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  • A escrita das cidades

    Dlio Jos Ferraz Pinheiro Professor do Mestrado em Geografia da UFBA

    Maria Auxiliadora da Silva Professora do Departamento e Mestrado em Geografia da UFBA

    [email protected]

    RESUMO

    Este trabalho visa a promover uma reflexo sobre o espao interdisciplinar que pode ser constitudo entre a cincia geogrfica e a arte literria, ou seja, de como a Geografia pode aprofundar a leitura e a reflexo sobre os espaos urbanos a partir do concurso da Literatura. Esse veio analtico permite novas leituras das cidades a partir de registros da cultura urbana presentes em obras literrias, considerando-se que elas constituem smbolos da tenso entre a racionalidade geomtrica ou "geografia" das construes e o emaranhado das existncias humanas, ambos matria-prima da literatura. As cidades sempre estiveram e esto presentes nas indagaes, nas angstias e dos escritores, como um magnfico esforo de leitura do mundo, desde a emblemtica Babel da Bblia e da exatido de Homero, em sua descrio da cidade de Tria, at Dostoivski, Dickens, Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire, Victor Hugo, Charles Dickens, James Joyce, Stendhal, Dostoievski, Guillaume Apollinaire, Eugene Sue, Shelley, Ezra Pound, Honor de Balzac, mile Zola, John dos Passos, Doblin, William James, T.S. Eiliot, Hamsun, Peter Handke, Italo Svevo, Ernest Hemingway, Luis Borges, Vargas Llosa, Jorge Amado e Milan Kundera, por exemplo. Mas no so apenas as cidades concretas que inspiram a obra literria, a exemplo da Sampa de Caetano Veloso e da Itabira de Carlos Drummond de Andrade. O imaginrio dos autores tambm "constri" cidades fictcias e emblemticas, como a Tamara de ltalo Calvino e a Pasrgada de Manuel Bandeira. Este trabalho vem se desenvolvendo na disciplina Literatura e Cidade, do Curso de Ps-Graduao em Geografia do IGEO-UFBA. Nela, atravs de textos literrios previamente selecionados, que tematizam as cidades em suas vrias concretizaes histricas e suas relaes com o universo mais amplo da cultura, vm sendo desenvolvidos trabalhos de experimentao terico-metodolgica nessa direo.

    Departamento de Geocincias Laboratrio de Pesquisas Urbanas e Regionais

    Simpsio Nacional sobre Geografia, Percepo e Cognio do Meio Ambiente HOMENAGEANDO LVIA DE OLIVEIRA |Londrina 2005|

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    Simpsio Nacional sobre Geografia, Percepo e Cognio do Meio Ambiente |Londrina 2005|

    Uma cidade um conto em movimento...

    Tahar Ben Jellon, poeta morriquino, (1985)

    A cidade o teatro por excelncia intelectual, e tanto os escritores como seus leitores so atores urbanos. Ao longo dos sculos a cidade tem sido motivo perptuo de indagaes, nas angstias e na reflexo dos escritores, como um permanente esforo da leitura do mundo. Desde a emblemtica Babel (Gnesis 11:1-9), metfora da primeira condenao da civilizao humana, e a exatido de Homero, poeta pico grego, em sua descrio da cidade de Tria, revela-se uma ntima relao entre a literatura e a cidade. Na histria, os dois fenmenos escrita e cidade ocorrem quase simultaneamente. A cidade-escrita ganha uma dimenso transcendente, vez que se fixa na memria que, ao contrrio da lembrana, no se dissipa com a morte. A cena escrita da cidade permanece. E no so apenas textos que a cidade produz (documentos, registros, mapas, plantas baixas, inventrios etc.) que fixam essa memria, mas a prpria arquitetura urbana cumpre esse papel. O traado das ruas e o desenho das casas, das praas e dos templos, alm de conter a experincia daqueles que a construram, revela o seu mundo. porisso que as formas e as tipologias arquitetnicas podem ser lidas e decifradas como se l e se decifra um texto literrio. A arquitetura das cidades , ao mesmo, tempo continente e registro da cultura urbana. Mesmo quando a demolio/ desconstruo gerada pelo progresso determina o apagamento da memria urbana traada na escrita das pedras e tijolos de suas edificaes, possvel resgatar essa memria atravs do livro, lugar de inscrio do passado, frente ao que se vai transformado em runas.

    Sobre esse aspecto, impossvel no pensar nas palavras do historiador italiano Giuglio Carlo Argan:

    o que a especulao imobiliria fez com as cidades histricas o resultado de um juzo, ainda que inconsciente, do no-valor de uma vontade destruidora substancial pervertida, ainda que inconfessa. A luta no entre cultura e incultura, mas entre duas culturas, a segunda das quais tem como meta a destruio da primeira, tida como oposta e como obstculo ao seu desenvolvimento. (ARGAN, 1993)

    Cabe ao historiador buscar recriar o que teria se passado um dia e, ao escritor criar um enredo do que poderia tambm ter ocorrido. Vale lembrar que a fico no se opem realidade. Pela pena de escritores como Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire, Victor Hugo, Eugene Sue, Charles Dickens, James Joyce, Honor de Balzac, Stendhal,, Dostoivski, Guillaume Apollinaire, mile Zola, Dblin, Peter Handke, talo Svevo, Ernest Hemingway, Jorge Luis Borges, Roberto Arlt, Mario Vargas Llosa e tantos outros, a cidade vai sendo reconstruda como tema, na medida em que nela que o drama da humanidade est sendo jogado . Escondida em seu enigma , a cidade desafia o escritor a decifr-la, exigindo dele um olhar que v alm das aparncias e toque, a alma das ruas. Assim, os textos literrios nos colocam diante de cenas urbanas que traduzem a percepo dos escritores. Dois exemplos : quis o destino que Charles Baudelaire (Paris,1821 Paris,1867), cultor de Paris , fosse contemporneo das grandes reformas da capital francesa na segunda metade do sculo XIX, empreendidas pelo ento prefeito

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    do Sena, Baro Georges-Eugne Haussmann, que em 17 anos de gesto na prefeitura de Paris(1853-1870) transformou profundamente a cidade. A Paris de Baudelaire a cidade em mudana:

    Paris change ! mais rien dans ma melancolie Na baug! palais neufs, chafaudages, blocs, Vieux faubourgs,tout pour moi devient allgorie, Et mes chrs souvenirs sont plus lourds qui des rocs.

    Baudelaire nos adverte que as cidades so vivas, justamente porque so habitadas. E, por serem vivas, mudam.

    O segundo exemplo pode ser encontrado na poesia de Carlos Drummond de Andrade (Itabira. 1902 Rio de Janeiro,1987), que, na fase inicial de sua vasta obra, reflete uma imerso na vida urbana da poca. poesia metropolitana por excelncia e Drummond, embora vindo da pacatez do interior de Minas Gerais, se transformar no maior poeta do Brasil, com uma temtica que penetra no enigma da vida citadina :

    Estou na cidade grande e sou um homem Na engrenagem. Tenho pressa. Vou morrer. Peo passagem aos lentos. No olho os cafs que retinem xcaras e anedotas, como no olho o muro do velho hospital em sombra. Nem os cartazes. Tenho pressa.

    nessa medida que os textos literrios , quer sejam romances, contos, poemas ou ensaios, buscam a verdadeira essncia das cidades. A cidade tessitura, trama da experincia literria. Seja a cidade natal, seja a cidade grande, quase sempre em torno da cidade o homem constri sua vida pessoal e, consequentemente sua obra literria. A cidade o cenrio da nossa vida cotidiana, lugar de nossas emoes e vivncias. Somos parte dela, da urbe, somos urbanos. verdade que a literatura tambm visita o campo, mas vive principalmente na cidade.

    E no so apenas as cidades concretas, as cidades reais que inspiram os escritores. A literatura tambm povoada por cidade imaginrias : Antares (Incidente em Antares, de rico Verssimo) , Macondo (Cem Anos de Solido, de Gabriel Garcia Marquez), Esmeralda, cidade construda pelo Mgico de Oz (de L. Frank Baum), Lestrignia, imaginada por Homero na Odissia, as cidades de Mihragem e Irem das Torres Altas encontradas nas Mil e Uma Noites, Prncipe Feliz, cidade sonhada por Oscar Wilde em O Prncipe Feliz e outros contos, Triste-le-Roy e Babel nascidas do imaginrio do poeta cego Jorge Luis Borges, A Cidade dos Suicidas de Robert Louis Stevenson. So bastante conhecidas a Pasrgada do poeta Manuel Bandeira : Vou-me embora para Pasrgada / L sou amigo do rei... e as Cidades Invisveis de talo Calvino , cuja narrativa permite que Marco Plo relate ao imperador trtaro Kublai Khan cidades imaginrias do seu reino:

    O olho no v coisas mas imagens de coisas que significam outras coisas...o olhar percorre os caminhos como pginas escritas : a cidade diz tudo aquilo que deves pensar, faz-te repetir o seu discurso, e quando pensas estar visitando Tamara no fazes mais do que registrar os nomes com os quais ela se define a si prpria e a todas as suas partes. (CALVINO, 1991)

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    Mas no somente Tamara. Toda cidade pode parecer um discurso que articula variados signos. Cada um pode ver o real urbano de forma diferente, vez que a cidade comporta mltiplos olhares e discursos. As cidades desenvolvem uma linguagem mediante duas redes diferentes e superpostas : a fsica , que o visitante percorre at perder-se na sua multiplicidade e fragmentao, e a simblica, que a ordena e interpreta, ainda que somente para aqueles capazes de ler como significaes o que no so nela, mais que significantes sensveis para os demais, graas a essa leitura, reconstruir a ordem, como nos ensina Angel Rama em Cidades das Letras :

    H um labirinto das ruas que s a aventura pessoal pode penetrar e um labirinto dos signos que s a inteligncia raciocinante pode decifrar , encontrando sua ordem. (RAMA, 1985)

    As manifestaes culturais, populares e eruditas, as igrejas, os monumentos, o patrimnio arquitetnico, as praas e jardins, o traado urbano, os arquivos, os museus, as obras de arte, os fazeres e as peculiaridades do comportamento social, a paisagem e os vestgios arqueolgicos podem estar reunidos na cidade. Tudo isso constitui, na cidade, as suas refe