A Escola Como Espaço de Invenção

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    HECKERT, ALC. A escola como espao de inveno. In JAC-VILELA, AM., CEREZZO, AC., andRODRIGUES, HBC., orgs. Clio-psych: fazeres e dizerespsina histria do Brasil [online]. Rio deJaneiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. p. 275-289. ISBN: 978-85-7982-061-8. Availablefrom SciELO Books .

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    Parte VI - A mobilidade social ao alcance de todosA escola como espao de inveno

    Ana Lcia C. HeckertCntia Renata Corona

    Juliene Macedo ManziniRoger Elias B. MachadoVinicius Luciano Fardin

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    AESCOLA COMO ESPAO DE INVENO

    Ana Lcia C. Heckert *

    Cntia Renata Corona **

    Juliene Macedo Manzini **

    Roger Elias B. Machado **

    Vinicius Luciano Fardin **

    perspectiva de anlise presente neste trabalho volta-se para o cotidianoescolar como um campo de foras em luta permanente. Esse no se

    constitui apenas como espao de repetio de naturalizadas verdades: asinstituies1 que o atravessam traam configuraes variadas e produzemdiferentes movimentos. Partimos do pressuposto que os processos institudose naturalizados que buscam aprisionar os movimentos afirmadores de

    possibilidades outras de viver, aprender, trabalhar etc.encontram-se em lutapermanente com as foras de inveno da alteridade, engendradoras de

    processos instituintes afirmadores de uma tica da existncia2.

    Neste sentido, nos contrapomos s anlises que situam a educao, aescola, o alunoproblema, o professordesmotivado etc. como objetosnaturais. As prticas sociais e os objetos do conhecimento constroem-sehistoricamente, num campo de foras polticoeconmicosocial.Consequentemente, no h uma natureza a ser encontrada no aluno

    problema, ou na indisciplina. Tais objetos so constitudos por e

    *Professora do Departamento de Psicologia da UFES.** Graduandos do Curso de Psicologia da UFES, participantes do Projeto de ExtensoPotencializando vias de Coletivizao.1 Instituio aqui usada no sentido dado pela Anlise Institucional. A este respeito, verRodrigues, 1991.2 tica da Existncia refere-se formulao de Michel Foucault quanto aos modos desubjetivao. A dimenso ticoesttica abre a possibilidade de inveno de novos

    paradigmas, que recusam os processos de normalizao e criam outros modos de existncia,singulares e sempre provisrios.

    A

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    constituidores de conjunto de prticas, discursivas e no discursivas, que seestabelecem enquanto domnios cientficos. Interessa-nos, ento,

    problematizar as condies de emergncia dessas prticas sociais e lanar

    luz ao como instituram/instituem seus objetos.

    Nossa perspectiva analtica apoia-se tanto na Anlise Institucionalquanto em Michel Foucault, privilegiando as formulaes deste autor comrelao histria. Foucault, a partir de Nietzsche, reinventa o projeto deuma histria genealgica; dispensando o apego s origens, srememoraes e linearidades, esta ferramenta histrica nos permitedesnaturalizar a essncia dos objetos.

    Desta forma, a genealogia foucaultiana possibilita tambmdesnaturalizar o presente, fazendo-o perder a qualidade de fardo a sercarregado, ou de passado a ser inexoravelmente repetido. Privilegiandocomo determinados processos so engendrados, a genealogia concebe otempo presente no na continuidade com o tempo passado, e sim como umespao aberto ao velho e ao novo, no qual jogos, bastante atuais, deverdades organizam apostas, com lances que se tornaro vencedores, ouno, sempre no hoje.

    (...) esta ontologia histrica o de ns mesmos, remetendo profunda ligao das pesquisas foucaultianas com o presente; comum pensar a histria (do ser, e de nosso sersujeito) no comonarrativa do superado, e sim na qualidade de arma nos combates do

    presente (RODRIGUES, 1994: 28).

    Esta histriaarma ser utilizada, por ns, como ferramenta de

    desnaturalizao das prticas psi e pedaggicas dentro de uma escola,objetivando construir estratgias que rompam com os modos hegemnicosde existir, aprender, trabalhar, fazer educao etc.

    Em conformidade com anlise foucaultiana, compreendemos que ainstituio escola, alm da funo de transmitir certos saberes, constituiu-se, nos sculos XIXe XX, como um espao privilegiado de disciplinarizaodos corpos mediante a articulao de estratgias de heterogesto dos

    pensamentos e atos: obsesso pela ordem, pontualidade, compostura.

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    distribuio dos fazeres e dizeres dentro de uma regulada espaciotemporalidade, hierarquizao entre saber formal e informal etc.

    Esta nova prtica de controle, inaugurada pela sociedade disciplinar,no se sustenta em ameaas de morte, nem necessariamente pelo uso dafora fsica. Ela gestiona novas formas de separao entre os corpos,forjando normatizaes que docilizam. Trata-se de uma ordenao e de umesquadrinhamento que buscam separar, dividir, hierarquizar, fora dodomnio estrito do sangue (registro nobilirio das ordens feudais);combinando foras de panoptizao, fixam os sujeitos em lugaresdeterminados pela produo de capital.

    Sob a gide de discursos que materializam capacidades, esforose competncias, produzem tanto os espaos especficos para tais fixaesquanto o indivduo moderno. Desta forma, na sociedade disciplinar, osmecanismos de controle dos corpos pulverizaram-se pelo cotidiano deforma sutil, objetivando aumentar a fora econmica e produtiva do corpo ediminuir sua fora poltica de resistncia.

    No espao escolar, as estratgias de normalizao se individualizaramcomo processos educacionais, culpabilizando alunos, professores e pais

    pelos rendimentos escolares. Por sua vez, as prticaspsi ocuparam/ocupamum lugar fundamental nesses processos de individualizaoculpabilizao,gerenciando concepes estereotipadas e perpetuando rituais de

    julgamento. Ou seja, sem problematizar os elementos que historicamenteengendram o campo educacionalescolar, o psiclogo corre o risco de

    apenas sedimentar preconceitos, sob a forma de discursos psicologizantes.Ressaltamos que a atuao do psiclogo no espao escolar vem sendo

    transformada na atualidade, j que muitos trabalhos tm-se pautado naproblematizao dos referenciais tericopolticos que demarcam tanto odomnio da psicologia quanto o da pedagogia. Entretanto, ainda um nmeroconsidervel de psiclogos embasam, sem questionamento, seus trabalhosem escolas nos modelos de atendimento clnico ou de acompanhamento

    pedaggico, apresentando, por justificativa, as demandas dos profissionais

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    de educao. Ou seja, seriam os professores, solicitando espaosteraputicos para solucionar problemas relacionados aprendizagem, quedelimitariam a prtica do psiclogo nas escolas.

    Atender acriticamente a tais demandas atualiza o boletim escolarcomo instrumento de identificao de casos clnicos e o sustenta comondice suficiente de dificuldades, ou mesmo incapacidades, individuais,levando a desconsiderar, como objeto de anlise, o plano polticosocialonde se configuram as prticas educacionais.

    Perscrutar os institudos e, por meio da anlise das produes

    institucionais, procurar dar visibilidade aos instituintes apreendendo, nasfraturas, as tenses e os conflitos que atravessam o cotidiano educacional, eisum projeto interessante para o hoje. Neste sentido, acreditamos que o psiclogo

    pode promover certa discusso sobre as prticas educacionais que visibilizeseus atravessamentos institucionais e permita criar dispositivos de anliseoutros, pondo em questo as naturezas que conformam alunos, professores,

    pais, direo etc. em lugares opostos e inconciliveis. Atentando para osprocessos de ruptura, insistimos na possibilidade de inventar, sempre,lugares e prticas sociais que escapem das formas hegemnicas.

    Descreveremos, brevemente, uma experincia que corrobora a nossaaposta no presente. O projeto que desenvolvemos numa escola pblica domunicpio de Vila Velha, Esprito Santo, caracteriza-se como umainterveno institucional. O trabalho foi solicitado pela SupervisoraEducacional da escola, tendo incio em outubro de 1998, com previso de

    um ano para a sua concluso. Optamos por intervir no turno vespertino, oqual compreende da 5 a 8 sries, pela possibilidade de compatibilizar asolicitao da escola com nossas atividades na UFES.

    A escola em questo localiza-se em um bairro de classe mdia doreferido municpio, e recebe alunos das camadas populares que residem nasruas prximas a ela. At o ano de 1998, o aspecto fsico da escola era

    bastante precrio: paredes sujas e descascadas; cho esburacado; telhado de

    telhas eternit, esquentando ao sol, tornando as salas em forno; ausncia de

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    ventiladores; inmeras cadeiras quebradas no raro os alunos sentavam-se em duplas, dividindo uma mesma cadeira. A escola tambm no possua

    bebedouro e os alunos bebiam gua, colhida de filtro de barro, reutilizando

    o mesmo copo. Faltava espao para recreao. Faltava lugar para amerenda: os poucos alunos que merendavam ficavam em p, ou sentavam-se no cho, com o prato na mo.

    Durante os primeiros contatos, o coordenador da escola queixou-secom relao ao comportamento dos alunos, dizendo que no possuamlimites, nem tratavam os profissionais levando em conta a hierarquia

    professoraluno. Segundo o coordenador, alguns estudantes moravam na

    Colnia de Pescadores3, mas a maioria era proveniente da Rua do Lixo4.Assim, a culpa pela indisciplina era sempre remetida famlia, que noimpunha limites; e/ou situao de pobreza; estes fatores impossibilitavam,no discurso institucional, o acesso das crianas uma educao de qualidade.

    Em fevereiro de 1999teve incio o processo de reforma da escola, ecada turno dividiu-se em dois. Desta forma, o horrio do turno vespertinofragmentou-se em: aulas para a 5 e 6 sries (das 13:00 s 15:40) e aulas

    para a 7 e 8 sries (das 15:40s 18:20). Com tal ttica, suspendeu-se aindao recreio e a merenda.

    O critrio ausncia de salas disponveis instituiu uma significativareduo no tempo para o aprendizado e possveis modificaes naeconomia domstica das famlias, que viam seus filhos retornaremantecipadamente para casa, ou dela sarem com mais de duas horas de

    atraso em ambos os casos, sem terem recebido alimento na escola.O mesmo critrio agiu sobre os professores, retirando-lhes as salas de

    reunies ou planejamento. Assim, enquanto metade das salas estava sendousada para aula, a outra metade encontrava-se em reforma.

    3Antiga colnia do bairro, na qual o modo de subsistncia das famlias baseia-se na pesca.Os moradores da colnia so discriminados por outros moradores, estes de classe mdia, domesmo bairro, sob as alegaes de que a prtica da pesca produz um odor desagradvel na

    orla martima e de que os pescadores so, predominantemente, malandros e/ou alcolatras.4Rua famosa em Vila Velha pelo alto ndice de violncia e pobreza.

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    Todo o movimento de fragmentao e isolamento que percebemos noano de 1998 cresceu com a reforma. Nem alunos nem professoresencontravam espao e tempo para conversar. O trabalho dos profissionais,

    conforme seus relatos, tornou-se ainda mais maante e burocrtico.

    revelia das condies da escola, uma parte dos profissionaisrestringia suas preocupaes a, meramente, hierarquizar o espao: organizaros alunos em filas, salas, cadeiras; cobrar-lhes bons comportamentos;avaliar-lhes o rendimento em meio a uma suposta normalidade escolar;diagnosticar os maus elementos e, sobretudo, suprimir-lhes as resistnciase crticas por meio de medidas punitivas.

    A sequncia de acontecimentos ocorrida nesta escola esboa umretrato dos efeitos das reformas educacionais que emergiram prometendoresolver os problemas do ensino pblico brasileiro, especialmente a partirda dcada de 80no Brasil.

    Em fins dos anos 70, um novo conceito de produo se delineia norastro do neoliberalismo ascendente. Consequentemente, capitalismo

    flexvel, qualidade total, poli valncia, empregabilidade, formao flexveltodos termos derivados de um especulativo mercado passam a ditar oscontornos dos novos padres de controle e gerenciamento dos sistemas deensino tanto no Brasil quanto em alguns outros pases da Amrica Latina.

    As novas diretrizes para o ensino so justificadas como medidas queobjetivam retirar a escola pblica de sua condio anacrnica.

    Paralelamente, a promessa neoliberal de recomposio econmicopoltica do pas tem produzido, como efeito da poltica econmicaefetivamente implantada, a intensificao de desigualdades que se espalhamtiranicamente pelos espaos sociais.

    Lanadas dentro do sistema de ensino a fim de reduzir custos,otimizar a produtividade e instituir uma relao direta entre ensino edemandas do mercado, via formas de avaliao do produto escolar, as

    prioridades neoliberais tm acelerado o sucateamento da escola pblica,

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    intensificado processos de segregao, fragilizado os espaos coletivos dediscusso, precarizado as condies de trabalho na escola, desqualificado eculpabilizado professores, alunos e famlia por resultados escolares

    indesejveis, ou inadequados.

    Deste modo, as novas (?) formas de gerenciamento e controle daeducao pblica tm contribudo para reforar prticas pedaggicas nadatransformadoras; muitas vezes, seduzindo os profissionais da educao paraa adeso a certo tecnicisrno que dilui e esvazia tanto a discusso poltica decunho mais geral quanto a anlise crtica das mesmas reformas.

    Em tempos neoliberais, preconiza-se a responsabilidade individual naaquisio de habilidades que possam garantir empregabilidade. O alunonesses novos tempos tem sido considerado mera mercadoria. Esta

    perspectiva encerra professores e alunos na necessidade de se adaptarem acontnuas transformaes de um mercado5muitas vezes inexistente.

    Os alunos das camadas populares, provveis inempregveisdescartveis, so os mais atingidos pela compreenso neoliberal acerca da

    funo da escola na sociedade; pois, sem quaisquer condies materiais,devem enfrentar a Quimera estatal com evases e fugas, ou se adequar estranha economia de um sempre presente, porm nem por isto visvel,mercado e correndo, para no virar sucata.

    Os processos de segregao e desqualificao atuais tm, destaforma, intensificado, no cotidiano escolar, impossibilidades, descasos,desmandos, troca de favores etc.O desalento quanto ao presente manifesta-

    se como impotente indiferena, entre alunos e professores, quanto aofuturo; no questionar o institudo transforma-se, assim, em proteo frentes mazelas e dificuldades do cotidiano.

    5 Em face dessa lgica educacional, propusemo-nos a criar estratgias que permitissem a

    alunos e professores negar ativamente a ideia de alunomercadoria, afirmando apossibilidade de construes coletivas e inventivas para o espao escolar.

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    Compreendendo indisciplina e pssimas notas como uma espciede deficincia dos alunos daquela escola, a mesma solicita nosso trabalho6.Deveramos, ento, tentar dar conta da falta de interesse, desmotivao e

    desestmulo dos alunos por tudo o que acontecia na escola; fazer, atravs dealguma tcnica psicolgica, despertar o interesse dos alunos pelo que aescola tinha para lhes transmitir.

    Como pensar este pedido? Deveramos (e isto seria possvel?) separaro desinteresse dos alunos do processo polticoeconmico que vivemos?Quais interesses a escola queria despertar? E os alunos, o que teriam adizer a todos ns, interventores e educadores?

    Consideramos que a demanda formulada pela escola precisava seranalisada/problematizada. Caso contrrio, correramos o risco de comear

    e acabar a interveno sustentando o fracasso, o desinteresse, adesmotivao, a indisciplina etc. como objetos naturais; ou seja, meroselementos que, desviantes em relao ao curso normal das prticas

    pedaggicas, precisavam ser reordenados.

    A demanda institucional trazia cena certas concepes presentes nocampo educacional, calcadas nas teorias da carncia cultural, que remetem situao de pobreza a causa da indisciplina, dos problemas deaprendizagem e do desinteresse. E anunciava um pedido: transformar osbrbaros em civilizados?

    Analisando a demanda, percebemos que o preconceito quanto ao alunoa condio de vida do aluno determinar-lhe totalmente o rendimento

    servia para que os professores e a direo da escola deixassem de analisar ascondies de trabalho existentes em suas prprias vidas (o que, lanandosobre eles seu prprio raciocnio, tambm lhes deveria determinar orendimento); pois, durante as entrevistas para o contrato, apelava-se

    6O convite para a interveno foi apresentado pela supervisora da escola a uma aluna docurso de Psicologia. Esta reuniu um grupo de colegas do curso e convidou uma

    professora do Departamento de Psicologia para elaborar, conjuntamente, o trabalho comoum projeto de extenso.

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    pobreza da clientela para justificar o espao fsico da escola e o seu abandonopelo poder pblico, naturalizando concepes como: para pobre qualquercoisa serve. Uma anlise breve do discurso institucional identificou, como

    dispositivo fundamental para o atual funcionamento da escola, oentrecruzamento de prticas de individualizao do cotidiano escolar osalunos so o problema e prticas de desqualificao apriorstica do aluno ede sua famlia eles moram l e por isso...

    Presentificava-se, tambm no pedido, o lugar que a psicologiahegemonicamente construiu na escola; ou seja, a possibilidade de, por meiode tcnicas psicolgicas, motivar os alunos e, com isto, aumentar a

    eficincia escolar.

    Nossa questo: como produzir outras demandas que viabilizassem aproduo de outros territrios de trabalho e aprendizagem naquela escola?

    A maneira como pretendamos direcionar o trabalho pressupunhaconstruir estratgias a partir do que experimentssemos do cotidiano daEscola: suas dificuldades, seus percalos, seus impedimentos, sua vitalidade.

    Para isso, precisvamos estar dentro da escola, falar com as pessoas, conhecerseus cantos, portas, salas. Assim, sorrimos com as pessoas, brincamos,discutimos; sofremos um pouco o dia-a-dia, o calor, o cansao...

    No decorrer do trabalho, percebemos como fundamental criarespaos de discusso/anlise que inclussem profissionais professores,merendeiras, secretrias, corpo tcnico e usurios (pais e alunos), com a

    perspectiva de socializar os processos que se davam na escola e na vida e

    escapar das redes de isolamento e individualizao.

    Neste texto, escolhemos discutir o analisadorreforma7por entenderque tal acontecimento foi fundamental para as mudanas operadas na escola.

    7Analisadores so acontecimentos que condensam jogos de foras at ento dispersos. Para

    a anlise institucional o que produz a anlise so os analisadores e no os peritos. A esserespeito, ver Rodrigues, Barros & Leito, 1992.

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    O analisadorreforma

    Desde o incio de nosso trabalho, sabamos que seria imprescindvel

    juntar as pessoas para discutirmos sobre o cotidiano da instituio. Parecesimples... mas fomos apanhados de surpresa com o estado da escola em1999. Conforme afirmamos anteriormente, no encontramos salasdisponveis para reunir os professores; tampouco horrio de recreio,dificultando o acesso tambm aos alunos.

    Os horrios de planejamento das aulas eram usados, pela maioria dosprofessores, para atividades desvinculadas da escola; os conselhos de classe,

    quase sempre esvaziados, constituam-se em momentos para diagnstico dosalunosproblema parecia um pequeno tribunal da Inquisio.

    Precisvamos problematizar a impossibilidade de encontros atribuda reforma, e buscar produzir a coletivizao dos processos vividos numespao em franca decomposio.

    Nas falas dos professores, vislumbrvamos a necessidade de um

    trabalho conjunto naquela escola, ao mesmo tempo que pareciamacomodados ao trabalho mecnico e burocrtico que desempenhavam ali o que no os fazia acreditar na possibilidade de criar qualquer estratgia

    para mudar a situao que viviam.

    No cotidiano do estabelecimento nos deparamos com o descasoquanto educao dos alunos, em geral, acompanhado de certa queixaimprodutiva acerca das condies de trabalho dos professores. Em ltima

    anlise, o discurso institucional hegemonicamente repetia o mote: a culpa deles. A culpa deles por termos de trabalhar em um estabelecimento semrecursos mnimos para funcionar como espao educativo (pra pobre qualquercoisa basta); a culpa deles se no nos sentimos motivados a ensinar-lhesalgo, visto carecerem de educao (so indisciplinados; no reconhecem ahierarquia professoraluno); a culpa por no aprenderem deles, poiscarecem de exemplos familiares edificantes (so filhos de pescadores

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    malandros, preguiosos, sujos e bbados ou de moradores da sugestiva Ruado Lixo)... Estava claro que os alunos no tinham direito a voz.

    Por outro lado, sendo decidido o destino da escola por burocratas queapenas informavam direo as diretrizes educacionais, ou o momento dareforma ou a nomeao de cargos comissionados para atuarem nesta escolaetc., os profissionais tambm se encontravam privados de voz quanto aosrumos de seus cotidianos. A burocracia estatal, privatizando as informaese as decises acerca do cotidiano escolar, equiparava professores e alunos:ambos ficavam de fora, impotentes frente a face neutra das hierarquiasnaturais. Estariam tais fatores contribuindo para a produo do desinteresse

    de alunos e professores pelas questes da escola e da aprendizagem?

    Quando a reforma nos leva a retirar os objetos do lugar...

    O analisadorreforma possibilitou a anlise das prticas, at entonaturalizadas, que produziam como efeito a paralisia dos professores ealunos e a burocratizao da escola. Desta forma, em meio aos escombrosda reforma, num dia de calor e barulho insuportveis, alguns professoreslembram de uma rvore, nos fundos da escola, e passam a se encontrar,sob sua sombra, para discutir alternativas de ocupao do espao fsico.

    Assim, o analisadorreforma produziu outras demandas: criar outrosespaos de encontro para os professores, fora do Conselho de Classe, e criaralguns novos canais para a circulao de informaes.

    Ampliando as novas demandas, propusemos um trabalho que

    envolveria os professores se possvel, todo o corpo docente e os alunosdo turno vespertino da escola. Primeiro, aps muita conversa com a direoe a superviso, conseguimos estabelecer encontros mensais com

    professores, grupo tcnicopedaggico e funcionrios.

    Apesar do curto espao de tempo das reunies, tais encontros eram osnicos momentos em que as pessoas se juntavam para discutir seustrabalhos. As discusses atraam cada vez mais professores, e conquistaram

    novos aliados para a construo de espaos coletivos de anlisecriao.

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    A partir desses encontros, o acesso aos alunos tornou-se possvel.Foi-nos permitido ir, de sala em sala, ouvir os alunos. Perguntamo-lhes: oque gostariam de estar criando dentro da escola; que atividades poderiam

    estar desenvolvendo; quais pesquisas poderiam ser feitas? Depois,organizamos suas sugestes em modalidades: atividades esportivas,atividades extracurriculares, infraestrutura da escola, artes e eventos e jornal.

    Voltando s salas com as modalidades agrupadas, organizamosgrupos de discusso com os alunos para projetar formas de dar concretudeaos temas; tudo de acordo com a disponibilidade de cada um. Cada grupotinha um tema central de discusso; porm, as questes podiam variar de

    acordo com o que era trazido por ns e pelos prprios alunos. Noqueramos um grupo-tarefa, mas criar um espao respirvel; quem sabe,novos espaos de liberdade.

    Conforme assinalam Guattari e Negri: Tal a nova poltica: aexigncia de uma requalificao das lutas de base com vistas conquistacontnua de espaos de liberdade, de democracia e de criatividade (1987: 21).

    Os dispositivos jornal e grupos de discusso

    Pensamos, junto com alguns professores e alunos, a criao de umjornal como estratgia para produzir a circulao de informaes, fatos,acontecimentos, pensamentos, ideias, vontades, aspiraes, e incluir aluno e

    professor no processo de construo do cotidiano da escola.

    Nossa preocupao no era saber como o jornal efetivamente

    circularia; tampouco com que material seria feito. Intentvamos, aoenvolver as pessoas na criao do jornal, mobiliz-las para a inveno denovos modos de fazer educao.

    Consequentemente, as discusses preliminares giraram em torno dequais notcias seriam priorizadas no jornal; sobre o qu falaramos; comoobter as matrias para o jornal; quais assuntos despertariam o interesse detantas pessoas diferentes; como envolv-las no trabalho de criao do

    jornal, ou mesmo de outro algo, novo e diferente, naquela escola... Em

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    suma, quem somos, o que pensamos, o que queremos saber e/ou partilhar; oque temos para dividir?

    Ao irmos s salas de aula instigar os alunos a darem sua opinio comrespeito escola, ficamos sabendo que alguns acalentavam o desejo de criarum grmio na escola; outros questionavam porque as regras nunca eramdiscutidas como, por exemplo, a proibio do uso de bon na sala de aula.

    O jornal foi construdo pelos grupos de discusso dos alunos. Asequipes que se responsabilizavam pelo jornal tiveram, basicamente, a funode organizar e articular tudo que estava sendo produzido nos outros grupos de

    discusso. Os textos eram agrupados, discutidos e preparados para apublicao. A primeira edio foi ansiosamente esperada por todos ns8.

    Mas qual seria o nome do jornal? Para determinar-lhe, os gruposescolheram realizar uma votao tudo elaborado pelos alunos: cdulas,artigos, escolha da formatao, desenho. As equipes do jornal percorreramas salas de aula, recolhendo sugestes de nomes. Aps uma prvia, oitonomes se classificaram para o segundo turno. Novas cdulas, torcidas,

    apurao, e ganhou... A VOZ DO ADOLESCENTE.O universo de votantes constitura-se por alunos, professores,

    coordenao, secretrios, serventes e merendeiras.

    O jornal funcionou como dispositivo de anlise e construo de outrasprticas na escola, disparando movimentos de interrogao das prticasinstitudas. Os alunos, procurando conhecer melhor o funcionamento daescola, problematizavam os modos de organizao do cotidiano escolar e, aomesmo tempo, afirmavam outras possibilidades de ocup-lo.

    Concomitantemente, nos corredores e em algumas salas de aula, osfatalismos decretados pelos tempos neoliberais e a decantada falncia da escola

    pblica como espao de inveno permanente eram arguidos com vivacidade.

    8

    O primeiro nmero circulou pela escola em novembro de 1999, tendo demorado sete mesesa sua confeco.

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    Desta forma, ousamos afirmar que os efeitos do jornal circularam naescola desde o incio do processo de sua ideal elaborao; ou seja, muitoantes que sua circulao tivesse sido materialmente efetivada.

    A partir dos grupos de discusso tambm outros acontecimentostomaram vulto: os alunos formaram times de futebol, que se encontravam

    para jogar numa quadra conseguida por emprstimo; entrevistaram adiretora, os pedreiros, a coordenadora buscando informaes sobre areforma e os equipamentos a que a escola tinha direito; visitaram aSecretaria Municipal de Educao e inquiriram os funcionrios a respeitodas verbas das escolas pblicas. Estas entrevistas desembocaram na

    elaborao de matrias para o jornal, nas quais os alunos reivindicavamdireitos quanto informao dos usos e destinos das verbas pblicas.

    Alm disso, alunos e professores montaram e encenaram uma peateatral; juntos organizaram, pela primeira vez, a festa de encerramento doano letivo; criaram oficinas de poesia, pintura...

    Durante este tempo j estavam em circulao trs nmeros do jornal

    da escola.

    Algumas consideraes finais

    Os efeitos desta interveno, em ns e na escola, ainda esto seprocessando. Sabemos apenas que o princpio que pautou nosso trabalho foidesejar, para todos, uma vida que no nos torne indiferentes, mas que tenhacheiros, cores, carnes, ritmos e vibraes. Uma vida que prescinda de vozes

    apenas consonantes e que incorpore tambm a dissonncia e a polifonia,afirmando sempre possibilidades de encontros ainda no experimentadoscom a alegria e o prazer. Essa escola nos ensinou muitas coisas; dentre elas,a no desistir diante dos endurecimentos que traduzem impossibilidades eimpotncia por realidade e cotidiano.

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