Mas até hoje a câmera fotoquímica,
é muito melhor do que a digital. Já o processo de intermediação, é muito melhor no digital,
sem dúvida nenhuma. Seria hipócrita em não admitir isso. [...]
Você pode pintar, é isso que eu tava tentando dizer do começo. No digital você pode mudar
tudo. Você pode “ah, eu quero uma fotografia mais impressionista, eu quero uma fotografia
mais expressionista”. Sei lidar com isso. Eu, por exemplo, tenho uma formação de pintura,
então eu conheço. Eu uso muita cor, eu uso muito contraste. Além da luz que eu faço no set.
Eu gosto disso.
AC: Então você pensa mais nisso, na cor, do que antes?
AB: Claro. Porque antigamente você ficava na mão do “production designer”, do diretor de
arte, “ah me bota uma cadeirinha dourada ali”. Hoje, o cara pode botar uma cadeira xadrez,
que eu viro com a cadeira, ponho florzinha na cadeira. É claro que hoje em dia, até hoje você
trabalha com todos os elementos... Mas, por exemplo, quando eu fiz “A Rainha”, era um
filme de orçamento baixo. A Inglaterra não tinha dinheiro, sei lá, 9 milhões de dólares, um
troço assim. O “production designer” tinha um problema sério. Ele não sabia, porque muita
gente até hoje não sabe, o poder do digital intermediate. Então ele falou “Pô Affonso, eu
tenho um problema sério, porque nós conseguimos lá um castelo, que era pra ser o
Buckingham. Mas o problema é que as cortinas são verdes. E no Buckingham, todo mundo
sabe na Inglaterra que as cortinas do Buckingham são vinho, são de um vermelho vinho”. Eu
falei “nenhum problema”, ele falou “como assim?”. Eu falei “vamos lá”. Aí nós tiramos as
fotografias do lugar que ele queria lá na hora. Aí botei na máquina lá, que a gente ia fazer o
DI e falei pro colorista “carrega isso aí”. Aí ele pôs lá o tom verde, o cara fez as máscaras da
cortina, virou a cortina que o cara queria. Você tá entendendo? Então, é esse poder que você
tem. Você pode fazer mil coisas que você não podia fazer antes. Ou você tinha que fazer
aquilo no set.
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ENTREVISTA COM FABIO SOUZA (Rio de Janeiro, Maio de 2014)
Fábio Souza: Sou colorista da Labocine há 15 anos. Minha formação foi ótica, processo
tradicional. Quando ainda se escolhia o negativo de acordo com o look pretendido. Esse
negativo era enviado para o laboratório, depois da revelação, a gente fazia uma luz mais ou
menos, fazia um copião. O diretor de fotografia vinha no laboratório, junto com o diretor,
assistia esse copião. Aí depois o copião era enviado para montagem, o montador montava na
moviola e o copião voltava pro laboratório. Aí com esse positivo montado na mão, era
montado o negativo, era feita uma cópia fiel com uma EDL, Edit Decision List, na mão.
Quem fazia isso aqui na época era a Angela (que ainda faz hoje em dia), e esse negativo
montado era enviado para a marcação de luz. Aí nesse momento o colorista passava o
negativo montado pelo Color Analyser, todos os rolos, pra fazer a marcação de luz. Eram
rolos de 19 a 20 minutos no máximo. Aí quando era feita essa primeira marcação, o diretor de
fotografia ficava do lado, e o marcador de luz ia equilibrando a cena...Ele ia falando “Aqui eu
quero um pouco mais frio, mais claro, mais escuro...” Esse era o processo, você não tinha
muito recurso... Aí depois de feito todo esse equilíbrio no Analyser, com todas as marcações
anotadas, cena a cena, nos enviávamos o negativo para fazer a cópia, no laboratório, junto
com uma fita impressa, perfurada, chamada fita Band. Nessa fita tínhamos marcado o RGB
correspondente a cada cena. Por exemplo, se a marcação de luz desse um valor 24-30-31, nós
já sabíamos que era 24 de R, 30 de de G e 31 de B. Isso corresponde a abertura do diafragma
do “light valve”, que fica em cima de cada canal de luz do copiador. Então essa variação toda
era descrita por essa fita Band, o copiador rodava isso dentro do sistema dele, numa
velocidade de 240 quadros por segundo. Tinha que ser lento, porque todo o negativo era
emendado com cola. Aí fazia-se o positivo. Esse positivo era enviado para o laboratório,
revelado, e íamos para a sala de projeção e assistíamos o que tínhamos marcado. Sendo que
nesse momento, algumas coisas ficavam boas, outras ficavam ruins, outras iam se
aproximando... Essa marcação de luz inicial era uma marcação de aproximação...
Depois com essa cópia na mão você não pegava mais seu negativo, e não voltava mais pra
marcação de luz. Você ia para uma mesa, chamada mesa de luz, com os respectivos filtros
RGB e uma lupa na mão. Com essa lupa na mão, os filtros, e um papel na mão anotando onde
entrava cada cena e os respectivos valores de RGB é que você fazia as compensações. Ia
anotando cena a cena...pra tirar um copião remarcado. Mandava pro laboratório, repetia todo
o processo, e marcava um dia pro diretor de fotografia vir assistir. Aí ele vinha, e aí via como
tinha melhorado...Nessa etapa você avançava mais uns 40% do seu processo...Aí tomava as
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notas, do que deveria ser mexido novamente, voltava pra mesa de luz, remarcava o filme
inteiro, com muito cuidado pra não trocar nenhuma letrinha...que era uma coisa muito
comum... [...]
Aí depois disso remarcado, você tirava outro copião, o diretor de fotografia via de novo, ou
achava que estava tudo ok, ou achava que ainda precisava mexer... Mas aí seriam ajustes mais
finos. Aí deixava remarcado, pra quando o som chegasse, com o filme montado e as devidas
trucas [...], você encaixava pra tirar a cópia zero. Ficava seguindo esse processo até você ter
uma cópia ajustadinha, e aprovada por todos.
Ana Carolina: Uma curiosidade que eu tenho. Qual a sua formação antes de ser colorista?
FS: Eu estudei muito pintura. Eu terminei o segundo grau, fiz muitos cursos de pintura, de
ilustração, muita computação gráfica...Mas não tinha faculdade pro que eu queria fazer, eu já
tava trabalhando aqui na Labocine... [...] Eu fui pra Nova Yorque, estagiei na TP House,
conheci os laboratórios de lá, foi quando eu tive contato com a mesa Da Vinci 2K Plus, que
era a mesa que controlava o Sheldon na época, era antes do Spirit. E fui trabalhando, em
contato com a galera, com os profissionais... Não era como é hoje em dia que você consegue
fazer uma faculdade como a UFF, a Estácio, e você tem toda uma literatura na sua mão, você
pode ter acesso aos programas....Antigamente os programas eram caríssimos. [...]
Então correção de cor mesmo, no Brasil, eu demorei um pouco pra fazer. Eu era marcador de
luz, ainda sou né...Você nunca deixa de ser, só deixa de trabalhar na área. O último longa que
eu fiz todo ótico foi o “Educação Sentimental”, do Julio Bressane, fotografia do Walter
Carvalho. Daqui a pouco pode pintar mais um, aí o pessoal pede pra você fazer, mas é
raríssimo né? Por leve saudosismo você acaba fazendo, e também pra estar perto dos caras né,
dos diretores de fotografia, que são pessoas maravilhosas...Você não tem como recusar um
pedido do Walter...
AC: O que que você acha que mudou nessa passagem para o digital? Como foi a passagem,
as primeiras experiências?
FS: As primeiras experiências foram trágicas. Porque você estava acostumado a trabalhar
com a película...Aqui na Labocine, demorou um pouco o investimento na parte digital. Então
eu via material chegando de transfer de outros laboratórios. E a imagem...eu sempre via os
diretores e os diretores de fotografia muito frustrados. E como eu já tinha uma bagagem legal
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com a parte ótica, conhecendo todo mundo, com uma bagagem bacana, eles começaram a
trazer os filmes pra cá, achando que eu poderia resolver. [...] Então eu tive que começar a usar,
nessa época, os positivos que eu tinha na mão pra tentar solucionar certos problemas. Tinham
materiais que eram pra ser copiados em Kodak, que quando a copia chegava ela estava
extremamente contrastada, muito contrastada, e eu não conseguia eliminar esse contraste. A
cópia ficava lavada e não se chegava a um resultado legal. Então pra esses casos eu começava
a usar o Fuji, porque tinha um contraste baixo, dessaturava mais os tons, embora ele
priorizasse o verde, características mesmo do negativo que a gente já conhecia. Isso nos
primórdios... Aconteceu com Zuzu Angel, foram vários... [...]
Depois que começamos a trabalhar mesmo fazendo a intermediação digital, a receber imagens
capturadas com algumas câmeras digitais. As câmeras não tinham latitude nenhuma, então
você entrava com isso no laboratório de cor, na época o Scratch tava começando, não tinha
nem secundárias direito...E aí a gente ia olhando a tela no monitor, e muitas coisas que nós
marcávamos a luz, por mais que tivesse calibrado e tentando se fazer o misterioso LUT, look
up table, as imagens não saiam exatamente quando eram “printadas”. Então foram sendo
necessários anos de pesquisa, de ajuste, de investimento, até a gente conseguir chegar e ter um
ambiente como esse que você tá vendo aqui, de você olhar na tela e você marcar com
segurança o que você tá vendo, e isso responder na cópia. Você passar por todo o processo de
laboratório, e ainda assim ficar fiel na tela. Isso não somente aqui na Labocine, mas nos
outros laboratórios também, isso foi muito complicado.
AC: Então como foi quando você começou a sentir que esse processo estava mais estável? O
que você achava que mudou na forma dos fotógrafos quererem trabalhar? Você achava que
houve um deslumbre com as possibilidades ou os fotógrafos ficavam com medo de arriscar?
FS: Houve resistência e houve deslumbramento. O deslumbramento continua, a resistência
está minada, e o deslumbramento continua mas não com tanta intensidade. Porque agora já se
sabe das possibilidades, e o que está se buscando é uma imagem cinematográfica. Quem
conhece e teve esse know-how do laboratório, conhece a película e é íntima dela, quando pega
uma imagem e bota aqui na tela, o que eu busco fazer é trazer a cinematografia dela, tirar a
cara de vídeo. E quando eu faço isso as pessoas já gostam. E aí você já começa a ajustar a
base do material. E muitos trazem a idéia do que eles querem, já pensam antes o que vão
querer. Tem pessoas que escolhem câmera, podem escolher câmera. Antigamente as pessoas
escolhiam negativo. Então se tinham um objetivo lá na frente eles escolhiam se queriam
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Kodak, se iam filmar em Fuji, na hora da filmagem se eles iam pular o bleach, pra conseguir
uma imagem mais metalizada, e se iam fazer a cópia em Kodak, Fuji ou Agfa. Se iam filmar
em 16mm e fazer a ampliação em laboratório... como o “Cazuza”, por exemplo, foi feito. O
Walter Carvalho filmou em 16mm, marcamos a luz do 16mm, pista A e B, entre uma cena e
outra entrava um black. Depois marcamos a pista B... E daí fizemos um copião, em 16mm,
remarcamos. Na hora dele fazer a ampliação ótica do material, chamado de blow up, ao invés
dele fazer num material de baixo contraste, especial para isso, para se fazer um internegativo,
ele fez para um positivo. Só nisso ele já foi radical. Ele ampliou para um positivo,
extremamente contrastado, e desse positivo fez um internegativo e pediu pra tirar mais prata
desse negativo. E fizemos o copião.
Poucas pessoas viram no cinema o que é o “Cazuza” realmente, mas na tela do cinema
aquelas cores brilhavam, eram metalizadas, o filme era radical. Eu me lembro que eu estava
nessa situação, nessa sala, com o Waltinho e o Vitor Bregman, que era o diretor do
laboratório na época. E o filme tinha um look radical. E o Vitor perguntou “Walter, você não
tem medo do que as pessoas vão falar da sua fotografia?”. E o Walter respondeu “Dr. Vitor,
eu não tenho não. Eu tenho medo do que o Cazuza vai achar da minha fotografia.” O Cazuza
naquela época morreu de Aids, ele era um cara radical. “O Cazuza é isso, ele é essa fotografia,
radical, eu não posso ter medo de fotografar o Cazuza. Eu tenho medo é dele voltar e puxar
meu pé a noite”. Então isso foi uma aula, uma pessoa com essa cabeça...
Hoje as pessoas escolhem câmeras, ao invés de escolherem negativos. Mas muitas já chegam
aqui sabendo o que querem...
AC: E você acha que nessa coisa de escolher câmera, você acha que existe uma tendência às
pessoas testarem menos? Por que isso é uma coisa que os fotógrafos tem falado às vezes, por
que antes se entendia mais a importância de se testar... E hoje acaba que se faz menos isso, ou
mesmo quando se testa é mais rápido, porque se sabe que pode resolver na pós...
FS: Eu tou sentindo que no momento não. No momento se testa muito. Tivo com o Ivo Lopes,
há duas semanas atrás. E ele veio trazer um teste de fotografia pro look que ele queria seguir,
junto com a Sandra Kogut. E aí ficamos aqui trabalhando e chegamos a um resultado bacana,
“pronto, é isso que a gente quer seguir”. Porque eles estavam testando entre duas câmeras e
escolheram a câmera que deu o resultado melhor. Então eles pegaram essa câmera pra
fotografar o filme. No meio do segundo dia de filmagem, o Ivo pede pra vir aqui na sala,
porque ele estava inseguro com algumas coisas que ele estava fazendo, porque ele achava que
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não estava reagindo bem. Então ele pegou essas cenas que ele achava mais complicadas,
pegou as outras que ele fotografou que ele achava que estavam num caminho melhor, e
quando ele chegou aqui ele ficou apaixonado, viu que ele estava no caminho certo... Então ele
não precisa mais vir aqui, pelo menos não precisa mais voltar aqui, pra fazer novos testes.
Mas ele já sabe o que ele vai fazer, problemas que ele achava que podia ter e que não
houvessem solução nós resolvemos relativamente fácil, então ele está seguro e vai fazer...
Ontem mesmo teve um outro projeto aqui na sala, que vai ser fotografo em 7D e 5D. Então o
diretor de fotografia achava que a ótica da 7D estava a desejar com a definição da 5D. E eu
achei lindo os dois, dependia de como ele queria usar, mas ele tinha essa ideia de que estava
ruim. Quando nós começamos a marcar a luz ele sentia falta de definição da 7D. Mas depois,
olhando bem o look que a gente queria chegar, ele começou a achar fantástico, achar que a 7D
estava reagindo melhor que a 5D, embora ela tivesse uma definição menor. E ficou fantástico,
ficou bem orgânico, nas imagens de ficção... E nas imagens reais ele vai usar a 5D...Então é
necessário testar de qualquer forma...
AC: E você acha que hoje, com a intermediação digital, ainda é diferente quando um filme é
filmado em película e passa pela intermediação, e quando é capturado em digital, numa RED,
Alexa? Isso muda seu trabalho?
FS: Olha, o que acontece, quando você fotografa em película, é que a imagem vem com um
peso diferente. Você sente, ela imprime esse peso, ela é imponente. Parece que se respeita
mais quando se está com um chassis, a câmera no set, e a câmera digital ela fica mais solta.
Com o tempo você começa a sentir essas coisas...
E a película ela tem um grão, ela tem a textura que é dela. E nas altas luzes, a película tem o
soft clip, que é característico da curva da película...a luz não estoura, ela não vai reto e estoura,
ela tem uma gradação diferente... E as cores são muito bem separadas. Toma-se um cuidado
muito grande ao se filmar em película, é claro que os grandes diretores de fotografia mantém
esse cuidado ao filmar digital. Mas a película, eu acho fantástica. Pra mim é o que tem de
melhor ainda. Quando você vai nas outras câmeras, por exemplo a RED, a Alexa... Eu sinto a
RED mais radical no nível de contraste, a Alexa eu sinto que ela segura mais esse contraste e
a diferença entre as baixas e as altas luzes. Você precisava trabalhar um pouco mais na RED,
mas você consegue um resultado muito bacana. Na Alexa você consegue um resultado legal
mais fácil, mais rápido. As cores são mais separadas, o branco não estoura tão radical, então
tem essa briga no mercado de tecnologia pra se conseguir chegar o mais próximo da película.
Eu acho que está caminhando muito bem...
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AC: E a película mesmo mudou? A própria película mudou, com o surgimento da
intermediação digital, e imagino que antes o filme estava mais dependendo da película
mesmo...e depois, houve uma tendência a elas se adaptarem a intermediação digital?
FS: Pra você trabalhar com a película, ficou muito mais fácil de você trabalhar agora, você
tem muito mais facilidade agora do que com o processo totalmente ótico. Porque no
laboratório, você tem de 1 ponto de luz até 50 pontos de luz na marcação ótica. Então se o seu
material, se ele vinha dentro de uma casa no interior e lá fora você tinham pessoas
conversando na varanda...Você tinha que optar pra onde você ia marcar. Se era aqui pra
dentro ou lá pra fora [...] Embora o negativo tivesse um curva bem redondinha, o positivo não.
O positivo tem uma curva mais brusca, ele enxerga menos. Então você tinha que pegar o que
você queria nesse negativo e encaixar aqui, ou a parte de baixo ou a de cima. Hoje em dia,
que que acontece, esse material é escaneado em 4K (ou em 2K, depende do projeto). E o
scanner pega todo esse negativo aqui, mais uma margem nas baixas e outra nas altas. E ele
traz tudo pra você fazer a correção de cor. Então eu tenho toda essa informação. A imagem
vem lavada, sem contraste, normal... Então com o meu LUT ajustado, e isso aqui é anos de
ajuste (cada laboratório tem o seu LUT), e com esse material escaneado em 4K e logarítmico
(ou seja, ele não é linear, que nem as câmeras digitais). Você aqui, junto o waveform, que
agora virou o braço direito do fotografo, você tem o seu nível de preto e o nível de baixas
luzes. E aqui dentro você trabalha tudo, você consegue simular o bleach bypass do laboratório.
Então por isso que é necessário você ter cultura cinematográfica. Pra quando o diretor sentar
do teu lado e ele quiser uma cópia flashada, ou um bleach bypass, ou um preto e branco, e ele
tiver referência do que ele quer, você sabe que consegue simular isso aqui no mundo digital.
Você pode colocar difusão em cada camada de cor, coisa que era impossível no laboratório. E
depois quando você volta e printa o seu material que está no computador, ele volta ao
internegativo, já na curva do internegativo e com essa latitude toda ajustadinha aqui dentro. E
daí quando ele passa para o positivo, ele passa já na curva do positivo, porque tava já tudo
previsto antes. Então eu não preciso mais escolher qual parte que eu quero. Eu posso colocar
tudo junto. Eu posso querer ver você aqui, e as pessoas que tão lá forando, trazendo tudo de
altas luzes, tudo de baixas luzes, e a gente pode ir buscando um contraste entre elas, isso que é
bacana de se trabalhar... Sendo que quando você faz isso, tudo fica muito presente. Então
você, cinematograficamente, deixa um pouquinho mais solto, lá fora não precisa trazer tanto...
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Você trabalha com isso, mas se precisar trazer você sabe que consegue. Então a película
mudou muito, pra se trabalhar no mundo digital... [...]
Eu tive um experiência bem radical. Eu gosto sempre de citar o Waltinho, porque ele
experimenta muito e eu acabo passando por essas situações com ele. Ele estava muito
resistente em relação digital. Então na época a gente ia fazer o Baixio das Bestas. Ele ia ser
fotografado em 16mm e fazer a ampliação ótica. E você tinha truca, porque você tinha que
fazer alguns efeitos. Então quando você fazia a marcação de luz, além da truca, você tinha
que fazer pra um máster e depois fazer o internegativo. Quando você fazia a imagem já perdia
a qualidade. Toda vez que você fazia um máster pra gerar um internegativo, a qualidade caía.
[...] E quando tinha truca então, você pegava uma luz, marcada pra determinada situação e
pegava uma outra situação, com outra luz marcada. [...] A truca gerava um internegativo
dessa junção, e nisso já tinha uma perda de definição. E isso era encaixado antes de se fazer
um máster, pra que ele não tivesse emenda. Então nas suas imagens normais você perdia
definição, digamos que uns 30%...As imagens de truca, já tinham menos definição, então
quando eram finalizadas perdiam 50%...Então nunca ficava perfeito. Depois que nós pegamos
esse material, escaneamos e printamos, nós vimos que não perdia definição. Foi quando o
Waltinho viu que valia mais a pena printar no internegativo, só nisso já se ganhava muito. [...]
Então eu, com todos os meus anos de cinema, trabalhando em película, eu posso te dizer que
captando em película, escaneando, e trabalhando na intermediação digital, e voltando para o
internegativo em película é o melhor que você pode fazer. [...]
AC: Quando você trabalha, desde o início de um filme, que o fotografo já vem fazer testes
com você desde o início...você já trabalhou com a criação de looks? Quele eles aplicam
depois na hora da filmagem? Percebe que isso faz diferença?
FS: Faz. Tem projetos que o diretor de fotografia vem, conversa comigo, me manda umas
referencias, e eu vou criando os looks. Eu olho as referencias que ele mandou, busco algumas
coisas. A gente assiste o filme, depois que o filme tá montadinho, e já vamos decidindo em
que situação usar cada look. Então você já está indo muito direto no que você quer, isso é um
jeito muito bacana de se trabalhar.
E a maioria das situação acontece sem eu ter visto o filme, sem eu ter visto nada. Aí vamos
começar a marcação de luz hoje. Aí é hoje que eu vou chegar, vou ver o filme, vou conversar
com o diretor, com o diretor de fotografia, e ele vai me dizer o que que ele quer. Esse último
filme que eu tou fazendo, que é o “Até que a casa caia”, nosso diretor o Mauro, ele entrou
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aqui na sala e falou “Eu quero meu filme mais colorido, porque esse filme não tem cor, eu tou
um pouco insatisfeito com a direção de arte, sofreu muito o filme, não tá bacana e tal...”.
Realmente, tava tudo ali no off-line. Quando eu peguei o material em alta da RED e
começamos a trabalhar, era tudo mentira. Nada do que ele via era o que ele tava falando.
Então ele já chegou com o conceito totalmente errado. Pelo menos eu já sabia o que ele não
queria né. Aí começamos a trabalhar e foi muito tranquilo, foi muito fácil. Até ele mesmo
falou, que um dos dez mandamentos que ele vai levar pra vida dele é “jamais falar mal da
direção de arte antes de você ver o seu material em alta, no laboratório”. Então sofre as vezes,
ele sofreu de mais, e isso é muito comum...
AC: Uma coisa que o Mauro [Pinheiro] falou que eu achei bem legal, é que antes, no ótico,
você fazia os testes com o diretor de arte, ele via o resultado impresso na película, e ia
trabalhar à partir disso. E o que ele falou que com alguns fotógrafos que não trabalham dessa
maneira, que fazem menos testes, ou a produção mesmo que não incentiva isso, ele acaba
tendo na cabeça dele onde ele vai chegar, ele sabe que vai chegar nessa imagem na pós, só
que o diretor de arte se perde nesse processo porque ele nunca vai ver o que vai ser a imagem
mesmo.
MP: E ele trabalha um tempo com aquela imagem estranha né? A imagem que não é a
verdade. [...] Mas um copião próximo, é uma coisa muito difícil de se conseguir, ainda é
longe... Porque antigamente a gente tinha o problema de conseguir um bom copião no
laboratório. Porque às vezes saía um todo verde, às vezes saía magenda, às vezes saía bom...E
aquele processo de marcar luz, olhar, remarcar, era um processo complicado... Um bom
copião era difícil. Tinha uma técnica bem apurada pra você chegar e produzir um bom copião.
E não se dava muito atenção, porque se fosse marcar cena a cena ia sair muito caro, então
geralmente era luz única.
E o que acontece hoje em dia é que você tem um material digital na mão, e que também não
tem muita qualidade. Eu considero isso um copião, pra você montar seu filme... e continua
horrível. O cara fica sofrendo, não sabe se as altas estão estouradas, se vai dar pra usar, não
vai dar, até chegar aqui, que é quando a gente realmente olha as imagens em alta e vê seu
filme acontecendo.
AC: Essa pergunta que eu vou fazer agora é um pouco mais subjetiva. Como o processo está
mudando, isso tem mudado a forma de fotografar, você não faz um recorte aqui, uma cor ali,
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você deixa pra fazer na pós. Então o diretor de fotografia passa parte do poder criativo pra
você. Claro que a decisão ainda é dele, que ele vai acompanhar você, mas você faz parte desse
trabalho, talvez mais do que antes. Você acha que isso mudou a forma de você trabalhar
criativamente, hoje você tem uma participação maior no filme?
FS: Olha, as ferramentas mudaram. O marcador de luz ele era limitado ao que a película e a
marcação ótica podia dar pra ele. Era muito simples de você olhar o material e saber o que o
fotografo quis fazer pelo negativo. Hoje em dia continua, você pega a imagem dele, analisa a
base, analisa a temperatura de cor e você já vê a intenção dele. E acontece, tem diretores de
fotografia que deixam de fazer coisas no set porque eles sabem que podem fazer aqui. Isso é
muito comum. E tem outros que não curtem fazer isso, que preferem fazer tudo lá pra você
ganhar mais tempo. Então ou você gasta mais dinheiro aqui, no DI, ou você fazendo lá você
consegue finalizar um longa aqui em uma semana. Tem outros que demoram três semanas.
Então qual o custo benefício? Se ele sabe que dá pra fazer isso aqui, e sabe que dá pra fazer
isso lá, a minha participação em cima disso é pelo que ele fala. Eu sou uma ferramenta na
mão dele. Mas é infinita a possibilidade que você tem na intermediação digital. Eu posso
fazer várias propostas, quando o diretor me deixa livre pra fazer propostas, e quando ele não
me dá um caminho a seguir. E ele aceita ou não aceita.
Estava sendo falando agora, na semana ABC, sobre o último filme que ganhou o Oscar de
fotografia. Que ele tinha cenas no espaço e não tinha como ser filmado no espaço. Então o
diretor de fotografia ganhou melhor fotografia num filme que a maioria das fotografias ele
não tinha como filmar, não existiu. [...] Então o pessoal do efeito interferiu muito no filme.
Tudo está interferindo muito no filme. Então o diretor de fotografia tem esse conhecimento, e
ele usa essas ferramentas pra agregar a fotografia, mas ele é o responsável por isso.
Então a minha tarefa está cada vez mais junto do diretor de fotografia. Nós estamos
interferindo cada vez mais onde tem que interferir, deixando bem singelo onde tem que
deixar... Eu quero ser usado, todos os coloristas estão aqui para ser usados, como toda
ferramenta. Mas o mérito é todo do diretor de fotografia. Eu posso ficar duas horas corrigindo
uma cena, mudando tudo, mas se ele não gostar, tira-se tudo. Tem mérito sim, mas ele sabe
onde ele está chegando e ele sabe quem ele usa. Então eu não penso que “o colorista agora é o
cara”, eu acho que não. O diretor de fotografia é o cara.
AC: Mas os fotógrafos falam muito, pois como hoje você sabe até onde você pode chegar
com o digital, ter o cara que chega lá, e que faça isso rápido, às vezes é mais importante do
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que a câmera que você preferia usar, sei lá... Então eu acho interessante pensar em como a
profissão do colorista também está evoluindo, talvez hoje você precise estar mais próximo do
trabalho de fotografar mesmo.
FS: Eu vejo como uma questão de sensibilidade. Eu tenho uma sensibilidade. Eu acho que
você nasce com algumas características e eu tive a oportunidade, graças a deus, de explorar
esse meu lado e desenvolver em cima disso. Então você vai fazer um filme comigo ele vai
ficar de um jeito, se for fazer com outro colorista, ele vai ficar de outro jeito. Então a equipe
que você trabalhou torna o filme único. Então um diretor de fotografia se adapta melhor a um,
ou a outro, ele prefere trabalhar com um ou outro, ele vê os resultados na tela. A meu modo
de ver, a subjetividade é de cada um. Porque além de técnicos, quando você passa acima da
técnica, você alcança a arte. [...] Porque às vezes você domina a técnica, mas você põe uma
imagem na tela e ela não fica plástica. E os diretores olham assim...e acham que a imagem
talvez ainda não esteja lá. Mas ele não sabe dizer o que que é o lá. Então você que tem que
saber o que que é o lá. E tem que saber chegar lá. Às vezes um toque, 20% de saturação a
mais ou a menos, é a diferença entre estar maravilhoso, estar bom ou estar ruim.