A Educação Escolar de Adolescentes e a Vida Cotiana - Eleutério

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1 A EDUCAÇÃO ESCOLAR DE ADOLESCENTES E A CONDUÇÃO CONSCIENTE DA VIDA COTIDIANA 1 Ricardo Eleutério dos Anjos 2 Newton Duarte 3 A escolha por analisar o papel da educação escolar de adolescentes no desenvolvimento da condução consciente da vida cotidiana não foi arbitrária. A capacidade de hierarquização consciente da vida só é possível pela mediação das objetivações genéricas para-si, como a ciência, a arte e a filosofia. E, segundo Vygotski 4 (1996), tais objetivações podem ser apropriadas de forma aprofundada somente por meio do pensamento por conceitos, fruto da educação escolar. Na primeira infância até a idade pré- escolar, a criança opera cognitivamente com agrupamentos sincréticos, pensamento por complexos e com pseudoconceitos. Segundo o autor, a forma superior de pensamento conceitual se tornará possível apenas na adolescência. As concepções psicológicas tradicionais sobre a adolescência concebem essa etapa do desenvolvimento humano como algo natural, ou seja, como um período marcado pela impulsividade e pela emotividade incontroláveis, bem como por crises de personalidade, tudo isso causado pelas mudanças hormonais. Diante das concepções biologizantes e idealistas sobre a adolescência, a educação escolar nada (ou quase nada) poderia fazer para interferir no desenvolvimento de algo que é considerado intrínseco à natureza humana. A educação escolar, nessas perspectivas, teria a missão de, simplesmente, acompanhar ou facilitar o caminho natural desse desenvolvimento. Segundo essas teorias, todos os problemas apresentados nessa idade são naturais, normais e acabam desaparecendo naturalmente com a chegada, também natural, da vida adulta (VYGOTSKI, 1996). Por outro lado, para a psicologia histórico-cultural, os seres humanos são de natureza essencialmente social e tudo o que neles há de propriamente humano provém da sua vida em sociedade, por meio da apropriação da cultura objetivada ao longo da história dessa sociedade. De acordo com Leontiev (1978, p. 267), cada indivíduo deve aprender a ser um ser humano, ou seja, “o que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana”. Aquilo que é muitas vezes chamado de 1 O presente trabalho é parte integrante da pesquisa de mestrado do autor, defendida no ano de 2013 e contou com o apoio financeiro da CAPES. 2 Mestre e Doutorando em Educação Escolar pela Fclar/UNESP. 3 Orientador da dissertação de mestrado e da tese de doutorado do autor. 4 Adotaremos a grafia Vigotski, exceto em citações, nas quais reproduziremos a forma presente na obra referida.

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Psicologia Histórico-Cultural, Psicologia na Adolescências, Pedagogia Histórico-Crítica

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    A EDUCAO ESCOLAR DE ADOLESCENTES E A CONDUO CONSCIENTE DA

    VIDA COTIDIANA1

    Ricardo Eleutrio dos Anjos2

    Newton Duarte3

    A escolha por analisar o papel da educao escolar de adolescentes no

    desenvolvimento da conduo consciente da vida cotidiana no foi arbitrria. A capacidade

    de hierarquizao consciente da vida s possvel pela mediao das objetivaes

    genricas para-si, como a cincia, a arte e a filosofia. E, segundo Vygotski4 (1996), tais

    objetivaes podem ser apropriadas de forma aprofundada somente por meio do

    pensamento por conceitos, fruto da educao escolar. Na primeira infncia at a idade pr-

    escolar, a criana opera cognitivamente com agrupamentos sincrticos, pensamento por

    complexos e com pseudoconceitos. Segundo o autor, a forma superior de pensamento

    conceitual se tornar possvel apenas na adolescncia.

    As concepes psicolgicas tradicionais sobre a adolescncia concebem essa etapa

    do desenvolvimento humano como algo natural, ou seja, como um perodo marcado pela

    impulsividade e pela emotividade incontrolveis, bem como por crises de personalidade,

    tudo isso causado pelas mudanas hormonais. Diante das concepes biologizantes e

    idealistas sobre a adolescncia, a educao escolar nada (ou quase nada) poderia fazer

    para interferir no desenvolvimento de algo que considerado intrnseco natureza humana.

    A educao escolar, nessas perspectivas, teria a misso de, simplesmente, acompanhar ou

    facilitar o caminho natural desse desenvolvimento. Segundo essas teorias, todos os

    problemas apresentados nessa idade so naturais, normais e acabam desaparecendo

    naturalmente com a chegada, tambm natural, da vida adulta (VYGOTSKI, 1996).

    Por outro lado, para a psicologia histrico-cultural, os seres humanos so de

    natureza essencialmente social e tudo o que neles h de propriamente humano provm da

    sua vida em sociedade, por meio da apropriao da cultura objetivada ao longo da histria

    dessa sociedade. De acordo com Leontiev (1978, p. 267), cada indivduo deve aprender a

    ser um ser humano, ou seja, o que a natureza lhe d quando nasce no lhe basta para

    viver em sociedade. -lhe ainda preciso adquirir o que foi alcanado no decurso do

    desenvolvimento histrico da sociedade humana. Aquilo que muitas vezes chamado de

    1 O presente trabalho parte integrante da pesquisa de mestrado do autor, defendida no ano de 2013

    e contou com o apoio financeiro da CAPES. 2 Mestre e Doutorando em Educao Escolar pela Fclar/UNESP.

    3 Orientador da dissertao de mestrado e da tese de doutorado do autor.

    4 Adotaremos a grafia Vigotski, exceto em citaes, nas quais reproduziremos a forma presente na

    obra referida.

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    natureza humana um resultado da objetivao histrica da cultura e sua apropriao pelas

    novas geraes, as quais tambm produzem novas objetivaes, num processo que s

    pode ter fim com o desaparecimento da espcie humana.

    Nesse contexto, a adolescncia no pode ser reduzida apenas a um processo de

    mudanas biolgicas, naturais, caracterizadas por consequentes sndromes devido aos

    hormnios que esto flor da pele. Vygotski (1996, p. 36) afirma que os cientistas

    biologistas equivocam-se, com grande frequncia, ao considerar o adolescente um ser

    apenas biolgico, natural. Esse autor afirma que, sobretudo, o adolescente um ser

    histrico e social.

    Isso no significa, entretanto, que Vigotski e outros psiclogos dessa corrente

    desconsiderassem ou secundarizassem a importncia da materialidade biolgica no

    desenvolvimento psicolgico humano. O carter histrico e social do psiquismo humano

    estrutura-se sobre a base dos processos neurofisiolgicos e qualquer psicologia que

    desconsidere esse fato estar fora do campo cientfico. Portanto, a evoluo biolgica no

    est paralisada, nem a espcie humana cristalizou-se a partir de sua vida em sociedade. O

    que ocorreu foi que as leis biolgicas e as caractersticas determinantes do desenvolvimento

    humano pautadas na hereditariedade no so mais as foras motrizes do desenvolvimento

    humano, pois cederam lugar s leis scio-histricas.

    Para Duarte (1993), baseado nas pesquisas da filsofa hngara Agnes Heller, o

    processo de formao da individualidade se d pela dialtica entre apropriao e

    objetivao das produes do gnero humano (objetivaes genricas). Por um lado todo

    ser humano precisa se apropriar de produtos materiais e simblicos da atividade scio-

    histrica, sem o qual no conseguiria se relacionar com os demais seres humanos e, por

    outro lado, a participao do indivduo nas atividades culturalmente constitudas gera a

    necessidade de objetivao do indivduo como, por exemplo, quando a pessoa comunica, s

    outras, seu pensamento empregando a linguagem da qual se apropriou. importante frisar

    que tais processos s ocorrem pela mediao de outros indivduos e que sem os processos

    de objetivao e apropriao, no h humanidade.

    As objetivaes do gnero humano esto estruturadas em nveis distintos, sendo os

    principais o das objetivaes genricas em-si e o das objetivaes genricas para-si. O

    primeiro desses nveis seria aquele constitudo pelas objetivaes humanas necessrias

    vida cotidiana. Fazem parte desse grupo os objetos, a linguagem falada e os costumes.

    Esse nvel considerado um em-si porque as pessoas se relacionam espontaneamente

    com essas objetivaes na cotidianidade, delas se apropriando de maneira pragmtica, em

    decorrncia do convvio social. Uma criana aprende a falar a lngua materna sem que para

    isso seja necessrio da parte dela ou das pessoas que com ela se relacionam a

    compreenso de como esse processo acontece.

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    O nvel das objetivaes genricas para-si seria o mais elevado e no

    imprescindvel s finalidades pragmticas da vida cotidiana. Pertencem a esse grupo a

    cincia, a arte e a filosofia. Diferentemente das objetivaes do primeiro grupo, essas

    requerem a superao da espontaneidade e do imediatismo da cotidianidade. Se por meio

    dos objetos, da linguagem falada e dos costumes, os seres humanos constituem o gnero

    humano em-si, por meio da cincia, da arte e da filosofia constituem o gnero humano para-

    si. Disso decorrem tambm os nveis da individualidade em-si e da individualidade para-

    si (DUARTE, 1993).

    Vale ressaltar, com base na anlise de Duarte (1993), que a passagem do cotidiano

    ao no cotidiano na vida dos seres humanos, bem como o controle do para-si sobre o em-si

    um processo dialtico de superao por incorporao. No h como considerar uma

    separao rgida entre o em-si e o para-si, pois ambas as esferas de objetivaes genricas

    no possuem uma existncia autnoma. O ser humano, ao superar sua cotidianidade,

    incorpora-a e avana s esferas no cotidianas, num processo de sntese dialtica entre as

    duas esferas.

    A passagem do em-si ao para-si no um processo simples, mas sim um processo

    que pode gerar conflitos, tanto na histria do gnero humano, como na formao do

    indivduo. E isso ocorre principalmente numa sociedade dividida em classes, onde a maioria

    das pessoas impossibilitada de se converter plenamente em humanidade para-si. Numa

    sociedade que at o ser humano adulto se apresenta desigualmente desenvolvido, h de se

    esperar tambm um impacto negativo sobre o desenvolvimento psicolgico da criana e do

    adolescente. Da a manifestao das crises da adolescncia, pois, numa sociedade

    contraditria e alienante, a crise na idade de transio torna-se um evento generalizado,

    gerando a aparncia de um fenmeno natural e quase insupervel.

    O indivduo para-si desfetichiza tanto sua relao com a sociedade e com o gnero,

    quanto sua relao consigo mesmo. E, neste contexto, podem surgir conflitos entre as

    motivaes particulares apropriadas de forma espontnea ao longo de sua vida e as

    motivaes genricas que, conscientemente, elegeu como valores fundamentais para sua

    vida. Tais conflitos podem acontecer na medida em que exista o que se poderia chamar de

    um descompasso entre a relao com as objetivaes genricas para-si e a capacidade

    de conduo da vida. (DUARTE, 1993, p. 198, grifos nossos).

    Porm, a partir da mediao com as esferas de objetivaes genricas para-si, o

    indivduo para-si pode dirigir sua vida cotidiana, hierarquizar, de maneira consciente, as

    atividades de sua vida. Segundo Duarte (1993), o individuo para-si capaz de distanciar-se

    de sua individualidade em-si, ele capaz de no consider-la como definitiva e natural e,

    sobretudo, ele capaz de transform-la. Nesse sentido, trata-se da luta permanente entre a

    manuteno da individualidade no plano da individualidade em-si alienada e a elevao da

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    individualidade ao plano do para-si, uma luta que longe de se esgotar na adolescncia,

    marcar toda a vida da pessoa.

    A educao escolar de adolescentes e a conduo consciente da vida cotidiana

    A adolescncia pode ser um perodo privilegiado para o processo da formao de

    uma individualidade para-si. Vigotski, ao analisar o desenvolvimento da personalidade na

    adolescncia, indicou a direo na qual ocorreria o desenvolvimento que vai da infncia

    vida adulta, bem como a funo da adolescncia como fase de transio:

    Para expressar melhor a diferena entre a criana e o adolescente utilizaremos a tese de Hegel sobre a coisa em si e a coisa para si. Ele dizia que todas as coisas existem no comeo em si, por com isto a questo no se esgota e no processo de desenvolvimento a coisa se converte em coisa para si. O homem, dizia Hegel, em si uma criana cuja tarefa no consiste em permanecer no abstrato e incompleto em si, mas em ser tambm para si, isto , converter-se em um ser livre e racional. Pois bem, essa transformao da criana do ser humano em si em adolescente o ser humano para si configura o contedo principal de toda a crise da idade de transio. (VYGOTSKI, 1996, p. 200, grifos nossos).

    Alm disso, o autor assevera que a cincia, a arte, a filosofia e demais esferas de

    objetivaes genricas para-si, podero ser apropriadas de forma aprofundada somente a

    partir da adolescncia, por meio do pensamento conceitual. Esse raciocnio pode ser

    dividido em dois pontos: o primeiro seria o de que o conhecimento dos processos essenciais

    da realidade s possvel por meio das abstraes e, portanto, nos termos de Vigotski,

    somente quando o indivduo torna-se capaz de pensar por conceitos que ele pode

    compreender a realidade para alm das aparncias, para alm do imediato; o segundo

    raciocnio refere-se a quando o indivduo, na ontognese, desenvolve o pensamento por

    conceitos e, para Vigotski, a partir da adolescncia.

    Porm, a formao dos verdadeiros conceitos, dos conceitos cientficos, no ocorre

    de maneira natural. Vygotski (2001) analisou especialmente a formao de dois tipos de

    conceitos, bem como as relaes existentes entre eles, a saber, os conceitos cotidianos e

    os conceitos cientficos. Os conceitos cotidianos so frutos da atividade cotidiana, da vida

    espontnea da criana, ao passo que a formao dos conceitos cientficos se d por meio

    da educao escolar. Os conceitos cientficos so frutos, portanto, da transmisso de

    conhecimentos sistematizados, por parte do trabalho pedaggico, e da apropriao deste

    contedo por parte do adolescente escolar.

    A apropriao dos contedos clssicos, sistematizados, por parte do aluno, muda a

    forma de seu pensamento, ou seja, forma-se o pensamento conceitual e este se torna a

    funo psicolgica dominante nesta idade. Vygotski (1996) afirma que todas as outras

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    funes se intelectualizam a partir do pensamento por conceitos, proporcionando ao

    adolescente um salto qualitativo da cotidianidade e espontaneidade para a intencionalidade,

    para o autodomnio da conduta.

    A apropriao das objetivaes genricas para-si importante para a formao

    consciente da concepo de mundo, possibilitando ao indivduo hierarquizar, de forma

    consciente, suas atividades da vida cotidiana, pois a concepo de mundo, segundo Heller

    (1991) a mediadora entre a vida cotidiana e a hierarquizao consciente das atividades

    humanas. Ademais, essa capacidade, do indivduo, de hierarquizao consciente das

    atividades constitutivas de sua cotidianidade, denominada por Heller de conduo da

    vida. Nas palavras da autora,

    Conduo da vida, portanto, no significa abolio da hierarquia espontnea da cotidianidade, mas to somente que a muda coexistncia da particularidade e da genericidade substituda pela relao consciente do indivduo com o humano-genrico e que essa atitude que , ao mesmo tempo, um engagement moral, de concepo de mundo, e uma aspirao auto-realizao e autofruio da personalidade ordena as vrias e heterogneas atividades da vida. (HELLER, 2004, p. 40, grifos no original).

    A conduo da vida, a construo da hierarquia consciente das atividades humanas,

    implica superao da espontaneidade. O indivduo para-si no conduzido pela vida

    cotidiana, mas ele quem a conduz, partindo da relao consciente que este tem com as

    objetivaes genricas para-si. Essa conduo consciente da vida cotidiana entendida

    aqui como liberdade, pois o ser humano conduz sua vida de forma voluntria. Heller afirma

    que, mesmo nos limites de uma sociedade dividida em classes sociais, possvel que o

    indivduo para-si hierarquize conscientemente suas atividades cotidianas:

    Como vimos, a conduo da vida no pode se converter em possibilidade social universal a no ser quando for abolida e superada a alienao. Mas no impossvel empenhar-se na conduo da vida mesmo enquanto as condies gerais econmico-sociais ainda favorecem a alienao. Nesse caso, a conduo da vida tona-se representativa, significa um desafio desumanizao, como ocorreu no estoicismo ou no epicurismo. Nesse caso, a ordenao da cotidianidade um fenmeno nada cotidiano: o carter representativo, provocador, excepcional, transforma a prpria ordenao da cotidianidade numa ao moral e poltica. (HELLER, 2004, p. 41, grifos no original).

    O elemento mediador entre a conduo da vida cotidiana e a relao consciente com

    as objetivaes genricas para-si a concepo de mundo (HELLER, 1991, p. 410). Com

    isso, pode-se considerar que os processos de formao da individualidade para-si

    apresentam-se de forma dialtica, ou seja, a apropriao das objetivaes genricas para-si

    gera a formao da concepo de mundo, isto , uma concepo de mundo para-si que,

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    consequentemente, possibilita o indivduo construir uma hierarquia consciente das

    atividades da vida cotidiana. Essa conduo da vida cotidiana, por sua vez, possibilita uma

    relao cada vez mais consciente com a genericidade para-si, gerando uma reformulao

    na concepo de mundo e assim, sucessivamente.

    Se, para Heller (1991), a conduo da vida se d pela mediao da concepo de

    mundo, pode-se inferir, portanto, que a adolescncia um importante perodo para a

    formao da capacidade de hierarquizao, de forma consciente, das atividades da

    cotidianidade (conduo da vida), visto que, para Vygotski (1996), nessa fase do

    desenvolvimento humano que ocorre a estruturao das snteses superires, quais sejam:

    a personalidade e a concepo de mundo.

    A formao da concepo de mundo para-si caracterizada pela superao da

    cotidianidade e do senso comum5. Pode ser aqui entendida como o processo de

    homogeneizao, ou seja, a sada da cotidianidade, como afirmou Heller (1991, p. 116).

    Para Vygotski (1995), a concepo de mundo tudo aquilo que caracteriza a

    conduta global do ser humano, a relao cultural da criana com o mundo exterior. Para o

    autor,

    O animal carece de uma concepo de mundo assim entendida e tampouco a tem, nesse sentido, a criana quando nasce. Nos primeiros anos de sua vida, s vezes at o perodo da maturao sexual, no existe nela uma concepo de mundo no verdadeiro sentido da palavra. mais uma atividade no mundo que uma concepo de mundo. Atribumos, portanto ao termo concepo de mundo um significado puramente objetivo da atividade da criana frente ao mundo em que vive. (VYGOTSKI, 1995, p. 328-329).

    A partir dessa relao cultural que tem a criana com o mundo exterior, e,

    especificamente, a partir da apropriao das objetivaes genricas para-si, forma-se o

    pensamento conceitual. E, de acordo com Vigotski, a concepo de mundo se estrutura

    sobre a base do pensamento por conceitos. Por sua vez, a formao de novas funes

    psicolgicas superiores constitui um processo nico centrado na formao de conceitos,

    estruturando, deste modo, a personalidade e a concepo de mundo do adolescente.

    No desenvolvimento de novas funes psicolgicas superiores, desenvolve-se o

    autodomnio da conduta que, fazendo um paralelo com as asseres de Heller (1991; 2004)

    e Duarte (1993), tal processo pode ser considerado como a capacidade de hierarquizao

    consciente das atividades cotidianas do adolescente.

    5 Porm, faz-se necessrio dizer que a concepo de mundo no se reduz apenas aos aspectos

    mentais, pois nesse caso, seria uma apologia aos aportes tericos de uma filosofia idealista. A transformao da mente humana, portanto, se d pela atividade. Para o materialismo histrico-dialtico no h dicotomia entre objetivo e subjetivo, teoria e prtica etc.

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    Para Vigotski, o desenvolvimento psquico na adolescncia caracterizado pela

    ascenso das funes psicolgicas, bem como pela formao de snteses superiores. Cabe

    dizer que, neste sentido, na histria do desenvolvimento psquico do adolescente

    predomina uma estrita hierarquia (grifos nossos). Ou seja, as diversas funes como a

    ateno, a memria, a percepo, o pensamento, no se desenvolvem de maneira isolada,

    mas num complexo sistema hierrquico, cuja funo central e condutora a funo de

    formao de conceitos. Todas as restantes funes se unem a essa formao nova,

    integram com ela uma sntese complexa, se intelectualizam, se organizam sobre a base do

    pensamento por conceitos. (VYGOTSKI, 1996, p. 119).

    Neste contexto, Vygotski (1996, p. 230-231), afirma que as funes psquicas

    superiores se embasam no domnio do comportamento, o que permite inferir que tal domnio

    condio para a hierarquizao consciente das atividades constitutivas da vida cotidiana

    do indivduo. Alm disso, o domnio do comportamento, ou, a hierarquizao consciente das

    atividades humanas, a conduo da vida, no pode ser realizado sem a inteligibilidade do

    real, mediado pelo pensamento por conceitos. Portanto,

    [...] somente quando temos presente o domnio da conduta podemos falar sobre a formao da personalidade. Mas, o domnio pressupe, em qualidade de premissa, o reflexo na conscincia, o reflexo em palavras da estrutura das prprias operaes psquicas [...]. Mas a subordinao das prprias aes ao prprio poder exige necessariamente, como premissa, a tomada de conscincia destas aes. (VYGOTSKI, 1996, p. 230, grifos nossos).

    Da a necessidade da educao escolar, ou seja, a necessidade de transmisso

    contedos sistematizados (SAVIANI, 2011), como condio necessria para a formao do

    pensamento conceitual, isto , para a capacidade de conhecimento para alm das

    aparncias. Pois a tomada de conscincia a inteligibilidade do real possibilita a

    subordinao do comportamento, ou, em outras palavras, possibilita que o adolescente

    hierarquize, de maneira consciente, suas atividades cotidianas. O novo comportamento do

    homem se transforma em comportamento para si, o homem toma conscincia de si mesmo

    como de uma determinada unidade. Este o resultado final e o ponto central de toda a

    idade de transio. (VYGOTSKI, 1996, p. 231).

    Davdov e Mrcova (1987), ao apresentarem o resultado de um ensino experimental

    que se prolongou por mais de dez anos em Moscou, asseveraram que um ensino

    intencional e dirigido, por parte do professor, pode capacitar o adolescente a hierarquizar

    suas atividades de estudo, possibilitando, deste modo, o desenvolvimento de formas mais

    complexas de autocontrole do prprio comportamento. Em suas palavras,

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    No ensino experimental se alcana formar nos adolescentes esta nova posio para sua atividade. [...] Sobre esta base se forma um novo tipo de operaes, que consiste na capacidade dos escolares de hierarquizar o sistema de suas prprias aes de estudo, subordin-las entre si, utilizar os dados de uma atividade como meio para cumprir outra. Posteriormente nascem formas mais complexas de autocontrole antecipatrio, que abarcam blocos cada vez maiores da atividade, garantindo a correo de sua realizao pela orientao para o resultado mais distante, apartado. Estes dados permitem chegar a uma concluso preliminar sobre a possibilidade de estruturar nos adolescentes formas suficientemente acabadas de auto-organizao da atividade intelectual, o que diverge das ideias, existentes na psicologia evolutiva, sobre as dificuldades da regulao voluntria nesta idade. (DAVDOV; MRCOVA, 1987, p. 188).

    Para os autores acima citados, um ensino dirigido possibilita a formao do carter

    voluntrio da atividade intelectual, que constitui um novo vetor do desenvolvimento psquico

    na idade de transio. Os adolescentes, de acordo com as pesquisas de Davdov e Mrcova

    (1987, p. 188), so capazes de formar uma reflexo sobre sua prpria atividade por meio

    dos conceitos cientficos. Esta reflexo a operao inicial, sobre cuja base na escola

    mdia pode implantar a peculiar atividade de direo do prprio comportamento. A

    concluso que os autores chegaram a seguinte:

    Neste plano o estudo experimental das possibilidades evolutivas confirma, em determinada medida, a tese de Vigotski onde a tomada de conscincia e o domnio dos prprios processos psquicos passa pelas portas dos conceitos cientficos [...] Em outras palavras, precisamente a mudana do tipo de pensamento na idade escolar precoce produz peculiaridades qualitativamente novas do desenvolvimento intelectual na idade adolescente. (DAVDOV; MCOVA, 1987, p. 189, grifos no original).

    O excerto acima novamente legitima a importncia de um ensino dirigido, intencional

    (SAVIANI, 2011), focado na transmisso dos conceitos cientficos, possibilitando, assim, o

    domnio dos prprios processos psquicos e a capacidade de hierarquizao consciente das

    atividades humanas, caractersticas eminentemente de uma individualidade para-si.

    Consideraes finais

    Considerando-se que, para a psicologia histrico-cultural a adolescncia um

    momento privilegiado tanto pelo desenvolvimento do pensamento por conceitos, como pela

    consequente formao da concepo de mundo e desenvolvimento da autoconscincia e;

    para a teoria da individualidade para-si, um dos fatores decisivos na formao humana o

    desenvolvimento de relaes conscientes entre o indivduo e as esferas mais elevadas de

    objetivao do gnero humano como a cincia, a arte e a filosofia; pode-se inferir que a

    educao escolar contribui decisivamente, por meio do ensino do conhecimento

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    sistematizado, para a formao da individualidade dos adolescentes no sentido da

    superao dos limites da vida cotidiana.

    Diante da especificidade da educao escolar, qual seja: a socializao do

    conhecimento sistematizado (SAVIANI, 2011), conclui-se que a prtica pedaggica,

    caracterizada pela transmisso de contedos clssicos, pode proporcionar o

    desenvolvimento psquico do aluno, conduzindo-o no processo de superao por

    incorporao das funes psicolgicas espontneas s funes psicolgicas voluntrias, em

    suas mximas possibilidades, ou seja, a passagem do em-si ao para-si.

    importante dizer que, ao transmitir o saber sistematizado, no cotidiano, isso no

    significa que a educao escolar deva anular o cotidiano do aluno, alis, isso seria

    impossvel. O objetivo de transmitir, ao aluno, os contedos no cotidianos, a possibilidade

    de formao de indivduos que mantenham uma relao cada vez mais consciente com a

    cotidianidade, mediada pela apropriao das objetivaes genricas para-si. Trata-se,

    portanto, de abrir possibilidades para que o indivduo no seja mais conduzido por sua

    cotidianidade, favorecendo a formao de uma individualidade que hierarquize

    conscientemente a atividade da vida cotidiana.

    Alm da genericidade em-si, o indivduo para-si edifica tambm sua vida sobre a

    relao consciente com as objetivaes genricas para-si. Tal relao o torna capaz de

    avaliar criticamente as produes genricas em-si e, em alguns casos, recha-las, a partir

    do momento em que suas normas, exigncias e conhecimentos se apresentem em oposio

    liberdade e universalidade da vida humana. Essa conduo da vida, portanto, exige

    uma relao consciente com a genericidade a qual s conquistada por meio da

    transmisso e assimilao dos contedos sistematizados.

    REFERNCIAS ANJOS, R. E. O desenvolvimento psquico na idade de transio e a formao da individualidade para-si: aportes tericos para a educao escolar de adolescentes. 2013, 167 f. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Cincias e Letras, Universidades Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, UNESP, Araraquara, 2013. DAVDOV, V.; MRCOVA, A. El desarrollo del pensamiento en la edad escolar. In: DAVDOV, V.; SHUARE, M. La psicologa evolutiva y pedaggica en la URSS: Antologa. Mosc: Editorial Progreso, 1987. p. 173-193. DUARTE, N. A individualidade para-si: contribuio a uma teoria histrico-social da formao do indivduo. Campinas, SP: Autores Associados, 1993. (Coleo contempornea). HELLER, A. Sociologa de la vida cotidiana. Barcelona: Ediciones Pennsula, 1991. HELLER, A. Estrutura da vida cotidiana. In: ______. O cotidiano e a histria. 7. ed. So Paulo: Paz e Terra, 2004. p. 41.

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