A EMERGÊNCIA DE UMA NOVA ORDEM COM PRIMEIRA revisão

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    A EMERGNCIA DE UMA NOVA ORDEM

    Carlos Henrique Machado

    A EMERGNCIA DE UMA NOVA ORDEM

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    NDICE

    Prefcio,Introduo

    Unidade 1. Um desastre muito mais que monetrio

    Unidade 2. O X da questo, multiplicar a gerao de bolhas e colapsos

    Unidade 3. A consolidao de um modeloUnidade 4. Interldio filosfico

    Unidade 5. O realinhamento da aldeia globalUnidade 6. Diferentes polticas diferentes economias

    Unidade 7. Velhos e novos imperialismosUnidade 8. Paradoxos do liberalismo

    Unidade 9. Novas possibilidades de vida

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    PREFCIO

    Em Outubro de 2007, ao preparar uma apresentao que iria ser feita parao board do Banco pelo qual tenho trabalhado ao longo dos ltimos 28anos, a respeito das perspectivas de negcios em 2008 nos diversossegmentos da economia no qual participavam nossos principais clientes -grandes grupos Brasileiros e estrangeiros que tinham crescido,sobremaneira, nos ltimos sete anos, percebera que alguma coisa no iabem no Reino da Dinamarca. Ao comparar a quantidade de ativosfinanceiros em circulao ao redor do globo com a quantidade de dlaresgerados pelo PIB global, vi que o capital fictcio era aproximadamente3,5 vezes maior do que tudo que era produzido em Main Street. Chegara,finalmente, a concluso de que o nvel da alavancagem mundial noera sustentvel. Tnhamos tido a oportunidade de participar de diversasoperaes financeiras envolvendo algumas das principais empresasbrasileiras no auge da liquidez mundial. As ofertas hostis para comprade empresas estrangeiras se multiplicavam, e algumas delas lograramxito. A maior delas at aqueles dias tinha sido a aquisio da mineradoraCanadense Inco, no final de 2006, pela Cia Vale do Rio Doce, por US$ 18bilhes, que aquela poca ainda no tinha alterado seu nome para Vale.Concluda a aquisio, no incio de 2008 a Vale iria anunciar o interesse deadquirir uma outra grande mineradora global, dessa vez a Anglo-AfricanaXtrata, pela bagatela de US$ 50 bilhes. J tinha obtido da maioria dosbancos que participaram da operao da Inco o compromisso para uma

    nova Aquisiton Facility, emprstimo ponte utilizado para financiar asaquisies de empresas, geralmente com vencimento em dois anos, cujopagamento efetuado a partir da emisso de nova dvida por parte daempresa adquirente, por intermdio de aes, debntures, bonds edemais operaes de crdito de longo prazo que visavam alongar o perfildo seu endividamento. Tais operaes se multiplicavam no mercado face afartura de liquidez dos bancos e a necessidade de aplicar esses recursosem novos ativos. Como a empresa Brasileira figurava entre as maiscobiadas pelos bancos internacionais e domsticos, dado o seu vigorosocrescimento e ao fato ter se tornado a maior produtora de minrio deferro mundial e a segunda maior mineradora diversificada do mundo, nofaltariam recursos para mais essa empreitada. Como forma de levantar

    parte dos recursos para aquisio a Vale anuncia ento uma oferta pblicade aes. Em Agosto de 2008 a empresa concluiu o processo, levantandoR$ 19,43 bilhes, resultado abaixo da expectativa inicial, uma vez que umcrise financeira de propores indeterminadas j se anunciava. Nasequncia os acionistas da Xtrata conseguem inviabilizar a oferta hostilda empresa brasileira e o negcio no se concretiza. A veio crise.Conversei depois diversas vezes com os executivos da maior mineradora domundo sobre os desdobramentos desse processo e de como tinharespirado aliviado pelo seu insucesso. Assumir ou financiar uma dvida

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    daquela proporo naquele momento poderia ter sido por demaisarriscado, uma vez que take-out do novo emprstimo ponte poderiano ter sido to tranquilo como foi o da Inco. Alm disso, comemorava ofato da Cia. ter entrado na crise como um caixa robusto depois do IPO, oque muito contribuiu para a forma como a empresa passou pelos dois anosque se seguiram a quebra do Lehman Brothers, em 15 de Setembro de

    2008, marco divisrio de duas eras.

    O que veio na sequncia j foi demasiadamente comentado e analisadopelos especialistas. Parece ser um consenso a concluso da excessivaalavancagem da economia mundial durante os anos que antecederam acrise, grande parte dela gerada pela desregulao do mercado de crditoresponsvel pelo surgimento de operaes financeiras que eram capazde multiplicar a base dos ativos financeiros ilimitadamente. Os reflexos doestouro da bolha de crdito foram imediatos, lanando o mundo numacrise financeira de enorme propores. Multiplicavam os prognsticossobre os anos que se seguiriam e sobre o impacto da crise nas economiaslocais, cada vez mais interconectadas. O risco de uma crise sistmicaparecia inevitvel. Bancos com problema de liquidez e solvncia, retraodo crdito global com impactos direto nas empresas e no crescimentoeconmico, recesso, desemprego e reduo dos investimentos. A crise de1929 volta aos fruns de discusso e a comparao parecia inevitvel. Agrande diferena dessa crise, contudo, era a constatao de que o seuepicentro estava nos pases ricos. O modelo que tinha gerado essedesequilbrio tinha sido inventado no norte e suas consequnciashaveria de arrastar todo o resto do mundo, diziam os especialistas. Asautoridades monetrias do bloco central(EUA e Unio Europeia) agiramcom rapidez para tentar evitar a profunda recesso do incio do sculo XX.Tinham aprendido a lio nas cartilhas monetarista sobre a necessidade

    de manter a oferta de moeda, evitando assim o colapso. Dlares foramdespejados de helicpteros, pelo FED, BCE e pelo Banco Central daInglaterra, na tentativa de garantir a liquidez mundial. Se a crise tinhaculpados, esses pareciam ser as complicadas estruturas financeiras,chamadas derivativos, que se tornaram as estrelas do ciclo virtuosode crescimento mundial, garantindo a liquidez necessria para promover omilagre da multiplicao dos recursos em circulao. De heris aviles. Antes da deflagrao desses eventos, tinha tido a oportunidadede conversar com o ex-ministro da economia, Gustavo Franco, em umevento patrocinado pelo Banco, que o tinha sido convidado para atuarcomo palestrante e aproveitei para perguntar sobre o enigma da dvidapblica norte-americana. Como era possvel sustentar uma dvida em

    crescente e em contnua elevao e de onde viriam os recursos para acontinuar financiando? A resposta do economista foi simples. Da cirandafinanceira gerada pelos crescentes lucros dos short-sellers(Hedge Funds,Bancos de Investimentos e demais especuladores do mercado financeiro),que a retroalimentavam a partir da montanha de capital fictcio emcirculao.

    O clima de nervosismo que tomou conta do mercado financeiro aps aecloso da crise, no final de 2007, contrastava com o sentimento que

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    tinha se apoderado do mercado a partir do incio do sculo XXI. Em ummundo cada vez mais interconectado atravs das transformaestecnolgicas que permitiram a constituio de uma aldeia globalconectada atravs de uma grande rede, encurtaram-se as distncias ealterou-se o conceito do tempo. Num espao virtual de contnuacirculao de bits e bites as economias mundiais experimentaram um

    perodo de prosperidade onde a fartura de liquidez permitia arealizao de macios investimentos a partir da facilidade como que ocapital passara a circular de um lado a outro do mundo numa velocidadeimpressionante. O capital circulante suportava transaes diversas queiam do financiamento das operaes de fuses e aquisies dos grandesgrupos empresariais a parcerias pblicas/privadas que viabilizavaminvestimentos em diversos projetos de infra estrutura, construes deportos, ferrovias e empreendimentos de gerao e transmisso de energia.Grandes grupos empresariais se internacionalizavam expandindo-se, cadavez mais, para alm de suas fronteiras e no faltava capital para financiarsuas estratgias de crescimento, representados por investimentos emttulos e papis da dvida pblica e privada emitidos por empresas egovernos. Paralelamente, as instituies financeiras e investidoresespalhado pelos quatro cantos buscavam multiplicar o capital emcirculao atravs de investimentos que, muitas vezes, no guardavamrelao com os projetos em curso na economia real. Assim os ndicesfinanceiros negociados em bolsa e em balco assumiam umaimportncia crucial para a retroalimentao da ciranda financeira, querfosse funcionando como proteo para as oscilaes dos preos dos ativosem circulao ou como forma de rentabilizar o capital atravs de posiesde investimentos que especulavam a variao do preo do ativo no curtoprazo e engordavam o lucro dos portfolios das carteiras geridas porassets managers que concentravam trilhes de dlares. A necessidade

    de remunerar essa capital em circulao empurrava os investidores amercados diversos e o resultado disso podia ser sentido a partir da fortedemanda verificada quando das operaes de emisso de dvida ou deaes. Novas emisses se multiplicavam em uma proporo impressionantee a demanda dos investidores era surpreendentemente alta. Quando amineradora Vale foi a mercado refinanciar o emprstimo de US$ 18 bilhesatravs da emisso de debntures, eurobnus e operaes de crditobilaterais ou sindicalizadas com diversas instituies financeiras, a fortedemanda por esses ttulos permitiu que a empresa refinanciasse o valortotal da dvida assumida junto aos bancos bem antes do prazo por elesestipulado para o take-out do emprstimo ponte utilizado paraadquirir a mineradora canadense de nquel. IPOs se sucediam nas

    diversas bolsas de valores ao redor do planeta e qualquer projeto, aquelaaltura, parecia ser vivel, face ao grande volume de capital em circulaoe disposto a assumir riscos cada vez maiores com vistas a propiciar suaremunerao.

    Tudo estaria perfeito se no fosse a constatao de um desequilbrio entreo volume de ativos financeiros em circulao e a quantidade de riquezagerada globalmente pelas economias mundiais. Essa desproporodenunciava que o nvel de alavancagem dos devedores tinha ultrapassado

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    um limite seguro. Afinal, vivamos na era da desregulao do capital e dacrena no mercado como entidade capaz de corrigir as distores geradasno processo das trocas globais. Na prtica o que se assistia, no entanto,era a paulatina desvinculao das transaes de Wall Street e MainStreet, principalmente nos pases do bloco central.

    Nos anos recentes, j nos voltvamos para Wall Street comoum todo para aconselhar-nos sobre como administrar ocomplexo sistema da nossa economia. E agora a quemhavemos de recorrer? (Joseph Stiglitz - O mundo em quedalivre)

    A reao em relao ao estouro da bolha gerada por uma excessivaalavancagem do sistema financeiro mundial, no se deu de formaunssona. Isso porque, embora as economias mundiais estivesseminterconectadas em uma grande rede, havia uma diferena na forma comoera administrado o complexo sistema econmico pelos diferentes pasesque o compunham. Logo de sada, falou-se na inevitabilidade de umcontgio sistmico e de como, mais cedo ou mais tarde, todas aseconomias locais sofreriam as consequncias da crise financeira que tomouconta dos EUA e na Unio Europeia. Porm o que se seguiu a esses eventosparece ter surpreendido, pelo menos aqueles que insistiam em afirmar serimpossvel existir um decoupling a essa altura do campeonato, em ummundo cada vez mais interconectado. Enquanto os governos e asautoridades monetrias dos pases responsveis pela gerao da crisecorreram para garantir a liquidez do sistema financeiro atravs da injeode recursos nas suas principais instituies financeiras, visando garantirsua capacidade de honrar os compromissos assumidos junto ao mercado,

    as aes nos pases ditos emergentes, eram dominadas pela tnica degarantir o crescimento de suas economias, uma vez que ele tinha sido oresponsvel pelo novo patamar de desenvolvimento alcanado ao longo daltima dcada. Se os impactos da crise no deixaram de ser sentidos portais economias, principalmente nos dois anos que se seguiram a quebra doLehman Brothers, o dinamismo do crescimento apresentado pelos pasesemergentes, liderados pela grande locomotiva chamada China,propiciou a sada rpida da crise antes que pudesse se falar em umarecesso global. O motivo das diferentes reaes por parte do bloco depases chamados aqui bloco central e bloco emergente no dedifcil explicao, mas requer uma anlise que recue no tempo e tenteavaliar a dinmica de constituio de um modelo que caracterizou toda

    uma era.

    Nas pginas a seguir tentaremos mapear esse processo a partir dos rastrodeixado pelos eventos que marcaram a consolidao do modelo deproduo que se afirmou como hegemnico numa era que ficou conhecidacomo modernidade, a partir da constatao de que estamos vivendo emum limiar entre duas eras. A falta do distanciamento histrico dificulta aleitura dos eventos quando no exato instante do seu curso. Da serarriscado prever qualquer desdobramento sem incorrer em redues,

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    antecipaes temerrias ou mesmo errneas consideraes. Contudo acerteza de que estamos experimentando um reordenamento do centro degravidade da economia mundial nos direcionou no passeio pelos eventosresponsveis pela ascenso de um grupo de pases que passaram a gerir osistema econmico global, ditando as regras que deveriam ser aceitas eseguidas pelos demais agentes, que em ltima instncia se limitavam a

    figurar como coadjuvantes desse processo. A emergncia de uma novaordem, portanto, conta um pouco da histria do alinhamento da formaodo corpo da sociedade moderna, a partir de um olhar que privilegia o novopapel das economias que sofreram, ao longo dos ltimos seis sculos, asconsequncias da empreitada dos pases do bloco central, responsveis porditar o ritmo das transformaes que se espalharam pelo mundo duranteesse perodo. Ex-colnias, pases pobres e subdesenvolvidos,pases da periferia, pases emergentes as expresses semultiplicaram para tentar definir um grupo de agentes vistos atravs doolhar etnocntrico dos criadores e gestores do modelo de civilizao quese afirmou a partir do sculo XV. Agentes que no mximo eram tidos comofundamentais para atender os interesses dos pases que se alinharam emtorno de um projeto de construo de um novo mundo, que expandiu suasfronteiras ao mais remoto canto do planeta e transmitiu suas prticaseconmicas, cultura, cincia, tecnologia e sistema poltico ao resto dapopulao mundial de forma irresistvel. Esse processo, porm, no se deude forma tranquila e indolor e sim atravs da uma longa histria desofrimento e dominao de grande parte do mundo civilizado e deixouuma alta conta no que diz respeito ao excluso de uma parcelamajoritria dos habitantes do planeta aos benefcios produzidos por essemodelo de desenvolvimento.

    Se a virada do milnio trouxe um novo sculo onde a preocupao sobre a

    possibilidade de um grande bug que colocasse em risco os sistemas decomputadores espalhados por todo o planeta, ela trouxe consigo, tambm,marcas que apontam a passagem para um tipo de sociedade onde asinformaes digitalizadas em bits e bites assumem, definitivamente, umpapel que ir revolucionar as formas de estar junto e entrar emconflito. No rastro dessas transformaes misturam-se a histria de umacivilizao que se caracterizou pela alta capacidade inventiva com quepassou a lidar com os problemas inerentes ao confronto do indivduodito, por si mesmo, humano e a natureza interna e exterior ao longo doprocesso de sua insero na realidade que o cerca. Os reflexos dessacapacidade podem ser acompanhados a partir das conquistas que seseguiram a afirmao da civilizao da razo, que esquadrinhou a

    realidade em suas frmulas e leituras do movimento impessoal do mundoao redor de si. Os impactos desse desenvolvimento tambm podem serverificados, sob um ponto de vista de consequncias nem semprepositivas, no que diz respeita a sua sobrevivncia sobre o planeta quehabita. A opo de abordagem dos temas que se seguiro a essas palavrasintrodutrias passa pela eleio de um dos impactos mais visveis dessemodelo de desenvolvimento que a concentrao de riqueza nas mos deuma pequena minoria que nega a maioria dos indivduos o direito decompartilhar os avanos produzidos pela civilizao nesses ltimos

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    seiscentos anos. Se a era moderna foi capaz de alcanar um estgio dedesenvolvimento sem precedentes num curto espao de tempo, no quediz respeito a melhoria das condies de vida do indivduo sobre a esferaterrestre, ela no foi capaz de distribuir esses benefcios em escalaplanetria. A emergncia de uma nova ordem traz a esperana de que oatual estgio da civilizao produzida pelos seres da linguagem possa

    promover os ajustes necessrios a estender os benefcios alcanados agrupos de pessoas e pases que ficaram de fora do jogo por muitotempo. Nesse sentido, estabelecer um limiar entre duas eras funcionariacomo um ponto de inflexo que carrega a esperana de transformaesque abarque no s o desenvolvimento dos sofisticados processos deinterao entre homem e natureza na gerao de benefcios palpveis,mas que coloque os benefcios gerados a servio da enorme populao quese acumulou nas bordas dos cus, dos mares e dos continentes, que beiraa casa dos sete bilhes de habitantes desse planeta chamado terra.

    O processo de interao dos indivduos nas tramas produtoras dacivilizao ao longo dos embates de foras diversas que se sucederam edesembocaram es formas distintas de organizao, equilibraraminteresses que foram estratificados na cristalizao dos corpos sociais.Trafegar por essas estruturas requer, de sada, um roteiro e marcadoresque viabilize a navegao por caminhos crivado de atalhos, curvas, saltose descontinuidades. Assim escolhemos um roteiro econmico eselecionamos alguns marcadores para facilitar essa tarefa. As escolhasrefletidas nesse livro advm de uma trajetria particular e trazemelementos que coexistiram ao logo dela e foram embalados por uma buscaque nunca se props a fornecer respostas mas se constitua em formularperguntas silenciosas. Esse mtodo no preserva a imparcialidade da linhaargumentativa construda ao longo da anlise de alguns eventos,

    propositalmente e porque faz algum tempo que aprendi o perigo que poderepresentar certas neutralidades para a tarefa de um cartgrafo dascincias humanas. Contudo o pudor da impreciso ou o temor de que aspalavras possam levar o leitor para muito longe do objetivo inicial daargumentao est presente no excesso de aspas que se multiplicam notexto. Elas talvez sejam uma tentativa de apropriao parcial de certossignificados que as expresses passam a carregar quando extirpadas dasbocas que tantas vezes j a disseram, mas que a revestem, ao mesmotempo, de uma multido de significados no ditos ou apenas intudos noato de repeti-las sistematicamente. O fato de sempre ter trabalhado emuma instituio financeira e de nos ltimos dez anos ter extado expostodiretamente as tramas do mercado financeiro, embora tenha facilitado a

    tarefa de discorrer sobre determinados assuntos, trouxe um dvida queacompanhou todo a feitura do texto, sobre o quo excessivamentetcnico estava sendo quando da escolha de manter determinadasterminologias de mercado, jarges sobremaneira comuns s pessoasde mercado mas nem sempre so to usuais fora desse crculo. Contudo,com a crise financeira que acometeu o mundo em 2008, alguns temastornaram-se mais familiares ao grande pblico que vive distante dosderivativos e das operaes de aquisies alavancadas, uma vez queela trouxe consequncias que afetaram a vida cotidiana dos

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    consumidores ao redor do mundo. Mesmo tocando em alguns temas noto prximos ao dia-a-dia das pessoas de fora do mercado financeiro, aabordagem construda com a Emergncia de uma nova ordem, servir,no mnimo como uma bssola para o leitor que pretenda ter acesso a umpanorama geral do processo constitutivo desse modelo de civilizaoque ficou conhecido como modernidade a partir de temas relacionados a

    sua consolidao na forma de um sistema econmico, sistema depensamento e sistema poltico, representados pelo Capitalismo,Racionalismo e pela Democracia, no desfiar de uma trama que pode levaras linhas a universos distantes daqueles que preenchem o senso comum.No houve como me furtar, tambm, de uma reflexo filosfica sobre esseprocesso de consolidao e sobre a possibilidade de se pensar numa novaera como o resultado dessas combinaes que passei a chamar desobremodernidade. Embora ela tenha sido concentrada na unidadeintitulada de Interldio filosfico, atravessa todo o texto da mesmaforma e com o mesmo vigor das linhas de fuga que nos remetem auniversos sempre em branco, onde os significados ainda no se formaram eo sentido como um acontecimento insiste em se insinuar.

    Bem vindos a emergncia de uma nova ordem.

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    INTRODUO

    verdade que as cincias do homem, com seus esquemasmaterialistas, evolucionistas, ou mesmo dialticos, esto ematraso em relao riqueza e complexidade das relaescausais tal como aparecem em fsica ou mesmo em biologia. A fsica e a biologia nos colocam em presena de causalidade savessas, sem finalidade, mas que no deixam de testemunharuma ao do futuro sobre o presente, ou do presente sobre o passado: o caso da onda convergente e do potencialantecipado, que implicam uma inverso do tempo. Mais que oscortes ou ziguezagues, so essas causalidades s avessas querompem a evoluo. Do mesmo modo, no campo de que nosocupamos, no basta dizer que o Estado neoltico ou mesmopaleoltico, uma vez surgido, reage sobre o mundo circundantedos coletores-caadores; ele j age antes de aparecer, como olimite atual que essas sociedades primitivas conjuram por suaconta, ou como ponte para o qual elas convergem, mas que noatingiram sem se aniquilarem. ( Gilles Deleuze - Mil Plats, Vol.

    5, p.120)

    No incio de 2008, falava-se em alguns bilhes de dlares, mas logo sechegou concluso que era muito mais. O fato que, mesmo depois doreconhecimento pblico por parte de algumas instituies financeiras dasperdas sofridas com os ttulos lastreados em emprstimos imobilirios"subprime"', e agora, no momento em que o mundo assiste os ativosrelacionados dvida dos Governos Europeus encolherem nos mesmosbalanos onde repousavam os ttulos imobilirios, ningum sabe ao certodimensionar o tamanho das perdas. Enquanto os grandes bancos Europeusesto espera de medidas advindas dos agentes do Estado para adquirir

    ativos financeiros com problemas, o fluxo dos capitais assume umacuriosa direo. Acostumados, em tempo de crise, a correr para os ttulosdo tesouro americano, os investidores, quem diria, frente ao imensodficit em corrente dos EUA que coloca em cheque a estabilidade damoeda americana, o menor crescimento da economia dos pases centrais(EUA e Europa) e a incerteza decorrente da crise do crdito nesses pases,reforam sua posio nos mercados emergentes. De acordo com aEmerging Portfolio Fund Research (EPFR Global), os investidores jdirecionaram grande soma de recursos para os fundos destinados aos

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    mercados emergentes, dos quais grande parte foram alocados depois dafase mais aguda da crise do subprime enquanto sacaram suas posies dosfundos dedicados aos Estados Unidos, Europa e Japo.

    As perguntas que continuam no ar no momento em que o mundo se deparacom mais uma das diversas crises financeiras que tem se revelado quase

    como uma tnica do sistema econmico e financeiro vigente so: qual aextenso das perdas? Para onde os investidores partiro s compras? Qualo impacto que ela trar para o sistema econmico-financeiro mundial,hoje, interconectado numa grande rede? E qual o modelo produtivo quepoder surgir neste incio de sculo?

    Os recursos oriundos de investidores espalhados pelo mundo ao longo dasltima quatro dcadas em busca de ganhos multiplicados pela ao degovernos e bancos, e redistribudos em larga escala, ressaltam umaparente paradoxo que intrnseco ao modelo produtivo instaurado nessanova aldeia global. Este aponta para um aparente descompasso entre asexpectativas de crescimento no confirmadas e vem reforar a ideia dadominncia da esfera financeira sobre a produtiva. Ou seja, esta lgicadesvincula a atratividade dos ativos financeiros, dos processos deproduo e da concretizao dos projetos de crescimento da economiareal. A lgica que determina o comportamento dos agentes, famlias,empresas e instituies financeiras, doadores de recursos quemovimentam o modelo de produo global est cada vez mais atrelada aexpectativa de variao do valor de mercado do ativo investido no curtoprazo. Desta maneira, torna-se cada vez mais comum nos depararmoscom casos em que, comparado o valor de mercado de uma determinadaempresa, percebemos o descompasso entre o seu valor financeiro medidopelo preo com que suas aes so negociadas, e seu desempenho na

    economia real. claro que esta aparente contradio ou mesmo estepossvel paradoxo, mais do que inspirar curiosidade, levanta interessantesquestes sobre o modelo de capitalismo experimentado ao redor do mundonos ltimos anos. Este modelo nos apresenta um bloco de pases que aolongo dos ltimos sculos desempenharam um papel fundamental naconsolidao da ordem econmica mundial, mas que se vem diante deuma severa crise, ao lado das economias ditas emergentes, cujaparticipao nesta ordenao sempre foi marginal, vivendo um dos maisvigorosos ciclos de crescimento que o mundo moderno tem assistido. Seno podemos aqui destacar todas as questes vinculadas a este paradoxo,uma nos parece sobremaneira confirmada: os fluxos de capitais que sedescolaram dos fluxos de comrcio e produo mundiais aos poucos

    tendem a voltar a promover o crescimento das economias que sempresofreram com sua volatilidade.

    Ser que a crise instaurada nos pases da Unio Europeia (EU), adeteriorao da economia Norte Americana e o novo posicionamento dospases da sia, frica e Amrica Latina no fluxo da economia mundial,outrora sempre avaliado sob a perspectiva da assimetria centro xperiferia, representaria um elemento de alteridade ou efeito detransbordamento que compe os corolrios de transformao de um novo

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    estgio de desenvolvimento econmico mundial que fara emergir umanova ordem mundial?

    Joseph Schumpeter (1883-1950), em suas anlises tericas sobre os cicloseconmicos, levantava questes acerca dos princpios de estabilidade e

    permanncia confrontados com os processos de mudana que carregam emsi o germe da alteridade e da transitoriedade do sistema capitalista.No incio do ano de 1931, em meio a grande depresso econmica que seabateu sobre o mundo ocidental, a partir do crash de 1929 em WallStreet, Schumpeter proferiu uma srie de conferncias na Universidade deTquio, que foram compilados em trs artigos, um deles denominado: TheTheory of the Business Cycle. Em seus demais trabalhos ao longo de sua vidaacadmica, o economista nascido no antigo imprio Austro-Hngaroprocurou descrever os movimentos do modo de produo capitalista,ressaltando a importncia do progresso tcnico na dinmica dodesenvolvimento econmico. Para ele, o capitalismo estaria orientado apartir de sries que evoluem em ciclos de equilbrio, inovaes,instabilidade e rupturas, refletindo perodos de prosperidade e depressoonde os eventos se conectam e a alternncia entre as fases seriamfenmenos estruturais do prprio ciclo. Contudo, para Schumpeter, oprogresso econmico se d atravs de ondas que coexistem em diferentesnveis de flutuao, que ao convergirem para um mesmo ponto geramgrandes picos ou grandes desaceleraes. O ponto central da anliseschumpeteriana reside na mudana qualitativa que determinadasalteraes tcnicas trazem para a vida econmica, ao ponto deprovocarem uma ruptura no equilbrio de um determinado fluxo,produzindo mudanas no rumo dos acontecimentos que levam a economiaa um novo estgio. Assim, a evoluo econmica se caracterizaria por

    rupturas e descontinuidades em padres tcnicos que introduzemnovidades na maneira do sistema funcionar. As mudanas, desta forma, seoriginariam na maneira distinta de combinar materiais e foras. Osrecursos j estariam disponveis na sociedade, estando empregados ematividades j consolidadas num fluxo circular de equilbrio. So as novasmaneiras de combin-los, juntamente como novas tecnologias, retirando-os dos locais onde se acham empregados e alocando-os em novasatividades, que vo produzir, ento, o que Schumpeterchamou desenvolvimento econmico. Para ele, o motor dodesenvolvimento econmico age atravs da substituio de maneirasobsoletas de se combinar os recursos por novos arranjos que se apoiam emnovas tecnologias e que surgem a partir da destruio do equilbrio

    circular de um antigo modelo. Assim, por destruio criativa seentenderia o processo de sucateamento das velhas tecnologias e dasvelhas maneiras de se fazer as coisas para que se possa ceder o espao aonovo, com vistas a se atingir o desenvolvimento econmico.

    Ao mundo sobremoderno1, e a se entenda uma exacerbao dos principaiselementos que caracterizariam as sociedades ditas modernas, assiste um

    1 Carlos Henrique Machado Introduo a Discursos Sobremodernos

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    processo de alterao nos modelos consagrados de se pensar e fazer.Assim, a pergunta que se sugere : quais foram as novidades inseridas nofuncionamento do modelo econmico sobremoderno e em que tecnologiaelas esto apoiadas?

    O Socilogo polons Zygmund Bauman, em suas abordagens sobre

    as novas condies da vida social, poltica e econmica na modernidade,cunhou um conceito que passou a refletir os novos aspectos da vidahumana na sociedade sobremoderna. Este novo momento se afirmaria apartir do maior dinamismo e maior velocidade das trocas entre os agentesnum processo de integrao global com grandes consequncias para aexperincia individual humana e sua histria conjunta. Assim, o principalfundamento do pensamento de Bauman se apoia numa das caractersticasfsicas dos lquidos egases: afluidez. O que mais nos desperta a atenono todo da argumentao baumaniana sua tentativa de caracterizar onovo estgio da civilizao moderna atravs de metforas sempre ligadasaos principais princpios da fluidez. Da a sua abordagem ter desembocadoem obras com ttulos sugestivos como: Modernidade Lquida, AmorLquido, Vida Lquida e Medo Lquido. Na base da ideia de fluidezencontra-se a ideia de mobilidade, que, segundo Bauman, facilita aalterao da forma dos lquidos diferentemente dos slidos, que "fixam oespao e prendem o tempo.

    "Os fluidos se movem facilmente. Eles fluem, escorrem, esvaem-se,respingam, transbordam, vazam, inundam, borrifam, pingam; sofiltrados, destilados; diferentemente dos slidos, no so facilmentecontidos - contornam certos obstculos, dissolvem outros e invademou inundam seu caminho." (Modernidade Lquida - Jorge ZaharEditor, p.8)

    Aproveitando a ideia de fluidez e de como a sobremodernidade sefundamenta nas relaes caracterizadas pela impermanncia,transitoriedade e liquefao dos vnculos, nos permitimos propor umaanlise que se apoie nestas caractersticas, a partir de uma consequnciaeconmica destes novos estados de coisas, a saber: a desregulamentaodo capital financeiro e a base tecnolgica das novas conexes globais queviabilizam as instantaneidades das trocas materiais e subjetivas num novoestgio do desenvolvimento econmico mundial. a liquefao dos velhosvnculos que permite que os dados sejam reunidos e reclassificados a todotempo, dada a velocidade, fluidez e alternncia de suas naturezas, queno assumem uma forma fixa nem estvel. Assim, o escopo das anlises

    que objetivam descrever esta nova ordem global deve ser tomado naperspectiva de se seguir o fluxo dos acontecimentos atravs da fluidez deconceitos que se flexionem e se toram a partir dos choques dosacontecimentos que se cruzam no meio da trama social. Porm, o que severifica na ltima sequncia dos acontecimentos, indiciados com a crisefinanceira de 2008, parece reforar a ideia de que apesar do mundosobremoderno ter exacerbado a mobilidade, principal marca da eramoderna, alm de ter conseguido um nvel de integrao global semprecedncia, ele nos apresenta uma nova caracterstica que nos faz

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    perceber um aparente descolamento entre as economias mundiais, adespeito de sua cada vez maior interconexo.

    A atual desacelerao econmica experimentada pelos EUA e pelos pasesda Europa, frente a manuteno de um crescimento acelerado de pasesao redor do globo, mesmo diante de um cenrio de forte globalizao dos

    contedos mundiais, sugere que o funcionamento da economiainternacional j no o mesmo dos ltimos quarenta anos. Assim, asanlises devem estar sensveis a esta nova realidade. O WEO (WorldEconomic Outlook) do FMI, publicado em 2007, intitulado Spillovers andCycles in the Global Economy, j considerava que no atual estgio daeconomia mundial onde o cmbio flutuante, a desregulamentao dosfluxos financeiros e do fluxo de mo de obra, juntamente com asinovaes das tecnologias de comunicao que permitem a gilrealocao de recursos atravs do livre fluxo de capital, seriam osprincipais "spillovers" para a manuteno da boa performance da economiaglobal, a despeito da crise de crdito e da desacelerao na economia dobloco central.

    Talvez seja errneo se pensar num paradoxo quando se colocam juntos ainterconexo das economias mundiais e o descolamento dos eventoslocais. As anlises deveriam reformular seus postulados para quepudessem refletir, de fato, os novos arranjos do atual modelo econmicomundial. Diferentemente do que se acreditava, os espirros dos EUA jno gripam tanto assim.

    Nada simples como foi no passado. cada dia mais desafiadorentender o que est se passando no mundo e suas conexes entreas economias." ( Jos Roberto Mendona de Barros - Panorama

    Econmico - Mriam Leito, O Globo, Edio de 02/04/2008)

    A atual crise das economias do bloco central em contraste com a pujanae vitalidade das economias dos pases ditos emergentes tem levantadouma discusso que aponta para uma nova realidade. Diversos analistas tmtentado avaliar at que ponto se poderia afirmar haver espao para sesupor um possvel descolamento que imunizasse as demais economiasmundiais dos efeitos da atual turbulncia enfrentada pelos pases centrais.Num mundo amplamente conectado atravs do aprofundamento doprocesso de globalizao, haveria de se supor a impossibilidade de umdescolamento dos eventos, o que limitaria a discusso a se tentar preverquanto tempo seria necessrio para que uma recesso nas maiores

    economias do planeta, aliada a uma severa crise no crdito, contagiasse osdemais agentes globais. Esta avaliao reforaria a ideia de umacontradio entre os fenmenos da globalizao e do descolamento.Contudo, este paradoxo poderia ser superado se considerssemos vlida aseguinte premissa:

    As conexes globais da sobremodernidade se do em forma de rede e nomais de forma sistmica.

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    A noo de rede permite escapar aparente oposio entre o local e oglobal e nos faz concluir ser possvel evitar uma crise sistmica deproporo global, mesmo estando em crise as principais economias doglobo. O ponto de partida dessa anlise deve residir na diferenciaoentre os conceitos de sistema e de rede, e seu impacto no atual processode globalizao econmica mundial.

    Os sistemas so concebidos como agregados mecanicistas de partes, emrelaes causais separadas umas das outras, o que resulta em umaconcepo de causalidade linear unidirecional. J a noo de rede designauma estrutura de interconexo na qual os elementos em interao, ligadosentre si, formam um conjunto instvel onde o fluxo dos contedos noapresenta a sequncia linear de um sistema. Ao invs de umdesenvolvimento linear, as conexes da sobremodernidade devem serentendidas na perspectiva de um horizonte mvel e numa lgica errticade giros e curvas abruptas em lugar de um fluxo que se apoiaria em umarelao linear entre causas e efeitos. A multiplicidade de variveis,arranjos, combinaes, efeitos de sentido e de dimenses aleatrias queproliferam no processo de globalizao sobremoderno apontam paraeventos que, apesar de conectados, mantm certa independncia entresi.

    Este aparente quiasma entre a interconexo e a independncia doseventos pode ser explicado se nos detivermos em pelo menos duas dasprincipais caractersticas do funcionamento de uma rede. A primeira delas a da multiplicao da quantidade de conexes; o sem nmero depossibilidades que se abrem a partir da quantidade de bifurcaesencontradas pelo movimento dos contedos em uma rede. Ela capaz deimunizar o efeito das aes causais durante o fluxo dos contedos,

    isolando elementos e evidenciando a autonomia de diferentesmovimentos. A possibilidade de modificao contnua das linhasconectadas de uma rede imprime novas direes, condicionando, sem,contudo determinar, conexes futuras. Para ilustrar este princpio bastaimaginar o processo de pesquisa em um site de busca na internet. Muitasvezes o contedo original de uma busca deriva, indefinidamente, a partirda quantidade de possibilidades apontadas, a ponto de o resultado finalestar completamente desconectado do primeiro elemento.

    A segunda caracterstica do funcionamento de uma rede omultipertencimento das conexes e da origem e destino dos fluxos;qualquer ponto de uma rede pode ser conectado a qualquer outro, e deve

    s-lo. Diferente de um sistema linear centrado no qual existe um pontofixo a partir do qual todas as relaes se realizam, o funcionamento deuma rede pressupe conexes movendo-se para todos os lados e direesque no obedecem a uma ordem hierrquica ou de filiao.

    Ao entendermos, pelo menos, estas duas caractersticas do funcionamentoda nova rede global, no fica difcil perceber que no existe contradioentre o local e o global, interconexo e descolamento. Basta um pequenoesforo para perceber que o grau de correlao entre os eventos da

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    sobremodernidade est definitivamente afetado por este novo modelo emque entre dois eventos relacionados multiplicam-se uma srie demovimentos e bifurcaes que praticamente os isola ou individualiza.Assim, cada vez mais presente o crescimento de pases como China,Brasil, ndia, Rssia, Turquia e demais pases do sudeste asitico frente auma profunda crise do bloco central, bem como o descompasso entre o

    processo de crescimento dos pases mesmo num mundo cada vez maisconectado. Isso nos faz crer que o descolamento dos eventos ou mesmo deeconomias no s uma possibilidade, mas sim uma caracterstica da novaordem global.

    Com o crescimento do PIB entre 4,0% e 21,1%, alguns deles em patamaresque tem se sustentado por sucessivos perodos, os emerging marketsvm atraindo a ateno de analistas de toda parte. Talvez por elesrepresentarem, em alguma instncia, a esperana da manuteno de umaeconomia global aquecida, mesmo frente s ltimas turbulncias que vmatingindo os mercados financeiros ao redor do mundo, ou talvez pela suafuno de catalizadores de uma mudana, verificada na circulao dofluxo de capital dessa nova economia global que j no pode ser ignorada.Se por um lado as economias em desenvolvimento sempre fizeram partedo processo de alinhamento dos pases em um jogo de dimenso global,este sempre privilegiou as economias do bloco central e empurrou asdemais economias para uma periferia, onde assistiam o desenrolar doseventos e o desenvolvimento de ideias consagradas pela capacidade deequilibrar o processo de produo e consumo nos pases ditosdesenvolvidos, bem como o fluxo de capitais que os sustentavam. Duranteos ltimos quarenta anos, assistimos a consagrao do um ideal de lesse-fairque, se no era uma novidade, foi reforado a partir de um modelo

    que privilegiou os ajustes por intermdio da flutuao dos fluxos decapitais capazes de regular a clssica relao entre demanda e oferta apsum perodo de forte regulao econmica determinada pelo padro deBretton Woods. Contudo, a crise financeira de 2008 trouxe, mais uma vez,um srio questionamento sobre a capacidade dos mercados de seautorregularem, colocando em cheque os instrumentos e as prticas quetentavam esvaziar a importncia e, por que no dizer, condenar aparticipao do Estado no processo de estabilizao dos fluxos econmicosmundiais.

    Uma pesquisa de 2008, realizada pelo Latino Barmetro em 18 pases daAmrica Latina, publicada pela revista Economist e traduzida pelo jornal

    Valor, apontava que a maioria dos latino-americanos estava desiludidacom a economia de mercado e por isso aspiram uma presena maior doEstado com vistas a uma distribuio de renda mais justa e uma maiorproteo social. Com suas reservas cheias de moeda forte, osemergentes tm apresentado para o mundo um modelo dedesenvolvimento econmico em que o Estado tem desempenhado umpapel fundamental na formulao de polticas econmicas como forma deassegurar uma distribuio de renda mais justa e um Estado com maiorproteo social, num retorno a nfase Keneyseana sobre o controle de

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    desemprego, que tem permitido que suas economias venham crescendo deforma sustentvel. Mais curioso ainda que o receiturio liberal, ancoradona estabilidade econmica, forte ajuste fiscal e cmbio flutuante, quetinham sido os responsveis pelos profundos desequilbrios em suaeconomia e pelas sucessivas crises que devastavam suas economias nasdcadas de 80 e 90, ajudou a construir o vigoroso ciclo de crescimento

    destes pases. O que se assiste na nova cena global o crescimento daimportncia dos pases da periferia no fluxo comercial e de capitais naeconomia mundial. Tais pases apresentam-se como enriquecidosparceiros, em grande parte por continuar detendo as principaiscommodites que desde os antigos pactos coloniais so fundamentaispara o funcionamento da mquina econmica global. Alm disso,atingiram certo nvel de desenvolvimento no que diz respeito ainvestimentos e consumo domstico, aps terem seguido o receiturioneoliberal que os mantm como imprescindveis e ao mesmo tempo lhesdo autonomia para gesto de suas polticas, talvez nunca vistas nahistria do desenvolvimento econmico da modernidade, fazendo-osfigurar, definitivamente, como protagonistas e no mais comocoadjuvantes.

    Isso inquieta os economistas e enseja discusses em torno dos modelospolticos de sucesso, fora do padro predominante do bloco central, quetem conseguido implementar um padro welfare state que supere, damelhor forma possvel, o trade-off entre eficincia e distribuio derenda. em nome desta mesma eficincia que a Europa parece estardecidida em implementar certas reformas, revertendo determinadosdireitos sociais (para muitos conquistas e para outros privilgios), e temencontrado uma forte resistncia de sua populao, que se v mergulhadanum processo de empobrecimento, convivendo com ndices altos de

    desemprego.Contrastando com este quadro, nos deparamos com um processo de maiordistribuio de renda que tem sido responsvel pelo aquecimento daeconomia domstica dos pases, outrora, considerados como perifricos,que vem sustentando uma liderana poltica responsvel por implementaras mudanas responsveis pela recuperao e estabilizao de suaseconomias, mesmo que esses modelos se afastem do padro democrticodo ocidente. Como legtimos representantes desse novo corolrio poltico,mesmo sombra dos conflitos que ameaam sua estabilidade, vimos surgirum novo Oriente Mdio atraindo a ateno de investidores mundiais que jse conscientizaram ser impossvel deix-lo de fora dos seus planos globais

    de circulao de capital. Com um crescimento econmico em ritmoacelerado, grande parte graas ao intenso fluxo dos petrodlares, asnaes do GCC (Gulf Cooperation Council) juntas, nos ltimos cinco anos,receberam US$ 3 trilhes pela venda do seu petrleo, de acordo com oInstituto de Finanas Internacionais (IIF), que afirma ser possvel em 2030,a zona do GCC tornar-se a 6 maior do mundo em termos de crescimentoeconmico. Esta regio onde tudo gira em torno de um modelo prpriode crescimento vem demonstrando que a competitividade do setorprivado, o crescimento econmico e os princpios de boa governana

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    corporativa independem de um Estado democrtico ou de eleies diretas.O sistema de governo destes pases, em geral constitudo pelas MonarquiasAbsolutas Hereditrias, no impede que alguns deles possam expandir suaeconomia na casa de 16% ao ano, praticamente o dobro do crescimentochins, o que muito bem pode ser capaz de colocar a regio entre assupostas cinco maiores economias do mundo, ao lado de China, ndia e

    Brasil.

    Se o mundo parece assistir nos ltimos anos um movimento derealinhamento entre os pases como um resultado de uma reacomodaodos movimentos tectnicos que esto alterando o centro de gravidadedo fluxo dos capitais, precisamos entender essa alterao como aresultante de um longo processo no qual a dinmica transformadoramanifesta-se nos eventos de superfcie da vida social, num cicloininterrupto de crise, estabilidade, transformao, ordenamento,equilbrio e rompimento, como um fluxo histrico. A partir deste conjuntomovedio, tenso, vulnervel e sem pausa, produto de um destempero dascircunstncias e das artimanhas do no previsto, temos que situar essastransformaes a partir de conjuntos de eventos especficos quefuncionam como marcadores para um percurso histrico. Estes marcadoresseriam fatos em geral, cujo recorte nos d um tempo histricodeterminado, auxiliando-nos a entender os pontos de mutaoresponsveis pelas mudanas nas formas de produo econmica. A partirdai, elegemos um marcador que ir nos orientar na discusso sobre aemergncia de uma nova ordem: a Grande Depresso de 1929.

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    UNIDADE I

    Um desastre muito mais que monetrio ou o modelo dos desequilbrios

    "Uma Alice confusa e um tanto desconfiada fez lideranarepublicana algumas perguntas simples:

    - A impresso e venda de mais aes e ttulos, a construo denovas fbricas e o aumento da eficincia no produziriam maismercadorias do que poderamos comprar?

    - No - gritou Humpty Dumpty. - Quanto mais produzirmos,mais poderemos comprar.

    - E se produzirmos em excesso?

    - Veja, poderemos vender para os estrangeiros.

    - Como os estrangeiros pagariam por eles?

    - Ns emprestaremos dinheiro.

    Entendo - disse a pequena Alice. - Eles vo comprar o nossoexcedente com o nosso dinheiro? Claro, os estrangeiros iro nospagar de volta com a venda dos produtos deles.

    - Ah, de forma alguma - disse Humpty Dumpty. - Nsconstruiremos um muro alto chamado tarifa.

    - E - disse por fim Alice - como os estrangeiros iro nos devolveresses emprstimos?

    - Isso fcil - disse Humpty Dumpty. - Voc j ouviu falar emmoratria?

    E assim, meus amigos, chegamos ao corao da frmula mgicade 1928."(O Capitalismo Global - Histria econmica e poltica

    do sculo XX - Jeffry A. Frieden)

    Se hoje j seria lugar comum no considerar sustentvel supor que acausa da Depresso de 1929 repousaria, isoladamente, num nico fator,seria de muita utilidade para os analistas das crises sobremodernas umaprofundamento na compreenso do cenrio econmico mundial nadcada de 1920, bem como da estrutura do seu sistema monetrio, no

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    intuito de se demarcar as diferenas e semelhanas entre os contextos dascrises de 1929, 2008 e 2011, assim como o desdobramento destas crises norealinhamento de uma nova ordem mundial que se avizinha. A despeitodas crises experimentadas no seu decorrer, o perodo de 1871 a 1913 podeser considerado como um marco na perspectiva de uma integraoeconmica global.

    Sem grandes conflitos geopolticos entre as grandes potncias mundiais,dentre as quais a Gr-Bretanha destacava-se pela hegemonia de suaeconomia, o fluxo comercial liberalizado permitia a integrao dosmercados mundiais. Aliado a novas tecnologias que abriam espao paraum mercado verdadeiramente internacional e com um padro monetriobaseado no ouro, as autoridades monetrias se comprometiam com amanuteno da conversibilidade atravs de uma intensa cooperaointernacional. Os mercados mundiais de produtos e capitais estavamligados mais fortemente do que nunca neste interldio de excepcionalestabilidade econmica.

    "O padro ouro, o livre comrcio e os novos meios de transportecriaram um mercado global conveniente, acessvel e previsvel".(O Capitalismo Global)

    Contudo, esta nova ordem global convivia com constantes ameaas. Olivre comrcio propiciava a invaso de produtos agrcolas baratos no "NovoMundo", derrubando os preos e devastando muitas reas rurais do "VelhoMundo". As novas tecnologias, se por um lado aumentavam a rendaagregada, por outro desempregavam milhes de trabalhadores. Almdisso, o crescimento econmico se dava em velocidades diferentes, o quegerava abismos tecnolgicos e industriais entre naes pobres ericas. Apesar do mundo estar experimentando sua maior revoluoeconmica, a maior parte dele continuava opressivamente pobre.

    Por volta da virada do sculo, a hegemonia da economia britnica estavaameaada pelo ritmo mais acelerado do crescimento e dodesenvolvimento financeiro em outros pases do Globo. O EUA, emboraainda com um perfil acentuadamente agrcola, j figurava como a maioreconomia mundial e juntamente com outras potncias mundiaisengajaram-se numa batalha comercial cuja proteo de seus mercadosdomsticos era fundamental, questionando, assim, o livre comrcio, quefoi o motor do crescimento da Gr-Bretanha. Alm disso, foi na ltimadcada do perodo que iniciou-se uma nova rodada de expanses

    coloniais na busca por novos mercados, despertando atritos "adormecidos"e embalados pela "Pax Britnica", minando a solidariedade na qual acooperao financeira se baseara at ento.

    O conflito de interesses entre as grandes potncias mundiais e as tensesgeopolticas, naquele ponto generalizadas, culminaram na Primeira GuerraMundial, em 1914. Quando a guerra terminou, em 1918, dentre suasconsequncias destacaramos duas delas, que seriam determinantes para ocurso da economia global at os eventos que iriam desembocar na grande

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    depresso de 1929: a falncia do padro ouro juntamente com oafrouxamento da solidariedade entre as naes, que garantia o seusucesso e a posio hegemnica dos Estados Unidos como exportador decapital e lder da reconstruo da ordem mundial, cuja polticainternacional e diplomacia econmica em muito se afastava da Gr-Bretanha dos clssicos anos dourados.

    Aps a guerra, dentre todas as moedas importantes, apenas o dlarmanteve sua conversibilidade em ouro. A guerra minou dramaticamente acapacidade dos governos em relao conversibilidade de suas moedasdomsticas. Os Estados Unidos chegavam ao fim da guerra com suasreservas abarrotadas de ouro num momento em que o mundo se via emmeio a um processo hiperinflacionrio generalizado. Uma polticadeflacionria e a respectiva manuteno de um cmbio desvalorizadogarantiria s naes o restabelecimento da conversibilidade em ouro desuas moedas. Assim, o padro ouro retornou ao mundo da dcada de 1920,contudo, mostrava-se insatisfatrio em sua misso de equilibrar osbalanos de pagamento das naes e o volume das reservas mundiais.Com um desequilbrio do volume das reservas entre os diversos pases,muitos deles experimentaram uma profunda contrao dos meios depagamento dos seus bancos centrais e uma grande dificuldade deequilibrar suas contas externas. Assim, qualquer perturbao no sistemafazia com que o capital financeiro, que nos clssicos anos dourados fluraem direes estabilizadoras, empreendesse grandes fugas, o quetransformava qualquer perturbao limitada numa crise econmica epoltica.

    E foi neste ambiente que irrompeu o hiperaquecimento das atividadeseconmicas internacionais, no perodo de 1925 a 1929, alimentado pelocapital e pelos mercados norte-americanos. Nesta altura, a Wall Street jtinha substitudo Londres como o centro financeiro internacional e asempresas norte-americanas inundavam o mundo com milhares de filiais.

    "O centro financeiro do mundo, que precisou de milhares deanos para viajar do Eufrates ao Tmisa e ao Sena, passou porHudson entre a alvorada e o anoitecer"(America's Stake inInternational Investments - Cleona Lews).

    Com os Estados Unidos no centro, o mundo assistiu a um novo boom queredundou em um forte crescimento ao redor do globo. Economias semodernizaram, a classe mdia cresceu, trabalhadores organizados se

    tornavam politicamente mais influentes e regimes democrticos seestabilizavam. Contudo, a nova ordem mundial carecia de um regenteconfivel e de uma orquestra harmoniosa.

    Num mundo cindido pela lembrana das trincheiras, o novo regenteclaudicava entre o apoio a livre exposio economia mundial dosemprestadores de Wall Street e o protecionismo da cpula de seus ldereseconmicos. Enquanto o novo regente da economia mundial atingia aimpressionante marca de 45% do estoque mundial de ouro em suas

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    reservas, em 1926 os demais pases alternavam-se em severas crises depagamento que exigiam de seus bancos centrais um aperto monetrio nadefesa de suas reservas cada vez mais precrias. Contudo, a fartura deliquidez alimentada pelo forte crescimento da economia norte-americana,que muito incentivou o "boom" dos ltimos anos ao redor do mundo, seriaum dos fatores da crise que estava por vir.

    Com seu balano de pagamentos fortalecido, os Estados Unidosexportavam cada vez mais o capital que iria financiar o dficit em contacorrente dos demais pases. As altas taxas de retorno geradas pelaescassez de capital ao redor do globo faziam com que o capital norte-americano flusse cada vez de forma mais intensa atravs do Atlntico. Osbnus denominados em dlares no final da dcada de 1920, em nome degovernos e empresas estrangeiras, haviam quintuplicado, tornando omundo cada vez mais dependente da importao do capital dos EstadosUnidos. Contudo, o supervit norte-americano alimentava tambm ocrescimento explosivo de Wall Street. Ao longo de 1927, a partir dapreocupao de que os recursos produtivos estivessem sendo desviadospara o mercado acionrio, que vinha crescendo de forma ininterrupta efrente ao temor provocado pelo crescimento maior dos estoques de moedae crdito do que o das suas reservas de ouro, o FED elevou suas taxas dejuros. Esta medida teve a imediata consequncia de atrair "de volta paracasa" o capital dos Estados Unidos, que naquela altura financiava o restodo mundo, um duro golpe sentido pelos pases que muito dependiam dasimportaes de capital norte-americano. O aumento dos juros tambmcomprometia a credibilidade financeira dos pases fortementeendividados, aumentado o custo de suas dvidas.

    Na segunda metade do ano de 1928, os emprstimos norte-americanos aoexterior caram a quase zero. Com a interrupo do fluxo de capital paraos pases deles dependentes, comeou a queda de sua demanda internacom a consequente queda dos preos dos bens por eles produzidos. Oaperto monetrio do governo dos Estados Unidos j podia ser sentido noincio de 1929, no s pela queda no preo das aes, mas tambm com adesacelerao de sua produo industrial e na queda do preo dascommodities norte-americanas. Com a restrio do fluxo de capitaisnorte-americanos para os pases em desenvolvimento, sobravam para osmesmos duas opes: usar suas receitas remanescentes em moedaestrangeira, para continuar honrando o servio de suas obrigaesexternas, ou poupar as reservas de seus bancos centrais e defender aconversibilidade de suas moedas.

    Assim, os pases da periferia optaram por modificar as regras deconversibilidade e permitiram a desvalorizao de suas moedas no segundosemestre de 1929 e na primeira metade de 1930, o que representou umsignificativo dano ao sistema monetrio internacional, comprometendo aestabilidade nos pases centrais, que nesta altura j experimentavam ocolapso de sua atividade industrial. Logo, os agentes do novo padro ouroperceberam que este no mais funcionava como na "era dourada". J noera mais possvel confiar nos fluxos de capital estabilizadores que no

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    passado haviam financiado os dficits em conta corrente dos pasesindustrializados.

    Com a queda dos preos nos mercados perifricos, ficou mais difcil paraos tomadores de emprstimos junto ao sistema bancrio honrarem seuscompromissos, e os bancos credores, por sua vez, ficaram hesitantes em

    relao aos emprstimos ou a conceder novos financiamentos. Estarestrio no crdito reduziu o ritmo da atividade econmica e asperspectivas das empresas em concretizarem seus projetos decrescimento. Os bancos centrais, desencorajados de intervir em benefciodo sistema bancrio em virtude da prioridade que atribuam ao cambiofixo, associado ao padro ouro, evitaram uma injeo de liquidez quepudesse permitir uma desvalorizao da moeda, pois esta poderia acirrar oclima de desconfiana que vinha provocando um resgate em massa dedepsitos, uma vez que os investidores procuravam evitar as perdas decapital decorrentes da desvalorizao. Neste cenrio, a interveno dosbancos centrais tornar-se-ia uma tarefa das mais difceis, uma vez quecorriam o risco de serem contraproducentes. A depresso era, ento,inevitvel.

    Saltemos cinco dcadas e cheguemos ao ano de 1971.

    Os reguladores lhe haviam permitido correr mais risco porquepensavam que o seu perfil global de risco era administrvel. Acompra do seguro os deixava em boa situao para assumirmais riscos. Sem o seguro, os reguladores teriam exigido que obanco mostrasse ter capital suficiente para enfrentar os riscosque assumia. Se no houvesse o capital, o banco teria de recuar

    dos emprstimos feitos, exacerbando assim a recessoeconmica (O Mundo em Queda Livre Joseph E. Stiglitz).

    O Fim do sistema monetrio internacional de Bretton Woodsem 1973 foi um divisor de guas. Ainda mais do que areconstruo do padro ouro em 1925 ou a restaurao daconversibilidade em 1958, o fim de Bretton Woods transformouas questes monetrias internacionais. (A Globalizao doCapital Barry Eichengreen)

    O mundo assistia a mais uma crise no modelo econmico que passou acaracterizar a organizao das sociedades no incio da dcada de 1970. Osmundos, assim como os modelos, so inventados pelos homens edesenvolvem-se a partir de uma dinmica no linear. Assim, no h comoprecisar a origem das rupturas, dos deslocamentos e das ultrapassagensque se processam no ritmo desenvolvimento. Digo origem significando umlugar ou ponto original do qual todas as coisas brotam e passam a existir.Como toda inveno, ela fruto de um processo que possui em sua baseuma srie de movimentos, alternncias, saltos e giros, at que possaculminar num sentido qualquer que marca a srie de eventos que esto na

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    ponta final da cadeia histrica.

    Os principais motivos da crise financeira que atingiu os EUA e a Europa em2008 tm uma origem mais complexa do que pode supor uma anliseprecipitada. Muito mais que um resultado da imprudncia do mercadofinanceiro e de seus sofisticados instrumentos com os quais aumentavam

    sua capacidade de alavancagem, ela remonta a alterao de um modeloque viabilizou e legitimou a ilimitada possibilidade de se fazer circular ocapital. Se os eventos que sucederam a Grande Depresso de 1929 forammarcados por uma atitude que privilegiava a regulao dos mercados,reconhecendo sua ineficincia em se autocorrigirem, o que se assistiu apartir da dcada de 1970 foi o paulatino retorno da convico naeficincia dos mercados que passou a legitimar o pensamento, as aes eas polticas, como uma espcie de ideal platnico. Contudo, uma ideia quese afirma como forma de expresso no deve ser tomada como um reflexode uma determinada prtica, ou mesmo como seu suporte.Diferentemente, as formas de expresso de determinada sociedade seentrelaam com as diversas aes, agentes e contedos materiais nosdiversos processos que vo amalgamando os sedimentos de umdeterminado modelo de produo.

    Quando Richard Nixon fechou o guich do ouro, em 13 de agosto de 1971,suspendendo o compromisso de entregar ouro a governos credores emdlar, j iam mais de dez anos a que o passivo monetrio dos EstadosUnidos no exterior ultrapassava, pela primeira vez, as reservas norte-americanas de ouro. Com o dlar, que a essa altura j se constitura comoprincipal moeda de reserva sobremaneira pressionado e com a restituioda conversibilidade em conta das maiorias dos pases do Bloco Central, omundo assistia a desregulamentao dos fluxos de capitais, que se moviama despeito do rgido controle do sistema monetrio vigente. As grandescorporaes multinacionais fortalecidas por resultados extraordinriosadvindos dos perodos de estabilidade e forte crescimento econmico quese seguiu ao acordo de Bretton Woods demandavam investimentos emdiferentes partes do mundo. O reestabelecimento de um sistema decomrcio aberto e multilateral estava em pleno andamento. Seriaimpossvel manter o nvel da liquidez mundial atravs de um rgidocontrole e imposies de barreiras restritivas em um sistema onde severificava um crescimento da mobilidade do capital e da crescenteporosidade do seu controle, que face a qualquer ameaa batia em retiradaa procura de melhores remuneraes ameaando a estabilidade dasmoedas. O Sistema Monetrio Internacional estabelecido em Bretton

    Woods nos idos da dcada de quarenta, e que vinha sobrevivendosurpreendentemente a esses desequilbrios, refletia a era de umaadmirvel estabilidade nas taxas de cmbio quando ento foramminimizados os problemas nos pagamentos permitindo a expanso semprecedentes no comrcio e investimento internacionais que alimentaram ocrescimento explosivo no ps-guerra. Contudo, a sobrevivncia do sistemadependia de um rgido controle por parte dos governos dos movimentos decapital internacional e de um equilbrio no balano de pagamentos dospases. Ao longo dos anos que se seguiram, de acordo com o assinado em

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    Bretton Woods, os governos e os bancos centrais complementavam suasreservas de ouro com divisas estrangeiras e assim geravam sua prprialiquidez. Isso se dava, fundamentalmente, a partir da acumulao dedlares e refletia a posio dominante dos EUA no comrcio e nas finanasinternacionais e no grande estoque de ouro norte-americano. Assim, osEUA podiam incorrer em dficits em seu balano de pagamento do

    tamanho equivalente ao montante de dlares que os governos e bancoscentrais estrangeiros desejavam adquirir. Uma vez iniciado o movimentomacio no sentido de converso das reservas de dlares dos credores emouro, um crise de liquidez no sistema estaria instaurada.

    A atitude do governo americano era um fato consumado na medida emque suspendia o compromisso da converso do dlar em ouro, aliada aoutras aes, numa atitude que visava aliviar a presso sobre a moedaamericana e evitar sua desvalorizao, mantendo sua soberania comomoeda de reserva internacional de liquidez e o equilbrio da sua contacorrente. A essa altura, ficava evidenciada a inadequao dos mecanismosde ajuste disponveis pelo sistema monetrio que vigorara at ali e aenorme dificuldade de operar um sistema de cmbio fixo em face decapitais de extrema mobilidade. Haveria, no entanto, de se buscar umambiente de extrema cooperao internacional sem a qual seriaimpossvel fazer um novo sistema funcionar. Estava posto um divisor deguas que iria contribuir para uma nova modelagem e o surgimento deinstrumentos que viriam dar conta do aumento da mobilidade de capitaisao redor do globo.

    A organizao do mundo - vida, expresso que define valores, aes ecomportamentos consagrados pelo cotidiano - traz no seu bojo prticasque refletem um conjunto de fatores responsveis pela consolidao desedimentos sociais, culturais, polticos e econmicos, atravs de arranjosque se apoiam numa determinada lgica, que passa a legitimar osdiscursos e a orientar a dinmica que permeia as aes dos diversosagentes que compe o corpo de um determinado agrupamento. Paraentendermos como certas expresses sintetizam as prticas dominantes deuma determinada poca histrica, precisamos averiguar o processo quepermite com que essas expresses se tornem mximas que no carecem demaiores explicaes por parecerem se afirmar a despeito de seu contextohistrico. O mercado parece uma dessas mximas e a compreenso doprocesso constitutivo dessa expresso nos auxiliar a compreender oprocesso que constituiu a forma de agrupamento que se consolidou aolongo dos ltimos trs sculos, e que se nos apresenta at os nossos dias,

    resguardando as principais caractersticas responsveis por suaconsolidao e suas realidades autnomas, conhecidos como Estado eSociedade. A sociedade que ficou conhecida como moderna deita suasrazes em um ambiente de profunda ruptura com um modelo vigente, ondea fixa estratificao das partes do corpo social estabelecia o equilbrioentre os diversos agentes que se relacionavam no seu seio.

    A transio para o modelo de sociedade que encontramos na modernidadetrouxe no seu bojo ideias, interesses e princpios que deram corpo aos

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    movimentos que transformaram a sociedade nos novos tempos, impondonovas formas de pensar, agir e se organizar institucionalmente. QuandoAdam Smith afirma o protagonismo do mercado como uma arena, ondeatuam em livre competio os segmentos que se articulam na sociedadecivil, assim o faz como reflexo de um ambiente onde se estabelecia umanova dinmica competitiva na busca da realizao material dos agentes

    sociais. A esse jogo ordenado por uma mo invisvel deve-se a criaopelo trabalho de um coletivo annimo, da riqueza das naes. Omercado, ento, passa a ser o fator responsvel por regular a ordem ondese articulam os agentes diversos de uma sociedade onde o poder civilrompia e se impunha ao Estado Absoluto, moldando uma sociedade quetinha o conceito de mobilidade como sua principal caracterstica. Os novostempos trouxeram tona diversos grupamentos intelectuais, artfices,mercadores e empresrios - lutando pela ampliao de seu direito aopoder e ao progresso material. Diferente do ancien regime, que punha deum lado a nobreza ociosa e de outro o campesinato servil, o novo modelode sociedade privilegiava a mobilidade como um fator que permitiriadistribuir o acesso aos bens produzidos coletivamente entre as diversasclasses de agentes da sociedade.

    Sob o ponto de vista poltico, teve incio o grandeexperimento da democracia moderna e o fim do absolutismopersonalizado; sob o ponto de vista social o dramtico aumentoda mobilidade social, com a ascenso de novas classes ao poder;sob o ponto de vista econmico uma forma de produo que sesustentava no trabalho livre, no uso da energia produzida a partir da queima de combustveis fsseis, no domnio daracionalidade funcional para balancear custos e benefcios,implicando num desdobrar crescente de investimentos decapital em cincia e tecnologia; sob o ponto de vista culturalnovos modelos de pensamento dominado pela imagem de ummundo fragmentado (...) cria-se historicamente um espao gelatinoso sobre o qual no se logra fixar nenhum consenso.Tudo se altera rpido e uma nova utopia surge como ltimaesperana. Sua base a slida confiana no potencial da cinciacomo elemento capaz de, pela via de sua aplicao prtica, atecnologia, encontrar a salvao. Tudo decorrente de ter sido aacelerao de mudanas incorporadas agenda dos tempos(Reflexes Sobre a Crise Moderna - Nelson Mello e Souza).

    Se por um lado a mobilidade das estruturas sociais foi determinante paraos avanos que levaram a sociedade moderna a representar uma pocacaracterizada por um progresso material sem precedentes, fruto de umanova racionalidade que comandava os modos de produo, ela carrega umdesequilbrio intrnseco que acaba funcionando como um motor dedesenvolvimento do sistema econmico que se instala em diversas

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    dimenses das estruturas sociais e que se desloca sem parar numavelocidade que aumenta a cada novo salto. Se Schumpeter j destacava adestruio criadora como uma caracterstica a partir da qual sesustentava o sistema econmico da modernidade, atravs de rompimentossequenciais da cadeia produtiva, a mobilidade do sistema e suacapacidade de se desenvolver a partir dos desequilbrios parece ser o

    trao que acompanhou no s o sistema econmico e o seu modo deproduo mas, acima de tudo, o modelo da sociedade que surge namodernidade. A capacidade de mover-se atravs do globo em umavelocidade crescente caracteriza o perodo que se seguiu no processo deconsolidao das sociedades a partir do sculo XVIII. Indivduos,mercadorias e capital passam a ser mover cruzando fronteiras eestabelecendo um fluxo que ir combinar os fatores que delineariam aforma com que homens passaram a se relacionar em sociedade numgrande mercado onde se processavam as trocas materiais e subjetivas,revelando uma incansvel criatividade na busca de solues tericas eprticas para suas relaes e abrindo novas fronteiras para a circulaodos contedos e para diferente formas de pensar e agir.

    Os valores do torvelinho os foram a aceitar todos os gostos e preferncias como manifestaes da diversidade inerente aohomem mesmo que estes gostos violem as leis da natureza e semostrem incapazes, uma vez dominantes, de garantir a simplesperpetuao da espcie (...). Se essa foi a resultante da grandeaventura que a racionalidade humana veio a construir nestemundo ciberntico de comunicao annima, ela sem dvidaest a merecer meditao cuidadosa (ibdem).

    Se a crise financeira de 2008 aflorou como uma ponta de um grandeiceberg que s fez crescer com o tempo, atingindo o precrio equilbriodas diversas economias nacionais interconectadas entre si em uma granderede onde circulam bens e servios, o processo responsvel pelas bases deapoio dessas formas de pensar e agir tem como ponto de inflexo arevoluo tecnolgica processada no final da dcada de 50 do sculopassado, que permitiu a acelerao dos processos de trocas nesse novomercado global. A descoberta do homem do poder de calor do fogo emquantidade suficiente para fundir o minrio de ferro deu incio a Idade doFerro, encerrando a Idade do Bronze. O limiar na relao ferro/ao foidefinido na Revoluo Industrial com a utilizao de fornos que permitiamno s corrigir as impurezas do ferro, como adicionar-lhes propriedadescomo resistncia ao desgaste, ao impacto, corroso, entre outras. Estas

    propriedades aliadas ao seu baixo custo tornaram o ao presente em cercade 90% de todos os metais consumidos pela civilizao industrial. Seanalisarmos, contudo, a velocidade com que se sucederam os ciclos dasinovaes tecnolgicas que se seguiram Revoluo Industrial do sculoXVII, veremos que ela se acelera sobremaneira a partir da descoberta denovos usos, aplicao e produo industrial de semicondutores de silcio.

    Se a tecnologia cincia gramaticalizada, segue-se, infernciafatal, que a fonte do desenvolvimento das foras produtivas o

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    desenvolvimento do conhecimento cientfico, e que, sendo odesenvolvimento cientfico imprevisvel, e sua traduotecnolgica igualmente indeterminada a priori, toda a evoluodas foras produtivas se d por acidente, sem roteiro rigoroso,sendo, portanto, o conjunto futuro das relaes de produo,com suas respectivas superestruturas, insuscetvel de

    antecipao, dado o errtico da fonte contingente que lhestransmite necessidades transitivas (Wanderley Guilherme dosSantos Discurso sobre o objeto Uma potica do social).

    A partir da dcada de 50 do sculo passado, as tecnologias do Vale doSilcio representaram uma nova revoluo nos modos de produo damodernidade. Inicialmente utilizadas em aplicaes militares e na corridaespacial durante a Guerra Fria atravs da produo de transistores ecircuitos integrados, ela abriu caminho para uma transformao nasformas de pensar e agir das sociedades e na maneira como elas passaram ase interconectar ao redor do globo. Embora no seja o nosso intuito aquiaprofundar a discusso filosfica acerca do processo de constituio dascincias e sua relao com os avanos tcnicos de cada poca, precisoaveriguar de que maneira a transformao da subjetividade nos ltimos 40anos implicou agenciamentos, criou dispositivos e consolidou instituiescapazes de se utilizar dessas novas possibilidades de vida, acolhendo osvalores que uma gerao soube criar: novas relaes com a economia ecom a poltica-mundo, uma maneira diferente de viver o tempo e o corpo,o trabalho, a comunicao, outras formas de estar junto e entrar emconflito. Para compreender a dinmica do novo modelo econmico efinanceiro que desembocou na crise de 2008, devemos buscar no mais asforas imensas, exteriores e superiores da dialtica (capital/trabalho),mas as foras indefinidamente multiplicadas, infinitesimais e intrnsecas a

    uma grande aldeia informacional global interconectada em rede.A era das tecnologias de informao deu luz a uma nova economia, umanova poltica e uma nova sociedade. Na economia digital a informao emtodas suas formas tornou-se digital reduzida a bits armazenados emcomputadores e correndo na velocidade da luz por redes integradas. Umaeconomia da informao baseada na aplicao do capital humano em tudoo que produzimos e como produzimos. Quer as pessoas ajam comoconsumidoras ou produtoras, a incorporao de informaes ser crucialpara a criao da riqueza. Esta uma era de interligao em rede noapenas da tecnologia, mas tambm de seres humanos, organizaes esociedade. A tecnologia da informao possibilitou uma economia baseada

    no conhecimento em tempo real. Os mercados passaram a se alinhar apartir da sua capacidade de conexo em tempo real, superando asdistncias geogrficas e os fusos horrios, transformando as decises deinvestimentos em aes que passaram a ponderar a possibilidade de ganhonum prazo cada vez mais curto. A crescente mobilidade de capitais que jse avizinhava nas trs ltimas dcadas do sculo XX e que foi responsvelpelo colapso do acordo de Bretton Woods, precisava de um modelo quepermitisse que seu fluxo no fosse interrompido e encontra nas novastecnologias da informao um ingrediente fundamental para a

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    consolidao desse novo modelo de trocas entre os povos.

    A despeito das especificidades nacionais em termos de timing evelocidade, os processos de liberalizao e desregulamentaofinanceiras, que teve como marco a desvinculao do dlar ao ouro,tiveram importantes desdobramentos na maioria dos pases ao redor do

    globo. Pode-se destacar o aumento da importncia dos mercados decapitais vis--vis e o mercado de crdito bancrio como forma de garantira liquidez mundial e, consequentemente, o aprofundamento das finanasde mercado, o qual alterou profundamente o comportamento dos agentes- famlias, empresas e instituies financeiras -, cuja lgica deinvestimento adquiriu um carter cada vez mais especulativo. Comoressaltou Keynes (1936), num ambiente caracterizado pela predominnciade mercados financeiros organizados e lquidos, a lgica empresarialtorna-se subordinada enquanto a especulativa revela-se dominante. Nestecontexto, os investimentos no so mais realizados pela sua capacidade deproduzir um fluxo de rendimentos que, capitalizados taxa de juroscorrente, superem o valor inicial desembolsado, mas em funo do ganhode capital que podem gerar a partir da expectativa de variao do valorde mercado do ativo no curto prazo. Em outras palavras, os agentes, nassuas decises de alocao da riqueza, passam a ser guiados pela lgicaespeculativa na medida em que procuram prever a psicologia domercado, ou seja, a opinio mdia do mercado, a qual determina ospreos dos ativos financeiros.

    As decises de alocao da riqueza financeira dos agentes - investidoresinstitucionais que gerem as poupanas das famlias, grandes bancos eempresas transnacionais - ditam igualmente a direo e as caractersticasdas diversas modalidades de fluxos de capitais que se descolaram dosfluxos de comrcio e produo mundiais. Ou seja, a lgica especulativaentranhou-se profundamente no comportamento do conjunto de agenteseconmicos e passou a condicionar suas decises de consumo, poupana,investimento, aplicao financeira, endividamento e concesso de crdito,em mbito domstico e internacional. Neste ambiente, a informao emtempo real em formato digital e comunicada por meio de redes revela-senum novo mundo de possibilidades. Com a transformao da informaoanalgica para digital, a coisas fsicas podem tornar-se virtuais, alternandoo metabolismo da economia, os tipos de instituio e relacionamentopossveis e a natureza da prpria atividade econmica. A antigacorporao cede espao, sendo desagregada e substituda por instituiesdinmicas, grupos de indivduos e entidades que formam a base da

    atividade econmica. A organizao no desaparece necessariamente,mas transformada. A nova economia uma economia interligada emrede, integrando agentes em grupo que so conectados a outros para criarriqueza. A nova economia uma economia baseada em inovaes. Torneseus prprios produtos obsoletos. Faa renovao continua dos seusprodutos. Na nova economia, a distino entre consumidores e produtores pouco ntida e os produtores so consumidores de outros produtos e osconsumidores so produtores de ideias, informaes, etc. Em umaeconomia baseada em bits, o imediatismo torna-se principal propulsor e

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    varivel da atividade econmica e do sucesso comercial.

    A nova empresa uma empresa em tempo real, que seajusta contnua e imediatamente s novas condiescomerciais pro meio do imediatismo das informaes (DonTapscott - A Era da Inteligncia em rede).

    importante esclarecer o papel desempenhado pelo dlar nesse ambientede dominncia da esfera financeira de valorizao sobre a produtiva. Nonovo sistema monetrio que surge em 1971, o dlar no desempenha maisa funo de reserva de valor como um padro monetrio clssico, mascumpre, principalmente, o papel de moeda financeira num sistemadesregulado e sem paridades cambiais fixas. A denominao em dlar dasoperaes realizadas no mercado financeiro internacional cumpre trsfunes primordiais para os investidores globais: fornece liquidezinstantnea em qualquer mercado; garante segurana nas operaes derisco; e serve como unidade de conta da riqueza financeira virtual,presente e futura. Ou seja, o dlar passou a cumprir o papel de moeda

    financeira de origem pblica capaz de cumprir o papel de denominadorcomum da riqueza financeira global. E os ttulos da dvida pblicaamericana consolidaram sua posio como um refgio seguro nosmomentos em que a confiana dos investidores globais abalada. O novomodelo de globalizao financeira que se consolidou ao longo dos ltimosanos constituiu um desdobramento das tendncias j presentes no sistemafinanceiro internacional a partir da emergncia do euromercado e daadoo do sistema de taxas de cmbio flutuantes. O conjunto detransformaes financeiras subjacente a este processo a liberalizaoe/ou desregulamentao financeiras, a securitizao das dvidas, ainstitucionalizao das poupanas e a proliferao das inovaesfinanceiras surgiu nos Estados Unidos e passou a se expandir para osdemais pases centrais em ritmos e intensidade diferenciados, sobretudo osistema financeiro internacional, exatamente em funo da posio dodlar como moeda-chave e das polticas de desregulamentao e aberturafinanceira lideradas por este pas.

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    UNIDADE II

    O "X" da Questo - Multiplicar a gerao de bolhas e colapsos ou o pice docapital fictcio

    As inovaes financeiras recentes - com destaque para os derivativos -,que acabaram por carregar a culpa pela severa crise de liquidez instauradaem 2008 e que se arrasta at aqui atravs dos seus desdobramentos nacrise de crdito soberana dos pases da Europa, alm de contriburem paraa diluio das fronteiras entre os investimentos de curto e longo prazos,possibilitam a realizao de operaes de hedge contra os riscos cambiaisassociados aos IED, as quais tambm implicam fluxos financeiros de curtoprazo. J os fluxos de crdito bancrio revelam-se fundamentais para aestruturao no somente das operaes de hedge, mas tambm deposies de risco em diferentes moedas. Assim, os bancos teriam acapacidade de efetuar a cobertura contra o risco cambial de qualquer tipode transao (comercial, financeira, com derivativos), mas poderiam,igualmente, optar por uma posio descasada diante da trajetriaesperada das taxas de juros e de cmbio, o que reflete uma atitudeespeculativa. Esta atitude, por sua vez, responsvel pela forte oscilao

    de preos dos ativos financeiros, e se tornou cada vez mais presente nasestratgias financeiras de determinados grupos de investidores quemontam posies vendidas ou compradas. Hedge Funds, Privat EquityFunds, Bancos de Investimentos ou Bancos Comerciais, pela quantidade derecursos que movimentam no mercado so capazes de fazer oscilar opreo de qualquer ativo financeiro quando se posicionam fortemente naponta de compra ou de venda. So operadores financeiros do mundointeiro procurando ganhos de arbitragem na terceira casa decimal comoperaes de milissegundos. A fora destas posies no est relacionadaa nenhuma outra varivel ou fator de mercado, mas apresenta-se de formalivre e direta a produzir os efeitos necessrios de suas estratgias, criandouma diferena ou desequilbrio entre as variveis ou fatores que ser

    suficiente para capturar o ganho pretendido. Permitam-me, neste ponto,ilustrar esta prtica atravs de um exemplo ocorrido no sculo XVIII quefundiu definitivamente ogambling com as finanas, e que est na base dasatitudes especulativas que predominam no atual sistema financeiro beirado colapso.

    Segundo o historiador Niall Ferguson (A lgica do Dinheiro, p. 366 a 377),no incio do sculo XVIII j havia um grau considervel de integraofinanceira internacional. Na bolsa de Paris (inaugurada em 1724), as aes

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    podiam ser negociadas em margem ou mediante opes de venda (baixa)ou compra (alta), aumentando a liquidez do mercado e reduzindo oscustos operacionais. Tambm era possvel diminuir o risco buscandoproteo em mercados a termo. Londres e Nova York j tinham os seusmercados acionrios informais muito antes de as bolsas seremformalmente criadas, respectivamente em 1801 e 1817. Foi nesta poca

    que comeou na Europa a trajetria de John Law. Filho de um bemsucedido ourives de Edimburgo, Law passou a juventude em Londres, entremesas de carteado e conquistas de damas londrinas, sustentado pelodinheiro enviado por sua me. Logo cedo, Law demonstrou seubrilhantismo na arte de jogar e de seduzir, perdendo grandes somas dedinheiro nas rodas de jogo at envolver-se em um assassinato e fugir paraa Europa continental para escapar de ser enforcado. Depois de transitarpor todas as mesas de jogos do continente, Law retornou a Esccia em1704 e comeou a esboar esquemas de reforma econmica a partir desuas ideias acerca das vantagens do papel-moeda. De volta ao continentecom suas ideias j desenvolvidas em teorias, tentou vender os seusesquemas monetrios a diversos governos, at que o duque de Orlenstornou-se regente da Frana, em 1714, e viabilizou as ideias de Law.Amigo prximo do duque, Law consegue, em maio de 1716, a cartapatente da Nova Banque Gnrale que, alm de emitir cdulas bancrias,oferecia servios financeiros bsicos como, por exemplo, transferncias.Para fomentar a confiana em Law, o regente depositou um milho delibras francesas no novo banco e, em outubro do mesmo ano, exigiu que oscoletores de impostos da Frana repassassem os pagamentos ao Tesouropor meio das cdulas bancrias de Law. Logo depois, a populao tambmfoi autorizada a pagar os impostos por meio das cdulas. Em dezembro de1718, quando os ativos do banco j superavam 10 milhes de librasfrancesas, a Banque Gnrale transformou-se na Banque Royale e foram

    abertas sucursais em Lyon, La Rochelle, Tours, Orlans e Amiens. Lawconquistara o controle efetivo dos meios de pagamento da Frana.

    Em seguida, Law adquire a concesso da Companhia do Mississipi e decidetransform-la em uma sociedade annima por aes, trocando aes porttulos do governo, reduzindo o juro da dvida. Na sequncia, Law adquirea Companhia do Oriente, lanando 50 mil novas aes que poderiam serpagas, a princpio, em 10 prestaes, que logo depois subiram para 20prestaes mensais. O prprio Law adquiriu 90% das novas aes por 25milhes de libras francesas. Com a subscrio da oferta da Companhia doOriente ele funde as duas empresas e o resultado desta fuso d origem aCompanhia das ndias, cujo preo das aes no tardou a subir

    rapidamente, impulsionado pelo dinheiro impresso pela Banque Royale,tambm controlado por Law. Para aumentar o entusiasmo dosinvestidores, Law emitia novas aes e dava preferncia de compra aosacionistas existentes, alm de anunciar generosos dividendos futuros.Dando prosseguimento sua fantstica sequncia de fuses, Law comproupor 50 milhes de libras francesas os direitos da Casa da Moeda, efetuandoo pagamento atravs de uma nova emisso de 50 mil aes da Companhiadas ndias. Porm, o lance mais ousado de Law surgiu com a proposta deconverso integral da dvida pblica, naquela altura beirando 1,2 bilho de

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    libras francesas, em aes da Companhia, ou anuidade de 3%. Ao mesmotempo, Law ofereceu 52 milhes de libras francesas pelo direito deassumir a coleta de impostos. Mais uma vez, a operao foi financiada porlanamentos de aes. Em Outubro, o preo das aes da Companhia doMississipi j estava em 6.500 libras francesas, chegando em fins denovembro a 10.000. Na prtica, a atividade mercantil pouco representava

    para a companhia de Law. As perspectivas da Louisiana no eram nadabrilhantes e em nada justificavam a escalada de preos. O verdadeironegcio de Law era a habilidade para criar estruturas financeiras queengordassem seu patrimnio pessoal, custa do repasse do riscofinanceiro para o mercado e do forte apoio do poder do Estado.

    Histrias de um modelo econmico incipiente?

    Da Frana do sculo XVIII ao Canad da ltima dcada do sculo XX, seconsolidou o modelo de explorao mineral das Junior Companies, queviveu seus dias de glria fomentados pelo boom das bolsas canadensesna dcada de 90, cuja bolha especulativa chegou ao fim com a fraude daBre-X, em 1998, envolvendo seis bilhes de dlares. Depois de anunciar adescoberta de uma enorme reserva de ouro na Indonsia, confirmado porum laudo de uma consultoria independente e pelos sucessivos acrscimosanunciados entre 1995 e 1997 que fizeram as estimativas pularem de 30para 70 milhes de onas, o mercado viu o valor da Bre-X disparar at quese descobriu que a suposta reserva continha, na verdade, insignificantesquantidades de ouro. O escndalo da Bre-X lanou o mercado financeirocanadense em uma enorme crise, causando perdas significativas para osinvestidores. O modelo das Junior Companies se estrutura em torno detrs pilares principais: na aquisio de um direito minerrio qualquer cujovalor estimado de reservas atestado por um laudo emitido por empresas

    de consultoria, em geral contratadas a peso de ouro; na contratao domercado de experientes profissionais da rea (tambm a peso de ouro),que confere credibilidade para o projeto; e na atrao de um grandeparceiro estratgico do segmento. O passo seguinte conseguir o apoio deinstituies financeiras, em geral grandes bancos de investimentos parafinanciar o incio do projeto atravs de emprstimos ponte queviabilizam a abertura de capital e a alavancagem do projeto. Volto nesteponto Europa no sculo XVIII, onde trs fatores foram fundamentais parao surgimento da bolha financeira da Companhia do Mississipi de John Law:a emisso desenfreada de moeda, o poder de atrair o capital externo e,em ltima instncia, o poder do Estado.

    Entre 25 de dezembro de 1718 e 20 de abril de 1720, a emisso de cdulaspela Banque Royale saltou de 18 milhes para 2,557 bilhes de librasfrancesas. Em maio de 1720, j havia em circulao pblica mais de 2,4bilhes de libras francesas. No incio de 1720, quando os investidoresexternos comearam a realizar seus lucros, Law foi obrigado a recorrer aosseus novos poderes de controlador geral para tentar estancar a sada