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A discursividade contra-hegemônica das “maiorias sociais”: virando o desenvolvimento pelo avesso 1 (Versão preliminar. Pede-se não citar sem consentimento.) Henyo Trindade Barretto Filho (IEB) Resumo: A partir da perspectiva de um ongueiro profissional, que circula em várias redes e circuitos (debates, mobilizações, assessorias, atividades acadêmicas), a apresentação tenta fazer sentido de uma dispersão de narrativas críticas às promessas do desenvolvimento atualizadas por diferentes segmentos das “maiorias sociais” (Esteva e Prakash, 1988). Muito mais uma hipótese de trabalho para a investigação do que o resultado de uma pesquisa sistemática, tenta estabelecer vínculos e correlações significativa entre as vozes e as experiências de sujeitos que atualizam diferentes estratégias de lutas nas frentes dos conflitos socioambientais. Ao fazer isso, identifica que tais discursividades circulam em diferentes arenas, ambientes, sítios e contextos (de manifestos e atos políticos a eventos acadêmicos), e trazem a marca relativamente comum de promover uma inversão generalizada na ordem das expectativas rotineiras. São discursos sobre os territórios, a economia, a cultura, os conhecimentos, a política e os afetos, que por serem sobre tudo isso são formulações sobre as condições de e para a vida, sobre o que conta como vida, configurando assim uma “ontopolítica” (Escobar, 2008) e implicando um questionamento epistemológico da modernidade e do desenvolvimento. Observações Iniciais Desculpem se vou falar platitudes e obviedades, posto que não ancorado em um trabalho de pesquisa sistemático, detalhado, focado, sobre o tema. Mais a perspectiva de um observador atento e de um ongueiro profissional que circula em várias redes e circuitos, e tenta fazer sentido do que vê, ouve, lê, testemunha e compartilha, participando de debates, mobilizações, bancas examinadoras, assessorando organizações locais (Zhouri) - nada de diferente. Tentativa de fazer sentido de uma dispersão de narrativas críticas às promessas do desenvolvimento. A natureza sincopada, sinuosa e fragmentaria da minha apresentação: não é uma conclusão de um trabalho de pesquisa, nem uma tese; é antes uma hipótese de trabalho para a investigação; um desafio imaginativo simplório, lançado às evidências. Uma tentativa de promover vínculos e correlações, entre testemunhos oculares e leituras esparsas e assistemáticas - vou operar por justaposição, esperado que se produzam efeitos. Trata-se de compartilhar com vocês algumas ideias para averiguar se elas têm alguma pertinência. A Quem Estou me Referindo? Que Grupos São Esses? Vou me permitir usar a “categoria formal frouxa” de Esteva e Prakash (Grassroots Postmoderninsm 1988) de maiorias sociais – e não de “minorias”, ou povos e comunidades vulneráveis e/ou em situação de risco (o que não deixa de ser verdade). Ao fazê-lo, tento empregar um procedimento que 1 Versão revista de rabalho apresentado na Mesa 01 Antropologia e Desenvolvimento do Evento ABA: Fórum Permanente sobre Desenvolvimento / Seminário Antropologia e Desenvolvimento, no dia 17 de outubro de 2013, na UFPR, em Curitiba/PR. O objetivo do seminário foi dar continuidade aos debates do Fórum Permanente sobre Desenvolvimento da ABA, fomentando uma agenda pública de debates sobre as políticas desenvolvimentistas.

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A discursividade contra-hegemônica das “maiorias sociais”: virando o desenvolvimento pelo avesso1

(Versão preliminar. Pede-se não citar sem consentimento.)

Henyo Trindade Barretto Filho (IEB)

Resumo: A partir da perspectiva de um ongueiro profissional, que circula em várias redes e circuitos (debates, mobilizações, assessorias, atividades acadêmicas), a apresentação tenta fazer sentido de uma dispersão de narrativas críticas às promessas do desenvolvimento atualizadas por diferentes segmentos das “maiorias sociais” (Esteva e Prakash, 1988). Muito mais uma hipótese de trabalho para a investigação do que o resultado de uma pesquisa sistemática, tenta estabelecer vínculos e correlações significativa entre as vozes e as experiências de sujeitos que atualizam diferentes estratégias de lutas nas frentes dos conflitos socioambientais. Ao fazer isso, identifica que tais discursividades circulam em diferentes arenas, ambientes, sítios e contextos (de manifestos e atos políticos a eventos acadêmicos), e trazem a marca relativamente comum de promover uma inversão generalizada na ordem das expectativas rotineiras. São discursos sobre os territórios, a economia, a cultura, os conhecimentos, a política e os afetos, que por serem sobre tudo isso são formulações sobre as condições de e para a vida, sobre o que conta como vida, configurando assim uma “ontopolítica” (Escobar, 2008) e implicando um questionamento epistemológico da modernidade e do desenvolvimento. Observações Iniciais

Desculpem se vou falar platitudes e obviedades, posto que não ancorado em um trabalho de

pesquisa sistemático, detalhado, focado, sobre o tema.

Mais a perspectiva de um observador atento e de um ongueiro profissional que circula em várias

redes e circuitos, e tenta fazer sentido do que vê, ouve, lê, testemunha e compartilha, participando

de debates, mobilizações, bancas examinadoras, assessorando organizações locais (Zhouri) - nada de

diferente.

Tentativa de fazer sentido de uma dispersão de narrativas críticas às promessas do desenvolvimento.

A natureza sincopada, sinuosa e fragmentaria da minha apresentação: não é uma conclusão de um

trabalho de pesquisa, nem uma tese; é antes uma hipótese de trabalho para a investigação; um

desafio imaginativo simplório, lançado às evidências. Uma tentativa de promover vínculos e

correlações, entre testemunhos oculares e leituras esparsas e assistemáticas - vou operar por

justaposição, esperado que se produzam efeitos. Trata-se de compartilhar com vocês algumas ideias

para averiguar se elas têm alguma pertinência.

A Quem Estou me Referindo? Que Grupos São Esses? Vou me permitir usar a “categoria formal frouxa” de Esteva e Prakash (Grassroots Postmoderninsm –

1988) de maiorias sociais – e não de “minorias”, ou povos e comunidades vulneráveis e/ou em

situação de risco (o que não deixa de ser verdade). Ao fazê-lo, tento empregar um procedimento que

1 Versão revista de rabalho apresentado na Mesa 01 Antropologia e Desenvolvimento do Evento ABA: Fórum

Permanente sobre Desenvolvimento / Seminário Antropologia e Desenvolvimento, no dia 17 de outubro de 2013, na UFPR, em Curitiba/PR. O objetivo do seminário foi dar continuidade aos debates do Fórum Permanente sobre Desenvolvimento da ABA, fomentando uma agenda pública de debates sobre as políticas desenvolvimentistas.

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– espero poder indicar adiante – é usado por esses mesmos grupos que, ao operar uma inversão de

expectativas, pode ter a virtude de nos chamar atenção para dimensões não imediatamente visíveis,

ou que, porque de uma obviedade ululante, podem passar desapercebidas.

Recorrer a uma referência, ainda que um pouco longa, de Esteva e Prakash (1998, Grassroots

Postmodernism) pode nos ajudar a entender de que contingente amplo é esse a que me refiro. Tipos

ideais de grupos de pessoas (maiorias e minorias sociais) que se diferenciam pela “qualidade” das

suas condições de vida – ‘condições de vida’ aqui entendidas de um modo um pouco mais matizado

do que o termo que empregamos no senso comum. Referir-me-ei a tipos ideais de grupos de

pessoas, que se diferenciam-se pela “qualidade” de suas condições de vida.

As minorias sociais (categorias formais frouxas) estão consumindo os espaços naturais e culturais

das maiorias sociais do mundo com a intenção declarada de desenvolvê-las para o progresso, o

crescimento econômico e a humanização – ver a carta contra o prêmio Vale/Capes (Anexo I) e Carta

de Belo Horizonte (Anexo 2). Tais minorias vêm provocando uma profunda transformação das

paisagens em todo o país, promovendo o desenraizamento das maiorias sociais – desenraizamento

no sentido tanto de tirar a terra do povo como de tirar o povo da terra – com graves alterações

ambientais (desmatamento, obras civis, etc).

Já as maiorias sociais não tem acesso regular à maioria dos bens e serviços que definem o padrão de

vida médio dos países industriais. Suas definições de “vida boa” (bem viver), moduladas por suas

tradições locais, refletem suas capacidades de florescer fora de órbita da “ajuda” oferecida pelas

“forças globais”. Elas nem precisam, nem são dependentes do conjunto de bens prometidos pelas

forças globais. Elas, portanto, compartilham uma liberdade comum em sua rejeição a essas forças.

Elas continuam a resistir à penetração do mundo moderno em suas vidas, em seus esforços de salvar

suas famílias, comunidades e aldeias / bairros / guetos do próximo comboio de tratores enviados

para torná-las ordeiras e limpas. Diariamente, os diagramas de modernização, concebidos por

planejadores convencionais ou alternativos para a sua melhoria, deixam as maiorias sociais cada vez

menos humanas. Expelidas de seus espaços comunitários tradicionais centenários para o mundo

moderno, elas sofrem toda indignidade e desumanização do imaginável da parte das minorias sociais

que o habitam. A única esperança de existência humana e florescimento para as maiorias sociais

repousa na criação e regeneração de espaços pós modernos (autonomia!?). As políticas neoliberais

estão empurrando as maiorias sociais cada vez mais para a “terra inculta / de rejeitos / baldia”

(waste land) do mundo moderno. Relegados às suas margens, elas são excedentes humanos,

dispensáveis e redundantes para os atores dominantes da cena global. Muitos dentre essas maiorias

não estão caindo na armadilha das expectativas modernas: contar com o Estado e o mercado.

Estabelecidas nos guetos, nas toxinas, nas reservas, ou outras terras de rejeitos das sociedades

modernas, o colapso do mercado e do Estado está, a rigor, criando novas oportunidades para elas

caminharem com suas próprias pernas, sem esperar pelo cumprimento das promessas de

desenvolvimento, equidade, justiça e democracia. Reafirmando-se em seus próprios espaços, elas

estão criando diariamente as fronteiras sociais dessa pós-modernidade; encontrando e construindo

novos caminhos com sagacidade e criatividade.

É importante, assim, ouvir as vozes e as experiências dos atores que sofrem e atuam nessas frentes:

as dos conflitos socioambientais, as das experiências de governança autônoma, as dos arranjos

produtivos locais, etc. Alguém diria: ouvir os gritos das ruas daqueles que estão gritando há muito

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tempo, pois, como citou Dominique Perrot no IWGIA Yearbook (1988): “As vítimas são sempre as

primeiras a saber como o sistema opera”.

Onde / Em Que Contextos Podemos Ouvir Essas Vozes Convencional e Rotineiramente? Onde estão esses discursos e vozes? Onde podemos encontrar, ouvir e reconhecer essas

vozes/apelos/interpelações? Onde se pode localizar/identificar essas postulações? - e isso tem a ver

com a noção de dispersão empregada no título. Convencional e rotineiramente, as testemunhamos:

1. Em arenas de debate e mobilização de seus próprios âmbitos: reuniões, encontros,

articulações, assembleias, passeatas, acampamentos, ocupações, retomadas, etc., vinculadas

ao repertório de estratégias de luta e posicionamentos desses grupos - que também são

performances políticas / discursivas, que indicam a permanência de uma discursividade

crítica vinculada à práxis (de resistência, negociação e acomodação) dos movimentos sociais.

2. Nos manifestos, cartas, denúncias, abaixo-assinados (que permanecem formas e

modalidades de expressão importantes – parte do repertório de linguagens e expressões de

que se assenhoram esses grupos.

3. Nos trabalhos acadêmicos (dissertações, teses, artigos, monografias e etnografias) que

sempre trazem a cor local, a especificidade dos contextos de conflitos – de novo, a carta

contra o prêmio Vale-Capes (Anexo 1) e Carta de Belo Horizonte (Anexo 2).

4. Nas arenas de debate mais formais e institucionalizadas, articuladas a partir de espaços/

tempos mais afeitos à modernidade: congressos, jornadas de estudo, reuniões/encontros

acadêmicos, etc., nos quais observamos a participação de lideranças dos movimentos sociais

(e do MPF), apontando para relações mais dialógicas e menos hierarquizadas, e baseadas na

crítica à autoridade etnográfica (com diferentes repercussões). [ver Andrea Zhouri e MXVPS

na Anpocs, Ailton nesta mesa] – hibridização e fronteiras porosas.

5. Os espaços e oportunidades criadas pelas políticas de ação afirmativa, de cotas, de acesso e

permanência de pequena parcela desses grupos de (indígenas, quilombolas e outros PCTs)

no ensino superior – a educação como uma das promessas emancipatórias de modernidade:

já falam de dentro desse campo, o que tem as repercussões em termos de diferenciações de

vozes e discurso.

6. As redes sociais e a mídias alternativas [ o exemplo da “juventude indígena” (alguém já deve

estar estudando isso), do movimento dos educadores do/no campo, etc] – o título dessa

apresentação vem de uma entrevista da Sheila Juruna à colunista gaúcha Eliane Brum – foi

propositalmente retirado daí.

Destaco, em especial, a participação de representantes dessas maiorias sociais em eventos definidos como acadêmicos, algo que não era comum, nem rotineiro, nem esperado em outros momentos – e os meus colegas mais experientes podem me corrigir se estiver dizendo uma bobagem. Entre os que tive oportunidade de participar nos últimos três anos, destacam-se: * SP05: Desenvolvimento, reconhecimento de direitos e conflitos territoriais (Parceria ANPOCS /

ABA), sob a coordenação geral de Andréa Zhouri (ANPOCS, ABA, UFMG), em outubro de 2011, cuja

3ª sessão (“Projetos de desenvolvimento, meio ambiente e povos tradicionais: o caso Belo Monte),

contou com a participação de Jodinei Mendes Ferreira (Movimento Xingu Vivo).

* Seminário Nacional Formas de Matar, de Morrer e de Resistir: limites da resolução negociada dos

conflitos ambientais e a garantia dos direitos humanos e difusos. UFMG, 19 de novembro de 2012.

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* I Jornada Internacional de Ciências Sociais e II Reunião da Rede Brasil–Estados Unidos, sob o tema

“Ambiente, Sociedade e Governança”, que aconteceu entre os dias 26 e 29 de junho de 2013, na

Cidade Universitária da UFMA, em São Luís.

* VI SAPIS (Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social). Workshop "Territórios

Tradicionais e Unidades de Conservação: diálogos e perspectivas em debate" no âmbito do na UFMG,

Belo Horizonte/MG. [Setembro de 2013]

Algumas Características dessa Formação Discursiva

A Antropologia pode contribuir para a articulação desse problema de vários modos, entre os quais,

prestando atenção ao que dizem essas vozes e essa discursividade em seu conjunto.

Observa-se que as figuras de linguagem preferenciais desse discurso são a anástrofe e o hibérbaton,

porém operando em outra escala – não aplicadas à inversão da ordem normal e direta dos termos

numa frase, dos termos da oração, ou das orações do período; mas uma inversão generalizada

aplicada à ordem das expectativas rotineiras, ordinárias, comuns e convencionais em relação ao que

se considera “desenvolvimento”.

1. A inversão da narrativa sobre a apropriação fundiária e dos recursos naturais [território].

- Sonia Guajajara (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira - COIAB): as

chamadas “invasões” e/ou “ocupações” são, a rigor, “lutas constantes para retomar territórios dos

quais estão exilados” (‘retomadas’): o que aparece como formação do mercado de terras é, para os

povos indígenas, “titulações irregulares e irresponsáveis de terras públicas para particulares”.

“As retomadas de terras costumam ser qualificadas pelos setores anti-indígenas como ações ilegais e

ilegítimas, como ‘invasões’. Na verdade, elas são a principal forma de ação política desenvolvida

contemporaneamente pelos tupinambás. São condição essencial para a construção, pelos indígenas,

de projetos de vida autônoma. Retomando fazendas, eles tornaram-se capazes de deixar as posições

de subordinação que ocupavam na sociedade regional (inclusive desempenhando trabalho escravo,

em alguns casos) e de voltar a se dedicar às atividades que desenvolviam tradicionalmente, como

agricultura em pequena escala, criação de animais, caça, pesca e coleta. Entendo que tal processo

permite, ainda, a manutenção e o fortalecimento de sua identidade e de seus laços sociais e

territoriais” [Daniela Fernandes Alarcon].

- A s nove cartas dos povos indígenas (Mundurucu) em luta por seu direito à vida no canteiro de

obras de Belo Monte, Pará: “Nós somos a gente que vive nos rios em que vocês querem construir

barragens. Nós somos Munduruku, Juruna, Kayapó, Xipaya, Kuruaya, Asurini, Parakanã, Arara,

pescadores e ribeirinhos. Nós somos da Amazônia e queremos ela em pé. Nós somos brasileiros. O

rio é nosso supermercado. Nossos antepassados são mais antigos que Jesus Cristo. Vocês estão

apontando armas na nossa cabeça. Vocês sitiam nossos territórios com soldados e caminhões de

guerra. Vocês fazem o peixe desaparecer. Vocês roubam os ossos dos antigos que estão enterrados

na nossa terra. Vocês fazem isso porque tem medo de nos ouvir. De ouvir que não queremos

barragem. De entender porque não queremos barragem. Vocês inventam que nós somos violentos e

que nós queremos guerra. Quem mata nossos parentes? Quantos brancos morreram e quantos

indígenas morreram? Quem nos mata são vocês, rápido ou aos poucos. Nós estamos morrendo e

cada barragem mata mais. E quando tentamos falar vocês trazem tanques, helicópteros, soldados,

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metralhadoras e armas de choque. O que nós queremos é simples: vocês precisam regulamentar a lei

que regula a consulta prévia aos povos indígenas. Enquanto isso vocês precisam parar todas as obras

e estudos e as operações policiais nos rios Xingu, Tapajós e Teles Pires. E então vocês precisam nos

consultar. Nós queremos dialogar, mas vocês não estão deixando a gente falar. Por isso nós

ocupamos o seu canteiro de obras. Vocês precisam parar tudo e simplesmente nos ouvir. [Carta nº 1,

Vitória do Xingu (PA), 02 de maio de 2013]

2. A inversão do discurso do declínio e dos períodos áureos, e do isolamento [economia] – eles estão

experimentando essas transformações desde outro mundo, o deles.

- Dorinete Serejo Moraes (Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara – MABE): o

declínio das lavouras/plantations é quando “o povo se apossa das terras e passa a ser dono de suas

próprias produções”: esse foi “o período áureo dos quilombos de Alcântara”. Coteja com o que

ocorre hoje a expansão do “Programa Espacial Brasileiro” por meio da extensão do CLA (Centro de

Lançamentos de Alcântara), que nunca trouxe nenhum benefício para o povo de Alcântara (ex.: o

povo não tem nem sinal de celular) -> “nós estamos acordados há bastante tempo, mas o nosso

clamor ainda não foi ouvido.”

- Dona Francisca da Silva (Associação da Comunidade Rural/Povoado Baixão da Coceira, Santa

Quitéria, MA) - uma das áreas afetadas pela Suzano Papel e Celulose e pelos chamados gaúchos no

Maranhão: “Viveu um tempo tranquilo, muito embora esquecido.” – “Primeiro a gente aceitou, bem

acomodado, a Margusa; não sentiu que foi tão direto. Quando a Suzano entrou, aí a gente se sentiu

mais ameaçado diretamente e fomos para o ataque: atravessamos a pista em frente do trator da

Suzano.” -> de “lugar isolado, longe, condenado ao atraso por sua letargia ao progresso e por suas

condições naturais desfavoráveis, viabilizando apenas a extração predatória de recursos naturais”, a

concepção muda drasticamente devido à “dinâmica de incorporação constante de uma determinada

região nas práticas da modernidade, do Estado nacional e do mercado global”.

- Trecho de depoimento original de dona Maria da Glória de Jesus, mãe do Cacique Babau,

Tupinambá de Olivença, BA: “O velho João cansou de dizer: ‘Aqui nessa região ainda vem época do

rico desejar ser pobre’. Porque [quando viesse a praga] os ricos iam perder tudo e os pobres já não

tinham nada mesmo... A melhor coisa do mundo que deus deu foi a vassoura-de-bruxa: deus

mandou a bruxa para poder salvar o pobre. Só fala que foi desgraça quem não conhece da terra,

quem não quer viver na terra. Porque o pobre, de primeiro, era mangado, pobre era pisado, tinha

que trabalhar ali e se matar. E pobre não tinha direito de terra. Se fosse no tempo em que não tinha

a vassoura-de-bruxa, os índios estavam se apoderando de terra? Uma peste que estavam! Ô, meu

deus, os ricos mandavam matar tudo!” -> Sobretudo no contexto específico da Serra do Padeiro,

mas para os Tupinambá como um todo, o enfraquecimento dos grandes fazendeiros do cacau

afigurou-se como uma chance de finalmente recuperarem o território usurpado. Era a “bruxa”, a

praga salvadora das premonições dos velhos, encarada com argúcia por uma indígena que, no

passado, escutara tais previsões. ALARCON, Daniela Fernandes. 2013. O retorno da terra: As

retomadas na aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia. Dissertação de mestrado (Ciências

sociais). Brasília, UnB.

3. A variedade de linguagens, formas de expressão, narrativas (‘regimes de conhecimento’ – se

preferirem) por meio das quais se expressam essas epistemologias políticas & os regimes culturais

próprios [cultura – espectro que mobiliza a dimensão afetiva]

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- Dona Francisca Maria dos Santos Araújo (Presidente da Associação de Moradores de São Raimundo,

Urbano Santos, MA): a dimensão do afeto e da emoção, e a expressão em linguagem poética –

metafórica – e ontológica: rezas, bendições, cânticos, músicas. “É isso que nos mantém em nosso

território”; “cada passo que dá na luta é gratificante, os familiares passam força e confiança pra

gente”; “pelo verde, pela vida, vamos todos dar as mãos”

- Seu Getúlio Kroakaj Krahô: “Você vê que o maracá é igual ao mundo: tem respiração. O mundo tem

respiração igual ao maracá. E como tem habitante dentro do mundo, dentro do maracá tem

habitante, que são as sementes dentro dele a chacoalhar. Se o cantor mehim parar de balançar o

maracá o mundo estoura porque é o maracá que segura o mundo. As cantigas também porque é o

que faz o movimento do mundo, faz a alegria. Faz a primavera ficar mais alegre. O mundo tá girando

e assim a cantiga também, tá girando” — na Sede da Kapey (União das Aldeias Krahô); registro do

trabalho de campo de doutorado de Julio Cesar Borges entre os Craô, em abril de 2007. Entramos

aqui no âmbito complexo do chamado pensamento ameríndio. Como sugere Viveiros de Castro:

“Em especial no que se refere aos povos ameríndios, tudo indica que eles entendem que um corpo

animal (a corporalidade característica de uma espécie animal) frequentemente oculta uma forma

interna humana, ou, no mínimo, uma fonte de intencionalidade apreensiva formalmente análoga (e

frequentemente mais intensa, mais perigosa) à intencionalidade expressa na consciência humana. Já

Dilma Rousseff, que é a entidade a mais diferente possível de um índio que se pode imaginar,

entende (se posso usar este verbo) o exato oposto: ‘Sempre que você olha uma criança há sempre

uma figura oculta, que é um cachorro atrás, o que é algo muito importante’ – Dilma seria, assim, uma

desanimista.”

4. A apropriação criativa (crítica, ou não) dos argumentos científicos empregados nas controvérsias e

conflitos [conhecimento – regimes de conhecimento].

- O documento da SBPC e da ABC divulgado à época do embate em torno do Código Florestal.

- Alberto Catanhede (Beto do Taim) do Movimento Nacional de Pescadores (MONAPE) e do Grupo de

Trabalho Amazônico (GTA): os documentos e manifestos que circularam em torno da proposta de

criação da ResEx do Tauá-Mirim, no município de São Luís – a única manifestação que prevalece é a

carta dos carcinicultores de 2006, que traz anexo um estudo que diz que os apicuns não são mangue.

Desnudam a implicação política de base da produção dos conhecimentos “científicos”.

Considerações Analíticas (nos termos de Umberto Maturana e Arturo Escobar)

Tais formulações os obrigam a reconhecer a dificuldade que termos de sair dos nossos quadros

mentais, tão naturalizadas estão essas categorias e convicções nas nossas vidas. Eventualmente, não

para nós antropólogxs.

Nos temos de Maturana, ao nos declararmos seres racionais vivemos uma cultura que desvaloriza as

emoções, e não vemos o entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui nosso viver

humano, e não nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional. As

emoções não são o que correntemente chamamos de sentimento. Do ponto de vista biológico, o que

conotamos quando falamos de emoções são disposições corporais dinâmicas que definem os

diferentes domínios de ação em que nos movemos. Quando mudamos de emoção, mudamos de

domínio de ação. Na verdade, todos sabemos isso na práxis da vida cotidiana, mas o negamos

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porque insistimos que o que define nossas condutas como humanas é elas serem racionais. Ao

mesmo tempo todos sabemos que, quando estamos sob determinada emoção, há coisas que

podemos fazer e coisas que não podemos fazer, e que aceitamos como válidos certos argumentos

que não aceitaríamos sob outra emoção. [...] Todo sistema racional se constitui no operar com

premissas previamente aceitas, a partir de certa emoção.

Já Escobar observa que, como indicamos acima, estamos diante de discursos sobre a terra, sobre a

economia, sobre a cultura, sobre o conhecimento, sobre a política, mas – por serem tudo isso – são

também sobre as condições de e para a vida, sobre a definição mesma do que seja a vida, sobre o

que conta como vida (“the very perception of what life is about” – termos do Arturo Escobar em seu

Territórios da Diferença, 2008); que desafiam um conjunto de pressupostos ontológicos particulares

sobre o mundo. Daí podemos dizer que estamos diante de uma “política ontológica” ou

“ontopolítica”, que interpelam algo mais básico e mais fundamental: uma política em que,

explicitamente, o que está em jogo é a defesa da vida, as condições de percepção do que é vida.

A ecologia política dos movimentos sociais e de intelectuais críticos ao desenvolvimento capitalista

implica um questionamento epistemológico da modernidade e do desenvolvimento, apontando na

direção de definições básicas sobre o que é vida. Ao privilegiar os saberes subalternos da natureza,

uma das alternativas é articular políticas ecológicas singulares que vinculem questões de diversidade,

diferença e interculturalidade, tendo a natureza como agente central. A ecologia política desses

movimentos e discursos (o amplo espectro de categorias, significado e lutas que ocorrem hoje)

postulam o direito de habitar um mundo diferente, mundos diferentes.

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Anexo I (Carta contra o prêmio Vale/Capes)

Denunciar essa parceria indecente [Vale/CAPES] e recusá-la é o que se espera de uma academia

que leve a sério seus compromissos com o ‘povo-nação’ e, particularmente, com os povos

originários e tradicionais e as comunidades urbanas que têm suas vidas desrespeitadas e

contaminadas – quando não destruídas – por essa empresa, não só entre nós como em outros

países. A seguir, a íntegra da carta:

“Nós, representantes de associações acadêmicas, professores e pesquisadores abaixo-assinados,

viemos a público declarar que consideramos inadequada a instituição do chamado “Prêmio Vale-

Capes de Ciência e Sustentabilidade”, visando a premiar Dissertações de Mestrado e Teses de

Doutorado associadas a temas ambientais e socioambientais. É de conhecimento público que as

práticas da Vale S.A. são, com grande frequência, avaliadas como impróprias do ponto de vista

social e ambiental, em muitos casos com implicações legais, conforme registrado por inúmeros

trabalhos de pesquisa nas áreas de Sociologia, Antropologia e Ciências Sociais Aplicadas expressos

em apresentações em Congressos, Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado referendadas

pela comunidade científica brasileira nos últimos anos. Com base nesta produção científica,

listamos abaixo alguns exemplos de danos ambientais e sociais associados à atuação da empresa

em questão e, em anexo, apresentamos uma amostra ilustrativa de citações de resultados de

pesquisas recentes:

Despejo ilegal de minério diretamente nas águas da Baía de Sepetiba (Zborowski, 2008 e

Stotz; Peres, 2009);

Dragagem de 20 milhões m3 de lama contaminada por cádmio, zinco e arsênio na Baía de

Sepetiba (FIOCRUZ, 2011);

Emissão de material particulado no ar contendo elementos químicos causadores de

problemas respiratórios graves (FIOCRUZ, 2011);

Rompimento de mineroduto e contaminação do solo e de corpos hídricos no município de

Paragominas, PA (Marin, 2010);

Destruição de terras agricultáveis e desmatamento de castanheiras para a construção de

minerodutos, linhas férreas e linhas de transmissão de energia em territórios ocupados por

populações tradicionais (Marin, 2010; Pereira, 2008);

Não-cumprimento do acordo com comunidades quilombolas do Jambuaçu, Moju, PA, pelo

qual a Vale deveria recuperar 33 km de estrada que cortam as terras quilombolas, a

reforma de duas pontes e indenizações pela passagem do mineroduto de bauxita e da linha

de transmissão (Pereira, 2008, apud Trindade, 2011);

Conflitos com comunidades indígenas Xikrin (na região de Carajás, PA) e com os índios

Krenak, na região de Resplendor, MG. (Carrara, 2009);

Deslocamento compulsório de populações em função da exploração mineral e da

construção de barragens e usinas para fins de auto-geração de energia (Pinto, 2005;

Lages, 2008; Wanderley, 2009, Campos, 2010);

Transformação da imagem da empresa frente à opinião pública, sem que suas ações sejam

menos degradantes no que respeita ao meio socioambiental (Cabral e Paraíso, ANPOCS,

2005);

Projeto de mineração da Serra da Gandarela, considerada área de importância biológica

especial, com endemismo de espécies e alta biodiversidade. (Marent; Lamounier; Gontijo,

2011);

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Marcação de casas que estariam em área de remoção para a implantação de uma

siderúrgica no Maranhão, sem que as famílias atingidas fossem informadas sobre para

onde, por quem e em que condições seriam removidas (Santos Jr. et alii 2009);

Construção de estradas e infraestruturas que têm provocado assoreamento e morte de

igarapés no território quilombola do Jambuaçu, Moju, PA. (Trindade, 2011).

Consideramos, em consequência, que o estabelecimento de um vínculo desta ordem entre a Capes

e a Vale S.A. tende a enfraquecer a autonomia científica no estudo das relações entre meio

ambiente e sociedade no Brasil, na medida em que as práticas da referida empresa são, elas

próprias, objeto de pesquisa e que a situação assim criada pode comprometer a análise dos casos

concretos em que esta firma figure como agente social em conflito com atores públicos

(prefeituras, IBAMA e Ministério Público, entre outros), assim como com populações afetadas por

empreendimentos, com organizações sociais defensoras do meio ambiente, direitos humanos e

direitos sociais. Isto posto, afirmamos nossa preocupação com o fato de que a produção científica

na área temática em questão venha a perder em substância e qualidade com a transformação de

um de seus próprios objetos de estudo em copatrocinador de pesquisas – mesmo que de modo

indireto, como é o caso da concessão de Prêmios.

Entendemos, a este propósito, que empresas cuja atuação seja, com frequência, questionada como

danosa a populações e ao meio ambiente, quando eventualmente dispostas a destinar recursos ao

financiamento de pesquisas acadêmicas, devem submeter-se a condições definidas na estrita

perspectiva do caráter público da produção científica. Propomos, por conseguinte, que a aplicação

de recursos privados a premiações de pesquisas científicas passe por uma instância pública que

regule a distribuição dos recursos e que critérios e dispositivos normativos sejam instituídos para

lidar com casos como esses, excluindo-se, em particular, que representantes de empresas venham

a compor júris na avaliação de trabalhos científicos – como é o caso neste prêmio – e que recursos

devidos sob a forma de multa, condicionantes ou compensação sejam apresentados pelas

empresas como patrocínio ou filantropia estratégica.

Atenciosamente,

Profa. Ester Limonad

Presidente da ANPUR”

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Anexo 2 - Carta de Belo Horizonte

Os pesquisadores e pensadores signatários deste documento vêm, há mais de uma década,

realizando rigorosas pesquisas que evidenciam, à exaustão, enorme volume e diversidade de

situações empíricas em que populações, comunidades tradicionais, povos indígenas e classes

populares em geral têm seus direitos ambientais, culturais, territoriais e humanos flagrantemente

violados. Invariavelmente, os agentes dessa violação são os responsáveis pelos empreendimentos

privados orientados para a acumulação de capital, tais como aqueles investidos no mercado

imobiliário, na incineração de resíduos tóxicos, na produção de commodities agrícolas e minerais,

na apropriação de recursos hídricos para geração de energia elétrica, para a pesca comercial, para

o turismo elitizado, para os monocultivos irrigados etc.

Nesses processos, as práticas governamentais do Estado, orientadas por uma ideologia

desenvolvimentista, gestada de modo prevalente no período dos governos autoritários do Brasil,

têm desempenhado papel essencial, geralmente postando-se ao lado dos interesses predatórios e

expropriadores do capital. As formas pelas quais o Estado, segundo esta perspectiva de

governança, realiza esse papel são várias: por meio da concessão de licenciamentos ambientais,

não raro mediante a desconsideração de pareceres técnicos e dos protestos das populações

vilipendiadas; investindo recursos públicos na implementação ou rentabilidade de grandes projetos

de infraestrutura (como estradas, ferrovias, portos, transposição de rios etc.); a criação de

Unidades de Conservação e Proteção Integral, que expropriam populações locais; o uso da força

das armas para realizar o deslocamento compulsório de populações urbanas (como nos violentos

processos de “reintegração de posse” de terrenos urbanos ociosos, ocupados por populações de

sem-teto, ou como na realização das obras de transposição do rio São Francisco etc.). Outro

aspecto importante da modernidade anômala que as frações do Estado teimam em reforçar, em

suas políticas/programas equivocados/insuficientes, tem sido a naturalização do desbalanço dos

direitos territoriais dos diferentes grupos sociais, o que enseja a desproteção continua dos lugares

mais ameaçados, no campo e nas cidades, e redunda em expô-los a desastres recorrentes e cada

vez mais catastróficos. O sofrimento social dos grupos mais ameaçados e efetivamente afetados

nos desastres - no geral, com destaque aos empobrecidos da sociedade - se amplia quando há a

associação das perdas humanas e materiais havidas à desumanização dos processos ditos “de

remoção”, isto é, quando os lugares em contestação pelo ente público são ressignificados como

“áreas de risco”, justificando com tal discurso a expulsão sumária de seus moradores e relegando-

os a um futuro incerto.

Nesse contexto, causa-nos enorme preocupação a disseminação, cada vez mais rápida e acrítica,

dos chamados mecanismos de “resolução negociada de conflitos ambientais”, apresentados como

solução para a sobrecarga de demandas sobre o Judiciário. Em primeiro lugar, nossas pesquisas

deixam claro que não há negociação justa que reúna atores entre os quais existem abissais

desigualdades, em termos dos recursos econômicos, simbólicos e políticos de que dispõem. Nossos

estudos empíricos demonstram fartamente que essas negociações, via de regra, implicam o

domínio de informações, normas jurídicas, técnicas e de linguagem que escapa às classes

populares e comunidades e povos étnica e culturalmente diferenciados. A imposição desse domínio

exclui, ipso facto, os conhecimentos, valores e linguagens desses sujeitos sociais, submetendo-os,

assim, a uma verdadeira insegurança institucional e “tortura moral”, ao atingir a sua dignidade

como seres sociais, o que, ao cabo, só serve para emprestar ares de legitimidade a decisões

conduzidas pelos atores dominantes do processo de “negociação”.

Em segundo lugar, nossas pesquisas demonstram, com abundância, que há muitas situações em

que os distintos interesses e projetos de apropriação das condições naturais e territórios são

mutuamente excludentes ou mesmo incomensuráveis. Citemos apenas os casos de pessoas

pertencentes a comunidades tradicionais ou povos indígenas que sofrem deslocamento compulsório

de seus territórios e, em consequência, perdem o sentido da vida, mergulhando em profundos

processos depressivos que, não raro, os levam à morte física e/ou cultural.

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Por fim, salientamos que, pelo exposto, os resultados dos processos de “negociação” em tela são,

para os atores econômica e politicamente mais frágeis, quase sempre inferiores ao que se lhes é

assegurado pelos direitos de que são portadores. Considerando que as técnicas de mediação

aplicam-se fundamentalmente aos direitos disponíveis de indivíduos, enquanto os conflitos

ambientais envolvem direitos indisponíveis de coletividades, populações e futuras gerações,

opomo-nos às tentativas cada vez mais frequentes de substituir o debate político e o recurso dos

desfavorecidos à justiça pela mediação, promovida em muitas circunstâncias justamente por

aqueles que poderiam e deveriam assumir a defesa dos direitos dos desfavorecidos.

Reconhecendo o papel excepcional do Ministério Público no ordenamento jurídico brasileiro como

instância a que podem recorrer os grupos sociais menos favorecidos política e economicamente na

defesa dos seus direitos, instamos essa instituição a rejeitar as tentativas de transformá-la em

instância mediadora, de modo a preservar-se como aquele órgão capaz de assumir a defesa dos

direitos constitucionais públicos, coletivos e difusos, e em particular daqueles que constituem o

lado mais fraco frente a empresas e ao Estado, inclusive responsabilizando civil e criminalmente os

agentes públicos e os responsáveis técnicos de empresas que se omitem ou atuam na construção

de uma “legalidade formal” que acoberta violentos processos de negação e violação de direitos, e,

simultaneamente, criminaliza a resistência.

Assim, consideramos decisivo, para o desfecho dos conflitos ambientais e territoriais, o papel que

podem vir a desempenhar os operadores do direito, como garantidores e fiscais da estrita e justa

observação dos direitos das populações, comunidades e povos inferiorizados pela economia de

mercado e pela dominação política das classes abastadas. Concitamos, pois, os mais importantes

entes civis e estatais que abrigam advogados e juristas, tais como a Ordem dos Advogados do

Brasil, a Rede Nacional de Advogados Populares, o Ministério Público e o próprio Judiciário, em

suas múltiplas instâncias, a assumirem postura intransigente no resguardo desses direitos

ambientais e territoriais da cidadania, somando esforços para evitar que as linhas de defesa da

cidadania definidas por tais direitos sejam flexibilizadas e degradadas pela “negociação” e acordos

infralegais.

Assinam os participantes e apoiadores do seminário “Formas de Matar, de Morrer e de

Resistir: limites da resolução negociada de conflitos ambientais e a garantia dos direitos

humanos e difusos”, UFMG, 19 de novembro de 2012.

Pesquisadores Andréa Zhouri - UFMG Ana Flávia Santos – UFMG Antonio Carlos Magalhães - Instituto Humanitas

Caio Floriano dos Santos - FURG Carlos Alberto Dayrell - CAA Carlos RS Machado - FURG Carlos Walter Porto Gonçalves – UFF Célio Bermann - Prof. Associado do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP Claudenir Fávero - UFVJM

Cleyton Gerhardt - UFRGS

Cynthia Carvalho Martins - UEMA Eder Jurandir Carneiro - UFSJ Elder Andrade de Paula - UFAC Eliane Cantarino O’Dwyer – UFF Gustavo Neves Bezerra - UFF Horácio Antunes de Sant'Ana Júnior - UFMA

Jean Pierre Leroy - FASE Jeovah Meireles - UFC Klemens Laschefski - UFMG Maria de Jesus Morais - UFAC Marijane Lisboa - PUC-SP Michèle Sato - UFMT Norma Valencio - UFSCar

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Rosa Elizabeth Acevedo Marin - UFPA

Raquel Rigotto - UFC Rômulo Soares Barbosa – UNIMONTES Sonia Maria Simões Barbosa Magalhães Santos - professora da UFPA

Centros e Núcleos de Pesquisa Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas – CAANM Departamento de Sociologia (UFSCar) Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente – GEDMMA (UFMA) Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais – GESTA (UFMG) Grupo de Estudos Socioeconomicos da Amazônia - GESEA (UEMA)

Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, Comunicação e Artes - GPEA (UFMT) Grupo de Pesquisa Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade – TEMAS (UFRGS) Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades - LEMTO (UFF) Núcleo de Agroecologia e Campesinato (NAC-UFVJM) Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres – NEPED (UFSCar)

Núcleo de Estudos Trabalho, Sociedade e Comunidade - NUESTRA (UFSCar)

Grupo de Pesquisa sobre a Diversidade da Agricultura Familiar - GEDAF/NCADR/UFPA Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental – NIISA (UNIMONTES) Núcleo de Investigações em Justiça Ambiental - NINJA (UFSJ) Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental(UFAC) Núcleo TRAMAS - Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (UFC) Observatório dos Conflitos do Extremo Sul do Brasil (FURG) Programa de Extensão Centro de Direitos Humanos na Tríplice Fronteira do Acre (BR), Pando (BOL)

e Madre de Díos (PE) (UFAC)