A eficácia horizontal dos direitos fundamentais e os limites ao princípio da autonomia da vontade...

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Trata da chama "eficácia horizontal dos direitos fundamentais" e relaciona seu sustentáculo teórico às questões do Estado Social e do fenômeno da constitucionalização.

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A EFICÁCIA HORIZO�TAL DOS DIREITOS FU�DAME�TAIS E OS LIMITES AO PRI�CÍPIO DA AUTO�OMIA DA VO�TADE �OS

CO�TRATOS: UMA BREVE VISÃO DA CO�STITUCIO�ALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

Douglas Pinheiro Bezerra

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[email protected]

Resumo: O tema da “constitucionalização” está em alta. Além de consubstanciar um projeto retórico-hermenêutico em questões puramente decisionais, também remete a um “modus vivendi” social: o direito civil, núcleo normativo essencial das relações econômicas e das disposições do plano do patrimônio (diga-se no sentido existencial e negocial), não pôde escapar à tormenta de revisão metódica de seus postulados. Até que ponto direitos que são, na doutrina do constitucionalismo de ordem clássica, enxergados como paradigma de vinculação da ordem política podem passar a dirigir relações entre particulares? As premissas do liberalismo têm ponto de coerência com as estruturas propostas pelo Estado Social? E quanto à teoria dos direitos fundamentais? Este artigo tende à análise dessas questões primeiras sobre a eficácia horizontal de tais direitos. Palavras-chave: Constitucionalismo. Estado Social. Direitos fundamentais. Eficácia horizontal. 1. Introdução

O debate desenvolvido ao longo deste trabalho foge demasiado da proposta

inicialmente acordada, a saber, uma sutil apresentação de algum dos diversos institutos

jurídicos envolvidos na teoria geral dos contratos. Deve-se confessar a premeditada

disposição em abordar o universo-objeto do estudo numa perspectiva diferenciada que

se mostra muito mais atrelada às teorizações construídas sob a égide do “direito

público” do que, mais precisamente, aquelas inerentes ao “direito privado”.

A empreitada argumentativa aqui utilizada busca servir como norte de

convencimento da importância de uma revisão de conceitos jurídicos reiteradamente

aceitos e de sua consequente acomodação frente à nova estrutura do Estado, da

democracia e do próprio Direito como núcleos de uma totalidade construída pela e para

uma sociedade complexa que, paradoxalmente, progride economicamente, mas se aliena

ao projeto humanista da modernidade.

O texto aqui redigido é despretensioso não só pelo grau de superficialidade com

que trata as dimensões da “autonomia da vontade”, “direitos fundamentais”, “Estado

Social”, “democracia”, “dignidade da pessoa humana”, “função social dos contratos” e

“dirigismo contratual”, mas, sobretudo, porque se arrisca em uma doutrina ainda não

1 Bacharelando em Direito (UFPB)

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consolidada e pouco esclarecida acerca da matéria. Buscou-se no direito estrangeiro e

no tratamento empírico da jurisprudência pátria a maior parte do sustentáculo de sua

construção.

2. A ascensão do Estado Social, o novo papel dos direitos e garantias fundamentais

e a constitucionalização do direito civil

Numa acepção puramente abstrata e pretensamente generalizante, as estruturas

sociais, econômicas e jurídicas inerentes ao âmbito da vida comum de determinados

indivíduos racionalmente organizados se conjugam no modelo de Estado ou, ainda

mais, na ideologia de Estado estruturada por esses mesmos indivíduos. Esse é um

aspecto irredutível do contratualismo. Quando se fala em Estado Democrático de

Direito ou em Estado Liberal, p. e., é possível aferir, de forma mais ou menos

complexa, de que modo ocorre a disposição funcional do grupo social ali envolvido e

em que limites isso acontece. Pelo menos era o que se poderia prever se o nível de

abstração aqui delineado não tivesse que se render a questões muito menos

reducionistas. Os projetos normativos desenhados pela vontade soberana não chegam a

representar, no mais das vezes, nada para além de uma “vontade de ser”, assim como o

cenário em que eles se estipulam – o da globalização dos interesses político-econômicos

– não possibilita uma autopoiese do agir estatal. Daí se discutir o “risco neoliberal” em

modelos de Estado compromissados com a justiça distributiva, por exemplo.

Uma das grandes construções teóricas do século XX foi o Estado Social, visto

por muitos como uma evolução metódica daquele Estado Liberal proveniente da

superação do absolutismo político. Em verdade, o Estado Social representa uma

reviravolta estrutural apta a discutir a práxis de aprimoramento da democracia nas

relações com o seu próprio núcleo funcional (numa tentativa de auto-reflexão) e com o

sistema jurídico. A partir do momento que a “democracia” supera sua dimensão

meramente procedimental para representar um projeto material de igualdade, a teoria

liberal passa a ser antitética à democrática: a desembocadura, no processo histórico, dos

institutos típicos do exercício da autonomia privada (liberais) nessa nova realidade

representa a gênese de uma diversa forma de encarar o binômio “liberdade-igualdade”,

a saber, a “liberdade na igualdade”. Há, aqui, um alto nível de problematização que

exige, no seu esforço argumentativo, uma análise transversal do papel vinculado à

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estrutura política, aos direitos fundamentais (como conseqüência) e à normatividade

fundante (como traço de legitimidade dessa mesma estrutura).

É com a ascendência do constitucionalismo de novo tipo, ou

neoconstitucionalismo, que a hermenêutica política e, mais especificamente, a

hermenêutica jurídica passam a ser “instrumentalizadas” sob a égide do modelo de

sociedade traçado nas constituições contemporâneas. A positivação dos princípios e

valores acompanhada da pretensão de unificação sistemática que a carta constitucional

representa frente ao ordenamento jurídico deram luz ao sentimento da força normativa

da Constituição. Não menos, a profusão das relações sociais no período pós-Segunda

Guerra, condicionada pelo avanço tecnológico, o arranque comunicativo e a

intensificação dos pressupostos da sociedade de mercado, descentralizaram a ideia de

codificação civil como regente única do “cidadão-consumidor”. À Constituição caberia

unificar racionalmente os microssistemas jurídicos ali evidentes, bem como criar um

enlace de coerência entre eles: o direito civil não poderia se escusar dessa perspectiva,

seja porque faz parte desse universo normativo sistematizado, seja porque suas fontes

são condicionadas por ele. PAULO LÔBO estabelece um nexo conclusivo:

A constitucionalização do direito civil não é episódica ou circunstancial. É conseqüência inevitável da natureza do Estado social, que é a etapa que a humanidade vive contemporaneamente do Estado moderno, apesar de suas crises, das frustrações de suas promessas e dos prenúncios de retorno ao modelo liberal, apregoados pelo neoliberalismo, que pretende afastar qualquer intervenção estatal ou consideração de interesse social das relações privadas. A Constituição brasileira de 1988 consagra o Estado social, que tem como objetivos fundamentais (art. 3º) “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, com redução das desigualdades sociais. A ordem jurídica infraconstitucional deve concretizar a ordem social e econômica eleita pela Constituição, não podendo os juristas desconsiderá-la, como se os fundamentos do direito civil permanecessem ancorados no modelo liberal do século XIX.2

Como complemento intelectivo às insinuações das questões propedêuticas já

levantadas, vale uma indagação: que papel assumem os direitos fundamentais nesse

cenário? A virada semântica dos direitos fundamentais se entende a partir da superação

de sua “serventia liberal”. De direitos instrumentais de natureza unilateral, passam a

tomar uma feição garantista que supõe intervencionismo. Não se trata apenas de

salvaguardar o indivíduo da arbitrariedade estatal, mas, também, vinculá-lo ao projeto

normativo desenhado pelo Estado Social e pela pretensão de eficácia constitucional para

além das relações Estado-cidadão. O “direito privado” sempre se desenvolveu tendo o

2 A constitucionalização do direito civil in TEPEDINO, Gustavo (org.). Direito civil contemporâneo:

novos problemas à luz da legalidade constitucional. p. 20.

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“direito público” como fator de tutela; há, agora, a evocação de uma medida protetiva,

nas relações entre particulares, em favor da ordem pública. Como usualmente falam os

doutrinadores da matéria, existe um conexo movimento de publicização da coisa

privada e de privatização da coisa pública (este ainda que numa conotação negativa).

Se é salutar entender os direitos fundamentais como categoria político-jurídica,

de ensejo histórico-cultural, é aceitável buscar compreender a variabilidade das suas

perspectivas utilitárias. Tinha-se, no modelo liberal, a separação entre o Estado (como

ente político) e a sociedade (como figura sobretudo econômica): a Constituição para

aquele, o Código Civil para esta. Os direitos públicos sintomizavam o evidente “trauma

paternalista” (“O Estado é um meio e não um fim”), servindo de indicativo de que o

contratualismo liberal estava muito mais teorizado em questões de emancipação do que

de compromisso. Elucida JUAN MARÍA BILBAO UBILLOS:

Conviene insistir en la radical historicidad de los derechos fundamentales: éstos han experimentado y siguen experimentando profundas transformaciones porque la realidad socio-política en la que se insertan cambia y emergen incesantemente nuevas amenazas. Pocas categorías jurídicas se muestran tan permeables a la evolución de los estándares culturales como la de los derechos fundamentales. Se esto es así, no se entiende por qué hay que mantener a toda costa la fidelidad a una determinada concepción inmutable de estos derechos que tuvo sentido en un determinado momento, pero que resulta hoy desfasada, anacrónica. Lo que hay que hacer es poner al día, reconstruir la vieja teoría de los derechos públicos subjetivos, sin concesiones a la pereza mental.3

Assim é que a teoria da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre

particulares, que se pretende aqui delinear, só pode ser entendida sob a ótica de um

modelo de Estado que viabilize essa pretensão. O Estado Social, contudo, tem que se

valer de um apelo doutrinário-ideológico que encontra no constitucionalismo

contemporâneo sua via eficácia. Esse é o nexo racional fundamental (Estado social –

neoconstitucionalismo – direitos fundamentais) que estipula os limites de aceitabilidade

das teorias que serão expostas daqui em diante.4

3. A dignidade da pessoa humana, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e

a autonomia da vontade 3 Eficacia horizontal de los derechos fundamentales: las teorias y la practica in TEPEDINO, Gustavo. op. cit. p. 220. 4 Vide BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. p. 18-19. Após fazer referência à questão da eficácia dos direitos e garantias fundamentais inter privatos e à força vinculante da Constituição sobre o direito civil, o autor argumenta que “todas essas variações geradoras de um novo direito constitucional se apresentariam desgarradas de órbita se lhes faltasse apoio direto ou indireto num eixo de referência conceitual que não pode deixar de ser o Estado social e suas estruturas de normatividade vinculadas à Nova Hermenêutica”.

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A autonomia da vontade, arrisca-se dizer, é o standard das liberdades públicas

liberais. É a garantia que contextualiza o exercício da liberdade de iniciativa econômica,

da liberdade de estipular negócio jurídico e de tantas outras que se moldem à

perspectiva de persecução dos interesses da individualidade. Analiticamente, consiste na

disposição de um (1) núcleo patrimonial e de um (2) núcleo existencial. Seus

pressupostos, aplicados à teoria geral dos contratos, no dizer de MARIA HELENA

DINIZ, envolvem “liberdade contratual (Gestaltungsfreiheit), que é a determinação do

conteúdo da avença e a de criação de contratos atípicos, e liberdade de contratar

(Abschlussfreiheit), alusiva à de celebrar ou não o contrato e à de escolher o outro

contratante” 5. Para longe de ser um mero instituto de “direito privado” que legitima as

ações de particulares na administração de seus interesses, ou, ainda mais, na ficção da

regra incondicional de uma convergência de interesses nas relações interpessoais, o

princípio da autonomia tem sido objeto nuclear de debates ideológicos que intentam

traçar seus limites e sua responsabilidade social. A doutrina da eficácia horizontal dos

direitos fundamentais, grosso modo, alavanca a ideia de uma relativização dessa

autonomia frente à força normativa dos preceitos constitucionais, atentando, para tanto,

às suas consequências jurídico-sociológicas.

Como as limitações formais deste trabalho só nos permitem fazer um apanhado

sintético da matéria, serão descartadas questões de ensejo histórico e de referência

detalhada ao direito estrangeiro, embora suas premissas tenham sido de grande valia

para a sustentação teórica do tema6. Há, basicamente, três vertentes de entendimento da

chamada “eficácia externa” dos direitos fundamentais: a do (1) ceticismo absoluto, que

reafirma o Estado como sujeito único a que se destina a observação das liberdades

públicas, a da (2) eficácia condicionada ao legislador (mediata), que admite a

aplicabilidade desses direitos inter privatos, na medida em que a lei o permitir, e a da

(3) eficácia imediata, que afirma a gênese normativa dos direitos fundamentais frente ao

restante do ordenamento e, portanto, seu caráter de vinculação7. É esse último

5 Curso de direito civil brasileiro, v.3, p. 21. 6 Para mais, vide a doutrina alemã do Drittwirkung, datada da década dos anos 1950, sob a qual se construiu a ideia da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, bem como a State Action Doctrine, do direito norte-americano, que dá uma solução relativizada para o assunto. 7 UBILLOS (Eficacia horizontal..., p. 232) esclarece: “Dada la confusión que reina en torno a este tema, conviene aclarar que la habitual contraposición entre eficacia mediata e inmediata, como si fueran conceptos excluyentes, es una falsa disyuntiva: admitir la posibilidad de una vigencia inmediata de los derechos fundamentales en las relaciones inter privatos en determinados supuestos, no significa negar o

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entendimento que tem alicerçado a jurisprudência nacional nos últimos anos, ainda que

na Corte Constitucional (STF) não tenha sido firmada uma posição reiterada e uniforme

acerca da matéria.8

Assim, no invólucro do desarranjo entre autonomia da vontade, como expressão

sobretudo do direito civil, e a defesa dos demais direitos e garantias fundamentais, na

pretensão de afirmação de um “sentimento constitucional”, vale uma tentativa de

condicionamento daquela em favor destes, numa perspectiva que não a mitigue

categoricamente, mas também não a afirme como valor absoluto. A autonomia da

vontade, nesse sentido, deve ser encarada sob um olhar sistematizante, como reforça

PIETRO PERLINGIERI:

Não é possível, portanto, um discurso unitário sobre a autonomia privada: a unidade é axiológica, porque unitário é ordenamento centrado no valor da pessoa, mas é justamente essa conformação do ordenamento que impõe um tratamento diversificado para atos e atividades que em modo diferenciado tocam esse valor e regulamentam situações ora existenciais, ora patrimoniais, ora umas e outras juntas. A necessidade da máxima aderência às particularidades de cada fattispecie modula a resposta que o sistema dos valores fundamentais do ordenamento oferece a cada uma delas. [...] A autonomia privada não é um valor em si e, sobretudo, não representa um princípio subtraído ao controle de sua correspondência e funcionalização ao sistema das normas constitucionais. Também o poder da autonomia, nas suas heterogêneas manifestações, é submetido aos juízos de licitude e de valor, através dos quais se determina a compatibilidade entre ato e atividade de um lado, e o ordenamento globalmente considerado, do outro.9

Não se pode negar, em face de sua serventia fortemente econômica (mas não

exaustivamente esta), que a dimensão material da autonomia carrega consigo um traço

de vulnerabilidade da figura humana. Admitir o exercício da vontade individual num

quadro de intersubjetividade significa também reconhecer a possibilidade (latente) de

configuração do “poder privado” para além de limites objetivamente reconhecidos. É

assim que o Direito do Consumidor, p. e., coloca o adquirente de produtos e serviços na

condição de “hipossuficiente”. Sob a ótica estrita do direito civil, em contrapartida, o

subestimar el efecto de irradiación de esos derechos a través da ley. Ambas modalidades son perfectamente compatibles…” 8 RE 201819/RJ. Destacando trecho da ementa: “A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais”. No mesmo sentido, vide RE 158215/RS e RE 161243/DF; no STJ, Resp 251024/SP; e, no TST, AIRR 142140-04.2004.5.03.0036. Destaque para esta última decisão. 9 Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, p. 276-277.

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fator “tutela da dignidade” é pouco ou nada evidenciado, o que acarreta uma

potencialidade lesiva das dimensões patrimoniais e existenciais da pessoa, esboçando

“os riscos sociais decorrentes da atividade econômica, mais e mais sofisticada,

impondo-se a busca de soluções de índole objetiva, preferencialmente preventivas, não

meramente ressarcitórias, em defesa de uma melhor qualidade de vida e da realização da

personalidade”.10

Ao falarmos de “dignidade”, procuramos ponderar um raciocínio legitimador do

trato entre os demais direitos fundamentais e a autonomia da vontade (lembrando que a

autonomia também é direito fundamental). A ideia tem uma pretensão inclusiva. Assim

sendo, a noção de dignidade da pessoa humana, de apelo axiológico, acompanha um

certo grau de abertura conceitual, sob um risco dúplice; primeiro, porque não se pode

pretender uma definição exaustiva, segundo, porque a reconhecida porosidade do termo

pode detrimentar critérios argumentativos mínimos em benefício da mera retórica. Uma

análise primeira revela uma construção histórico-antropocêntrica com pretensões de

universalização do agir moral (resguardando, portanto, o seu caráter de alteridade11).

Assim, quando se acolhe a dignidade da pessoa humana como princípio da ordem

jurídica, não há que se negar sua pretensão de coerência com os direitos fundamentais

(entre eles, os das prerrogativas da autonomia individual), estes como desdobramento

daquela. Entendimento em contrário significaria ignorar seu caráter ontológico e,

portanto, de fundamentalidade. A dignidade humana serve, portanto, como fator

condicionante das relações entre os direitos e garantias fundamentais, bem como

delimita sua incidência.

4. A função social dos contratos e o dirigismo contratual como acerto hermenêutico

das relações entre particulares

10 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil, p. 65. 11 Lembra SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana..., p. 56-57: “Em verdade (...)a dignidade da pessoa humana (...), sem prejuízo de sua dimensão ontológica e, de certa forma, justamente em razão de se tratar do valor próprio de cada uma e de todas as pessoas, apenas faz sentido no âmbito da intersubjetividade e da pluralidade. Aliás, também por esta razão é que se impõe o seu reconhecimento e proteção pela ordem jurídica, que deve zelar para que todos recebam igual (já que todos são iguais em dignidade) consideração e respeito por parte do Estado e da comunidade, o que, de resto, aponta para a dimensão política da dignidade, igualmente subjacente ao pensamento de Hannah Arendt, no sentido de que a pluralidade pode ser considerada como a condição (e não apenas como umas das condições da ação humana e da política)”.

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Falou-se até agora, ainda que em poucas linhas, da fundamentação teórica para

uma revisão conceitual-pragmática da autonomia da vontade. Cumpre adentrar em

questões ainda mais utilitárias que, para a nossa sorte, encontram lastro tanto nas

decisões judiciais quanto no ordenamento jurídico pátrio. Tratar da função social dos

contratos e do dirigismo contratual significa encontrar nas chamadas “cláusulas gerais

do direito civil” um norte funcional para os levantamentos feitos até agora. Em outras

palavras, é “fazer valer” a pretensão hermenêutica de consolidar o solidarismo social e a

observância dos preceitos constitucionais nas relações entre particulares.

A função social dos contratos é causa, enquanto que o dirigismo contratual é

consequência. A primeira supõe a nocividade do firmamento de negócios jurídicos sem

a observância das diretrizes de ordem pública, o segundo, o agir estatal intervencionista,

que não pode se limitar, como tem sido feito, à mera revisão de cláusula moratória ou

do valor de prestações “acordadas” em contrato. Conforme tratou de orientar o

Enunciado nº 23 do STJ, proveniente da I Jornada de Direito Civil, “a função social do

contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da

autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes

interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa

humana”. Assim, quando se fala na função social, se quer conformar as disposições

contratuais à ordem constitucionalmente imposta. As cláusulas gerais do direito civil se

lançam nesse sentido de uma construção hermenêutica que analise o direito privado

como parte de um sistema constitucional. Poderíamos arriscar dizer que o art. 421 do

CC-02 traz uma cláusula “generalíssima” de viés diretivo.

E nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos (CC, art. 2.035, parágrafo único). A função social da propriedade e dos contratos constituem limites à autonomia da vontade, no qual se funda a liberdade contratual, que deverá estar voltada à solidariedade (CF, art. 3º, I), à justiça social (CF, art. 170, caput), à livre iniciativa, ao progresso social, à livre circulação de bens e serviços, à produção de bens e riquezas, ao equilíbrio das prestações, evitando o abuso do poder econômico, a desigualdade entre os contratantes e a desproporcionalidade, aos valores jurídicos, sociais, econômicos e morais, ao respeito à dignidade da pessoa humana. (grifamos)12

A incidência topográfica da hermenêutica constitucional, figurada na prestação

jurisdicional, se dá na medida em que ocorre o anacrônico fenômeno da insuficiência

legislativa (ou, até mesmo, da inflação legislativa, porquanto “insuficiência” em sentido

12 DINIZ, Maria Helena. op. cit., p. 23.

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positivo). A impossibilidade de o arcabouço normativo regular, de forma objetiva,

coerente e hábil, os mais diversos aspectos da vida sócio-político-econômica faz

insurgir, cada vez mais, a necessária “jurisprudencialização do direito”. Tal fenômeno

implica em calorosas discussões (nas quais não pretendemos adentrar) acerca da

legitimidade da atuação dos órgãos judiciais na garantia da observância horizontal dos

direitos fundamentais quando o legislador expressamente não a previu. Envolve,

portanto, questões substancialistas calcadas não apenas na aplicabilidade, mas, para

além disso, na “abertura construtiva” desses direitos13 (analogamente à metodologia

adotada por Ronald Dworkin respectivamente ao Estado de Direito “centrado nos

direitos”).

5. Conclusão

Apesar do alto grau de simplicidade em que este texto foi desenvolvido, é

possível aferir algumas conclusões bastante pontuais acerca do tema tratado que, vale

frisar, não têm a pretensão de se valerem por corretas ou, muito menos, por definitivas.

Primeiro, cuida-se de reafirmar a força normativa (vinculante, portanto) da Carta

Constitucional, que encontra nas suas linhas a positividade fundante de toda uma ordem

político-jurídica que deve ser observada.

Segundo, os direitos e garantias fundamentais, no desenho do Estado Social,

representam mais do que mera arma de defesa frente ao poder político: externam

também, um agir positivo do Estado como ente garantista e intervencionista para a

consolidação do projeto político-normativo traçado pela Constituição.

Terceiro, o princípio da dignidade da pessoa humana, como conceito (impreciso)

unificador dos direitos e garantias fundamentais, que são desdobramentos dela, acarreta

um necessário patamar de solidarismo apto a afirmar sua proteção, afinal, mais do

ontológica, a dignidade evoca alteridade.

Quarto, o trato hermenêutico na perspectiva civil-constitucional encontra na

cláusula geral da “função social dos contratos” a sua via normativa mais notável de

legitimidade. A lei civil, contudo, sobremaneira diante da mácula da insuficiência

legislativa, carece de uma prestação jurisdicional garantista que amplie o sentido de

13 Observa-se que há uma certa dissonância entre a taxatividade dos direitos de personalidade previstos entre os artigos 11 e 21 do Código Civil de 2002 e o § 2º do artigo 5º da CF que prevê a abertura sistemática dos direitos e garantias fundamentais necessários, também, ao desenvolvimento da personalidade.

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conformação constitucional do “direito privado” para além das cláusulas gerais e dos

conceitos jurídicos indeterminados.

Por fim, e aqui vale nossa observação mais importante, o princípio da autonomia

da vontade, notável principalmente na teoria geral dos contratos, não deve significar

sempre um óbice à aplicabilidade dos demais direitos fundamentais nas relações entre

particulares. É preciso estipular, por critérios de razoabilidade e proporcionalidade, em

que medida aquela deve ser mitigada em benefício destes, ao ponto de ser anulada;

como propõe CANOTILHO14, se faz imprescindível que sejam observadas “soluções

diferenciadas” que não terminem por fazer esvaecer definitivamente a barreira entre o

“público” e o “privado” – apesar de nebulosa – e transformem a ordem pública numa

inconsequente “ditadura do bem comum”.

6. Referências

CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed.

Coimbra: Almedina, 2003.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v. 3. 26 ed. São Paulo: Saraiva,

2010.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional.

3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na

Constituição Federal de 1988. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

TEPEDINO, Gustavo (org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da

legalidade constitucional. São Paulo: Atlas: 2008.

TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

14 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1289.