Jean Baudrillard - Sombra das maiorias silenciosas

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    J E A N B A U D R IL L A R D

    S O M B R A D A S M A IO R IA SS I L E N C I O S A S O F IM D O S O C I A L E O S U R G IM E N T O D A S

    M A S S A S

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    SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS

    Para ter acesso a outros ttulos libertos das sombrias convenes do mercado, acesse:WWW . SABOTAGEM . R EVO L T . O RG

    Autor: Jean Baudrillard

    Ttulo: sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas

    Ano da Publicao Original: 1978

    Ano da Digitalizao: 2005

    Esta obra foi formatada, revisada e liberta das excludentes convenes mercantis pelo Coletivo Sabotagem. Ela

    no possui direitos autorais pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, alm de ser liberada a sua

    distribuio, preservando seu contedo e o nome do autor.

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    nesse sentido que a massa caracterstica da nossa modernidade, na qualidade de

    fenmeno altamente implosivo, irredutvel a qualquer prtica e teoria tradicionais, talvez

    mesmo irredutvel a qualquer prtica e a qualquer teoria simplesmente.

    Na representao imaginria, as massas flutuam em algum ponto entre a passividade e

    a espontaneidade selvagem, mas sempre como uma energia potencial, como um estoque de

    social e de energia social, hoje referente mudo, amanh protagonista da histria, quando elastomaro a palavra e deixaro de ser a maioria silenciosa - ora, justamente as massas no

    tm histria a escrever, nem passado, nem futuro, elas no tm energias virtuais para liberar,

    nem desejo a realizar: sua fora atual, toda ela est aqui, e a do seu silncio. Fora de

    absoro e de neutralizao, desde j superior a todas as que se exercem sobre elas. Fora de

    inrcia especifica, cuja eficcia diferente da de todos os esquemas de produo, de

    irradiao e de expanso sobre os quais funciona nosso imaginrio, incluindo a vontade de

    destru-los. Figura inaceitvel e ininteligvel da imploso (trata-se ainda de um processo?),

    base de todos os nossos sistemas de significaes e contra a qual eles se armam com todas as

    suas resistncias, ocultando o desabamento central do sentido com uma recrudescncia de

    todas as significaes e com uma dissipao de todos os significantes:

    O vcuo social atravessado por objetos intersticiais e acumulaes cristalinas que

    rodopiam e se cruzam num claro-escuro cerebral. Tal a massa, um conjunto no vcuo de

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    partculas individuais, de resduos do social e de impulsos indiretos: opaca nebulosa cuja

    densidade crescente absorve todas as energias e os feixes luminosos circundantes, para

    finalmente desabar sob seu prprio peso. Buraco negro em que o social se precipita.

    Exatamente o inverso, portanto, de uma acepo sociolgica. A sociologia s podedescrever a expanso do social e suas peripcias. Ela vive apenas da hiptese positiva e

    definitiva do social. A assimilao, a imploso do social lhe escapam. A hiptese da morte do

    social tambm a da sua prpria morte.

    O termo massa no um conceito. Leitmotiv da demagogia poltica, uma noo

    fluida, viscosa, lumpen-analtica. Uma boa sociologia procurar abarc-la em categorias

    mais finas: scio-profissionais, de classe, de status cultural, etc. Erro: vagando em torno

    dessas noes fluidas e acrticas (como outrora a de mana) que se pode ir alm dasociologia critica inteligente. Alm do que, retrospectivamente, se poder observar que os

    prprios conceitos de classe, de relao social, de poder, de status, todos.Estes

    conceitos muito claros que fazem a glria das cincias legtimas, tambm nunca foram mais

    do que noes confusas, mas sobre as quais se conciliaram misteriosos objetivos, os de

    preservar um determinado cdigo de anlise.

    Querer especificar o termo massa justamente um contra-senso - procurar um

    sentido no que no o tem. Diz-se: a massa de trabalhadores. Mas a massa nunca a de

    trabalhadores, nem de qualquer outro sujeito ou objeto social. As massas camponesas de

    outrora no eram exatamente massas: s se comportam como massa aqueles que esto

    liberados de suas obrigaes simblicas, anulados (presos nas infinitas redes) e

    destinados a serem apenas o inumervel terminal dos mesmos modelos, que no chegam a

    integr-los e que finalmente s os apresentam como resduos estatsticos. A massa sem

    atributo, sem predicado, sem qualidade, sem referncia. A est sua definio, ou sua

    indefinio radical. Ela no tem realidade sociolgica. Ela no tem nada a ver com algumapopulao real, com algum corpo, com algum agregado social especfico. Qualquer tentativa

    de qualific-la somente um esforo para transferi-Ia para a sociologia e arranc-la dessa

    indistino que no sequer a da equivalncia (soma ilimitada de indivduos equivalentes: 1

    + 1 + 1 + 1 - tal a definio sociolgica), mas a do neutro, isto , nem um nem outro (ne-

    uter).

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    Na massa desaparece a polaridade do um e do outro. Essa a causa desse vcuo e da

    fora de desagregao que ela exerce sobre todos os sistemas, que vivem da disjuno e da

    distino dos plos (dois, ou mltiplos, nos sistemas mais complexos). o que nela produz a

    impossibilidade de circulao de sentido: na massa ele se dispersa instantaneamente, como os

    tomos no vcuo. tambm o que produz a impossibilidade, para a massa, de ser alienada,

    visto que nela nem um nem ooutro existem mais.

    Massa sem palavra que existe para todos os porta-vozes sem histria. Admirvel

    conjuno dos que nada tm a dizer e das massas que no falam. Nada que contm todos os

    discursos. Nada de histeria nem de fascismo potencial, mas simulao por precipitao de

    todos os referenciais perdidos. Caixa preta de todos os referenciais, de todos os sentidos que

    no admitiu, da histria impossvel, dos sistemas de representao inencontrveis, a massa o

    que resta quando se esqueceu tudo do social.

    Quanto impossibilidade de nela se fazer circular o sentido, o melhor exemplo o de

    Deus. As massas conservaram dele somente a imagem, nunca a Idia. Elas jamais foram

    atingidas pela Idia de Deus, que permaneceu um assunto de padres, nem pelas angstias do

    pecado e da salvao pessoal. O que elas conservaram foi o fascnio dos mrtires e dos

    santos, do juzo final, da dana dos mortos, foi o sortilgio, foi o espetculo e o cerimonial da

    Igreja, a imanncia do ritual - contra a transcendncia da Idia. Foram pags e permanecerampags sua maneira, jamais freqentadas pela Instncia Suprema, mas vivendo das miudezas

    das imagens, da superstio e do diabo. Prticas degradadas em relao ao compromisso

    espiritual da f? Pode ser. Esta a sua maneira, atravs da banalidade dos rituais e dos

    simulacros profanos, de minar o imperativo categrico da moral e da f, o imperativo sublime

    do sentido, que elas repeliram. No porque no pudessem alcanar as luzes sublimes da

    religio: elas as ignoraram. No recusam morrer por uma f, por uma causa, por um dolo. O

    que elas recusam a transcendncia, a interdio, a diferena, a espera, a ascese, que

    produzem o sublime triunfo da religio. Para as massas, o Reino de Deus sempre esteve sobre

    a terra, na imanncia pag das imagens, no espetculo que a Igreja lhes oferecia. Desvio

    fantstico do princpio religioso. As massas absorveram a religio na prtica sortlega e

    espetacular que adotaram.

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    Todos os grandes esquemas da razo sofreram o mesmo destino. Eles s descreveram

    sua trajetria, s seguiram o curso de sua histria no diminuto topo da camada social

    detentora do sentido (e em particular do sentido social), mas no essencial somente penetraram

    nas massas ao preo de um desvio, de uma distoro radical. Assim foi com a razo histrica,

    a razo poltica, a razo cultural e a razo revolucionria - assim foi com a prpria razo do

    social, a mais interessante pois a que parece inerente s massas, e por t-las produzido no

    curso de sua evoluo. As massas so o espelho do social? No, elas no refletem o social,

    nem se refletem no social - o espelho do social que nelas se despedaa.

    A imagem no exata, pois ainda evoca a idia de uma substncia plena, de uma

    resistncia opaca. Ora, as massas funcionam mais como um gigantesco buraco negro que

    inflete, submete e distorce inexoravelmente todas as energias e radiaes luminosas que se

    aproximam. Esfera implosiva, em que a curvatura dos espaos se acelera, em que todas as

    dimenses se encurvam sobre si mesmas e involuem at se anularem, deixando em seu lugar

    e espao somente uma esfera de absoro potencial.

    O abismo do sentido

    O mesmo ocorre com a informao.

    Seja qual for seu contedo, poltico, pedaggico, cultural, seu propsito sempre

    filtrar um sentido, manter as massas sob o sentido. Imperativo de produo de sentido que se

    traduz pelo imperativo incessantemente renovado de moralizao da informao: melhor

    informar, melhor socializar, elevar o nvel cultural das massas, etc. Bobagens: as massas

    resistem escandalosamente a esse imperativo da comunicao racional. O que se lhes d

    sentido e elas querem espetculo. Nenhuma fora pde convert-las seriedade dos

    contedos, nem mesmo seriedade do cdigo. O que se lhes d so mensagens, elas queremapenas signos, elas idolatram o jogo de signos e de esteretipos, idolatram todos os contedos

    desde que eles se transformem numa seqncia espetacular. O que elas rejeitam a

    dialtica do sentido. E de nada adianta alegar que elas so mistificadas. Hiptese sempre

    hipcrita que permite salvaguardar o conforto intelectual dos produtores de sentido: as massas

    aspirariam espontaneamente s luzes naturais da razo. Isso para conjurar o inverso, ou seja,

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    que em plena liberdade que as massas opem ao ultimato do sentido a sua recusa e sua

    vontade de espetculo. Temem essa transparncia e essa vontade poltica como temem a

    morte. Elas farejam o terror simplificador que est atrs da hegemonia ideal do sentido e

    reagem sua maneira, reduzindo todos os discursos articulados a uma nica dimenso

    irracional e sem fundamento, onde os signos perdem seu sentido e se consomem na

    fascinao: o espetacular.

    Uma vez mais, no se trata de mistificao: trata-se de sua exigncia prpria, de uma

    contra-estratgia expressa e positiva - trabalho de absoro e de aniquilamento da cultura, do

    saber, do poder, do social. Trabalho imemorial, mas que hoje assume toda a sua envergadura.

    Um antagonismo profundo, que obriga a uma inverso de todos os cenrios aceitos: o sentido

    no seria mais a linha de fora ideal de nossas sociedades, sendo o que escapa apenas um

    resduo destinado a ser reabsorvido qualquer dia - ao contrrio, o sentido que somente um

    acidente ambguo e sem prolongamento, um efeito devido convergncia ideal de um espao

    perspectivo num momento dado (a Histria, o Poder, etc), mas que na realidade nunca disse

    respeito seno a uma frao mnima e a uma camada superficial de nossas sociedades. E

    isso tambm verdadeiro para os indivduos: ns somos apenas episodicamente condutores

    de sentido, no essencial e em profundidade ns nos comportamos como massa, vivendo a

    maior parte do tempo num modo pnico ou aleatrio, aqum ou alm do sentido. Logo, tudo

    muda com essa hiptese inversa.

    Vejamos um exemplo entre mil desse menosprezo pelo sentido, folclore das

    passividades silenciosas. Na noite da extradio de Klaus Croissant, a televiso transmitia um

    jogo de futebol em que a Frana disputava sua classificao para a Copa do Mundo. Algumas

    centenas de pessoas se manifestam diante da Sant, alguns advogados correm na noite, vinte

    milhes de pessoas passam sua noite diante da televiso. Quando a Frana ganhou, exploso

    de alegria popular. Horror e indignao dos espritos esclarecidos diante dessa escandalosa

    indiferena. Le Monde: 21 horas. Nesta hora o advogado alemo j foi retirado da priso da

    Sant. Daqui a pouco Rocheteau vai marcar o primeiro gol. Melodrama da indignao.1

    1 Que se assemelha amargura da extrema-esquerda, e a seu cinismo inteligente em relao maioriasilenciosa. Charlie-Hebdo, por exemplo: A maioria silenciosa no liga para nada, desde que noite ronrone emsuas pantufas... A maioria silenciosa, no se engane, se fecha sua boca porque ao final das contas ela faz a lei.Ela vive bem, come bem, trabalha somente o necessrio. O que ela reivindica aos seus patres serpaternalizada e tranqilizada no que preciso, alm da sua pequena dose inofensiva de imaginria cotidiano.

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    Nenhuma nica interrogao sobre o mistrio dessa indiferena. Uma nica razo sempre

    invocada: a manipulao das massas pelo poder, sua mistificao pelo futebol. De qualquer

    maneira, essa indiferena no deveria existir, ela no tem nada a nos dizer. Em outros termos,

    a maioria silenciosa despossuda at de sua indiferena, ela no tem nem mesmo o direito

    de que esta lhe seja reconhecida e imputada, necessrio que tambm esta apatia lhe seja

    insuflada pelo poder.

    Que desprezo atrs dessa interpretao! Mistificadas, as massas no saberiam ter

    comportamento prprio. De tempos em tempos se lhes concede uma espontaneidade

    revolucionria atravs da qual elas vislumbram a racionalidade do seu prprio desejo, isso

    sim, mas Deus nos proteja de seu silncio e de sua inrcia. Ora, exatamente essa indiferena

    que exigiria ser analisada na sua brutalidade positiva, em vez de ser creditada a uma magia

    branca, a uma alienao mgica que sempre desviaria as multides de sua vocao

    revolucionria.

    Mas, por outro lado, como que ela consegue desvi-las? Com relao a este fato

    estranho, pode-se perguntar: por que aps inmeras revolues e um sculo ou dois de

    aprendizagem poltica, apesar dos jornais, dos sindicatos, dos partidos, dos intelectuais e de

    todas as energias postas a educar e a mobilizar o povo, por que ainda se encontram (e se

    encontrar o mesmo em dez ou vinte anos) mil pessoas para se mobilizar e vinte milhes paraficar passivas? - e no somente passivas, mas por francamente preferirem, com toda boa f

    e satisfao, e sem mesmo se perguntar por que, um jogo de futebol a um drama poltico e

    humano? curioso que essa constatao jamais tenha subvertido a anlise, reforando-a, ao

    contrrio, em sua fantasia de um poder todo-poderoso na manipulao, e de uma massa

    prostrada num coma ininteligvel. Pois nada disso tudo verdadeiro, e os dois so um

    equvoco: o poder no manipula nada e as massas no so nem enganadas nem mistificadas.

    O poder est muito satisfeito por colocar sobre o futebol uma responsabilidade fcil, ou seja,

    a de assumir a responsabilidade diablica pelo embrutecimento das massas. Isso o conforta

    em sua iluso de ser o poder, e desvia do fato bem mais perigoso de que essa indiferena das

    massas sua verdadeira, sua nica prtica, porque no h outro ideal para inventar, no h

    nada a deplorar, mas tudo a analisar a respeito disso como fato bruto de distoro coletiva e

    de recusa de participar nos ideais todavia luminosos que lhes so propostos.

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    O problema das massas no est nisso. Melhor constatar e reconhecer que toda

    esperana de revoluo, toda a esperana do social e da mudana social s pde funcionar at

    aqui graas a essa escamoteao, a essa contestao fantstica. Como Freud o fez na ordem

    psicolgica,2 melhor partir deste resto, deste sedimento cego, deste resduo de sentido, deste

    no-analisado e talvez no-analisvel (h uma boa razo para que essa revoluo copernicana

    jamais tenha sido tentada no universo poltico - toda a ordem poltica que se arriscaria a

    pagar as contas).

    Grandeza e decadncia do poltico

    O poltico e o social nos parecem inseparveis, constelaes gmeas sob o signo(determinante ou no) do econmico, pelo menos desde a Revoluo Francesa. Mas hoje,

    para ns, isso provavelmente s verdade para o seu declnio simultneo. Exemplificando

    com Maquiavel, quando o poltico surge da esfera religiosa e eclesial na poca da

    Renascena, ele antes de tudo apenas um puro jogo de signos, uma pura estratgia que no

    se preocupa com nenhuma verdade social ou histrica, mas, ao contrrio, joga com a

    ausncia de verdade (como, mais tarde, a estratgia mundana dos jesutas sobre a ausncia de

    Deus). O espao poltico inicialmente da mesma natureza do teatro de intriga da

    Renascena, ou do espao perspectivo da pintura, que so inventadas no mesmo momento. A

    forma a de um jogo, no de um sistema de representao - semiurgia e estratgia, no

    ideologia -, e a sua utilizao depende de virtuosismo e no de verdade (como o jogo sutil e

    2 A analogia com Freud cessa nesse ponto, porque seu ato radical resulta numa hiptese, a da represso e doinconsciente, que ainda leva possibilidade, depois amplamente explorada, de produo de sentido, de umareintegrao do desejo e do inconsciente na partitura do sentido. Sinfonia concertante, em que a irredutvelalterao do sentido entra no cenrio bem temperado do desejo, sombra de uma represso que abre para apossibilidade inversa de liberao. De onde o fato de a liberao do desejo ter podido assumir to facilmente olugar da revoluo poltica, acabando por esconder a incapacidade de sentido, ao invs de aprofund-la. Ora, no

    se trata de maneira alguma de encontrar uma nova interpretao das massas em termos da economia libidinal(remeter o conformismo ou o fascismo das massas a uma estrutura latente, a um obscuro desejo de poder e derepresso que eventualmente se alimentaria de uma represso primria ou de uma pulso de morte). Esta hoje anica alternativa para a declinante anlise marxista. Mas a mesma, com uma deformao a mais. Outrora seatribula s massas um destino revolucionrio contrariado pela servido sexual (Reich), hoje se lhes atribui umdesejo de alienao e servido, ou ainda uma espcie de microfascismo cotidiano to incompreensvel quantosua virtual pulso de liberao. Ora, no h nem desejo de fascismo e de poder nem desejo de revoluo. ltimaesperana: que as massas tenham um inconsciente ou um desejo, o que permitiria reinvesti-las como suporte ousuposto de sentido. 0 desejo, reinventado em toda parte, no seno o referencial do desespero poltico. E aestratgia do desejo, aps ter sido envolvida no marketing empresarial, hoje se purificou na promoorevolucionria das massas.

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    corolrio deste, de Balthazar Gracian em Homme de Cour). O cinismo e a imoralidade da

    poltica maquiaveliana esto nisso: no no uso sem escrpulos dos meios com que se o

    confundiu na concepo vulgar, mas na desenvoltura com relao aos fins. Pois, Nietzsche o

    viu bem, nesse menosprezo por uma verdade social, psicolgica, histrica, nesse exerccio

    dos simulacros enquanto tais, que se encontra o mximo de energia poltica, nesse momento

    em que o poltico um jogo e ainda no se deu uma razo.

    a partir do sculo XVIII, e particularmente depois da Revoluo, que o poltico se

    infletiu de uma maneira decisiva. Ele se encarrega de uma referncia social, o social se

    apodera dele. No mesmo momento comea a ser representao, seu jogo dominado pelos

    mecanismos representativos (o teatro segue um destino paralelo: torna-se um teatro

    representativo - o mesmo acontece com o espao perspectivo: de instrumental que era no

    incio, torna-se o lugar de inscrio de uma verdade do espao e da representao). A cena

    poltica se torna a cena da evocao de um significado fundamental: o povo, a vontade do

    povo, etc. Ela no trabalha mais s sobre signos, mas sobre sentidos, de repente eis que

    obrigada a significar o melhor possvel esse real que ela exprime, intimada a se tornar

    transparente, a se mobilizar e a responder ao ideal social de uma boa representao. Mas

    durante muito tempo ainda haver um equilbrio entre a esfera prpria do poltico e as foras

    que nele se refletem: o social, o histrico e o econmico. Este equilbrio sem dvida

    corresponde idade de ouro dos sistemas representativos burgueses (a constitucionalidade: a

    Inglaterra do sculo XVIII, os Estados Unidos da Amrica, a Frana das revolues

    burguesas, a Europa de 1848).

    com o pensamento marxista em seus desenvolvimentos sucessivos que se inaugura

    o fim do poltico e de sua energia prpria. Nesse momento comea a hegemonia definitiva do

    social e do econmico, e a coao, para o poltico, de ser o espelho, legislativo, institucional,

    executivo, do social. A autonomia do poltico inversamente proporcional crescente

    hegemonia do social.

    O pensamento liberal sempre viveu de uma espcie de dialtica nostlgica entre os

    dois, mas o pensamento socialista, o pensamento revolucionrio postula abertamente uma

    dissoluo do poltico no fim da histria, na transparncia definitiva do social.

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    O social triunfou. Mas a esse nvel de generalizao, de saturao, em que s h o

    grau zero do poltico, a esse nvel de referncia absoluta, de onipresena e de difrao em

    todos os interstcios do espao fsico e mental, o que se torna o prprio social? o sinal de

    seu fim: a energia do social se inverte, sua especificidade se perde, sua qualidade histrica e

    sua idealidade desaparecem em benefcio de uma configurao em que no s o poltico se

    volatilizou, mas em que o prprio social no tem mais nome. Annimo. A MASSA. AS

    MASSAS.

    A maioria silenciosa

    Enfraquecimento do poltico de uma pura ordenao estratgica a um sistema derepresentao, depois ao cenrio atual de neofigurao, isto , em que o sistema se perpetua

    sob os mesmos signos multiplicados mas que no representam mais nada e no tm seu

    equivalente numa realidade ou numa substncia social real: no h mais investidura

    poltica porque tambm no h mais referente social de definio clssica (um povo, uma

    classe, um proletariado, condies objetivas) para atribuir uma fora a signos polticos

    eficazes. Simplesmente no h significado social para dar fora a um significante poltico.

    O nico referente que ainda funciona o da maioria silenciosa. Todos os sistemasatuais funcionam sobre essa entidade nebulosa, sobre essa substncia flutuante cuja existncia

    no mais social mas estatstica, e cujo nico modo de apario o da sondagem. Simulao

    no horizonte do social, ou melhor, no horizonte em que o social j desapareceu.

    O fato de a maioria silenciosa (ou as massas) ser um referente imaginrio no quer

    dizer que ela no existe. Isso quer dizer que no h mais representao possvel. As massas

    no so mais um referente porque no tm mais natureza representativa. Elas no se

    expressam, so sondadas. Elas no se refletem, so testadas. O referendo (e as mdias so umreferendo perptuo de perguntas/respostas dirigidas) substituiu o referente poltico. Ora,

    sondagens, testes, mdias so dispositivos que no dependem mais de uma dimenso

    representativa mas simulativa. Eles no visam mais um referente, mas um modelo. A

    revoluo aqui total contra os dispositivos da socialidade clssica (de que ainda fazem parte

    as eleies, as instituies, as instncias de representao, e mesmo a represso): em tudo

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    isso, o sentido social ainda passa de um plo ao outro, numa estrutura dialtica que d lugar a

    um jogo poltico e s contradies.

    Tudo muda com o dispositivo de simulao. Na dupla sondagem/maioria silenciosa,

    por exemplo, no h mais plos nem termos diferenciais, portanto, j no h eletricidade dosocial: ela curto-circuitada pela confuso dos plos, numa circularidade especifica total

    (exatamente como acontece com o comando molecular e a substncia que ele informa no

    ADN e no cdigo gentico). Esta a forma ideal da simulao: aniquilao dos plos,

    circulao orbital de modelos (o que tambm a matriz de qualquer processo implosivo).

    Bombardeadas de estmulos, de mensagens e de testes, as massas no so mais do que

    um jazigo opaco, cego, como os amontoados de gases estelares que s so conhecidos atravs

    da anlise do seu espectro luminoso - espectro de radiaes equivalente s estatsticas e ssondagens. Mais exatamente: no mais possvel se tratar de expresso ou de representao,

    mas somente de simulao de um social para sempre inexprimvel e inexprimido. Esse o

    sentido do seu silncio. Mas esse silncio paradoxal - no um silncio que fala, um

    silncio que probe que se fale em seu nome. E, nesse sentido, longe de ser uma forma de

    alienao, uma arma absoluta.

    Ningum pode dizer que representa a maioria silenciosa, e esta sua vingana. As

    massas no so mais uma instncia qual se possa referir como outrora se referia classe ou

    ao povo. Isoladas em seu silncio, no so mais sujeito (sobretudo,no da histria), elas no

    podem, portanto, ser faladas, articuladas, representadas, nem passar pelo estgio do espelho

    poltico e pelo ciclo das identificaes imaginrias. Percebe-se que poder resulta disso: no

    sendo sujeito, elas no podem ser alienadas - nem em sua prpria linguagem (elas no tm

    uma), nem em alguma outra que pretendesse falar por elas. Fim das esperanas

    revolucionrias. Porque estas sempre especularam sobre a possibilidade de as massas, como

    da classe proletria, se negarem enquanto tais. Mas a massa no um lugar de negatividadenem de exploso, um lugar de absoro e de imploso.

    Inacessvel aos esquemas de libertao, de revoluo e de historicidade, mas seu

    modo de defesa, seu modo de restrio. Modelo de simulao e referente imaginrio para uma

    classe poltica fantasma que desde j no sabe que espcie de poder exerce sobre ela, a

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    massa ao mesmo tempo a morte, o fim desse processo poltico que supostamente a governa.

    Na massa o poltico se deteriora como vontade e representao.

    Durante muito tempo a estratgia do poder pde parecer se basear na apatia das

    massas. Quanto mais elas eram passivas, mais ele estava seguro. Mas essa lgica s caracterstica da fase burocrtica e centralista do poder. E ela que hoje se volta contra ele: a

    inrcia que fomentou se tornou o signo de sua prpria morte. por isso que o poder procura

    inverter as estratgias: da passividade participao, do silncio palavra. Mas muito tarde.

    O limite da massa crtica, o da involuo do social por inrcia, foi transposto.3

    Em toda parte se procura fazer as massas falarem, se as pressiona a existir de forma

    social eleitoralmente, sindicalmente, sexualmente, na participao, nas festas, na livre

    expresso, etc. preciso conjurar o espectro, preciso que ele diga seu nome. Nadademonstra com mais clareza que hoje o nico problema verdadeiro o silncio da massa, o

    silncio da maioria silenciosa.

    Todas as energias so consumidas para manter essa massa em emulso dirigida e para

    impedi-Ia de cair em sua inrcia pnica e em seu silncio. Como no mais do reino da

    vontade nem do da representao, ela cai sob o golpe do diagnstico, da adivinhao pura e

    simples - de onde o reino universal da informao e da estatstica: preciso auscult-la, senti-

    Ia, retirar-lhe algum orculo. Da o furor de seduo, de solicitude e de solicitao em torno

    dela. Da a predio por ressonncia, os efeitos de antecipao e de futuro da multido em

    miragens como: O povo francs pensa... A maioria dos alemes reprova... Toda a Inglaterra

    vibra com o nascimento do Prncipe..., etc. - espelho que tende a um reconhecimento sempre

    cego, sempre ausente.

    Da esse bombardeio de signos, que a massa supostamente repercute. Ela interrogada

    por ondas convergentes, por estmulos luminosos ou lingsticos, exatamente como as

    estrelas distantes ou os ncleos que so bombardeados com partculas num ciclotron. Isso a

    informao. No um modo de comunicao nem de sentido, mas um modo de emulso

    3 A noo de massa crtica, habitualmente relativa ao processo de exploso nuclear, aqui retomada nosentido de imploso nuclear. Isso a que assistimos no domnio do social e do poltico, com o fenmenoinvolucionrio das massas e das maiorias silenciosas, uma espcie de exploso inversa da fora de inrcia -esta tambm conhece seu ponto de no-retorno.

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    incessante, de input-outpute de reaes em cadeia dirigidas, exatamente como nas cmaras

    de simulao atmicas. preciso liberar a energia da massa para dela se fazer o social.

    Mas este um processo contraditrio, porque a informao e a segurana, sob todas as

    suas formas, em vez de intensificar ou de criar a relao social, so ao contrrio processosentrpicos, de modalidades do fim do social.

    Acredita-se que se estruturam as massas injetando-lhes informao, acredita-se que se

    libera sua energia social cativa fora de informao e de mensagens (a tal ponto que no

    mais o enquadramento institucional, mas a quantidade de informao e a taxa de exposio

    aos meios de comunicao que hoje medem a socializao). Mas exatamente o contrrio.

    Em vez de transformar a massa em energia, a informao sempre produz mais massa. Em vez

    de informar como ela pretende, isto , dar forma e estrutura, neutraliza sempre mais o camposocial, cria cada vez mais massa inerte impermevel s instituies clssicas do social, e aos

    prprios contedos da informao. fisso das estruturas simblicas pelo social e sua

    violncia racional sucede hoje a fisso do prprio social pela violncia irracional dos meios

    de comunicao e de informao - o resultado final sendo exatamente a massa atomizada,

    nuclearizada, molecularizada -, resultado de dois sculos de socializao acelerada e que a

    chega inapelavelmente ao fim.

    A massa s massa porque sua energia social j se esfriou. um estoque frio, capaz

    de absorver e de neutralizar todas as energias quentes. Ela se assemelha a esses sistemas

    semimortos em que se injeta mais energia do que se retira, a essas minas esgotadas que se

    mantm em estado de explorao artificial a preo de ouro.

    A energia que se dispende para atenuar a baixa tendencial da taxa de investimento

    poltico e a fragilidade absoluta do princpio social de realidade, para manter essa situao do

    social e impedi-lo de implodir totalmente, essa energia imensa, e o sistema se precipita a.

    Na realidade, o mesmo sentido da mercadoria. Antigamente bastava ao capital

    produzir mercadorias, o consumo sendo mera conseqncia. Hoje preciso produzir os

    consumidores, preciso produzir a prpria demanda e essa produo infinitamente mais

    custosa do que a das mercadorias (o social nasceu em grande parte, sobretudo a partir de

    1929, desta crise da demanda: a produo da demanda ultrapassa amplamente a produo do

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    prprio social).4Assim, durante muito tempo bastou que o poder produzisse sentido (poltico,

    ideolgico, cultural, sexual), e a demanda acompanhava, absorvia a oferta e ainda a excedia.

    Se faltasse sentido, todos os revolucionrios se ofereciam para produzi-lo mais ainda. Hoje

    tudo mudou: o sentido no falta, ele produzido em toda parte, e sempre mais - a demanda

    que est declinante. E a produo dessa demanda de sentido que se tornou crucial para o

    sistema. Sem essa demanda, sem essa receptividade, sem essa participao mnima no

    sentido, o poder s o simulacro vazio e o efeito solitrio de perspectiva. Ora, ai tambm a

    produo da demanda infinitamente mais custosa que a produo do prprio sentido. No

    limite ela impossvel, todas s energias reunidas do sistema no sero suficientes. A

    demanda de objetos e de servios sempre pode ser produzida artificialmente, a um preo

    elevado mas acessvel, o sistema j o demonstrou. O desejo de sentido, quando falta, o desejo

    de realidade, quando se faz ausente em todas as partes, no podem ser plenamente satisfeitose so um abismo definitivo.

    A massa absorve toda a energia social, mas no a refrata mais. Absorve todos os

    signos e todos os sentidos, mas no os repercute. Absorve todas as mensagens e as digere.5

    Ela d a todas as questes que lhe so postas uma resposta tautolgica e circular. Nunca

    participa. Perpassada pelos fluxos e pelos testes, ela se comporta como massa, se limita a ser

    boa condutora dos fluxos, mas de todos os fluxos, boa condutora da informao, mas de

    qualquer informao, boa condutora de normas, mas de todas as normas; com isso, se limita a

    remeter o social sua transparncia absoluta, a s dar lugar aos efeitos do social e do poder,

    constelaes flutuantes em torno desse ncleo imperceptvel.

    4 No se trata tambm de produo do social, porque seno o socialismo bastaria, at mesmo o prpriocapitalismo. De fato, tudo muda com a precedncia da produo da demanda sobre a das mercadorias. A relaolgica Ida produo ao consumo) se desfaz, e estamos numa ordem inteiramente diferente, que no mais nem

    de produo nem de consumo, mas de simulao de ambas graas inverso do processo. De repente, no setrata mais de uma crise real do capital, como o supe Attali, crise que depende de um pouco mais de social ede socialismo, mas de um dispositivo absolutamente diferente, hiper-real, que no tem mais nada a ver nem como capital nem com o social.5 A configurao idntica dos buracos negros. Verdadeiros sepulcros estelares, seu campo de gravidade tomonstruoso que a prpria luz agarrada, satelitizada e depois absorvida. So, portanto, regies do espao dasquais no pode chegar nenhuma informao. Sua descoberta e exame implicam, ento, uma espcie derevoluo de toda a cincia ou do processo de conhecimento tradicional. Este sempre se fundamenta nainformao, na mensagem, no sinal positivo Ido sentido) veiculado por um meio (ondas ou luz), aqui apareceoutra coisa, cujo sentido ou mistrio gira em torno de ausncia de informao. Esta coisa no emite, noresponde. Ao se considerar as massas, entra em jogo uma revoluo da mesma natureza.

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    A massa se cala como os animais e seu silncio comparvel ao silncio dos animais.

    Embora examinada at a morte (e a solicitao incessante a que submetida, a informao,

    equivale ao suplcio experimental dos animais nos laboratrios), ela no diz nem onde est a

    verdade: direita, esquerda? Nem o que prefere: a revoluo, a represso? Ela no tem

    verdade nem razo. Embora lhe emprestem todas as palavras artificiais. Ela no tem

    conscincia nem inconsciente.

    Esse silncio insuportvel. Ela a incgnita da equao poltica, a incgnita que

    anula todas as equaes polticas. Todo o mundo a interroga, mas nunca enquanto silncio,

    sempre para faz-la falar. Ora, a fora de inrcia das massas insondvel: literalmente

    nenhuma sondagem a far aparecer, pois elas existem para eclips-la. Silncio que balana o

    poltico e o social na hiper-realidade que conhecemos. Porque se o poltico procura captar as

    massas numa cmara de eco e de simulao social (os meios de comunicao, a informao),

    em compensao so as massas que se tornam a cmara de eco e de simulao gigantesca do

    social. Nunca houve manipulao. A partida foi jogada pelos dois, com as mesmas armas, e

    ningum hoje poderia dizer quem a venceu: a simulao exercida pelo poder sobre as massas

    ou a simulao inversa, dirigida pelas massas ao poder que nelas se afunda.

    Nem sujeito nem objeto

    A massa realiza esse paradoxo de ser ao mesmo tempo um objeto de simulao (ela s

    existe no ponto de convergncia de todas as ondas mdias que a descrevem) e um sujeito de

    simulao, capaz de refratar todos os modelos e de revert-los por hiper-simulao (seu

    hiperconformismo, forma imanente de humor).

    A massa realiza esse paradoxo de no ser um sujeito, um grupo-sujeito, mas de

    tambm no ser um objeto. Todas as tentativas para fazer dela um sujeito (real ou mtico)deparam com uma espantosa impossibilidade de tomada de conscincia autnoma. Todas as

    tentativas para fazer dela um objeto deparam com a evidncia inversa da impossibilidade de

    uma manipulao determinada das massas ou de uma apreenso em termos de elementos, de

    relaes, de estruturas e de conjuntos. Qualquer manipulao imerge, volteia na massa,

    absorvida, revirada, revertida. Impossvel saber onde ela leva, o mais verossmil que ela se

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    consome num ciclo sem fim, frustrando todas as intenes dos manipuladores. Nenhuma

    anlise saberia abarcar essa realidade difusa, descentrada, brouniana, molecular: a noo de

    objeto a se perde, como o campo da microfsica se perde na anlise ltima da matria -

    impossvel capt-la como objeto neste limite infinitesimal em que o prprio sujeito da

    observao se acha subitamente anulado. Nem objeto de saber, nem sujeito de saber.

    A massa atualiza a mesma situao limite e insolvel no campo do social. Ela no

    objetivvel (em termos polticos: ela no representvel) e anula todos os sujeitos que

    pretenderiam capt-la (em termos polticos: anula todos aqueles que pretenderiam represent-

    la). S as sondagens e as estatsticas podem dar conta dela (como na fsica matemtica a lei

    dos grandes nmeros e o clculo de probabilidades), mas sabe-se que esse encantamento, que

    esse ritual meterico das estatsticas e das sondagens no tm objeto real, sobretudo no nas

    massas que elas supostamente exprimem. Ele simplesmente simula um objeto que escapa,

    mas cuja ausncia intolervel. Ele o produz sob forma de respostas antecipadas, de

    assinalamentos circulares que parecem circunscrever sua existncia e testemunhar sua

    vontade. Signos flutuantes - assim so as sondagens -, signos instantneos, destinados

    manipulao, e cujas concluses podem ser trocadas. Todo o mundo conhece a profunda

    indeterminao que reina sobre as estatsticas (o clculo de probabilidades ou os grandes

    nmeros tambm correspondem a uma indeterminao, a uma flutuao do conceito de

    matria, a que pouco corresponde uma insignificante noo de lei objetiva).

    Alis, no seguro que os procedimentos de experimentao cientfica nas cincias

    ditas exatas tenham muito mais verdade que as sondagens e as estatsticas. A forma de

    interrogao codificada, dirigida, objetiva, em qualquer disciplina que seja, s d lugar a

    esse tipo circular de verdade, de onde o prprio objeto que ela visa excludo. Em todo caso,

    possvel pensar que a incerteza deste projeto de determinao objetiva do mundo continua

    total e que mesmo a matria e o inanimado, intimados a responder (nos mesmos termos e

    segundo os mesmos procedimentos que as massas e o ser social nas estatsticas e nas

    sondagens), tambm s do os mesmos sinais adequados, as mesmas respostas codificadas,

    com o mesmo conformismo exasperante, incessante, para em ltima instncia, exatamente

    como as massas, escapar a qualquer definio enquanto objeto.

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    Haveria uma ironia fantstica da matria e de qualquer objeto de cincia, como h

    uma ironia fantstica das massas em seu mutismo, ou em seu discurso estatstico to

    adequado s questes que lhes so postas, parecendo a eterna ironia da feminilidade de que

    fala Hegel - a ironia de uma falsa fidelidade, de um excesso de fidelidade lei, simulao de

    passividade e de obedincia definitivamente impenetrveis, mas que ao contrrio anula a lei

    que os governa, segundo o imortal exemplo do soldado Schweik.

    Da partiria, no sentido literal, uma patafsica ou a cincia das solues imaginrias,

    cincia da simulao e da hiper-simulao de um mundo exato, verdadeiro, objetivo, com

    suas leis universais, incluindo o delrio daqueles que o interpretam segundo estas leis. As

    massas e seu humor involuntrio nos introduziriam a uma patafsica do social que finalmente

    nos desembaraaria de toda esta metafsica do social que nos atravanca.

    Isso contradiz toda a concepo aceita do processo de verdade, mas esta talvez no

    seja mais do que uma iluso dos sentidos. O cientista no pode acreditar que a matria ou o

    ser no respondem objetivamente s questes que ele lhes formula, ou que respondem

    muito objetivamente para que suas questes sejam as boas. S esta hiptese lhe parece

    absurda e impensvel. Nunca a far. Ele jamais sair do crculo encantado e simulado de sua

    interrogao.

    A mesma hiptese vale para todas as coisas, o mesmo axioma de credibilidade. O

    publicitrio no pode deixar de crer que as pessoas acreditam - por pouco que seja, isso quer

    dizer que existe uma probabilidade mnima de que a mensagem alcance seu objetivo e seja

    decodificada segundo seu sentido. Qualquer princpio de incerteza est excludo do assunto.

    Se ele verificasse que o ndice de refrao da mensagem sobre o destinatrio nulo, a

    publicidade desapareceria num instante. Ela s vive deste crdito que postula para si mesma

    ( a mesma aposta que a cincia faz acerca da objetividade do mundo) e que no procura

    verificar a fundo, no terror de que a hiptese inversa tambm seja verdadeira, a saber, que aimensa maioria das mensagens publicitrias nunca chega ao seu destino, que os leitores no

    vem mais a diferena entre os contedos que se refratam no vcuo - s o meio funcionando

    como efeito ambiente e se apresentando como espetculo e fascinao. O MEIO A

    MENSAGEM, profetizava Mac Luhan: frmula caracterstica da fase atual, a fase cool de

    qualquer cultura mass-media, de um resfriamento, de uma neutralizao de todas as

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    mensagens num ter vazio. Fase de uma glaciao do sentido. O pensamento critico julga e

    escolhe, produz diferenas, e pela seleo que ele vigia o sentido. As massas, elas no

    escolhem, no produzem diferenas, mas indiferenciao - elas mantm a fascinao do meio,

    que preferem exigncia crtica da mensagem. Pois a fascinao no depende do sentido, ela

    proporcional insatisfao com o sentido. Obtm-se a fascinao ao neutralizar a

    mensagem em benefcio do meio, ao neutralizar a idia em proveito do dolo, ao neutralizar a

    verdade em benefcio do simulacro. Pois neste nvel que os meios de comunicao

    funcionam. A fascinao sua lei, e sua violncia especfica, violncia massiva sobre o

    sentido, violncia negadora da comunicao pelo sentido em benefcio de um outro modo de

    comunicao. Qual?

    Para ns uma hiptese insustentvel: que seja possvel comunicar fora do meio do

    sentido, que a prpria intensidade da comunicao seja proporcional supresso do sentido e

    sua runa. Porque no o sentido nem o excesso de sentido que so violentamente

    agradveis, sua neutralizao que fascina (cf. le Witz, a operao da palavra espirituosa, in

    LEchange Symbolique et ta Mort). E no por alguma pulso de morte, o que subentenderia

    que a vida ainda est perto do sentido, mas simplesmente por provocao, por alergia

    referncia, mensagem, ao cdigo e a todas as categorias da operao lingstica, por recusa

    de tudo isso unicamente em benefcio da imploso do signo na fascinao (nem significante,

    nem significado: supresso dos plos da significao). Nenhum dos guardies do sentido

    pode entender isso: toda a moral do sentido se levanta contra a fascinao.

    Tambm a esfera poltica s vive de uma hiptese de credibilidade, a saber, que as

    massas so permeveis ao e ao discurso, que elas tm uma opinio, que elas esto

    presentes atrs das sondagens e das estatsticas. somente a este preo que a classe poltica

    ainda pode acreditar que fala e ouvida politicamente. Enquanto o poltico h muito tempo

    considerado s como espetculo no interior da vida privada, digerido como divertimento

    semi-esportivo, semildico (veja-se o voto vencedor das eleies americanas, ou as tardes de

    eleies no rdio ou na tev), e na forma ao mesmo tempo fascinada e maliciosa das velhas

    comdias de costumes. O jogo eleitoral se identifica h muito tempo aos jogos televisados na

    conscincia do povo. Este, que sempre serviu de libi e de figurante para a representao

    poltica, se vinga entregando-se representao teatral da cena poltica e de seus atores. O

    povo tornou-se pblico. o jogo, o filme ou os desenhos animados que servem de modelos

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    de percepo da esfera poltica. O povo tambm aprecia dia-a-dia, como num cinema a

    domiclio, as flutuaes de sua prpria opinio na leitura cotidiana das sondagens. Nada disso

    tudo incita a uma responsabilidade qualquer. Em momento algum as massas so engajadas de

    modo consciente poltica ou historicamente. Elas nunca o foram, s para se matar, com total

    irresponsabilidade. E isso no uma fuga diante do poltico, mas o efeito de uma

    antagonismo inexpivel entre a classe (casta?) portadora do social, do poltico, da cultura,

    senhora do tempo e da histria, e a massa informe, residual, despojada de sentido. A primeira

    sempre procura aperfeioar o reino do sentido, investir, saturar o campo do social, a segunda

    sempre desvia todos os efeitos do sentido, neutraliza-os e os rebate. Nesse enfrentamento,

    aquela que o venceu no absolutamente a que se pensa.

    Isso pode ser visualizado na inverso de valor entre histria e cotidianidade, entre

    esfera pblica e esfera privada. At os anos 60, a histria se impe como tempo forte: o

    privado e o cotidiano no so mais do que o avesso obscuro da esfera poltica. No melhor dos

    casos, intervm uma dialtica entre os dois e pode-se pensar que um dia o cotidiano, como o

    individual, resplandecer alm da histria, no universal. Mas at l s se pode deplorar o

    recuo das massas a sua esfera domstica, sua recusa da histria, da poltica e do universal, e

    sua absoro na cotidianidade embrutecida do consumo (felizmente elas trabalham, o que

    lhes garante um estatuto histrico objetivo at o momento da tomada de conscincia). Hoje,

    inverso do tempo fraco e do tempo forte: comea-se a vislumbrar que o cotidiano, que os

    homens em sua banalidade at que poderiam no ser o reverso insignificante da histria -

    melhor: que o recuo para o privado at poderia ser um desafio direto ao poltico, uma forma

    de resistncia ativa manipulao poltica. Os papis se invertem: a banalidade da vida, a

    vida corrente, tudo o que se estigmatizara como pequeno-burgus, abjeto e apoltico

    (inclusive o sexo) .que se torna o tempo forte; e a histria e o poltico que desenvolvem sua

    acontecimentalidade abstrata algures.

    Hiptese vertiginosa. As massas despolitizadas no estariam aqum mas alm da

    poltica. O privado, o inominvel, o cotidiano, o insignificante, os pequenos ardis, as

    pequenas perverses, etc., no estariam aqum mas alm da representao. As massas

    executariam em sua prtica ingnua (e sem ter esperado as anlises sobre o fim do

    poltico) a sentena da anulao do poltico, seriam espontaneamente transpolticas, como

    so translingsticas em sua linguagem.

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    Mas, ateno! Esse universo privado e a-social, que no entra numa dialtica de

    representao e de ultrapassamento para o universal, dessa esfera involutiva que se ope a

    toda revoluo pelo alto e se recusa a jogar o jogo, alguns desejariam que se tratasse (em

    particular em sua verso sexual e de desejo) de uma nova fonte de energia revolucionria,

    desejariam lhe dar um sentido e o reconstituir como negatividade histrica em sua prpria

    banalidade. Exaltao de microdesejos, de pequenas diferenas, de prticas cegas, de

    marginalidades annimas. ltimo sobressalto dos intelectuais para exaltar a insignificncia,

    para promover o no-sentido na ordem do sentido. E revert-lo razo poltica. A banalidade,

    a inrcia, o apoliticismo eram fascistas, agora se tornam revolucionrios - sem mudar de

    sentido, isto , sem deixar de ter sentido. Micro-revoluo da banalidade, transpoltica do

    desejo - mais um truque dos libertadores. A negao do sentido no tem sentido.

    Da resistncia ao hiperconformismo

    A emergncia das maiorias silenciosas se integra no ciclo completo da resistncia

    histrica ao social. Resistncia ao trabalho, evidentemente, mas tambm resistncia

    medicina, resistncia escola, resistncia segurana, resistncia informao. A histria

    oficial s registra o progresso ininterrupto do social, relegando s trevas, como culturas

    passadas, como vestgios brbaros, tudo que no concorreria para esse glorioso

    acontecimento. Ora, contrariamente ao que se poderia pensar (que o social definitivamente

    ganhou, que o movimento irreversvel, que o consenso sobre o social total), a resistncia

    ao social sob todas as suas formas progrediu mais rapidamente ainda do que o social. Ela

    simplesmente tomou outras formas que no as primitivas e violentas, que foram reabsorvidas

    pela seguinte (o social vai bem, obrigado, s restam uns loucos para escapar ao registro,

    vacinao e s vantagens da segurana). Essas resistncias frontais ainda corresponderiam a

    uma fase tambm frontal e violenta da socializao, e viriam mais de grupos tradicionais,procurando preservar sua cultura prpria, suas estruturas originais. No era a massa que

    resistia neles, mas sim as estruturas diferenciadas, contra o modelo homogneo e abstrato do

    social.

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    tambm esse tipo de resistncia que se encontra nos two steps flow of

    communication (duplo fluxo de comunicao) que a sociologia americana analisou: a massa

    absolutamente constitui uma estrutura passiva de recepo das mensagens dos meios de

    comunicao, sejam elas polticas, culturais ou publicitrias. Os microgrupos e os indivduos,

    longe de se alinharem em uma decodificao uniforme e imposta, decodificam as mensagens

    sua maneira, as interceptam (atravs de lderes) e as transpem (segundo nvel), opondo ao

    cdigo dominante seus sub-cdigos particulares, e terminam por reciclar tudo o que os atinge

    em seus prprio ciclo, exatamente como os primitivos reciclavam a moeda ocidental em sua

    circulao simblica (os Sians da Nova Guin) ou como os corsos reciclam o sufrgio

    universal e as eleies em sua estratgia de rivalidades entre cls. Esta maneira de desvio, de

    absoro, de recuperao vitoriosa pelos subgrupos do material difundido pela cultura

    dominante, este ardil universal. tambm ele que conduz ao uso mgico do mdico e damedicina nas massas subdesenvolvidas. Creditado normalmente a uma mentalidade arcaica

    e irracional, preciso ler ai, ao contrrio, uma prtica ofensiva, um desvio por excesso, uma

    recusa no-analisada, mas sem o saber profundamente consciente das devastaes da

    medicina racional.

    Mas esta ainda a ao de grupos estruturados, pertencentes e de origem tradicionais.

    Outra coisa o fracasso da socializao imposto pela massa, isto , por um grupo inumervel,

    inominvel e annimo, e cuja fora reside na sua prpria desestruturao e inrcia. Assim, no

    caso dos meios de comunicao, a resistncia tradicional consiste em reintegrar as mensagens

    segundo o cdigo prprio ao grupo e em torno de seus prprios objetivos. As massas, estas

    aceitam tudo e desviam tudo em bloco no espetacular, sem exigncia de um outro cdigo,

    sem exigncia de sentido, na realidade sem resistncia, mas fazendo com que tudo passe para

    uma esfera indeterminada que no nem mesmo a do no-sentido, mas a da

    fascinao/manipulao de todos os azimutes.

    Sempre se acreditou que so os meios de comunicao que enredam as massas - o que

    a prpria ideologia dos mass media. Procurou-se o segredo da manipulao numa

    semiologia que combate os mass media. Mas se esqueceu, nessa lgica ingnua da

    comunicao, que as massas so um meio muito mais forte que todos os meios de

    comunicao, que so elas que os enredam e os absorvem - ou que pelo menos no h

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    nenhuma prioridade de um sobre o outro. O processo da massa e o dos meios de comunicao

    so um processo nico. Mass(age) mensagem.

    O mesmo aconteceu com o cinema, cujos inventores no incio imaginaram como um

    meio racional, documental, informativo, social, e que caiu muito rpido e definitivamente noimaginrio.

    O mesmo aconteceu com a tcnica, com a cincia e com o saber. Destinados a uma

    prtica mgica e a um consumo espetacular. Aconteceu o mesmo com o prprio consumo.

    Levando em conta a seriedade de sua teoria das necessidades e o consenso geral sobre o

    discurso da utilidade, para seu prprio estupor os economistas nunca conseguiram

    racionalizar o consumo. Mas isso porque a prtica das massas nunca teve imediatamente

    nenhuma relao (talvez nunca tenha) com as necessidades. Elas fizeram do consumo umadimenso de status e de prestgio, de promessa intil ou de simulao, de potlatch que de

    qualquer maneira excederia o valor de uso. Na verdade, trata-se de lhes inculcar de todos os

    lados (propaganda oficial, associao de consumidores, eclogos, socilogos) a boa prtica e

    o clculo funcional em matria de consumo, mas sem esperana. Porque pelo valor/signo e

    pelo jogo desenfreado do valor/signo (onde os economistas, mesmo quando tentaram integr-

    lo como varivel, no deixaram de ver uma inclinao da razo econmica), por isso que as

    massas pem prova a economia, resistem ao imperativo objetivo das necessidades e ponderao racional dos comportamentos e dos fins. Valor/signo em vez de valor de uso j

    um desvio da economia poltica. E que no se diga que tudo isso afinal serve ao valor de

    troca, isto , ao sistema. Porque se o sistema se sai muito bem com esse jogo e at mesmo o

    favorece (as massas alienadas nos gadgets, etc.) isso no o essencial e o que esse deslize,

    essa derrapagem inaugura a longo prazo - inaugura desde agora - o fim do econmico,

    isolado de todas as suas definies racionais pelo uso excessivo, mgico, espetacular, indireto

    e quase pardico que as massas fazem dele. Uso a-social, resistente a todas as pedagogias

    socialistas - uso aberrante atravs do qual as massas (ns, vocs, todo o mundo) inverteram a

    economia poltica desde agora. No esperaram as revolues futuras nem as teorias que

    pretendem libert-las de um movimento dialtico. Elas sabem que no se liberta de nada e

    que s se abole um sistema obrigando-o ao hiperlgico, impelindo-o a um uso excessivo que

    equivale a um amortecimento brutal. Vocs querem que se consuma - pois bem,

    consumamos sempre mais, e no importa o qu; para todos os fins inteis e absurdos.

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  • 8/7/2019 Jean Baudrillard - Sombra das maiorias silenciosas

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    SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS

    O mesmo aconteceu com a medicina: resistncia frontal (que alis no desapareceu)

    se substituiu uma forma mais sutil de subverso, um consumo excessivo, irrefrevel, da

    medicina, um conformismo pnico s injunes da sade. Escalada fantstica do consumo

    mdico que desvia completamente os objetivos e as finalidades sociais da medicina. Que

    melhor meio de aboli-Ia? Desde ento os mdicos no sabem mais o que fazem, o que so,

    muito mais manipulados do que manipuladores. Queremos mais cuidados, mais mdicos,

    mais medicamentos, mais segurana, mais sade, sempre mais, sem limites! As massas so

    alienadas na medicina? De modo algum: ao exigirem sempre mais, como mercadoria, esto

    prestes a arruinar sua instituio, a explodir a segurana social, a colocar o prprio social em

    perigo. Que maior ironia pode haver do que nesta exigncia do social como bem de consumo

    individual, submetido ao excesso da oferta e da procura? Pardia e paradoxo: por sua

    inrcia nos caminhos do social que lhes foram traados que as massas lhes ultrapassam algica e os limites, e destroem todo o edifcio. Hipersimulao destrutiva, hiperconformismo

    destruidor (como no caso de Beaubourg, analisado em outra perspectiva)6que tem todas as

    aparncias de um desafio vitorioso - ningum avaliar a fora desse desafio, da reverso que

    ele exerce sobre todo o sistema. a que est o verdadeiro problema hoje, nesse afrontamento

    surdo e inelutvel das maiorias silenciosas contra o social que lhes imposto, nessa hiper-

    simulao que redobra a simulao e que a extermina a partir de sua prpria lgica - no em

    alguma luta de classe nem no caos molecular das minorias em ruptura de desejo.

    Massa e terrorismo

    Estamos portanto no ponto paradoxal em que as massas se recusam ao batismo do

    social, que ao mesmo tempo o do sentido e da liberdade. No faze mos delas uma nova e

    gloriosa referncia. Porque elas no existem. Mas constatamos que todos os poderes acabam

    por se arruinar silenciosamente nessa maioria silenciosa, que no nem uma entidade nemuma realidade sociolgica, mas a sombra projetada pelo poder, seu abismo no vcuo, sua

    forma de absoro. Nebulosa fluida, movente, conforme, excessivamente, conforme a todas

    as solicitaes e de um conformismo hiper-real que a forma extrema da no-participao:

    tal o desastre atual do poder. Tal tambm o desastre da revoluo. Porque essa massa

    6L'Effet et Beaubourg. Paris, Ed. Galile, 1977.

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    SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS

    implosiva jamais explodir por definio, e qualquer palavra revolucionria tambm

    implodir a. Em conseqncia, o que fazer com essas massas? Elas so o leitmotiv de todos

    os discursos. So a obsesso de todo projeto social, mas todos malogram nelas, porque todos

    permanecem enraizados na definio clssica de massas, a de uma esperana escatolgica do

    social e de sua realizao. Ora, as massas no so o social, so a reverso de todo social e de

    todo socialismo. Muitos tericos, entretanto, condenaram o sentido, denunciaram as

    armadilhas da liberdade e as mistificaes do poltico, criticaram radicalmente a

    racionalidade de qualquer forma de representao - quando as massas atravessavam o sentido,

    o poltico, a representao, a histria, a ideologia, com uma forma sonamblica de negao,

    quando realizam aqui e agora tudo o que a critica mais radical pde vislumbrar, nesse

    momento esta no sabe o que fazer disso e se obstina em sonhar com uma revoluo futura -

    revoluo crtica, revoluo de prestgio, a do social, a do desejo. Esta revoluo porinvoluo no a sua: no explosiva-crtica, implosiva e cega. Procede por inrcia e no

    por uma negatividade franca e jovial. Ela silenciosa e involutiva - exatamente o inverso de

    todas as tomadas de palavra e tomadas de conscincia. No tem sentido. No tem nada a nos

    dizer.

    Alis o nico fenmeno que est em relao de afinidade com elas, com as massas,

    exatamente como se a se desenrolasse a ltima peripcia do social, e de sua morte, o

    terrorismo. Nada mais afastado das massas do que o terrorismo, e o poder tem tentado

    levantar um contra o outro. Mas nada mais estranho, nada mais familiar tambm, do que sua

    convergncia na negao do social e na recusa do sentido. Porque o terrorismo na verdade

    pretende visar o capital (o imperialismo mundial, etc.) mas se engana de inimigo, e ao fazer

    isso visa seu verdadeiro inimigo, que o social. O terrorismo atual visa o social em resposta

    ao terrorismo do social. Ele visa o social tal como produzido hoje - rede orbital, intersticial,

    nuclear, textural, de controle e de segurana, que nos investe de todas as partes e nos produz,

    a ns todos, como maioria silenciosa. Socialidade hiper-real, imperceptvel, que no operamais pela lei e pela represso, mas pela infiltrao de modelos, no pela violncia, mas pela

    persuaso/dissuao. A isso o terrorismo responde com um ato ele mesmo hiper-real,

    imediatamente destinado s ondas concntricas dos meios de comunicao e da fascinao,

    imediatamente destinado no a alguma representao nem conscincia, mas desacelerao

    mental por contingidade, fascinao e pnico, no reflexo nem lgica das causas e dos

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    SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS

    efeitos, mas reao em cadeia por contgio. Desprovido de sentido, portanto, e

    indeterminado como o sistema que ele combate, em que ele se insere mais como um ponto de

    imploso mxima e infinitesimal - terrorismo no-explosivo, no-histrico, no-poltico;

    implosivo, cristalizante, siderante - e por isso profundamente homlogo ao silncio e inrcia

    das massas.

    O terrorismo no visa fazer falar, ressuscitar ou mobilizar quem quer que seja; no

    tem prolongamento revolucionrio (a esse respeito, seria mais uma contra-performance total,

    o que se lhe censura violentamente, mas seu problema no est nisso), visa as massas em seu

    silncio, silncio magnetizado pela informao; ele visa, para precipitar sua morte ao acentu-

    la, esta magia branca do social que nos envolve, a da informao, da simulao, da dissuaso,

    do controle annimo e aleatrio, essa magia branca da abstrao social pela magia negra de

    uma abstrao maior ainda, mais annima, mais arbitrria e mais aleatria ainda: a do ato

    terrorista.

    Ele o nico ato no-representativo. nisso que ele tem afinidade com as massas,

    que so a nica realidade no-representvel. Sobretudo isso no quer dizer que novamente o

    terrorismo representaria o silncio e o no-dito das massas, que exprimiria violentamente sua

    resistncia passiva. Isso quer dizer simplesmente: no h equivalente ao carter cego, no-

    representativo, desprovido de sentido, do ato terrorista, seno o comportamento cego,desprovido de sentido e alm da representao que o das massas. Eles tm isso de comum

    porque so a forma atual mais radical, mais exacerbada, de negao de qualquer sistema

    representativo. tudo. Ningum sabe na realidade que relao pode se estabelecer entre dois

    elementos que esto alm da representao, um problema que nossa epistemologia do

    conhecimento no permite resolver pois ela postula sempre a mediao de um sujeito e de

    uma linguagem, a mediao de uma representao. S conhecemos bem os encadeamentos

    representativos, no sabemos grande coisa dos encadeamentos analgicos, afinitrios,

    imediatizados, irreferenciais e outros sistemas. Sem dvida, alguma coisa de muito forte

    passa entre eles (massas e terrorismo) que procuraramos em vo nos precedentes histricos

    dos sistemas representativos (povo/assemblia, proletariado/partido, marginais-

    minorias/grupelhos, etc.). E assim como uma energia social passa entre dois plos de um

    sistema representativo qualquer, energia positiva, assim se poderia dizer que entre as massas

    e o terrorismo, entre esses dois no-plos de um sistema no-representativo, tambm passa

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    SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS

    uma energia, mas uma energia inversa, energia no de acumulao social e de transformao,

    mas de disperso do social, de absoro e anulao do poltico.

    No se pode dizer que a era das maiorias silenciosas que produz o terrorismo.

    a simultaneidade dos dois que assombrosa e causa estranheza. nico acontecimento, aceite-se ou no sua brutalidade, que verdadeiramente marca o fim do poltico e do social. O nico

    que traduz essa realidade de uma imploso violenta de todos os nossos sistemas de

    representao.

    O terrorismo no visa de modo algum desmascarar o carter repressivo do Estado

    (essa a negatividade provocadora dos grupelhos, que a encontram uma ltima oportunidade

    de serem representativos aos olhos das massas). Ele propaga, por sua prpria no-

    representatividade e por reao em cadeia (no por demonstrao e tomada de conscincia), aevidncia da no-representatividade de todos os poderes. A est sua subverso: ele precipita

    a no-representatividade injetando-a em doses infinitesimais mas bastante concentradas.

    Sua violncia fundamental de negao de todas as instituies de representao

    (sindicatos, movimentos organizados, luta poltica consciente, etc.). Inclusive daqueles que

    professam solidariedade a ele, porque a solidariedade ainda a maneira de constitu-lo como

    modelo, como emblema, e, portanto, de lhe atribuir representao (Eles esto mortos para

    ns, sua ao no foi intil...). Todos os meios so bons para violentar o sentido, para

    desconhecer quanto o terrorismo sem legitimidade social, sem prolongamento poltico, sem

    continuidade em histria alguma. Seu nico reflexo no exatamente um prolongamento

    histrico: sua narrao, sua onda de choque nos meios de comunicao. Ora, essa narrao

    no de natureza objetiva e informativa, tanto como o terrorismo no de natureza poltica.

    Todos os dois esto em outro lugar, numa ordem que no nem de sentido nem de

    representao - talvez mtica, sem dvida simulacro.

    O outro aspecto da violncia terrorista a negao de toda determinao e de toda

    qualidade. Nesse sentido, preciso distinguir o terrorismo do banditismo e da ao de

    comando. Esta um ato de guerra que visa um inimigo determinado (explodir um trem,

    ataque a bomba sede do partido adversrio, etc.). O outro depende da violncia criminal

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    SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS

    tradicional (hold-up num banco, seqestro em troca de resgaste, etc.). Todas essas aes tm

    um objetivo econmico ou militar. O terrorismo atual, inaugurado com a tomada de refns

    e o jogo adiado da morte, no tem objetivo (se ele pretende t-los, so irrisrios ou

    inacessveis, e, de qualquer maneira, exatamente o mtodo mais ineficaz de atingi-los) nem

    inimigo determinado. Os palestinos visam Israel por intermdio dos refns? No, atravs da

    intermediao de Israel que eles visam um inimigo mtico, mesmo no-mtico, annimo,

    indiferenciado, uma espcie de ordem social mundial presente em toda parte, no importa

    quando, no importa quem, at o ltimo dos inocentes. Assim o terrorismo, original e

    insolvel somente porque ataca no importa onde, quando e quem, seno seria somente ato de

    resgate ou de comando militar. Sua cegueira a rplica exata da indiferenciao absoluta do

    sistema, que h muito tempo no distingue os fins dos meios, os carrascos das vitimas. Seu

    ato visa, na indistino assassina da tomada de refns, exatamente o produto maiscaracterstico de todo o sistema: o indivduo annimo e perfeitamente indiferenciado, o termo

    substituvel por qualquer outro. preciso dizer paradoxalmente; os inocentes pagam o crime

    de no serem nada, de serem sem destino, de terem sido despossudos de seu nome por um

    sistema tambm annimo, de que eles se tornaram, ento, a mais pura encarnao. So os

    produtos acabados do social, de uma sociabilidade abstrata doravante mundializada. nesse

    sentido, exatamente no sentido em que eles so qualquer pessoa, que so as vtimas

    predestinadas pelo terrorismo.

    nesse sentido, ou melhor, nesse desafio ao sentido, que o ato terrorista se assemelha

    catstrofe natural. No h diferena alguma entre um terremoto na Guatemala e a queda de

    um Boeing da Lufthansa com trezentos passageiros a bordo, entre a interveno natural e a

    interveno humana terrorista. A natureza terrorista, como o a interrupo abrupta de

    todo o sistema tecnolgico: os grandes black-outs de Nova Iorque (1965 e 1977) criam

    situaes terroristas melhores que as verdadeiras, situaes sonhadas. Melhor: esses grandes

    acidentes tecnolgicos, como os grandes acidentes naturais, exemplificam a possibilidade deuma subverso radical sem sujeito. A pane de 1977 em Nova Iorque poderia ser fomentada

    por um grupo terrorista muito organizado e isso no mudaria nada no resultado objetivo.

    Teriam sucedido os mesmos atos de violncia, de pilhagem, de levante, a mesma suspenso

    da ordem social. Isso significa que o terrorismo no est na deciso de violncia, mas em

    toda parte na normalidade do social, de modo que ela pode de um momento para o outro se

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    SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS

    transfigurar numa realidade inversa, absurda, incontrolvel. A catstrofe natural funciona

    dessa maneira e assim que, paradoxalmente, ela se torna a expresso mtica da catstrofe do

    social. Ou melhor, sendo a catstrofe natural por excelncia um incidente desprovido de

    sentido, no-representativo (seno de Deus, eis por que o responsvel pela Continental Edison

    pde falar de Deus e de sua interveno no episdio do ltimo black-out de Nova Iorque),

    torna-se uma espcie de sintoma ou de encarnao violenta do estado do social, a saber, de

    sua catstrofe e da runa de todas as representaes que o sustentavam.

    Sistemas implosivos, sistemas explosivos

    Massas, meios de comunicao e terrorismo, em sua afinidade, triangular, descrevemo processo de imploso hoje dominante. Todo o processo afetado por uma violncia que

    somente comea, violncia orbital e nuclear, de aspirao e fascinao, violncia do vazio (a

    fascinao a intensidade extrema do neutro). A imploso, para ns e hoje, s pode ser

    violenta e catastrfica, porque ela resulta do fracasso do sistema de exploso e de expanso

    dirigida que foi o nosso no Ocidente h alguns sculos.

    Ora, a imploso no necessariamente um processo catastrfico. Ela foi, sob uma

    forma controlada e dirigida, o segredo dominante das sociedades primitivas e tradicionais.Configuraes no-expansivas, no-centrifugas: centrpetas - pluralidades singulares que

    nunca visam o universal, centradas num processo cclico, o ritual, e que tendem a involuir

    nesse processo no-representativo, sem instncia superior, sem polaridade, disjuntiva, sem

    entretanto se arruinar a si mesmas (salvo, sem dvida, determinados processos implosivos

    inexplicveis para ns, como o colapso das culturas tolteca, olmeca, maia, que de que no se

    soube nada, cujos imprios piramidais desapareceram sem deixar traos, sem catstrofe

    visvel, como se desinvestidos brutalmente, sem causa aparente, sem violncia externa). As

    sociedades primitivas viveram portanto de uma imploso dirigida - morreram quando

    deixaram de controlar esse processo, e oscilaram ento para o da exploso (demogrfica, ou

    excedentes de produo irredutveis, processo de expanso incontrolvel, ou simplesmente

    quando a colonizao as iniciou violentamente na norma expansiva e centrfuga dos sistemas

    ocidentais).

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    Inversamente, nossas civilizaes modernas viveram sobre uma base de expanso e

    de exploso em todos os nveis, sob o signo da universalizao do mercado, dos valores

    econmicos e filosficos, sob o signo da universalidade da lei e das conquistas. Sem dvida

    mesmo elas souberam viver, pelo menos num momento, de uma exploso dirigida, de uma

    liberao de energia controlada e progressiva, e foi a idade de ouro de sua cultura. Mas,

    conforme um processo de arroubamento e de acelerao, esse processo explosivo se tornou

    incontrolvel, atingiu uma rapidez ou uma amplitude mortal, ou melhor, atingiu os limites do

    universal, saturou o campo de expanso possvel e, assim como as sociedades primitivas

    foram devastadas pela exploso por no terem sabido controlar durante mais tempo o

    processo implosivo, assim nossas culturas comeam a ser devastadas pela imploso por no

    terem sabido controlar e equilibrar o processo explosivo.

    A imploso inelutvel, e todos os esforos para salvar os princpios de realidade, de

    acumulao, de universalidade, os princpios de evoluo que dependem dos sistemas em

    expanso so arcaicos, regressivos, nostlgicos. Inclusive todos aqueles que querem liberar as

    energias libidinais, as energias plurais, as intensidades fragmentrias, etc. A revoluo

    molecular s traduz a ltima fase de liberao de energias (ou de proliferao de

    segmentos, etc.) at os limites infinitesimais do campo de expanso que foi o de nossa

    cultura. Tentativa infinitesimal do desejo que sucede do infinito do capital. Soluo

    molecular que sucede ao ataque molar dos espaos e do social. ltimos clares do sistema

    explosivo, ltima tentativa de ainda controlar uma energia dos confins, ou de ampliar os

    confins da energia (nosso leitmotiv fundamental) para salvar o principio de expanso e de

    liberao.

    Mas nada travar o processo implosivo, e a nica alternativa que resta a de uma

    imploso violenta e catastrfica, ou de uma imploso lenta e progressiva. H traos disso, de

    diversas tentativas de controlar os novos impulsos anti-universais, anti-representativos,

    tribais, centrpetos, etc.: as comunidades, a ecologia, o crescimento zero, as drogas - tudo isso

    sem dvida dessa natureza. Mas preciso no se iludir sobre a imploso lenta. Ela est

    destinada efemeridade e ao fracasso. No houve transio equilibrada de sistemas

    implosivos aos sistemas explosivos: isso sempre aconteceu violentamente, e h toda a

    possibilidade de que nossa passagem para a imploso tambm seja violenta e catastrfica.

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    SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS

    ... Ou o fim do social

    O social no um processo claro e unvoco. As sociedades modernas correspondem a

    um processo de socializao ou de dessocializao progressiva? Tudo depende da acepo dotermo, ora, nenhuma segura e todas so reversveis. O mesmo ocorre com as instituies

    que marcaram os progressos do social (urbanizao, concentrao, produo, trabalho,

    medicina, escolarizao, segurana social, seguros, etc), inclusive o capital, que sem dvida

    foi o meio de socializao mais eficaz de todos, pode-se dizer que elas produzem e destroem

    o social no mesmo movimento.

    Se o social feito de instncias abstratas que, umas aps as outras, se edificam sobre

    as runas do edifcio simblico e ritual das sociedades anteriores, ento essas instituies oproduzem cada vez mais. Mas, ao mesmo tempo, elas sancionam essa abstrao devorante,

    talvez devoradora exatamente do mago substantivo do social. A partir desse ponto de

    vista, pode-se dizer que o social regride na prpria medida d desenvolvimento das

    instituies.

    O processo acelera e atinge sua extenso mxima com os meios de comunicao de

    massa e com a informao. Os mdia, todos os mdia, e a informao, qualquer informao,

    funcionam nos dois sentidos: aparentemente produzem mais social e neutralizamprofundamente as relaes sociais e o prprio social.

    Mas, ento, se o social ao mesmo tempo destrudo por aquele que o produz (os

    mdia, a informao) e reabsorvido pelo que produz (as massas), segue-se que a definio

    nula, e que esse termo que serve de libi universal para todos os discursos no analisa nada,

    no designa nada. Ele no somente suprfluo e intil - em toda a parte em que aparece

    esconde outra coisa: desafio, morte, seduo, ritual, repetio -, esconde que abstrao e

    resduo, ou mesmo simplesmente efeito de social, simulao e miragem.

    O prprio termo contato social enigmtico. O que um contato social, uma

    relao social, o que a produo de contatos sociais? Aqui tudo falsa evidncia. O

    social imediatamente, e como por definio, um contato ou uma relao? - o que j

    supe uma sria abstrao e uma lgebra racional do social -, ou na verdade outra coisa que

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    SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS

    o termo contato racionaliza demais? Talvez o contato social exista para outra coisa, por

    exemplo, para que o destri? Talvez ele confirme, talvez inaugure o fim do social?

    As cincias sociais vieram consagrar essa evidncia e essa eternidade do social. Mas

    preciso desencantar. Houve sociedades sem social, assim como houve sociedades sem

    histria. As redes de obrigaes simblicas no eram exatamente nem contato nem

    social. No outro extremo, nossa sociedade talvez esteja prestes a pr fim ao social, a

    enterrar o social sob a simulao do social. Para este h diversas maneiras de morrer - assim

    como definies. O social talvez s ter tido uma existncia efmera, numa estreita

    bifurcao entre as formaes simblicas e a nossa sociedade, onde morre. Antes, no

    existe ainda. Aps, no existe mais. S a sociologia pode parecer testemunhar sua

    eternidade, e a soberana algaravia das cincias sociais ainda o divulgar muito tempo aps

    ele ter desaparecido.

    A energia ininterrupta do social surgiu h dois sculos com a desterritorializao e a

    concentrao sob instncias cada vez mais unificadas. Espao perspectivo centralizado que d

    um sentido a tudo o que nele se insere por simples convergncia numa linha de fuga ao

    infinito (como o espao e o tempo, o social efetivamente abre uma perspectiva ao infinito).

    No h definio do social seno nessa perspectiva pantica.

    Mas no esqueamos que este espao perspectivo (em pintura e em arquitetura, assim

    como em poltica ou em economia) s um modelo de simulao entre outros, e que s tem

    por caracterstica o fato de que permite efeitos de verdade, de objetividade, inauditos e

    desconhecidos aos outros modelos. Ele no talvez um equvoco? Em qualquer caso, tudo o

    que se tramou e se colocou nessa cena italiana do social jamais teve importncia

    profunda. As coisas, profundamente, jamais funcionaram de modo social, mas sim

    simbolicamente, magicamente, irracionalmente, etc. O que subentende a frmula: o capital

    um desafio sociedade. O que quer dizer que essa mquina perspectiva, pantica, que esta

    mquina de verdade, de nacionalidade, de produtividade que o capital, no tem finalidadeobjetiva, no tem razo: ela antes de mais nada uma violncia, e esta violncia se exerce

    pelo social sobre o social, mas na realidade ela no uma mquina social, ela despreza o

    capital e o social em sua definio ao mesmo tempo solidria e antagnica. Isso quer dizer

    ainda que no h contrato, que jamais houve contrato passado entre as distintas instncias

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    SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS

    segundo a lei - tudo isso vento -, s h questes, desafios, isto , algo que no passa por

    uma relao social.

    O desafio no uma dialtica, nem uma oposio respectiva de um plo ao outro, de

    um termo ao outro, numa estrutura plena. Ele um processo de exterminao da posio

    estrutural de cada termo, da posio de sujeito de cada um dos antagonistas e em particular

    daquele que lana o desafio: por isso mesmo ele abandona qualquer posio contratual que

    possa dar lugar a uma ligao. A lgica no mais a da troca de valor. a do abandono de

    posies de valor e de sentido. O protagonista do desafio sempre est em posio suicida,

    mas um suicdio triunfal: pela destruio do valor, pela destruio do sentido (a sua, o seu)

    que ele fora o outro a uma resposta nunca equivalente, sempre superada. O desafio sempre

    do que no tem sentido, no tem nome, no tem identidade, para o que se prevalece de um

    sentido, de um nome, de uma identidade - o desafio ao sentido, ao poder, verdade, de

    existirem enquanto tais, de pretenderem existir como tais. S esta reverso pode dar fim ao

    poder, ao sentido, ao valor, e nunca alguma relao de foras, por mais favorvel que seja,

    pois esta se reproduz numa relao polar, binria, estrutural, que recria por definio um novo

    espao de sentido e de poder.7

    Aqui so possveis vrias hipteses:

    1. Na realidade o social nunca existiu. Nunca houve ligao social. Nunca nada

    funcionou socialmente. Nessa base inelutvel de desafio, de seduo e de morte, sempre

    houve somente simulao do social e de ligao social. De nada adianta, nesse caso, sonhar

    com uma sociedade real, com uma socialidade escondida, com uma socialidade ideal. Seria

    hipostasiar o simulacro. Se o social uma simulao, o nico incidente provvel o de uma

    dessimulao brutal - o prprio social deixando de se afirmar como espao de referncia e de

    jogar o jogo, pondo imediatamente fim ao poder, ao efeito de poder e ao espelho do social

    que o eterniza. Dessimulao que assume ela mesma o comportamento de um desafio

    (desafio inverso ao do capital ao social e sociedade): desafio ao capital e ao poder deexistirem segundo sua lgica prpria - eles no a tm, eles se desvanecem como ordenao

    7 A mesma coisa vale para a seduo. Se o sexo e a sexualidade, dado que a revoluo sexual os muda em simesmos, so verdadeiramente um modo de troca e de produo de relaes sexuais, j a seduo o inverso datroca, e prxima ao desafio. A sexualidade realmente s se tornou relao sexual, s pde ser falada nessestermos j racionalizados de valor e de troca, ao se esquecer qualquer forma de seduo - assim como o social sse torna relao social quando perdeu toda a dimenso simblica.

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    desde que a simulao do espao social se desfaz.8Na verdade isso que assistimos hoje:

    desagregao do pensamento do social, ao definhamento e involuo do social, ao

    enfraquecimento do simulacro social, verdadeiro desafio ao pensamento construtivo e

    produtivo do social que nos domina. E isso de repente, como se o social nunca tivesse

    existido. Enfraquecimento que tem todos os traos de uma catstrofe, no de uma evoluo

    ou de uma revoluo. No mais uma crise do social, mas a incorporao do seu

    ordenamento. Sem nada a ver com as deseres marginais (loucos, mulheres, drogados,

    delinqentes), que servem, ao contrrio, de novas energias ao social enfraquecido. Esse

    processo no pode mais ser ressocializado. Ele a evaporao, como a de um espectro ao

    canto do galo, do principio de realidade e de racionalidade social.

    2. O social realmente existiu, ele at existe cada vez mais, ele investe tudo, s h o

    social. Longe de se volatilizar, ele que triunfa, a realidade do social que se impe em toda

    a parte. Mas pode-se considerar, contra o preconceito que faz do social um processo objetivo

    da espcie humana, tudo o que escapa sendo somente resduo, que o prprio social que

    resduo, e que, se triunfou no real, foi exatamente enquanto tal. Resduo crescente e logo

    universal da disperso da ordem simblica, foi o social como resto que se fortaleceu do real.9

    Eis a um tipo de morte mais sutil.

    Nesse caso, na verdade estamos sempre mais no social, isto , na dejeco pura, na

    obstaculizao fantstica do trabalho morto, das relaes mortas e instanciadas nas

    burocracias terroristas, das linguagens e dos sintagmas mortos os prprios termos ligao e

    relao j tm algo de morto, e algo de morte.

    Ento evidentemente no se pode mais dizer que o social morre, pois ele desde

    sempre acumulao do morto. Com efeito, estamos numa civilizao do super-social, e

    simultaneamente do resduo indegradvel, indestrutvel, que se expande na prpria medida da

    extenso do social.

    Desperdcio e reciclagem: tal seria o social imagem de uma produo cujo ciclo

    escapou h muito tempo s finalidades sociais para tornar-se uma nebulosa espiral

    8 Mas o desafio ao social pode tomar a forma inversa da recrudescncia do simulacro social, da demanda social,da demanda do social. Hiperconformismo exacerbado, compulsivo, exigncia ainda mais formal do social comonorma e como discurso.9 Ver, em L'Echange Simbolique et le Mort, a tripla residualidade: do valor na ordem econmica, do fantasmana ordem psquica, da significao da ordem lingstica. preciso portanto acrescentar a a residualidade dosocial na ordem... social.

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    completamente ex-inscrita, girando sobre si mesma e se alargando cada revoluo que

    descreve. V-se assim o social crescer no decorrer da histria como gesto racional dos

    resduos, e dentro em pouco produo racional de resduos.

    Em 1544 abriu-se o primeiro grande estabelecimento de pobres em Paris: vagabundos,

    dementes, doentes, todos aqueles que o grupo no integrou e deixou como sobras sero

    adotados sob o signo nascente do social. Este se expandir s dimenses da assistncia

    pblica no sculo 19, depois Segurana Social no sculo 20. medida que se refora a

    razo social, a coletividade toda que logo se torna residual e, portanto, com uma espiral

    mais, o social que se alarga. Quando a sobra atinge as dimenses da sociedade toda, tem-se

    uma socializao perfeita.10 Todo o mundo est perfeitamente excludo e adotado,

    perfeitamente desintegrado e socializado.

    A integrao simblica substituda pela integrao funcional, instituies funcionais

    se ocupam dos resduos da desintegrao simblica - uma instncia social aparece onde no

    existia e no havia nem mesmo nome para diz-la. Os contatos sociais se multiplicam,

    proliferam, se enriquecem proporcionalmente a esta desintegrao. E as cincias sociais vm

    coroar o conjunto. De onde o sabor de uma expresso como: a responsabilidade da

    sociedade em relao a seus membros deserdados, quando se sabe que o social,

    exatamente, s a instncia que resulta deste desamparo.

    De onde o interesse da rubrica Sociedade do Monte, em que paradoxalmente s

    aparecem os emigrados, os delinqentes, as mulheres, etc.: exatamente tudo o que no foi

    socializado, o caso social anlogo ao caso patolgico. Bolses para serem incorporados,

    segmentos que o social isola pouco a pouco em sua extenso. Designados como residuais no