A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas o caso google

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NETO, João Costa. "A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas: o caso Google. "Revista Brasileira de Estudos Constitucionais”, Belo Horizonte, ano 6, n. 22, p. 457-487, abr./jun. 2012. [a paginação original está indicada entre colchetes no texto - se citar o trabalho, utilize-a] A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS: O CASO GOOGLE João Costa Neto 1 Professor Substituto de Direito Administrativo na UnB. RESUMO: O objetivo deste trabalho é demonstrar as implicações jurídicas observadas no modus operandi da empresa Google, no que concerne à transgressão a direitos fundamentais dos usuários, ao não respeito aos princípios da concorrência de mercado e ao descumprimento a decisões judiciais decorrentes de processos movidos contra ela, entre outros. No contexto do trabalho, são discutidos os argumentos da empresa para os procedimentos que adota, bem como duas tendências da literatura para lidar com o problema: a primeira defende a vinculação direta ou imediata de particulares aos direitos fundamentais, o que significa dispensar a eles um tratamento idêntico ao do Estado; a segunda, defende uma vinculação indireta ou mediata. Conclui-se pela urgente e imprescindível necessidade de regulação dos limites de atuação de entidades como o Google e semelhantes, para fins de preservação dos vários direitos dos usuários, envolvidos nos atos de busca e de acesso ao referido site. Palavras-chaves: direitos fundamentais; eficácia horizontal; livre concorrência; Google. ABSTRACT: The goal of this paper is to demonstrate the legal implications that derive from the modus operandi of Google. It involves the transgression of fundamental rights of users, the disregard for principles that regulate market competition and the failure to enforce decisions resulting from lawsuits filed against the company, among other things. Furthermore, the company's arguments in favor of the procedures it adopts are discussed in the text. In order to face the problems that arise, two roughly identifiable constitutional trends are approached: one that defends the direct or immediate binding effect of the fundamental rights of individuals against companies as Google, giving it a treatment identical to that reserved for the state; and another that defends the indirect or mediate binding effect of fundamental rights. The author concludes that there is an urgent and imperative need to regulate the limits of performance of entities such as Google and the like, on pain of impairment of some of the various fundamental rights of the users involved. Key words: fundamental rights; binding effect on private relations; Free market; Google. 1 JOÃO COSTA NETO é Doutorando e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), sob a orientação do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Mestrando em Direito Romano pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco/Universidade de São Paulo (USP). Bacharel e Licenciado em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Foi, durante um ano, aluno especial do Mestrado em Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). É Professor Substituto de Direito Administrativo na UnB e Advogado em Brasília. Student Member da Society for the Promotion of Roman Studies (Fundada em 1910) e da Society for the Promotion of Hellenic Studies (Fundada em 1879).

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O objetivo deste trabalho é demonstrar as implicações jurídicas observadas no modus operandi da empresa Google, no que concerne à transgressão a direitos fundamentais dos usuários, ao não respeito aos princípios da concorrência de mercado e ao descumprimento a decisões judiciais decorrentes de processos movidos contra ela, entre outros. No contexto do trabalho, são discutidos os argumentos da empresa para os procedimentos que adota, bem como duas tendências da literatura para lidar com o problema: a primeira defende a vinculação direta ou imediata de particulares aos direitos fundamentais, o que significa dispensar a eles um tratamento idêntico ao do Estado; a segunda, defende uma vinculação indireta ou mediata.

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[a paginação original está indicada entre colchetes no texto - se citar o trabalho, utilize-a]

A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES

PRIVADAS: O CASO GOOGLE

João Costa Neto1 Professor Substituto de Direito Administrativo na UnB.

RESUMO: O objetivo deste trabalho é demonstrar as implicações jurídicas observadas no modus operandi da empresa Google, no que concerne à transgressão a direitos fundamentais dos usuários, ao não respeito aos princípios da concorrência de mercado e ao descumprimento a decisões judiciais decorrentes de processos movidos contra ela, entre outros. No contexto do trabalho, são discutidos os argumentos da empresa para os procedimentos que adota, bem como duas tendências da literatura para lidar com o problema: a primeira defende a vinculação direta ou imediata de particulares aos direitos fundamentais, o que significa dispensar a eles um tratamento idêntico ao do Estado; a segunda, defende uma vinculação indireta ou mediata. Conclui-se pela urgente e imprescindível necessidade de regulação dos limites de atuação de entidades como o Google e semelhantes, para fins de preservação dos vários direitos dos usuários, envolvidos nos atos de busca e de acesso ao referido site.

Palavras-chaves: direitos fundamentais; eficácia horizontal; livre concorrência; Google.

ABSTRACT: The goal of this paper is to demonstrate the legal implications that derive from the modus operandi of Google. It involves the transgression of fundamental rights of users, the disregard for principles that regulate market competition and the failure to enforce decisions resulting from lawsuits filed against the company, among other things. Furthermore, the company's arguments in favor of the procedures it adopts are discussed in the text. In order to face the problems that arise, two roughly identifiable constitutional trends are approached: one that defends the direct or immediate binding effect of the fundamental rights of individuals against companies as Google, giving it a treatment identical to that reserved for the state; and another that defends the indirect or mediate binding effect of fundamental rights. The author concludes that there is an urgent and imperative need to regulate the limits of performance of entities such as Google and the like, on pain of impairment of some of the various fundamental rights of the users involved.

Key words: fundamental rights; binding effect on private relations; Free market; Google.

1 JOÃO COSTA NETO é Doutorando e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), sob a orientação do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Mestrando em Direito Romano pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco/Universidade de São Paulo (USP). Bacharel e Licenciado em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Foi, durante um ano, aluno especial do Mestrado em Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). É Professor Substituto de Direito Administrativo na UnB e Advogado em Brasília. Student Member da Society for the Promotion of Roman Studies (Fundada em 1910) e da Society for the Promotion of Hellenic Studies (Fundada em 1879).

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1 INTRODUÇÃO

Consolidou-se, na teoria geral dos direitos fundamentais, a visão de que esses direitos

não são apenas oponíveis ao Estado, mas também aos particulares. Deu-se a esse fenômeno,

no Brasil e no estrangeiro, o nome de EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA ORDEM JURÍDICO-

PRIVADA, embora alguns prefiram [457] o menos acurado EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS (horizontale Anwendbarkeit der Grundrechte) ou mesmo, em língua alemã,

Drittwirkung. Muito se tem falado acerca desse assunto e, em particular, sobre a oposição

entre uma eficácia direta ou imediata de tais direitos (unmittelbare Wirkung der Grundrechte),

em oposição a outra indireta ou mediata (mittelbare Wirkung der Grundrechte).2

Ao que tudo indica, a doutrina constitucional brasileira hodierna pouco tem falado sobre

a importância da oponibilidade dos direitos fundamentais diante de grandes grupos

econômicos e de sociedades empresárias como o Google, Inc. que, atualmente, detém não

apenas o controle do homônimo instrumento de busca na web (web search engine), como

também do Youtube, da rede social Orkut e do Blogger, o maior hospedeiro de blogs no

mundo.

A ramificação e a capilaridade dos serviços prestados pelo Google geram importantes e

complexos questionamentos de ordem jurídico-constitucional. Suponhamos, a título de

exemplo, que os usuários da ferramenta de busca do Google que digitassem a palavra

2 A respeito, cf. ENGLE, Eric. “Third Party Effect of Fundamental Rights (Drittwirkung).” In: Hanse Law Review. vol. 5, n. 2, 2009. pp. 165-173; GANTEN, Ted Oliver. Die Drittwirkung der Grundfreiheiten. Berlin: Duncker & Humblot, 2000; STERN, Klaus. Das Staatsrecht der Bundesrepublik DeutschlandBand III/1: Allgemeine Lehren der Grundrechte. München: C.H. Beck, 1988, § 76. Entre nós, cf. SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004; SOMBRA, Thiago. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas: a identificação do contrato como ponto de encontro dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004; VALE, André Rufino do. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004; KAUFMANN, Rodrigo. Dimensões e Perspectivas da Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais: Possibilidade e limites de aplicação no Direito Constitucional brasileiro. Tese para obtenção de título de Mestre em Direito apresentada em 2004 e orientada pelo Professor José Carlos Moreira Alves; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. “Associações, Expulsão de Sócios e Direitos Fundamentais.” Direito Público, vol. 1, n. 2, Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, out./dez. 2003; SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 11ªed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012; AFONSO DA SILVA, Virgílio. A constitucionalização do Direito: Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005.

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“restaurante” obtivessem sempre como resultado, logo no topo da lista de referência, a

resposta McDonald’s. Imaginemos, ainda, que o grupo Google, dono da rede social Orkut

(como dito), vedasse qualquer menção ao termo Facebook em seus resultados de buscas, a

fim de que o Orkut ganhasse papel de maior proeminência contra seu maior rival.

Esses dois exemplos ilustram usos anticoncorrenciais de uma posição dominante de

mercado relevante, ou seja, o Google, valendo-se de seu sucesso como ferramenta de busca na

Internet e do papel destacado que exerce no mercado de web search engines, institui práticas

para diminuir ou aniquilar a concorrência em outras áreas do mercado, nas quais parceiros

negociais ou ramificações do grupo empresarial ao qual ele pertence atuam. Tal forma de

proceder configurará, eventualmente, não apenas concorrência desleal, mas também infração

da ordem econômica.3 Além disso, por si só, [458] implicaria problemas a serem resolvidos

eminentemente pelo direito econômico, à luz de princípios como o da livre concorrência, o da

eficiência gerada no respectivo mercado de bens e serviços e assim por diante.

Mas ainda há outros importantes questionamentos, ao nível de direito constitucional,

que surgem a partir do caso Google. Neste texto, busca-se demonstrar como alguns desses

questionamentos passam pelo desrespeito a direitos fundamentais.

2 CENSURA PRIVADA?

A violação a direitos fundamentais perpetradas pelo Google, como gigante econômico, é

um fato que desafia a dogmática tradicional dos direitos fundamentais, a qual enxerga tal

instituição como um simples particular.

De maneira análoga ao exemplo citado, podemos imaginar a vedação, por parte do

sistema de busca do Google, de qualquer resultado contendo o nome de um dado candidato à

presidência da república (a fim de prejudicar sua publicidade) ou mesmo a vedação de termos

3 Nesse contexto, cf. FRITZSCHE, Jörg. Wettbewerbs- und Kartellrecht. Baden-Baden: Nomos, 2012; EMMERICH, Volker. Kartellrecht: Ein Studienbuch. München: C.H. Beck, 2012.

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como “nazismo” ou, quem sabe, “comunismo”. Isso não implicaria uma “censura privada”

(private censorship)?4

2.1 E a política de privacidade?

Em 2012, o Google alterou suas políticas de privacidade (privacy policies), de modo que

a grande maioria dos dados fornecidos por um consumidor a um dos serviços prestados pelo

Google passou a ser partilhado com todos os outros. Dessarte, se se cadastram dados no

Orkut, esses dados (e-mail, nome, idade, local onde mora e outros) são automaticamente

partilhados com o Youtube, o Blogger e a ferramenta de busca do Google. Igualmente, os

dados são complementares entre si, de maneira que, fornecendo-os a um dos prestadores de

serviços, eles são comunicados aos demais. O Google é capaz de formar, dessa maneira, uma

extensa, difusa e penetrante rede de dados sobre seus usuários.

A alteração, amplamente noticiada pela mídia, tem sido questionada na União Europeia

por, supostamente, violar as regras de proteção a dados privados e, como se pode argumentar

ainda, por ferir o direito à autodeterminação informativa (Recht auf informationelle

Selbstbestimmung), consagrado no direito alemão e, em especial, na jurisprudência do

Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht).5

[459]

2.2 Google-Street-view

O programa Google-street-view gera dúvidas quanto à inobservância de direitos

fundamentais. Nesse programa, é possível visualizar, com qualidade, ruas de inúmeras

cidades ou mesmo imagens de lugares como o Rio Amazonas. Ocorre, entretanto, que as

imagens, feitas por satélite, expõem os rostos e imagens de diversas pessoas que jamais foram

consultadas acerca desse tipo de uso. É possível, com o uso do cursor, percorrer as ruas de

grandes cidades como Londres, Nova York e São Paulo, visualizando pessoas, lugares e

diversos objetos, como automóveis e as respectivas placas de identificação (license plates).

4 cf. NUNZIATO, Dawn. Virtual Freedom: Net Neutrality and Free Speech in the Internet Age. (Stanford Law Books). Stanford: Stanford University Press, 2009.5 Doravante, BVerfG.

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Por um lado, isso parece ir de encontro ao direito geral da personalidade, uma vez que o

Google, por meio de anúncios, obtém lucro, utilizando-se de imagens de lugares (muitos dos

quais têm donos) e pessoas, sem qualquer autorização para esse fim.

Cumpre esclarecer que, na política de privacidade do Google-street-view, há a opção de

submeter um pedido ao provedor para que se borre uma dada imagem (blurring request).

Assim, pode-se requerer que as imagens da pessoa ou da própria casa ou automóvel sejam

borradas, tornando-se não identificáveis. É certo que esse tipo de controle é sempre ex post e

um tanto casuístico, mormente por não se poder saber quando e onde se foi fotografado. Se

alguém, por hipótese, ingressar em juízo contra o Google, a fim de ter todas as suas imagens

retiradas, é certo que nem o próprio Google terá como fazê-lo.

É bem possível que a maioria das pessoas que tiveram as placas de seus automóveis ou

suas imagens fotografadas e disponibilizadas na Internet nunca venham a tomar conhecimento

desse fato, porque as imagens não são obtidas em tempo real. Logo, um dado indivíduo pode

ter sido fotografado via satélite enquanto ia à farmácia ou ao supermercado e talvez nunca

saiba que sua imagem, associada àquele lugar, encontra-se na Internet, podendo ser vista por

milhões de pessoas.

3 A TRANSTERRITORIALIDADE DO GOOGLE E A DIFICULDADE DE FAZER

CUMPRIR DECISÕES JUDICIAIS

Há outro problema, que diz respeito à exequibilidade de decisões de Estados nacionais

tomadas contra o Google. O Estado brasileiro não pode “invadir” a sede da empresa (rectior:

sociedade empresária) Google, de forma que será sempre lícito, a ela, conquanto talvez pouco

lucrativo, simplesmente encerrar suas atividades em um dado lugar, como o Brasil, em vez de

submeter-se às políticas de privacidade que se queiram impor a ela.

[460]

Porém, esse cenário parece pouco provável, já que o Google escolheu por aceitar, até

mesmo, as rígidas regras impostas pelo governo chinês, quando passou a operar diretamente

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naquele país. Saliente-se que isso envolveu, na prática, excluir, integral e completamente,

certos resultados das buscas feitas pelos usuários, resultados esses considerados impróprios

pelo governo chinês, em evidente medida de censura prévia. As questões emergem do assunto

são: se em países autoritários, o Google atende às regras impostas pelo governo, por que, em

países democráticos, ele não se submete às normas jurídicas internas ou, ainda, que meios de

fiscalização há para que ele se submeta às normas jurídicas internas em países democráticos?

Para beneficiar sócios econômicos e desfavorecer concorrentes ou, simplesmente, por

questões ideológicas, seria possível, para o Google, omitir e manipular as informações e

resultados das buscas feitas por milhões de pessoas?

Quanto ao poderio de grupos econômicos frente a Estados soberanos, não se deve

menosprezar o enorme poder de barganha que detém o Google: primeiro, porque se estima

que o grupo, como um todo, valia mais de 72 (setenta e dois) bilhões de dólares em 2011,

valor superior ao PIB de 130 (cento e trinta) dos, aproximadamente, 190 (cento e noventa)

países do globo; segundo, porque o Google é um ator transterritorial, de modo que é cada vez

mais difícil, embora não impraticável, impor a vedação de um conteúdo ou de uma prática

dentro de um limite territorial, quando o “espaço virtual” não se organiza territorialmente.

3.1 O caso “Daniela Cicarelli”

Em setembro de 2006, um vídeo da atriz e modelo Daniela Cicarelli com seu namorado

Renato Malzoni espalhou-se na Internet. O vídeo mostrava ambos em situação de intimidade

em uma praia espanhola. Embora o local fosse público, veículos de comunicação valeram-se

das cenas para ganhar dinheiro.

Em face disso, ajuizou-se uma ação contra os seguintes réus: IG - Internet Group do

Brasil Ltda., Organizações Globo de Comunicação e Youtube, Inc. Após muito tempo de

litígio em mais de uma instância, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo condenou os

réus a retirarem de seus sites o vídeo em questão, impondo multa diária de R$ 250.000

(duzentos e cinquenta mil reais), em caso de descumprimento. A sentença não foi cumprida

pelo Youtube, e o DESEMBARGADOR ÊNIO SANTARELLI ZULIANI proferiu uma decisão ameaçando

impedir o acesso de usuários brasileiros ao site de compartilhamento de vídeos. Nela, o

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magistrado invocou um parecer técnico que afirmava ser relativamente [461] fácil bloquear o

acesso ao vídeo, mesmo que ele estivesse hospedado em sites estrangeiros, já que tudo passa

pelo crivo dos provedores brasileiros. Os fatos indicam que o parecer estava certo, uma vez

que, após a longissima via crucis, de anos, o vídeo não mais se encontra disponível nas

páginas de quaisquer dos mencionados réus.

Essa capacidade que o Google, de fato possui, de retirar vídeos, faz lembrar das palavras

de THOMAS HOBBES, em sua obra De Ciue. Nela o autor diz sobre o Estado: "Nam qui satis

habet uirium ad omnes protegendos, satis quoque habet ad omnes opprimendos."6 7 Afinal, se

o Google pode usar todo esse poder para o bem, isto é, para cumprir uma ordem judicial

tendente a cessar uma lesão ao direito geral da personalidade, é certo que ele também pode

valer-se dessa habilidade para fins escusos. Daí a necessidade, sobre a qual se falará mais

adiante, de imposição de um controle externo.

Esse caso demonstrou a dificuldade do Poder Judiciário de fazer valer suas decisões

nesses âmbitos, bem como a pouca coercitividade de multas astreintes, ante o exacerbado

poderio econômico de entidades como Youtube, que é propriedade do Google. Esse tipo de

execução indireta é ainda menos efetivo quando se lembra a possibilidade de redução

equitativa da multa, que é prática comum entre os juízes brasileiros.

Dessa maneira, após muito, muito tempo descumprindo a decisão, ao invés de pagar a

integralidade da multa (que pode chegar a valores altíssimos, por ser diária), o réu deixa de

pagar o valor total. É cediço que isso favorece o descumprimento de decisões e obrigações, o

que, por conseguinte, dificulta o trabalho do Poder Judiciário. As decisões mais recentes no

Superior Tribunal de Justiça (STJ) indicam uma tendência, cada vez mais presente, de essa

Corte não reduzir os valores das astreintes.8

3.2 O caso “Carolina Dieckmann”

6 HOBBES, Thomas. De Ciue. Oxford: Clarendon Press, 1983. p. 1437 “Pois quem tem forças suficientes para todos proteger, tem também para todos oprimir.” (tradução livre do autor)8 cf., por todos, o acórdão do REsp de n. 1.229.335/SP, de relatoria da MIN. NANCY ANDRIGHI, j. em 17/04/2012.

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Em maio de 2012, os jornais brasileiros noticiaram que 36 (trinta e seis) fotos da atriz

Carolina Dieckmann, nua, haviam sido divulgadas na Internet. Segundo informações de

advogados da atriz, cerca de 20 dias antes da divulgação, ela recebera e-mail pedindo R$

10.000 (dez mil reais) em troca da não [462] publicação das fotos. De acordo com os jornais,

a atriz procurou a polícia e relatou o ocorrido.9

Quando, finalmente, as fotos foram divulgadas na Internet, os advogados da atriz

obtiveram uma decisão liminar em sede de ação inibitória, para que as fotos não fossem

divulgadas na rede mundial. Entidades como o Google não apenas afirmaram não ter como

exercer controle sobre a divulgação desse material, como ser, tal procedimento, contrário às

políticas da empresa.10

Recorde-se, com amparo nos jornais, que a atriz brasileira nunca pousou nua e que,

apesar de tratar-se de figurar pública, ela fez as fotos em sua intimidade, sem qualquer

interesse de vê-las divulgadas.

3.3 A particularidade de alguns atores sociais privados como o Google

Vive-se, na atualidade, um problema peculiar: a criação da estrutura das redes de

comunicação passou a ser controlada predominantemente por instituições privadas, que não se

submetem ao controle estatal. Assim, esses detentores de poder privado (private

Machtträger), sobretudo quando possuidores de uma posição muito fortalecida ou

hegemônica, não estão sujeitos aos controles próprios do Estado.

Com efeito, em princípio, eles não têm obrigação de observar os valores democráticos

ou o atributo do Estado de Direito (Rechtsstaatlichkeit). Tampouco há compromisso com a

isonomia ou a igualdade de chances, o que suscita questionamentos acerca do tipo de

influência negativa que esses veículos podem exercer, ora para favorecer alguns, ora para

9 ARRAIS, Daniela. “Supostas fotos de Carolina Dieckmann nua vazam na internet.” Folha de S. Paulo, São Paulo, 4 maio 2012.10 ARRAIS, Daniela. “Carolina Dieckmann foi chantageada antes de ter fotos divulgadas, diz advogado.” Folha de S. Paulo, São Paulo, 5 maio 2012.

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desfavorecer outros.11 Que tipo de limites constitucionais ou infraconstucionais podem ser

opostos ao Google, a fim de delinear a fronteira entre sua utilização regular e o abuso? Que

precauções de defesa contra o abuso (Vorkehrungen der Mißbrauchsabwehr) têm sido

implementadas?

Esse fato torna-se preocupante a partir da posição de destaque assumida por veículos

como Google, Youtube e outros, tanto na disseminação de tendências de consumo, de

comportamento e outros, como igualmente na própria formação da vontade coletiva. A

Internet tornou-se um poderoso meio [463] de debate político, e vem sendo utilizada, amiúde,

em campanhas eleitorais. A falta de neutralidade por parte desses veículos pode gerar

consequências ponderáveis, senão nefastas. Na história brasileira recente, assistiu-se, por

exemplo, à manipulação de imagens de debates eleitorais por emissoras de televisão, inclusive

na campanha presidencial de 1989. Da mesma forma que esse ocorrido exerceu impacto em

nossa história política e, possivelmente, manchou, ao menos em parte, o processo eleitoral de

então, é possível cogitar acerca da potencial aptidão que veículos como o Google têm para

agir analogamente.

Sobre a liberdade de expressão em meios virtuais, em texto publicado em vários jornais

do mundo, JEREMY BROWNE, membro da House of Commons inglesa e Ministro das Relações

Exteriores do Reino Unido, afirmou que:

The overriding challenge is that 95 percent of the internet is owned by

private companies, so to guarantee an open and innovative internet,

governments must work with business, as well as with civil society, on how

to safeguard and enhance online freedoms. This is why we took the decision

to include internet-related companies at the London Conference on

Cyberspace in November last year – which, in international diplomatic

terms, was ground-breaking. A limited forum where foreign minister talked

to foreign minister would not have worked – which is why we invited the

practitioners at the front of the digital revolution.

11 HOFFMANN-RIEM, Wolfgang (1998). “Informationelle Selbstbestimmung in der Informationsgesellschaft.” In: HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Offene Rechtswissenschaft: Ausgewählte Schriften und gebleitende Analysen. Stuttgart: Mohr Siebeck, 2010. p. 510

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So Britain is committed to helping governments, business and individuals to

overcome threats to internet freedom. We are supporting businesses to

enhance internet freedom through responsible commercial practice. Human

rights could, for example, form part of a company’s risk analysis prior to

investing in a country.12

Como se nota, o problema que se coloca diante do direito constitucional hodierno é

diverso daqueles habitualmente enfrentados pela dogmática dos direitos fundamentais e, como

tal, está a exigir soluções compatíveis com sua singularidade.

Questiona-se, então, até que ponto é possível deixar de impor-se balizas estatais aos

entes que controlam esses poderosos conglomerados privados. Ressalte-se que, enquanto o

Estado pauta sua conduta em decisões tomadas com base em leis democraticamente

promulgadas, a postura institucional do [464] Google, por exemplo, é definida à revelia de

qualquer debate minimamente amplo. Há uma imposição, por parte da empresa e de seus

administradores, de fatores que podem ser determinantes na sociedade e que reverberam na

vida de milhões e milhões de cidadãos.

4 A POTENCIALIDADE DO ABUSO DE PODER E A ASSIMETRIA

Os critérios com base nos quais são selecionados os resultados de uma determinada

busca no Google deveriam ser mais transparentes do que são. A omissão de um nome ou um

termo pode ser tendenciosa ou arbitrária. Não se sabe, ao certo, se tais dados são manipulados

e, tampouco, há instrumentos de controle impostos pela lei, capazes de traçar exigências de

transparência e equidade.

Os riscos de abuso de poder (Risiken des Machtsmissbrauchs) são uma realidade,

especialmente em virtude das elevadas assimetrias de poder (erhebliche Machtasymmetrien)13

das partes envolvidas. De um lado, os usuários dos serviços Google e, do outro, o poderoso

grupo econômico, que delibera sem ter que consultar o público antes de tomar suas decisões.

12 BROWNE, Jeremy. World Press Freedom Day 2012. Disponível em: <http://ukinmontserrat.fco.gov.uk/en/news/?view=News&id=760878782> Acesso em 3 de junho de 2012.13 HOFFMANN-RIEM, Wolfgang (2008). op. cit., p. 529

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Não há qualquer tipo de submissão dessas decisões à esfera pública ou crivo apto a filtrar

alguns dos interesses privados que motivam tais decisões.

O favorecimento a algum tipo de ideologia ou a algum grupo político nos resultados das

buscas ou no compartilhamento de vídeos (no caso do Youtube) é capaz de implementar ou de

extinguir tendências. Teoricamente, o cenário pode soar surreal, mas imagine-se, por

exemplo, se a indicação de um local deixa de constar no Google Maps. Cada vez mais pessoas

usam esse recurso para procurar indicações de atrações a visitar, de locais para alimentar-se,

etc. Não se pode menosprezar o quanto a vida de hoje é perpassada pela presença de entidades

privadas. Se essa presença é menos sentida, embora já expressiva, ao que tudo indica, ela será

cada vez maior, gerando a necessidade de traçar-se, desde logo, os limites de atuação de uma

instituição como o Google.

É de lembrar-se, por exemplo, que certos links do sistema de busca do Google são

patrocinados. Esses “links patrocinados” são formas de publicidade e, no resultado de buscas,

aparecem sempre antes dos demais. Há, inclusive, uma parte do Google responsável por

administrar esse tipo de propaganda; trata-se do AdWords.

[465]

4.1 A oponibilidade dos direitos fundamentais como instrumento de contraposição

A sugestão deste artigo é que a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas,

a ser delineada pela Jurisdição Constitucional, pode oferecer respostas para o presente debate.

Além disso, faz-se mister regular, em sede legal, a atuação de grupos como o Google e o

Youtube, de modo a exigir mais transparência da atuação dessas instituições.

Como escolhas axiológicas feitas pelo legislador constituinte originário, os direitos

fundamentais perpassam, por meio de “pontos de irrupção” ou “portas de entrada”

(Einbruchstellen) – como, por exemplo, as cláusulas gerais –, todo o ordenamento jurídico,

inclusive o direito privado, que deve ser interpretado, ainda que mediata e indiretamente, à luz

da Constituição. Os direitos fundamentais fundam não apenas pretensões subjetivas e

concretas, mas também são uma garantia para toda a sociedade e, como tal, possuem dimensão

objetiva.

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Explicitou-se, no item 3.1, que, a despeito disso ser negado por alguns, o Google possui

sim a capacidade de vedar conteúdos, como já aconteceu, inclusive em função de ordem

judicial. Esse destacado poder, que traz consigo uma vultosa responsabilidade, deveria ser

acompanhado de limitações e restrições. Assim como já advertia o célebre escritor romano

JUVENAL, em sua sátira 6, é preciso perguntar-se: “Sed quis custodiet ipsos custodes?”14 Ou

seja, se o Google tem o poder de retirar conteúdos, quem é capaz de controlar e fiscalizar o

controle invisível que ele mesmo exerce ou que, ao menos, pode exercer?

É relevante esclarecer que o Google, a pretexto de salvaguardar a liberdade de

expressão, recusa-se a retirar conteúdos ofensivos de páginas mantidas por ele.

4.2 O caso de Rondon do Pará

Tem-se conhecimento, por exemplo, de uma demanda ajuizada no estado do Pará

(autuada sob o n. 201230054152), por Juiz de Direito desse estado, que vinha sendo injuriado,

sistematicamente, por meio de blog hospedado no servidor do Google. As injúrias, de cunho

bastante grave, relatavam episódios pessoais da vida do magistrado. Em alguns momentos,

embora não se usasse [466] o nome do magistrado, eram tantos os dados divulgados sobre ele

(como o número de irmãos, as profissões que exercem, dentre outras informações), que sua

identificação se tornou óbvia.

Aviltou-se, ainda, a honra do magistrado em virtude de uma suposta orientação sexual.

Para tanto, em diversas postagens, seu nome foi feminilizado (e.g. de “Dr. Marcel”, para “Dr.

Marcela”) e amantes foram-lhe atribuídos na cidade. Fatos concretos, conquanto falsos, foram

citados, dentre os quais, o de que um advogado se teria divorciado da esposa para ir viver com

o Juiz. Essas e outras histórias semelhantes foram relatadas em um contexto assaz pejorativo,

sempre depreciando a figura do magistrado.

Alegadamente, as ofensas ao Juiz foram produto de perseguição, especialmente por suas

reiteradas condenações de figuras importantes da cidade, seja em virtude de desvios de verba

pública – inclusive com base em diversas fraudes licitatórias – por parte da prefeitura e de

14 Geralmente, essa frase corresponde, na sátira 6, às linhas 347-348 do texto. Contudo, se se segue o manuscrito oxfordiano (oxoniensis), trata-se das linhas O31 - O32. A frase latina significa, literalmente: “Mas quem cuida dos próprios cuidadores?” ou “Mas quem vigia os próprios vigilantes?” (tradução livre do autor)

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seus agentes políticos, seja por abusos cometidos por policiais da cidade, como torturas e

homicídios.

Em primeira instância, em uma decisão interlocutória, determinou-se ao Google que

retirasse o blog e o conteúdo ofensivo do ar, devido às afirmações que vilipendiavam a honra

subjetiva do autor, ferindo seu direito geral à personalidade (allgemeines

Persönlichkeitsrecht).

Requereu-se, em antecipação dos efeitos da tutela, que fossem retiradas da rede mundial

de computadores as páginas do blog intitulado “Rondon sem Censura”. Deferido o pedido, o

Google agravou da decisão e não conseguiu ter efeito suspensivo atribuído a seu recurso.

Na espécie, fixaram-se multas astreintes, que foram confirmadas em segunda instância

pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará, para coagir a instituição a cumprir a obrigação de

fazer, consistente em retirar o blog do ar. Em uma das primeiras decisões do caso, o Juiz de

Direito da comarca de Dom Eliseu, Alexandre H. Arakaki, determinou, em 30 de março de

2012:

(...) novo bloqueio de valores das contas do requerido [Google Brasil

Internet Ltda.] até o montante de R$ 2.100.000,00 (dois milhões e cem mil

reais), considerando o descumprimento desde 09/03/2012. Caso o novo

bloqueio de valores não seja suficiente para compelir a parte a cumprir uma

ordem judicial, resta demonstrado que não obedece a legislação vigente no

Brasil, não havendo motivos para somente se valer dos bônus, dispensando

os ônus, devendo ser fechadas e lacradas suas sucursais no País. (grifo

nosso)

[467]

Porém, mesmo após o valor total da multa ter chegado à expressiva quantia de 5 (cinco)

milhões de reais e mais de 3 (três) milhões de reais terem sido bloqueados via BACEN-JUD,

o Google recusou-se a retirar o conteúdo ofensivo do ar.

Há outros casos em que decisões judiciais foram descumpridas de maneira sistemática

pelo Google. Também nesses casos, essa empresa insiste em invocar a liberdade de expressão

para legitimar sua conduta passiva e inerte. Dentre as referidas decisões, podem ser citadas: os

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autos de ns. 1.0024.08.041302-4/001(1) e 1.0512.07.045727-4/001(1), ambos do Tribunal de

Justiça de Minas Gerais.

4.3 Outros casos preocupantes

Nas eleições municipais do ano de 2012, também houve casos que demonstram a

dificuldade de controlar, por meio de uma Justiça territorialmente sediada, o Google, que se

organiza não-territorialmente e que dificilmente se deixa compelir por meio de multas

astreintes. Nesse contexto, lembre-se que o Juiz Flávio Saad Peren, da 35ª Zona Eleitoral do

Mato Grosso do Sul, após determinar, em reiteradas ordens judiciais, a retirada de um vídeo

do Youtube, ordenou à Polícia Federal que efetuasse a prisão do presidente do Google no

Brasil, Fabio José Silva Coelho, por crime de desobediência.15

O Google recorreu da decisão, mas seu pedido foi negado pelo Tribunal de Justiça do

Estado do Mato Grosso do Sul. O relator do caso, o Juiz Amaury Kuklinski, fez consignar, em

sua decisão, que “Conquanto seja um espaço livre e democrático, o uso indevido da internet,

na esfera eleitoral, deve ser coibido, na medida em que não se trata de território isento de

responsabilidade e não se vislumbra qualquer causa de imunidade no manuseio dessa

ferramenta de comunicação.”16

Dias após a decisão, o Presidente do Google foi, de fato, preso e levado até uma das

sedes da Polícia Federal em São Paulo, oportunidade em que, por tratar-se de crime de menor

potencial ofensivo, assinou um termo circunstanciado e foi embora. Posteriormente, a ordem

de prisão foi revogada pelo próprio Juiz que a exarara.

Nas eleições de 2012, ocorreram pelo menos dois outros casos semelhantes. Em um

deles, o Juiz Ruy Jander Teixeira, da 17ª Zona Eleitoral de Campina Grande (PB), mandara

prender o Diretor Geral do Google no Brasil, Edmundo Luiz Pinto Balthazar, por descumprir

ordem judicial. Na decisão, alegou-se que a empresa desobedeceu à ordem de retirar do

15 CARVALHO, Daniel. “Justiça Eleitoral em MS manda prender presidente do Google no Brasil.” Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 set. 2012.16 CARVALHO, Daniel. “Justiça Eleitoral em MS manda prender presidente do Google no Brasil.” Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 set. 2012.

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Youtube um vídeo que denegria a imagem de Romero Rodrigues, candidato à Prefeitura de

Campina Grande. O Google recorreu e o Juiz Miguel de Britto Lyra, relator do recurso no

respectivo Tribunal, entendeu que Balthazar não poderia ser responsabilizado pela veiculação

do vídeo, o que implicou a suspensão da respectiva ordem de prisão. Já em Santa Catarina,

um Juiz determinou, também por motivos eleitorais, que o Facebook fosse tirado do ar em

todo o país. Dois dias depois, o próprio Juiz suspendeu a decisão.17

Vale mencionar, outrossim, que, no ano de 2012, vários foram os protestos, em países

muçulmanos, após a divulgação, no Youtube, do filme Innocence of Muslims. Em alguns

países, houve mortes e ataques a corpos diplomáticos de países ocidentais. O embaixador

americano na Líbia foi assassinado durante uma manifestação contra o filme, criado por

extremistas de direita. Em virtude dos fatos estarrecedores, o Google bloqueou a exibição do

vídeo em alguns países islâmicos. Já o governo dos EUA, em uma atitude insólita, pediu ao

gigante econômico que estudasse a possibilidade de bloquear, com base em suas políticas de

privacidade e controle de conteúdo, a exibição do vídeo em todo o mundo, haja vista as

consequências causadas. O Google recusou-se a fazê-lo. Mais uma vez, isso prova que o

Google possui condições técnicas de vedar e manipular as informações e vídeos que

disponibiliza.18

Na Alemanha, há, pelo menos, dois casos que merecem menção. O primeiro concerne a

Max Mosley, um dos ex-dirigentes da Fórmula 1 de automobilismo. O segundo, a Bettina

Wulff, esposa do ex-presidente alemão Christian Wulff.

Em 2008, Mosley fez uma reunião festiva, a portas fechadas e em ambiente

completamente restrito e íntimo, com conotação sadomasoquista. A reunião, de cunho sexual,

foi feita em sua casa e envolvia apenas ele e mais algumas mulheres. Uma delas, entretanto,

tinha sido instruída por um jornalista a fotografá-lo na intimidade, por meio de uma câmera

secreta que ele havia fornecido.19

17 CARVALHO, Daniel. “Justiça Eleitoral em MS manda prender presidente do Google no Brasil.” Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 set. 2012.18 BARCINSKI, André. “Não fossem manifestações, obra sofrível passaria despercebida.”, Folha de S. Paulo, São Paulo, 16 set. 2012.19 HÜLSEN, Isabell. “Für das Vergessen.” Der Spiegel, Hamburg, Nr. 35, 27 ago. 2012. p. 144

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As imagens feitas retratam Mosley em uma situação constrangedora e com contornos

presumidamente nazistas. Em pouco tempo, elas foram parar na rede mundial de

computadores. A partir daí, o ex-magnata do automobilismo começou uma verdadeira cruzada

contra o Google. Recentemente, ele obteve uma importante vitória contra o Google em um

Tribunal alemão. O veículo de buscas foi proibido de divulgar resultados e links que

contivessem o vídeo. Segundo Mosley, sem o Google, torna-se extremamente difícil ou quase

impraticável encontrar o famigerado vídeo.20

Todavia, o fato é que, caso ele queira impedir o Google de mostrar o vídeo em absoluto,

seria necessário, em tese, ajuizar uma ação em cada país do globo.

Já no caso envolvendo Bettina Wulff, ingressou-se em juízo contra o Google, a fim de

coibir o recurso de autopreenchimento do sistema de buscas. Isso porque, segundo a autora da

ação judicial, sempre que se digita “Bettina Wulff” no Google, aparecem, imediatamente, as

palavras “Escort” (acompanhante) e “Prostituirte” (prostituta) ao lado, como sugestões de

busca. Segundo Wulff, durante a campanha do marido e a fim de atacá-lo, criaram-se histórias

de que ela teria, no passado, trabalhado como garota de programa. Além de tudo indicar que

as afirmações são infudadas e que tais fatos nunca ocorreram, ainda que fossem verdade e

houvesse prova disso, parece que, no caso examinado, há graves violações ao direito geral da

personalidade de Wulff e, mais especificamente, de seu direito a ser esquecida (Recht auf

Vergessenwerden).21

Todos esses casos demonstram a dificuldade de lidar com o Google, que tenta impor seu

modelo de gestão de negócios de forma unilateral, fazendo lobby para impedir a

regulamentação de sua prática22 e violando o direito à privacidade, o direito a ser esquecido

(Recht auf Vergessenwerden), o direito de estar só (right to be alone), dentre outros direitos

constitucionalmente assegurados, o que se mostra evidente afronta ao chamado direito geral

da personalidade (allgemeines Persönlichkeitsrecht). Não há dúvidas de que o Google tem

20 HÜLSEN, Isabell. “Für das Vergessen.” Der Spiegel, Hamburg, Nr. 35, 27 ago. 2012. p. 145-14621 LEYENDECKER, Hans; WIEGAND, Ralf. “Bettina Wulff wehrt sich gegen Verleumdungen.” Süddeutsche Zeitung, Munique, Disponível em: < http://www.sueddeutsche.de/politik/klage-gegen-google-und-jauch-bettina-wulff-wehrt-sich-gegen-verleumdungen-1.1462439> Acesso em 15 set. 2012.22 BECKER, Sven; NIGGEMEIER, Stevan. “Im Namen der Freiheit.” Der Spiegel, Hamburg, Nr. 39, 24 set. 2012. pp. 86ss.

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sido utilizado como meio para a prática e divulgação de atos contrários ao direito. Por outro

lado, também se enxerga a dificuldade de coibir vários dos abusos perpetrados.

4.4 A liberdade de expressão como pretexto

A pretexto da defesa da liberdade de expressão, provedores como o Google, que

hospedam páginas, perfis pessoais e blogs, tornam extremamente difícil o combate a

violações graves ao direito geral da personalidade, à pedofilia, à honra subjetiva de pessoas,

ao discurso do ódio (hate speech), etc. No citado blog “Rondon sem Censura”, por exemplo, o

autor dos textos incita a comunidade da pequena cidade de Rondon, maioritariamente

evangélica, a punir o Juiz de lá, assim como deus punira os habitantes de Sodoma e Gomorra.

Tudo indica ser necessário impor a observância de deveres específicos que emanam dos

direitos fundamentais, originalmente oponíveis apenas aos Estados, a esses grandes grupos

econômicos, por serem eles os responsáveis pelo que se consubstancia como principal espaço

público de comunicação na sociedade hodierna.

Impõe-se ter em mente que não exigir imparcialidade de um meio de comunicação

capaz de tamanha capilaridade poderá minar, por exemplo, em uma eleição, o livre debate de

ideias, a igualdade de chances e a pluralidade da participação democrática.

Cumpre salientar, conforme GUNTHER TEUBNER, que a tendência dos tribunais em todo o

mundo tem sido a de tornar a responsabilidade do provedor dependente de sua cooperação

com as instâncias estatais (die Haftung des provider von seiner Kooperation mit staatlichen

Instanzen abhängig zu machen).23

Como esclarece o autor alemão, a limitação de ambientes virtuais ligados a grupos como

o Yahoo e o Google, imposta judicial ou legalmente, desperta uma [468] pletora de problemas

fundamentais (eine Fülle von fundamentalen Problemen), incluindo: a possível censura de

conteúdos efetuada por esses entes privados; a viabilidade de um controle não-arbitrário e

não-judicial de conteúdos abusivos veiculados em certas páginas da Internet; a validade e a

23 TEUBNER, Gunther. “Globale Zivilverfassungen: Alternativen zur staatszentrierten Verfassungstheorie.” In: Zeitschrift für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht, vol. 63, n. 1, 2003. p. 1

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exequibilidade de decisões nacionais em uma Internet que é transnacional e a eficácia dos

direitos fundamentais em relações jurídico-privadas (Drittwirkung) no espaço virtual.24

Essas questões envolvem a afirmação dos direitos fundamentais não apenas diante de

instâncias políticas, mas também perante instituições sociais, em particular contra centros de

poder econômico. Consequentemente, atribui-se ao Estado a obrigação de contrapor-se a

práticas que coloquem em risco ou infrinjam direitos fundamentais, sob pena, em caso de

inércia, de não se evitarem transgressões de direitos fundamentais perpetradas por atores não-

estatais, que, gradualmente, ocupam lugares de cada vez maior destaque na sociedade atual.

4.5 A necessidade de legislar sobre a matéria

A observância aos direitos fundamentais faz-se necessária também nos novos meios de

tecnologia. É imperativo que o Congresso Nacional reflita cuidadosamente sobre essa

questão, de modo a estipular garantias infraconstitucionais e legais que concretizem, em

determinadas esferas específicas, a proteção aos dados e a imparcialidade de grandes atores

privados como o Google.

É, outrossim, crucial, que o Congresso edite lei de modo a delinear os limites dos

direitos fundamentais em esferas como a Internet. Esse requisito é particularmente importante,

mormente se se recorda que a limitação de um direito fundamental, ainda que baseada em um

limite imanente, está condicionada à reserva legal.25

A preocupação com a necessidade de se legislar sobre a matéria é ainda mais justificada,

quando se recorda que a revista alemã Der Spiegel denunciou uma série de tentativas do

Google, no sentido de bloquear propostas legislativas, em países europeus, que buscassem

regular a atividade da sociedade empresária e, em particular, as políticas de privacidade e de

armazenamento de dados da empresa. Para tanto, afirma-se na Der Spiegel, o Google teria

24 TEUBNER, Gunther. op. cit., 2003, pp. 1ss.25 cf. MERTEN, Detlef. “Grundrechtsschranken und Grundrechtsbeschränkungen.” In: MERTEN, Detlef; PAPIER, Hans-Jürgen. Handbuch der Grundrechte in Deutschland und Europa: Band III - Grundrechte in Deutschland - Allgemeine Lehren II. Heidelberg: C.F. Müller, 2009. pp. 201ss.; BADURA, Peter. Staatsrecht: Systematische Erläuterung des Grundgesetzes für die Bundesrepublik Deutschland. 5.Auf. München: C.H. Beck, 2012. pp. 128ss.; MICHAEL, Lothar; MORLOK, Martin. Grundrechte. 3.Auf. Baden-Baden: Nomos, 2012. p. 263, 333

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contratado, a preços altos, vários “lobbistas”, cujos nomes são citados pela revista, bem como

usado organizações privadas, juridicamente dissociadas do Google, porém financiadas por ele,

para promover palestras e remunerar articuladores. Tudo com o intuito de que soçobrasse toda

e qualquer proposta legiferante, intentada na Alemanha ou na Europa, de regular o gigante

econômico.26

Todavia, enquanto a regulamentação não ocorre, é certo que os direitos fundamentais

fundam deveres de respeito e de observância, não apenas em face do Estado. Por conseguinte,

o Poder Judiciário deverá ter cautela ao lidar com grandes grupos econômicos responsáveis

pela administração de sítios eletrônicos de uso extremamente difundido.

[469]

5 A ATUAL EVOLUÇÃO DO PROBLEMA NA JURISPRUDÊNCIA DOS

TRIBUNAIS SUPERIORES

Ao que consta, o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não enfrentou os

questionamentos sobre os limites da atuação de atores como o Google. Contudo,

recentemente, reconheceu-se a repercussão geral do Recurso Extraordinário com Agravo

(ARE) de n. 660.861. No recurso, são discutidos os limites da responsabilidade civil da

sociedade empresária Google Brasil Ltda.

Na espécie, é necessário saber até que ponto cumpre ao Google e às empresas que

hospedam páginas na web fiscalizar o conteúdo disponibilizado por seus usuários, bem como

o grau de responsabilidade delas pelo que é divulgado nos sites.

No que diz respeito a atores virtuais, recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE)

entendeu que é vedada a realização de propaganda eleitoral no Twitter, antes de 6 de julho do

ano em que ocorrerá a eleição. No REC na RP de n. 182524, o TSE entendeu que o Twitter,

como meio de comunicação social, está abrangido pelos artigos 36 e 57-B da Lei das

Eleições, que tratam das proibições relativas à propaganda eleitoral antes do período eleitoral.

26 BECKER, Sven; NIGGEMEIER, Stevan. “Im Namen der Freiheit.” Der Spiegel, Hamburg, Nr. 39, 24 set. 2012. pp. 86ss.

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Por seu turno, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem-se deparado mais

frequentemente com questões relativas a violações de direitos perpetradas por atores que

atuam em ambiente virtual. Contudo, as demandas têm sido apreciadas à luz do regramento

infraconstitucional e cingem-se, em geral, a determinar o alcance da responsabilidade civil de

entidades como o Orkut, que é propriedade do Google, em face de conteúdo publicado por

seus usuários. Entre os julgados de que se tem conhecimento, podemos citar os recursos

especiais de ns. 1.117.633/RO, 1.193.764/SP, 1.186.616/MG, 1.175.675/RS e 1.306.066/MT.

Fixou-se, no STJ, a tese de que a responsabilidade do provedor, por conteúdos ofensivos

publicados em suas páginas “(...) não constitui risco inerente à atividade dos provedores de

conteúdo, de modo que não se lhes aplica a responsabilidade objetiva prevista no art. 927,

parágrafo único, do CC/02.” Logo, além da responsabilidade civil não ser objetiva, não há

obrigação de “(...) fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor das informações

postadas na web por cada usuário não é atividade intrínseca ao serviço prestado.”27

Todavia, ao ser notificado para retirar os endereços em que consta conteúdo ofensivo, as

empresas passam a ser corresponsáveis juridicamente. A [470] retirada do conteúdo, após o

aviso, deve ser imediata, sobretudo quando houver ordem judicial nesse sentido, ainda que em

caráter antecipatório e deve ocorrer, “(...) independentemente da indicação precisa, pelo

ofendido, das páginas que foram veiculadas as ofensas (URL's).”28

Com isso, nota-se que os Tribunais Superiores não se têm deparado com a questão da

oponibilidade de direitos fundamentais, ainda que de maneira mediata e indireta, a atores

dotados de significativo e desproporcional poder econômico e social, como o Google.

5.1 A caminho de uma solução: identificando critérios e parâmetros

Segundo WOLFGANG HOFFMANN-RIEM, a aptidão funcional (Funktionsfähigkeit) dos meios

de comunicação, inclusive dos virtuais, possui não apenas um lado técnico, mas uma

dimensão social que pode e deve ser guiada por certos parâmetros normativos.29

27 REsp 1.186.616/MG, rel. MIN. NANCY ANDRIGHI, j. em 23/8/11.28 REsp 1.175.675/RS, rel. MIN. LUÍS FELIPE SALOMÃO, j. em 9/8/11.29 HOFFMANN-RIEM, Wolfgang (2008). “Der grundrechtliche Schutz der Vertraulichkeit und Integrität” In: HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Offene Rechtswissenschaft: Ausgewählte Schriften und gebleitende Analysen.

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Deve-se salvaguardar nesses veículos, por exemplo, a segurança da liberdade de acesso

(Sicherheit der Zugangsfreiheit), a liberdade de manipulação (Manipulationsfreiheit) e, em

geral, o uso unilateral do poder ou o seu abuso (einseitiger Machtgebrauch oder Missbrauch).

O arbítrio, em âmbitos como o da Internet, parte cada vez menos do Estado que, na

verdade, parece revelar-se ocioso; ele surge frequentemente por parte de atores privados. A

rede mundial de computadores mostra-se peculiar, à medida que não está circunscrita às

fronteiras territoriais de um dado Estado, embora seus efeitos possam manifestar-se nele.30

A possibilidade de inclusão ou de preenchimento de dados (Fülle der Daten), bem como

as possibilidades de seleção (Selektionsmöglichkeiten), no que diz respeito a resultados e

conteúdos disponibilizados na Internet, deveria causar mais preocupações aos

constitucionalistas hodiernos.31

[471]

5.2 A insuficiência das medidas atuais

No sentido do que se vem aqui tratando, as lesões ao direito geral da personalidade

causam sérias preocupações, no que tange à inobservância de direitos fundamentais por

entidades privadas dotadas de imenso poder econômico e social. O acesso a dados e a

utilização deles pressupõem uma escolha livre e esclarecida.32 Atualmente, os usuários

disponibilizam seus dados, os quais, amiúde, são utilizados de maneira diversa do pretendido.

Dessa forma, como se falar em consentimento (Einwilligung), quando não há informações

suficientes e transparência no que concerne ao repasse dos dados fornecidos?33

Ademais, os contratos são todos por adesão, o que implica usar os serviços oferecidos de

acordo com os termos do oferente ou não usá-los tout court. Essas regras, por sua vez, se não

estiverem sujeitas a algum tipo de controle ou à regulação estatal, terminam por ser

Stuttgart: Mohr Siebeck, 2010. p. 53030 cf. HOLZNAGEL, B. “Responsibility for Harmful and Illegal Content as well as Free Speech on the Internet in the United States of America and Germany.” In: ENGEL, C. (ed.). Governance of Global Networks in the Light of Differing Local Values. Baden-Baden: Nomos, 2000.31 HOFFMANN-RIEM, Wolfgang (2008). op. cit., p. 52932 HOFFMANN-RIEM, Wolfgang (2008). op. cit., p. 53533 HOFFMANN-RIEM, Wolfgang (2008). op. cit., p. 535

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fatalmente, impositivas e, possivelmente, arbitrárias. No mundo em que vivemos, os atores

privados, especialmente aqueles que desempenham papel relevante e hegemônico na rede

mundial de computadores, não podem ser tratados como meros empresários ou

comerciantes.34 Precisamente, pela capacidade quase sem precedente que esses atores têm de

mobilizar opiniões, positivas e negativas, de alimentar preconceitos, de incitar discriminações,

de impor sua vontade, etc.

O poder concentrado na mão de agentes com tais características revela a inadequação de

uma abordagem prosaica ou reducionista desse fenômeno, abordagem essa que costuma tratar

atores virtuais da magnitude daqueles mencionados como qualquer outro ator privado.

Não usar ferramentas como o Google, nos dias de hoje, é uma opção inviável ou

irracional e não serve como simples resposta aos problemas concretamente surgidos a partir

de seu uso. Em vez disso, deve-se buscar instrumentos regulatórios, fortemente amparados na

proteção dos direitos fundamentais, que imponham barreiras ao que é constitucionalmente

vedado.

[472]

Afirmar que tais entidades são privadas e que se pode deixar de usar os serviços por elas

prestados é, numa perspectiva ampla, ignorar o papel inaudito (em comparação com os

tempos passados) que elas ocupam na sociedade contemporânea; numa perspectiva específica,

em certa medida, é render-se a elas com o silêncio, ou mais ainda, é concordar com os

“métodos” delas pelo mesmo silêncio.

Logo, o consentimento às políticas de privacidade, que ninguém (ou quase ninguém) se

dá ao trabalho de ler, é incapaz de dar qualquer legitimação material para a atuação desses

grupos, isso se não representar mera ficção.35

5.3 Dever do Estado

34 cf. HOLZNAGEL, B. “Meinungsfreiheit oder Free Speech im Internet: Unterschiedliche Grenzen tolerierbarer Meinungsäußerungen in den USA und Deutschland.” In: Archiv für Presserecht, vol. 9, 2002, pp. 128-13335 HOFFMANN-RIEM, Wolfgang (2008). op. cit., p. 536

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A concentração desproporcional de poder faz com que se imponha ao Estado uma

dimensão de tutela ou proteção que vai além da mera defesa. Direitos de defesa

(Abwehrrechte), que são tipicamente liberais, são aqueles que obrigam o Estado a abster-se de

intervir em esferas privadas do cidadão, como ocorre geralmente, por exemplo, no caso da

liberdade de expressão.

Em casos como os citados, deve-se encontrar formas de criar pressupostos reais e

verdadeiros (reale Voraussetzungen) para o exercício da liberdade pelos cidadãos

(Freiheitsausübung der Bürger), seja por meio do Estado, seja por meio de atos privados ou

como parte de atos de cooperação criados entre o Estado e atores privados.36

Ao Estado, nessa hipótese, impõem-se não apenas restrições e proibições de violar os

direitos dos cidadãos que se utilizam da Internet, mas, também, o dever de dispor e formar

(gestalten), por meio de regras, a organização e os procedimentos desses recursos técnicos e

dos atores privados que lidam com eles. O objetivo é que recursos como a Internet não sejam

usados ao arrepio dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, expressa ou

implicitamente.

Para a consecução de tais fins, é imperativo zelar pela confiabilidade e integridade

(Vertraulichkeit und Integrität) dos sistemas de comunicação que armazenam dados e

informações de usuários, como por exemplo, o Google. [473] Nesse sentido, é preciso criar

mecanismos de segurança que impeçam os dados de caírem em mãos alheias. No caso do

Google, é necessário impedir que os dados sejam capturados por outras empresas, integrantes

ou não de seu conglomerado, ou mesmo, deve-se obstar que o próprio Google repasse tais

dados. Isso vale tanto para as entidades privadas, quanto para o Estado, que tem o dever de

tomar todas as precauções para manter a salvo e em sigilo informações licitamente obtidas de

seus cidadãos.37

Do contrário, o controle a ser imposto a esses atores privilegiados de nenhuma valia

seria, uma vez que estranhos teriam fácil acesso aos dados. Afigura-se plausível, inclusive,

atribuir aos detentores das informações a responsabilidade pela guarda delas, de modo que

36 HOFFMANN-RIEM, Wolfgang (2008). op. cit., p. 53737 HOFFMANN-RIEM, Wolfgang (2008). op. cit., p. 542

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eles sejam juridicamente imputáveis em caso de obtenção dos dados por terceiros. Afinal,

cabe a eles o dever de velar pelas informações que detêm em seu poder. Eles agem, nesse

contexto, como verdadeiros depositários das informações, o que os torna responsáveis pela

fiel guarda delas. Logo, devem ser-lhes impostos todos os deveres objetivos de cuidado e as

precauções devidas.

5.4 Oponibilidade de direitos fundamentais contra o Google

Além desse dever imposto ao Estado, é possível falar em oponibilidade de direitos

fundamentais contra entidades como o Google? Como se trata de uma sociedade empresária,

completamente privada, ela deve respeito a direitos fundamentais?

Na literatura, parece menos duvidoso que empresas privadas prestadoras de serviço

público tenham que observar, com algumas adaptações de somenos importância, um estatuto

jurídico público que englobe o estrito, direto e imediato cumprimento da Constituição e das

prescrições relativas aos direitos fundamentais.38 Mais controversa é a aplicabilidade desse

entendimento a atores privados que exercem atividades privadas.

Prevalece, na doutrina alemã, a tese de aplicabilidade mediata ou indireta dos direitos

fundamentais às relações privadas. Isso significa que mesmo atores sociais de elevado poder

econômico não podem ser equiparados ao Estado, para fins de observância de tais direitos.

Porém, a aguda assimetria de [474] poder entre um indivíduo e conglomerados econômicos,

bancos, seguradoras, empregadores, etc., leva a crer que certas esferas de comportamento

requerem uma proteção especial, não apenas do direito ordinário, mas igualmente do direito

constitucional e do catálogo de direitos fundamentais.39

Essa necessidade de tutela ou proteção (Schutzbedürfnis) legitima-se enquanto persistir a

posição de superioridade ou predominância (Übermachtstellung). Tal situação enseja que o

Estado, por meio de disposições legais, regule determinados comportamentos, limitando a

autonomia privada (Privatautonomie) e restringindo o regime privado aplicável a essas

entidades dotadas de posições de superioridade. Isso não significa que o particular com

38 BADURA, Peter. op. cit., pp. 107, 115; HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20.Auf. Heidelberg: C.F. Müller, 1999. p. 15739 MICHAEL, Lothar; MORLOK, Martin. op. cit., p. 235

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grande papel na sociedade passe a ser tratado de maneira idêntica à do Estado, como querem

os defensores da vinculação direta ou imediata dos particulares aos direitos fundamentais, mas

sim que os usuários de seus benefícios sejam respeitados em seus direitos. Em outras

palavras, trata-se de entender que se nem ao Estado é permitido violar os direitos

fundamentais do cidadão, por que esses direitos podem ser violados por outras instituições?

Ou ainda, se o Estado tem o dever de garantir e de proteger os direitos fundamentais do

cidadão, ao regular procedimentos de utilização de dados dos cidadãos na Internet ele estará

cumprindo esse seu dever.

Se a corrente defensora da vinculação direta ou imediata dos particulares aos direitos

fundamentais predominasse, estar-se-ia impondo um estatuto de regime público a atores

privados, o que seria não apenas juridicamente implausível, como economicamente inviável.

Imagine-se, se seria razoável exigir que o Banco Bradesco S.A. ou o Google Brasil Internet

Ltda. ou a Companhia Vale do Rio Doce fossem obrigados a divulgar, de maneira

transparente, todos os negócios que fazem, documentos que possuem, etc., ou ainda que

tivessem que realizar concursos públicos à medida que desejassem contratar funcionários, a

bem da isonomia e da igualdade de chances.

É certo que a aplicabilidade direta ou imediata oferece problemas sérios. Logo, os

direitos fundamentais, mediatamente aplicados, devem fundar o dever de interpretar o direito

ordinário à luz das disposições constitucionais. Constitui-se, assim, a eficácia irradiante

(Ausstrahlungswirkung) dos direitos fundamentais sobre toda a ordem jurídica, inclusive

privada.

Mais do que uma vinculação do particular aos direitos fundamentais, trata-se de uma

eficácia desses direitos sobre as relações jurídicas do particular.40 [475] Nesse ponto, a

atuação do Juiz, como órgão do Estado, é de crucial importância, tanto para aplicar as

limitações legais vigentes, como para instituir outras, com fulcro nas cláusulas gerais, como a

boa-fé objetiva (Treu und Glauben), que é sensível a interpretações constitucionais.

Com isso, a oponibilidade de direitos fundamentais ao Google não implica uma

equalização entre ele e o Estado, uma vez que o nível de proteção (Schutzniveau) dos direitos

40 MICHAEL, Lothar; MORLOK, Martin. op. cit., p. 237

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fundamentais, no que tange a atores privados, varia conforme a suscetibilidade de tais direitos

perante uma ou outra entidade privada.41

Nesse diapasão, o caso Google revela-se especialmente suscetível a violações aos

direitos fundamentais, porque, como já dito, a possibilidade de abusos, de manipulação de

resultados para favorecer preferências econômicas, políticas ou ideológicas pode gerar graves

distorções em cada uma dessas esferas. Fez-se notar, do mesmo modo, que a Internet é um

campo notavelmente tendente a favorecer ofensas ao direito de personalidade. Também com

respeito a essa questão, faz-se mister impor balizas à atuação de atores com o Google.

Com efeito, é imprescindível que o Estado exerça o devido controle sobre essa seara,

seja por meio de edição de lei sobre a matéria, seja mediante atuação do Poder Judiciário,

valendo-se de princípios e regras que delimitem o campo de atuação lícita de entidades como

o Google.

5.5 Dispositivos constitucionais sob ameaça

Os recursos tecnológicos surgidos nos últimos tempos colocam novas questões para o

direito constitucional. Tais desafios apresentam-se, por exemplo, na obrigação de proteger-se

o direito geral da personalidade e os atributos açambarcados por ele (art. 5º, X, CF), a

inviolabilidade da casa (art. 5º, XI, CF) e o sigilo das comunicações, inclusive telemáticas

(art. 5º, XII, CF). Além disso, também estão particularmente expostos a ofensa, nesse tipo de

métier, os direitos fundamentais à isonomia (art. 5º, caput, CF), à igualdade de chances e à

autonomia, à vedação do arbítrio e à prioridade da liberdade, corolários das previsões do art.

1º, inciso III, da CF e do art. 5º, inciso II, da CF.

O sigilo das comunicações

O direito ao sigilo nas comunicações funda, em regra, um direito de defesa contra o

Estado, a fim de que não seja lícito a ele ter acesso ao conteúdo das [476] trocas de

informações dos cidadãos. Contudo, opõe-se ao Estado, outrossim, um dever de agir, de modo

a impedir que terceiros, inclusive agentes privados, pratiquem esse tipo de conduta. Os tipos

41 MICHAEL, Lothar; MORLOK, Martin. op. cit., p. 238

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penais dos arts. 151 a 154 do Código Penal, que protegem o sigilo das comunicações e os

segredos em geral, visam a concretizar essa obrigação estatal. É missão do Estado zelar pelo

caráter fidedigno e sigiloso das comunicações dos cidadãos que vivem sob sua égide.

Se é esse o caso, devem ser instituídas restrições à capacidade que entidades

controladoras de partes da rede mundial de computadores têm de obter e guardar informações

dos usuários. Esse dever amplia-se, se se pensa no histórico de páginas da Internet visitadas,

nos produtos comprados, nas senhas utilizadas, nas conversas tidas em meio virtual, tendo-se

em mente que esses dados não podem ser tratados de maneira aleatória, sendo pois necessário

delinear certas barreiras à atuação de agentes que, se não forem impedidos, podem usar tais

informações para qualquer fim, sejam eles econômicos ou não.

Autonomia, dignidade humana e direito geral da personalidade

Impõe-se observar que, por trás de boa parte das garantias constitucionais aos direitos

fundamentais, está a ideia de que certos comportamentos devem ser preservados do

conhecimento público.42 Constitucionalmente, reconhece-se ao indivíduo a faculdade de fazer

certas escolhas e de realizar certos atos, sem que isso seja exposto à ciência alheia. Como bem

percebiam J. J. CANOTILHO e JÓNATAS MACHADO, essa proteção inclui, até mesmo, o direito do

indivíduo de divulgar tais comportamentos se, e como, ele quiser, devendo o consentimento

ser tácito ou expresso.

Leia-se, a propósito, o seguinte trecho:

Do ponto de vista jurídico-constitucional, uma pessoa que decide tornar

públicos comportamentos geralmente protegidos pela reserva de intimidade

da vida privada não está, por esse motivo, a renunciar a esse direito, mas sim

a exercê-lo de acordo com as suas próprias preferências e concepções.43

[477]

42 HOFFMANN-RIEM, Wolfgang (2008). op. cit., p. 53943 CANOTILHO, José J. Gomes; MACHADO, Jónatas E.M. Reality Shows e liberdade de programação. (col. Argumentum, 12). Coimbra: Coimbra Editora, 2003. p. 106

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Daí falar-se sobre a importância da autonomia e do livre desenvolvimento da

personalidade (freie Entfaltung der Persönlichkeit), elementos tão intimamente ligados à

dignidade da pessoa humana, já que fundam a prerrogativa eminentemente humana de que

cada um é capaz de autodeterminar-se, segundo as próprias convicções e desejos. J.J. GOMES

CANOTILHO e JÓNATAS MACHADO esclarecem que “A dignidade da pessoa humana deve ser vista,

em primeira linha, como fundamento de um direito geral de liberdade e de um direito geral de

igualdade, concretizado através de múltiplos direitos especiais de igual liberdade.”44

Essa visão afigura-se compatível com a noção de prioridade de liberdade (priority of

liberty), segundo a qual o Estado apenas deve circunscrever a liberdade de um sujeito em

nome da igual liberdade dos outros sujeitos. Essa ideia, enunciada por JOHN RAWLS, em seu A

Theory of Justice, prega que toda limitação à liberdade deve estar fundada na própria liberdade

e na sua distribuição em igual medida.45 Isso sem falar, no que tange ao caso do Google, da

hipossuficiência dos usuários perante o gigante.

Em outras palavras, a máquina pública deve ter um motivo ponderável para tolher a

autonomia de seus cidadãos. Isso vale para a possibilidade de armazenamento de dados e

informações pertinentes à vida de um indivíduo, uma vez que o conhecimento de certos fatos

dizem respeito apenas a ele, singularmente considerado. Desse modo, o Estado requer um

palpável e excepcional interesse coletivo para que qualquer intervenção na esfera íntima reste

legitimada.

Isso é tão mais verdade quando se percebe, na trilha de JAN-ULF SUCHOMEL, que a

dignidade humana não carrega em si qualquer obrigação de adotar um meio de vida ou

existência específico, tido como “o correto” ou “o apropriado” (Verpflichtung zum ‘richtigen’

Menschsein oder Leben); isso desaguaria em um acachapante paternalismo estatal (staatlicher

Paternalismus)46. Muito ao contrário, ela contém, na verdade, a prerrogativa de que cada um

seja, em princípio, aquele a determinar a maneira como irá viver, bem como até que ponto esse

viver pode e deve ser partilhado com os outros.

44 CANOTILHO, José J. Gomes; MACHADO, Jónatas E.M. op. cit., p. 10645 RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1999. p. 17146 SUCHOMEL, Jan-Ulf. Partielle Disponibilität der Würde des Menschen. (Schriften zum Öffentlichen Recht, 1152). Berlin: Duncker & Humblot, 2010. p. 48

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O direito à autodeterminação informativa

A autodeterminação informativa é um direito que garante a todos a prerrogativa de dispor

se, e quando, suas informações podem estar à disposição do [478] Estado e de outras pessoas.

Em outras palavras, salvo quando justificado por um interesse coletivo, com base em uma lei

em sentido estrito e observados os demais condicionantes impostos a uma intervenção em

direito fundamental, não pode o Estado reter dados de seus cidadãos. Esse direito foi

reconhecido como fundamental pelo BVerfG (65, 1) na Alemanha, em 15 de novembro de

1983.

Trata-se de reconhecer a autonomia do sujeito quanto às informações que lhe dizem

respeito, significando que a proteção aos bancos de dados é decorrência da tutela do direito

geral da personalidade.47

Todo banco de dados de informações desse tipo em poder do Estado ou de outra

instituição (de corporações como Facebook, Google, Yahoo, etc.) deve ter critérios claros de

armazenamento de dados, submetido ao escrutínio público. Da mesma forma, essas empresas

só podem ter em seu poder dados voluntariamente cedidos, os quais, por sua vez, não podem

ser usados para fins diversos dos especificados ou daqueles presumidamente aplicáveis ao

caso. Isso significa que, se alguém entrega informações a uma empresa “A”, não é permitido a

essa empresa repassar tais dados a uma outra.

Na Alemanha, é antiga a história do direito à autodeterminação informativa. Exigem-se

critérios claros e normatizados para que o governo possua em seu poder dados sobre seus

cidadãos. Em um caso emblemático e recente (BVerfG 120, 274), de relatoria do Juiz48

WOLFGANG HOFFMANN-RIEM, decidiu-se que a Lei Fundamental reconhece o “direito

fundamental de garantia da confiança e integridade dos sistemas técnico-informativos”

47 HOFFMANN-RIEM, Wolfgang (1998). op. cit., p. 50548 Na Alemanha, o título de um membro do BVerfG é “Juiz no Tribunal Constitucional Federal” (Richter am Bundesverfassungsgericht). Não há, como no Brasil, o título “Ministro”, tampouco a qualificação Justice, como há nos EUA e – mais recentemente, após a criação da Suprema Corte do Reino Unido – na Inglaterra.

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(Grundrecht auf Gewährleistung der Vertraulichkeit und Integrität informationstechnischer

Systeme), apelidado, de forma concisa de Computer-Grundrecht.49

Consideram-se legítima, por exemplo, a retenção de dados utilizados de maneira

moderada e proporcional, para fins de tributação, censo da população, prevenção de crimes ou

condenação por reincidência (no caso do processo penal), etc.

[479]

O crivo da proporcionalidade é analisado, em casos como esse, sobretudo no seguinte

aspecto: os métodos utilizados, as informações armazenadas e as justificativas dadas são

coerentes? São aptos a atingir a finalidade à qual se aspira?

Esse tipo de garantia é tão mais relevante, quanto maior a utilização dos meios de

comunicação virtual.

Na Europa, decisões asseguram um largo âmbito ao direito à privacidade, incluindo sob

sua tutela amostras de DNA, como se pode extrair da decisão S. and Marper v. United

Kingdom (30562/04 [2008] ECHR 1581 - 4 December 2008), proferida pela grande câmara

(Grand Chamber) da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH). Nesse caso, o Reino

Unido foi condenado por guardar informações genéticas de indiciados em inquéritos policiais,

mesmo após a absolvição deles em processo judicial.50 Não se vislumbrou interesse legítimo

que autorizasse o Estado a manter um banco de dados com informações de pessoas contras as

quais não se conseguiu provar nada.

Na decisão, consignou-se que, embora o Reino Unido tenha decidido pela legitimidade

da retenção dos dados, ficou expressamente registrado, na última decisão nacional, o voto

divergente da Baronesa de Hale of Richmond, do qual constou:

(...) the retention of both fingerprint and DNA data constituted an

interference by the State in a person's right to respect for his private life and

thus required justification under the Convention. In her opinion, this was an

49 LAMPRECHT, Rolf. Ich gehe bis nach Karlsruhe: Eine Geschichte des Bundesverfassungsgerichts. München: Deutsche Verlags-Anstalt, 2011. p. 29950 MOWBRAY, Alastair. Cases, Materials, and Commentary on the European Convention on Human Rights. Oxford: Oxford University Press, 2012. pp. 488, 521

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aspect of what had been called informational privacy and there could be

little, if anything, more private to the individual than the knowledge of his

genetic make-up.

A Suprema Corte do Canadá deparou-se também com um problema de privacidade

informativa (informational privacy). Em R v. RC ([2005] 3 SCR 99, 2005 SCC 61), ela

considerou a retenção de amostras de DNA de um menor infrator contrária à Carta de Direitos

e Liberdades (Charter of Rights and Freedoms). No caso, decidiu-se que não havia um

interesse significativo por parte do Estado que o autorizasse a reter dados tão pessoais como os

contidos em uma amostra de DNA. Nessa oportunidade, foi dito que:

Of more concern, however, is the impact of an order on an individual's

informational privacy interests. In R. v. Plant, [1993] 3 SCR 281, [480] at

p. 293, the Court found that s. 8 of the Charter protected the 'biographical

core of personal information which individuals in a free and democratic

society would wish to maintain and control from dissemination to the state'.

An individual's DNA contains the 'highest level of personal and private

information': S.A.B., at para. 48. Unlike a fingerprint, it is capable of

revealing the most intimate details of a person's biological makeup. (...) The

taking and retention of a DNA sample is not a trivial matter and, absent a

compelling public interest, would inherently constitute a grave intrusion on

the subject's right to personal and informational privacy.

Tanto a CEDH como a Suprema Corte do Canadá concordam que a retenção de material

genético, ao contrário do armazenamento de digitais e fotos, pressupõe um interesse palpável,

sob pena de revelar-se insustentável juridicamente e ferir a autodeterminação informativa.51

Em S. and Marper v. United Kingdom, a CEDH deixou claro, outrossim, que:

The concept of “private life” is a broad term not susceptible to exhaustive

definition. It covers the physical and psychological integrity of a person (…)

51 GRABENWARTER, Christoph; PABEL, Katharina. Europäische Menschenrechtskonvention. 5.Auf. München: C.H. Beck, 2012. p. 251

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It can therefore embrace multiple aspects of the person's physical and social

identity (…) Elements such as, for example, gender identification, name and

sexual orientation and sexual life fall within the personal sphere protected

by Article 8 (…) Beyond a person's name, his or her private and family life

may include other means of personal identification and of linking to a family

(…) Information about the person's health is an important element of private

life (…) The Court furthermore considers that an individual's ethnic identity

must be regarded as another such element (…) Article 8 protects in addition

a right to personal development, and the right to establish and develop

relationships with other human beings and the outside world (…) The

concept of private life moreover includes elements relating to a person's

right to their image (…) The mere storing of data relating to the private life

of an individual amounts to an interference within the meaning of Article 8

Tal como o direito sobre a própria imagem (Recht am eigenen Bild), a autodeterminação

informativa é corolário do direito geral da personalidade (allgemeines Persönlichkeitsrecht), o

qual, por sua vez, tem amparo na dignidade [481] humana. O direito geral de personalidade

envolve, segundo a jurisprudência do BVerfG: (1) um direito à esfera privada, secreta e íntima;

(2) o direito à honra e à disposição dos atributos pessoais, tais qual imagem, voz, etc.; (3) o

direito de não receber falsas imputações, como a de ter ações não praticadas ou palavras não

proferidas falsamente atribuídas a si.52

Ninguém pode ser obrigado a suportar que sua imagem ou informações a seu respeito

sejam utilizadas como escopo para interesses alheios, salvo quando observadas as exigências

qualificadas que se faz a esse tipo de intervenção na autodeterminação do sujeito ou quando

ele mesmo, expressa ou tacitamente, anui ao uso desses atributos da personalidade.

52 LENSKI, Sophie-Charlotte. Personenbezogene Massenkommunikation als verfassungsrechtliches Problem: das allgemeine Persönlichkeitsrecht im Konflikt mit Medien, Kunst und Wissenschaft. (Schriften zum Öffentlichen Recht, 1052). Berlin: Duncker & Humblot, 2007. p. 141

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No caso da invasão de banco de dados ou da quebra de sigilos telemáticos, inclusive na

“busca e apreensão online” (Online-Durchsuchung), exige-se a observância da reserva de juiz

(BVerfG 120, 274). A chamada reserva de juiz (Richtervorbehalt) é conceito análogo à reserva

de lei (Gesetzesvorbehalt ou Vorbehalt des Gesetzes) e à reserva de parlamento

(Parlamentsvorbehalt). A reserva de juiz consubstancia, porquanto, exigência a ser cumprida

pelo Estado, quando da intervenção em espaço que, prioritariamente, não comporta sua

ingerência ou que, apesar de comportá-la, exige uma cautela especial. Esse tipo de pré-

requisito é particularmente utilizado na intervenção em órbitas jurídicas guarnecidas e

abrangidas por direito fundamental.

Vale mencionar que a importância do sigilo das comunicações não foi subestimada pela

Suprema Corte dos EUA. A Internet, sobretudo nos EUA, tornou-se um importante

instrumento de disseminação de material pornográfico, bem como de oferta de serviços

sexuais. A fim de instituir proteções a menores de idade, seja para impedir que eles tivessem

acesso a informações reservadas para adultos, seja para combater a pedofilia, o Congresso

americano editou o Communications Decency Act e, após a declaração de

inconstitucionalidade desse, o Child Online Protection Act. Ambos os diplomas legais

reduziam a privacidade do usuário da Internet, dando ciência das páginas e conteúdo visitados

por ele, bem como bens eventualmente comprados na rede. A esse respeito, DAVID SCHULTZ et

alii esclarecem que:

The Communications Decency Act (CDA) of 1996, intended to regulate the

distribution of pornographic materials, was declared unconstitutional in

Reno v. ACLU (521 U.S. 844, 1997). Congress responded with the [482] Child Online Protection Act. In Ashcoft v. American Civil Liberties Union

( 542 I.S. 656, 2004), the Court again ruled, as it had in Reno, that efforts to

regulate nonobscene but sexually explicit material on Web violated the First

Amendment. (…) the Court also seems to suggest that there are less

restrictive ways to regulate the Internet to make it more difficult for children

to access some materials.53

53 SCHULTZ, David; VILE, John R.; DEARDORFF, Michelle D. Constitutional Law in Contemporary America: vol. Two - Civil Rights and Liberties. Oxford: Oxford University Press, 2010. p. 254

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6 CONCLUSÃO

O papel de destaque exercido pelo Google na vida da sociedade hodierna revela-se sem

precedente. A popularização desse veículo de informação representa, ipso facto, uma ameaça,

seja pelas possibilidades de manipulação dos dados fornecidos, seja pela capacidade de

estranhos, ligados ou não ao Google, obterem os dados. Nesse particular, esse caso suscita

questionamentos interessantes, no que diz respeito àquilo que foi chamado de um “especial

potencial de perigo” (ein besonderes Gefährdungspotenzial).54

Em uma ordem jurídica calcada na proteção aos direitos fundamentais, como a

brasileira, deve-se atentar para o sigilo das comunicações, a isonomia, a igualdade de chances,

a inviolabilidade do lar, a autodeterminação informativa e o direito geral da personalidade.

Todos eles prestam-se, inegavelmente, a limitar o arbítrio estatal. Da mesma forma, ante o

destacado papel desempenhado pelo Google e as nefastas conseqüências que podem surgir do

abuso dessa concentração de poder nas mãos de um agente privado, torna-se clara a

necessidade premente de impor balizas à atuação desse agente privado.55

Diante do exposto, podemos concluir pela necessidade de os constitucionalistas

brasileiros refletirem, de forma mais apurada, acerca das implicações jurídicas de alguns

novos meios tecnológicos e dos usos que se fazem deles.

Uma importante forma de delimitar tais fronteiras de atuação, reduzindo o desequilíbrio

de poder, seria a atuação do legislador. Com efeito, é extremamente salutar que o Congresso

Nacional, investido do poder-dever de legislar, tome providências nesse sentido.

[483]

Enquanto isso não ocorre, todavia, buscou-se mostrar neste trabalho que,

independentemente de regulamentação, os direitos fundamentais fornecem barreiras à atuação

de entidades como o Google e que isso ocorre, precipuamente, por meio da eficácia de tais

direitos na ordem jurídico-privada.

54 HOFFMANN-RIEM, Wolfgang (2008). op. cit., p. 55955 HOFFMANN-RIEM, Wolfgang (2008). op. cit., p. 558

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NETO, João Costa. "A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas: o caso Google. "Revista Brasileira de Estudos Constitucionais”, Belo Horizonte, ano 6, n. 22, p. 457-487, abr./jun. 2012.

Como visto, a proteção aos direitos fundamentais diante de atores privados que atuam na

Internet, como o Google, perpassa a segurança da liberdade de acesso (Sicherheit der

Zugangsfreiheit), a liberdade de manipulação (Manipulationsfreiheit) e, em geral, a vedação

ao uso unilateral do poder ou ao seu abuso (einseitiger Machtgebrauch oder Missbrauch). 56

A possibilidade de inclusão ou preenchimento de dados (Fülle der Daten), bem como as

possibilidades de seleção (Selektionsmöglichkeiten), no que diz respeito a resultados e

conteúdos disponibilizados na Internet, deve ser enxergada como uma censura privada

(private censorship) e, como tal, deve ser vedada.57 O argumento de que todos são livres para

usar ou não alguns recursos da Internet não faz mais sentido, ante a força social e quase que

onipresença desses recursos na vida das pessoas atualmente.

Da mesma forma, a anuência às políticas de privacidade traçadas por entidades que

controlam os serviços colocados à disposição do público na Internet é mera ficção, à medida

que, além de configurar-se mediante contrato por adesão, não dá quaisquer chances à

sociedade de discutir ou alterar os critérios impostos unilateralmente.

Enquanto não sobrevier lei que discipline tais relações, instituindo um estatuto para

empresas como o Google, é imprescindível e urgente que o Poder Judiciário exerça, com base

nos direitos vigentes, um controle sobre a atividade desses grandes grupos, de modo a frear

eventuais abusos.

Os direitos fundamentais consubstanciam parâmetro apto a identificar alguns desses

abusos.

[484]

56 HOFFMANN-RIEM, Wolfgang (2008). op. cit., p. 52957 cf. NUNZIATO, Dawn. Virtual Freedom: Net Neutrality and Free Speech in the Internet Age. (Stanford Law Books). Stanford: Stanford University Press, 2009.

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