A Estrela de Seis Pontas

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A ESTRELADE SEIS PONTASMANUEL TIAGOAT AMANH, CAMARADAS (5. edio) CINCO DIAS,A ESTRELADE SEIS PONTASA ESTRELADE SEIS PONTASA ESTRELA DE SEIS PONTASAutor: Manuel TiagoCapa e ilustrao: Jos SerroReviso: Colectivo da Editorial "Avante!"(c) Editorial "Avante!", SA - Lisboa, 1994Tiragem: 15 000 exemplaresImpresso e acabamento: Tipografia LousanenseData de impresso: Dezembro de 1994Depsito legal n. 75 585/94ISBN 972-550-234-5Naquela rua animada por intenso movimento de carros e pees, estendia-se ao longo do passeio uma vistosa fachada com belos torrees e numerosas janelas circundadas de pedra branca. O edifcio prolongava-se para um lado e para outro por um alto muro bordado de ameias da mesma pedra. primeira vista dir-se-ia o antigo castelo de um grande senhor, sugerindo, para l dos muros, a frescura de parques e jardins. Alguns pormenores destoavam porm dessa primeira impresso. As janelas, ainda que de elegante recorte, eram gradeadas. A arquitectura pesada, monumental, de grandiosidade suspeita. Quem parasse e observasse certamente pensaria: o que isto?Difcil adivinhar. Para l da vistosa fachada e dos muros que davam para a rua, o panorama era outro. A partir de uma torre central coroada por uma cpula recortada, partiam em seis direces dispostas em estrela seis monstruosos edifcios. Monstruosos de facto. Cada qual com oitenta me7tros de longo e quatro filas sobrepostas de dezenas de postigos gradeados. L baixo, entre os edificios, vastos tringulos asfaltados e desertos. Em torno dos seis edificios e dos espaos triangulares, cercando-os de ponta a ponta, uma correnteza ininterrupta de casas baixas abarracadas que s num ponto se abriam para uma horta. Para l, acima de um paredo, um estreito e comprido jardim bordado por uma casa comprida de rs-do-cho marcada tambm por uma fila de postigos gradeados. Para l ainda, apertando como um anel todo o imenso conjunto, um fosso profundo e um alto muro com arame farpado marcado no topo por numerosas guaritas de tantos em tantos metros.Tal era a estrela de seis pontas, observada por fora.L dentro, a partir de um amplo espao circular subjacente torre central e separados deste por pesados grades, abriam-se, com a grandeza e o eco de naves de uma catedral, os espaos interiores das seis alas da estrela. Em cada ala, de um lado e de outro, estendendo-se tambm de ponta a ponta no rs-do-cho, fileiras de portas chapeadas. Por cima um primeiro e um segundo varandim de ferro com outras tantas portas chapeadas. Em cada piso, a meio das alas, pontes estreitas igualmente de ferro ligando os varandins de um lado a outro.8Tal era primeira vista a estrela de seis pontas observada l dentro.Quinhentas celas, quinhentos presosQuinhentas celas, quinhentos presos, priso maior celular. Para muitos, na gria prisional, at sarem agasalhados num sobretudo de tbuas. Cinco, dez, quinze, vinte e mais anos a maior parte do tempo fechados numa cela. Um rectngulo de dois metros por quatro, iluminado por uma pequena janela gradeada junto ao tecto, para que o preso no veja o exterior. O cho de cimento. Uma estreita cama de ferro. A mesa, um tampo de setenta por quarenta centmetros forrado de zinco e suspenso da parede. Um banco com assento minsculo. Um balde para as necessidades. Verdadeiro luxo, uma bacia metlica com torneira de gua corrente aberta durante os primeiros minutos da manh paraenxaguar o rosto e alguns minutos depois das refeies para limpeza das marmitas.Doenas, mortes, agresses, lamentaes, protestos, revoltas, castigos e um renovar dos internados to lento que s perceptvel por espaos de anos. Caras que deixam de ser vistas depois de serem em9longos perodos a fisionomia viva da populao prisional. Caras novas que aparecem com muitos anos frente para ali passar. De resto, nesse decorrer arrastado e infindvel do tempo, cada dia visto superfcie parece igual a todos os outros dias. Horrio, rotina e ritual. Fardas e barretes de um castanho sujo com nmeros estampados a branco. E os apitos estridentes, as formaturas e o conto, os cortejos ida e volta das oficinas, o cair metlico das bandeiras, o seco bater no cimento de tairocas e tamancos, o estrondo dos grades de ferro e das fechaduras e ferrolhos, as correrias com os tabuleiros para distribuio do rancho, o entrecruzar dos ecos no imenso espao vazio das alas, o fedor do despejo dos baldes nos nojentos poos de escoamento, o fedor da creolina e o fedor dos fedores na opinio de alguns - o fedor da sopa de couves bafientas e do peixe frito em leo ranoso hora do destapar das marmitas. Assim dia aps dia, semana aps semana, ms aps ms, ano aps ano. Para muitos o resto da vida.No esse mundo que podem imaginar os passantes na rua fronteira, olhando a fachada acastelada e nobre com torrees em pedra branca a sugerir, para l dos muros encimados por vistosas ameias, a frescura de parques e jardins.10O passeioGirando num vaivm ou conversando em grupos mais ou menos numerosos, parados uns, isolados outros, assim passavam os presos a hora do passeio, num dos ptios triangulares apertados no fundo das imensas e lgubres fachadas das alas. Na mancha castanho sujo dos uniformes e dos barretes sobressaam, como que ferrados a tinta branca, os nmeros de identificao. O Outono hmido e frio ia avanando e muitos dos presos repuxavam a gola e faziam gestos bruscos batendo os braos para aquecer.Entre os presos que nesse dia passeavam no ptio, o Nero sobressaa pela corpulncia e estatura. Impunha-se pelo corpo e mais ainda pela terrvel fama. Parado junto de outros, ouvia-os atento, sereno e inexpressivo. De quando em vez surpreendia-os com sbitas exploses de gargalhadas sem que se compreendesse o que o fazia rir.O 509 tambm circulava arrogante exibindo a sua fora. Com ele ningum se metia.Em grupo com alguns outros, o Mata-a-Velha, friorento, encolhido e sentado no cho, mal deixava despontar o nariz entre o barrete e a gola. Falava pouco e, como parecia meio apoucado, alguns metiam-se com ele a troar.11O Silvino, tuberculoso que voltara uma vez mais ala depois de uma das suas frequentes estadias nas celas da enfermaria, girava magrito e gil ao longo do ptio. De quando em quando parava e tinha gestos estranhos. Apanhava rpido qualquer coisa do cho e corria junto parede dos barraces das oficinas a observar o que quer que fosse.O Fradinho, assim apelidado porque frequentara um seminrio, deslocava-se em passinhos sumidos, mos postas e movendo os lbios num murmrio ininteligvel.O Tony, condenado por assalto e violao, distinguia-se pelo cabelo louro, olhar distrado, ar juvenil e desenvolto. Andava depressa, sozinho, de um lado para o outro, aquecendo com a marcha.O Serpentina, epilptico, alto, magro, esgrouviado, de palavra fcil e camarado, falava com um e com outro.Gordo e flcido o Catalo tambm passeava sozinho. Fora condenado por burla de muitos milhares de contos. Embora com largo e famoso cadastro, no se tinha por criminoso. Era apenas um homem inteligente que se sabia mais inteligente que os outros.A um canto do ptio, o Augusto jardineiro da cadeia e o 402 conversavam calmamente. Havia j anos ali estavam e tinham-se tornado amigos. Mal12tendo entrado na casa dos trinta eram optimistas, embora tivessem pela frente muito tempo a cumprir. O Augusto viera das serranias de Trs-os-Montes, condenado por crime de sangue. Falava a todos e era procurado por muitos para desabafarem ou pedirem um conselho. O 402 fora martimo. O caso tivera lugar num bar do Cais do Sodr. Defendera-se numa desordem, matara, fora condenado. A muitos anos.Naquele dia o Augusto e o 402 trocavam impresses sobre a possibilidade ou impossibilidade de uma evaso. No havia memria de algum preso ter conseguido fugir. Contava-se que, em tempos, dois por pouco haviam falhado. Num trabalho de atenta investigao e observao de anos inteiros, tinham conseguido percorrer corredores e anexos, furtar-se vigilncia dos guardas, descer aos subterrneos, abrir portas, cortar grades, descobrir o acesso aos esgotos e finalmente no dia D e na hora H meter-se nos esgotos at encontrarem uma sada. Chafurdaram horas inteiras na vasa e nos excrementos at que se lhes deparou em cima a fenda iluminada de uma tampa de acesso. Treparam e saram. Era uma rua movimentada e, naquele estado, encharcados em trampa e exalando fedor distncia, onde poderiam eles ir? Ante o espanto dos transeuntes ainda correram sem saber para13onde. Adiante entregaram-se a um pacfico e espantado polcia de servio.O Augusto e o 402 conheciam a histria. Falaram dos vrios esquemas imaginveis para uma fuga. O Augusto no se mostrava inclinado a considerar tal hiptese. Ao contrrio, o 402, vigoroso e gil como convinha ao martimo que sempre fora, no pensava noutra coisa seno em fugir.- Qualquer dia queres falar comigo e eu j c no estou.Como o Augusto esboasse um gesto incrdulo, acrescentou numa voz segura: - Vais ver!A hora do silncioA hora do silncio tem uma existncia fsica. Anuncia-se, avana, alastra e invade as celas trazendo consigo uma angstia hmida, pesada e sepulcral. Recolhidos os presos, fechadas ruidosamente uma a uma as portas chapeadas das celas na lgubre cadncia de fechaduras e ferrolhos, ainda nos primeiros minutos do acomodar de cada um no seu catre se ouve o clamor de vozes gritadas aqui e14alm e os monlogos de alguns falando para si prprios.Depois vai-se extinguindo a ressonncia geral e tomam-se mais espaadas e ntidas misteriosas preces.Uma voz fraca, implorativa, quase soluada, difunde-se na ala.- Perdoai-me, Senhor, os meus pecados! Perdoai-me o mal que fiz! Perdoai-me!Todos reconhecem a voz do Velhote. tambm o momento escolhido para que um outro, o 210, em alta voz faa ouvir as contas da pena j cumprida e da pena por cumprir.- 6 anos, 8 meses e 20 dias j passaram, faltam 16 anos, 3 meses e 2 dias...Assim todos os dias. J h alguns anos, desde que ali est.De local indefinido ouvem-se gritos soltos amortecidos pela distncia e o arranhar e a aspereza de uma tosse cavernosa. Vindos l do fundo das caves ecoam de quando em quando abafados e inteis protestos de algum preso castigado no segredo. Pouco a pouco os rudos esvaem-se no amplo espao e na atmosfera sombria das alas.Antes do quase completo silncio, uma vez mais se difunde no ar a convicta mas frouxa e implorativa prece.15- Perdoai-me, Senhor!, perdoai-me!Depois mais nada. Tudo parece parar at ao despertar frio da manh seguinte. Dir-se-ia que o imenso conjunto dos edificios em estrela no alberga centenas de vidas, antes o tmulo gigantesco de centenas de enterrados vivos.Um salteador do AlentejoO Garino era um dos maiores amigos do Augusto jardineiro. Sabia muita coisa, falava bem e discorria com acerto acerca do que quer que se apresentasse considerao. Quando dizia ser analfabeto, quem o ouvia no acreditava. Viera para ali h j uns bons anos e ainda no alcanara os trinta de idade. Alentejano, era um moo calmo que no geral falava em voz baixa e pausada. Quase sempre a srio com velada ironia. S tinha repentes se lhe chegava a mostarda ao nariz.Os que se gabavam de longos cadastros, terrveis faanhas e pesadas condenaes no ligavam muito ao Garino. Sabia-se que fora chefe de uma quadrilha de coisas midas, de arrombamento e roubo de mercearias e casas de pasto. Parecia at estranho como o tinham enviado para ali.16Os veteranos sentiam-se deslustrados por tal companhia.- Agora enviam para aqui toda a trampa - comentava o 509, condenado por trs crimes de homicdio.- Isto j no o que era - comentava outro. - Eh p! Por coisa to pouca como vieste cparar? - perguntou-lhe um dia o Serpentina.O Garino ouvia. Sorria mas no respondia.At que um dia o Augusto lhe fez tambm amesma pergunta.Ora, para o Garino, o Augusto no era um qualquer.- No estou aqui por aquilo que julgas - respondeu.Contou ento a sua histria. Na casa dos pais metade do ano era misria e fome. Em perodos mais apertados ele e os irmos ainda crianas iam bolota e muitos dias a bolota que os salvava. A bolota no boa s para os porcos. A bolota velada mesmo saborosa. Nos meses de desemprego o pai participava em protestos dos trabalhadores ou abalava a procurar trabalho noutras paragens. Uma vez fora levado preso para Lisboa e l estivera alguns meses. Nas ausncias do pai eram os ganapos que tinham por fora de encontrar o quer que fosse para comer. Ele, Garino, no hesitara.17No ia deixar a famlia morrer fome. Comeou por rapinar pequenas coisas nas lojas e no mercado. Alguma fruta, umas batatas, pouco mais. Por essa poca s uma vez ousara estender o brao e puxar um frango depenado, mas ao chegar a casa a me descomp-lo e s no lhe bateu porque ele fugiu.Foi essa a primeira escola. De forma que aos catorze anos, concluindo que assim no resolvia nada, juntou-se a mais dois ou trs parceiros e resolveram empreender coisa mais grossa. Mercearias e casas de pasto conheceram na poca os assaltos nocturnos da pequena quadrilha. Acabaram por ser apanhados, julgados em tribunal de menores e enviados para um reformatrio onde estiveram quase dois anos.- Se foste para o reformatrio porque te condenaram? - perguntou o Augusto.- Depois te conto, agora tenho de ir - disse o Garino. E abalou.Alta noite em segredoNaquela noite alguma coisa de estranho se passou. Na ala C presos tomados de insnia foram surpreendidos por barulho invulgar. Repetido bater18dos grades do redondo, passos apressados no cimento, o subir em atropelo de dois lanos das escadas de ferro, passos ao longo do segundo varandim, o estrondo de fechaduras e ferrolhos e logo a seguir os rudos na direco inversa at se ouvir de novo o estrondoso bater dos grades do redondo. Por trs vezes se repetiu esta srie de rudos.A cela do Parrana ficava no primeiro varandim, precisamente em frente da escada de acesso. Quando ouviu o barulho, correu a espreitar pela vigia cuja tampa estava ligeiramente levantada. Viu os vultos passarem mal distintos trs vezes vinda, trs vezes volta.No dia seguinte, sem se saber de onde partira, correu a notcia. Percebia-se agora a razo por que na vspera tinham esvaziado as celas do terceiro varandim da ala C. A PIDE trouxera trs presos para a Penitenciria. Um a um. Acompanhados at s celas por uma brigada, alm do chefe dos guardas da cadeia e do chefe dos guardas da ala. Os trs foram metidos em celas separadas por celas vazias, no fossem eles comunicar com sinais nas paredes. A porta de uma delas ficou de sentinela um pide paisana, num banco ali colocado para o efeito.A partir de ento s o Virgolino, faxina de ser19vio, estreitamente vigiado pelo pide e pelo guarda da ala, ia at portinhola da porta de cada uma das trs celas buscar e levar o balde das necessidades e levar e buscar a marmita do rancho. Ningum mais podia subir ao terceiro varandim. Rendido de trs em trs horas, dia e noite, o pide girava de ponta a ponta do varandim de um lado para o outro e ia espreitando incansavelmente pela vigia de cada uma das celas. Assim dias, semanas e meses.Da correccional a priso maiorPara o Silvino tudo o que fosse animal ou planta era sagrado. Por isso no passeio estacou indignado com o que via.Vulto enorme, o Nero corria s gargalhadas, puxando um longo cordel na ponta do qual tinha atado e arrastava agora pela terra uma ratazana que apanhara no se sabe como. Cabea revirada para trs, o Nero no a perdia de vista a ver o efeito. O bicho j no chiava nem reagia. Na massa do corpo mole ensanguentado apenas se distinguiam as pintas dos olhitos negros.Um outro preso no se conteve:20- Este tipo louco, ou qu? - e fez meno de lhe cortar o passo.O Gonalo apareceu nesse preciso momento.- No te metas que ele d cabo de ti.Curioso. O Gonalo era daqueles em quem os outros no reparam. Todos sabiam quem era o Nero, o 509, o Mata-a-Velha, o Silvino, o Augusto, o 402, o Tony, o Serpentina, o Catalo, e mais uma srie deles. Se algum perguntasse se conheciam o Gonalo ningum responderia que sim. J no era a primeira vez que aquilo sucedia. Aparecia no se sabe por que coincidncia, intervinha falando em voz baixa e tranquila e em geral era ouvido. Tambm o foi essa vez.Havia razes para o conselho.O Nero fora preso havia meia dzia de anos na sua terra natal, ilha da Madeira. Uma desordem, uma facada, condenao a meses de correccional. A sentena teria ficado por ali se no calabouo da priso local as coisas no se tivessem agravado.J ento o Nero tinha o hbito de troar dos outros. Se troava! Ofensivo, sarrazina, no largava os parceiros com graolas. Dessa vez deu mau resultado.O outro era um bonacheiro que parecia no fazer mal a ningum. Sentado no catre, olhava e21ouvia sem nada dizer. O Nero engraou com ele.- Eh papa-aorda. Pareces uma semelha cozida. Igualzinho a uma semelha.Bumba-bumba esteve nisto todo o dia. O outro suportou, suportou, a princpio com um sorriso contrafeito, depois srio e aborrecido.- Eli papa-aorda - o Nero redobrava os ditos. - No ouves? Que tens, p? Falta-te a papa ou a colher? - e gargalhando de quando em quando pelas prprias graas, continuou a cantilena.-Ao cair da tarde, deu-se o imprevisto. Transtornado, o bonacheiro ergueu-se em fria e empurrou o Nero.- Cala-te, filho de um corno!Podia esperar-se tudo. No o que aconteceu.Enorme, possante, o Nero levantou com fora herclea o pesado banco da sala e arremessou-o cabea do parceiro.Perigo de vida, processo, reincidncia, tribunal, condenao. O Nero passou de priso correcional para priso maior e foi transferido para a Penitenciria.Os seus actos eram um misto de criancice e de ferocidade. Num dia acariciava amorosamente um gato que vadiasse no ptio. Noutro dia era capaz de enxotar o bicho a pontap. E pior. Contavam alguns que uma vez, para demonstrar a fora que tinha,22segurara um gato pelas patas traseiras e rasgara-o de alto a baixo. primeira vista, embora pesado e enorme, o Nero parecia bom rapaz. Quando contrariado, os acessos de clera metiam medo.O dinheiro enterrado do Mata-a-VelhaChamavam-lhe o Mata-a-Velha e ele no se ralava. Parecia at ficar vaidoso por assim lhe chamarem. Muitos outros eram conhecidos pelos nmeros. Alguns, poucos, pelos nomes verdadeiros. Outros ainda por alcunhas, vindas de trs ou por crisma da cadeia. Outros pela terra ou regio de origem. Por alcunhas relativas ao crime cometido, eram raros. Um era ele, o Mata-a-Velha.Baixito, apertado na fardeta de surrobeco, de poucos gestos, olhar apagado, no se dava por ele naquela Babilnia de homens marcados com nmeros. A nica coisa que sobressaa era o seu caso. No tanto porque tivesse matado, nem mesmo por ter matado uma velha. Havia outros casos parecidos. Mas porque toda a Penitenciria sabia que o roubo fora avultado e que, preso e condenado o autor, nunca o produto fora descoberto. Estava bem23escondido e seguro, esperando l fora o fim da pena.O Mata-a-Velha no falava nisso mas apreciavaque outros falassem.- Diz l, p, quanto te rendeu? - atirava oGarino, meio a srio meio a brincar, no tanto parasaber, mas para goz-lo.O Mata-a-Velha calava-se.- Est mesmo em stio seguro? Tens a certezade que ningum deu com ele? - insistia volta emeia o Serpentina. Este a srio, por curiosidade. Nada. O Mata-a-Velha no se abria. O silnciotranquilo valia por todas as confisses.Na visita de NatalO Natal passou-se como de costume. Rancho melhorado, lembranas trazidas pelas famlias. Tudo cuidadosamente inspeccionado. Tudo revolvido, remexido, esquadrinhado. Po ou bolo cortado s fatias. Objectos por vezes desfeitos. Pois no fora uma vez encontrado dinheiro bem escondido na boca de uma cabea de peixe frito? E no fora noutra ocasio descoberta uma serra de cortar metais metida no interior da sola de um sapato?24O ambiente era nesse dia de movimento e descontraco. No para todos naturalmente. Entre outros, o Augusto, o Garino, o Nero, o Silvino, nunca tinham visita. Para as dezenas que a tinham era dia de festa.Dois presos se distinguiam pelo elevado nmero de visitas que recebiam. O Capito, capito de nome e de carreira, condenado por uma srie de burlas. E o Viseu, um hemiplgico analfabeto, condenado por homicdio.Quanto ao primeiro, o nmero de visitas no era de estranhar. Dispunha de proteces e dizia-se boca pequena que alguns daqueles que o visitavam teriam outras razes alm da amizade. Era de facto estranho. Alm da mulher, ali estavam a visit-lo no Natal um advogado, um industrial e um alto funcionrio. O artificial polimento na conversa no conseguia tapar uma comprometedora familiaridade. Para que tivessem lugar tais visitas, no era certamente o Capito que tinha dvidas para com elas.Quanto ao Viseu, o crime por que fora acusado tinha uma histria misteriosa. Segundo contavam guardas e presos, no ficara claro por que o cometera, nem como o cometera, nem a corrida do prprio polcia numa pressa de confisses que levariam condenao.25- Mal se mexe, mal fala. um pobrezito que no sabe o que faz. Se calhar nem ele prprio capaz de dizer por que matou - tais eram os comentrios mais correntes.Ser ou no capaz de dizer poderia discutir-se. Dizer, no dizia a ningum.Maior admirao vinha ainda das numerosas visitas que recebia no Natal, das despesas certas de viagens e estadia na capital de uma famlia de aparente pobreza, dos presentes que lhe traziam, daquela concentrao de familiares de todas as idades, incluindo um vistoso rancho de jovens e crianas. Qualquer coisa havia de exagero em tudo isso.O Viseu parecia no dar por qualquer exagero. De volta da visita do Natal, caminhando trpego e desajeitado, o semblante brilhava de felicidade.Para o Nazar, o Natal naquele ano ficaria marcado para toda a vida. Talvez porque o 31 viera para uma cela vizinha, passara a ser costume chamarem ao mesmo tempo os dois para irem visita e colocarem-nos lado a lado no parlatrio.Ao longo de um comprido balco e sob o olhar vigilante dos guardas, os presos estavam separados das visitas por duplas placas de vidro nas quais um crculo de buracos permitia que embora dificultosamente passassem as vozes. Como todos gritavam para se fazer ouvir, era necessrio estar atento,26no apenas ao som, mas ao mexer dos lbios e aos gestos, que valiam tanto como a linguagem dos surdos.Naquele dia, o Nazar no conseguiu dar ateno me que o visitava. O olhar fugia-lhe para o lado, para o rosto da rapariga de visita ao 31. Um rosto mimoso onde brilhavam uns olhos enormes, hmidos e carinhosos que iluminavam a semiobscuridade do parlatrio.O guarda que os vigiava naquele dia era o Rinaldo, um touro de volume, de fora, de teimosia e violncia.- Eh tu a! - gritou ameaador para o Nazar. - Para onde ests a olhar?O Nazar recomps-se. E de volta s celas arriscou soprar ao 31 que ia a seu lado: - tua filha?Impassvel o 31 no respondeu logo.- No - disse por fim. - minha irm. - mesmo gira! - no se susteve de dizer oNazar.Os vicentinosDurante o passeio, aps a missa dos domingos, apareciam aqueles civis a falar com uns e com27outros. Falavam sempre com os mesmos, porque em geral no eram bem recebidos. Quando algum os atendia, ento agarravam-se como lapas e nunca mais os largavam. Eram os devotos de S. Vicente de Paula, padroeiro dos presos. A sua misso generosa era levar ajuda e conforto aos desgraados. A ajuda consistia na distribuio de onas de tabaco e o conforto moral em cataquese e conversa mansa.No exerccio de to generosa misso, destacava-se j h anos o doutor Biscaia, homenzinho redondo e de voz doce que no faltava um s domingo. O Mata-a-Velha era um dos seus preferidos. Metia-lhe discretamente nas mos uma ona de tabaco, dizia uma dzia de palavras e procurava outro.O Mata-a-Velha chamava um figo ao tabaco e nem sequer ouvia as palavras do doutor. To-pouco queria saber do que o Garino lhe dissera um dia.- Eh meco, tu aceitas essa porcaria? Sabes que tabaco ? Sabes que uma mistura das beatas dos senhoritos? L nas festas recolhem as beatas dos cinzeiros, desfazem-nas e fazem esses embrulhinhos a que chamam onas. Olha bem e encontras tabaco queimado que foi mal escolhido.O Mata-a-Velha encolheu os ombros.- uma vergonha - disse ainda o Garino. - At chupas o cuspo dos gajos. No devias aceitar.28O Mata-a-Velha acenava com a cabea a concordar com o Garino. Mas, se no fumava daquele no tinha outro para fumar. E ia aceitando.InterrogatriosA situao dos trs polticos do terceiro varandim da ala C prolongava-se j h meses sem alterao.Os presos sabiam disso, mas habituados a castigos e a situaes complicadas comentavam pouco. Alm do mais no apreciavam polticos. Os polticos, quando em casos raros eram para ali enviados, no eram obrigados ao uniforme e no tinham nmero a marc-los. Um que por ali tinha passado, personalidade conhecida e influente, ao ser-lhe concedido passeio com os outros presos, no falava a ningum e nem sequer dava os bons-dias.Os trs da ala C estavam para ali metidos incomunicveis sem at ento provocarem particular curiosidade ou interesse. O que mais provocava ditos era o facto de l em cima no terceiro varandim continuar sempre um agente da PIDE renovado de trs em trs horas. Tudo parecia assim parado e sem seguimento at que uma noite houve novidades.29O Virgolino, faxina da ala C, tinha o sono leve. Uma noite acordou sobressaltado com o violento bater do grado do redondo. Depois, tal como meses antes quando a PIDE levara os trs polticos para ali, ouviu passos apressados ecoarem no vazio da ala, certamente de vrias pessoas, e de seguida subidas na escada metlica, o abrir ruidoso de uma das celas do varandim e passados instantes de novo passos e rudos em sentido contrrio at ao estrondoso bater do grado e o silncio que se seguiu.Horas depois, j clareava o dia, repetiram-se os mesmos rudos. Noites seguidas isso sucedeu.- Esto a levar um dos gajos a interrogatrio - disse o Virgolino ao Parrana cuja cela era no segundo varandim, junto escada em caracol.- Sim - concordou o Parrana que tambm dera pelo barulho. - No lhe queria estar na pele. De certeza esto a arrear-lhe bem.Passadas semanas, correu a notcia de que um dos presos do terceiro varandim da ala C enlouquecera e que a PIDE o levara da Penitenciria. Verdade ou mentira ningum podia garantir. O certo que o Virgolino passou a levar as latas do rancho apenas a duas celas do terceiro varandim.30O Silvino, os bichos e os homensTuberculoso pulmonar, o Silvino tinha crises que o retinham de cama semanas seguidas. L o mudavam para uma cela da enfermaria. Depois voltava s alas.O Silvino era respeitado pelos outros. Uma forma muito particular de respeito. No por ter pela frente uma condenao to longa que, doente como era, dificilmente chegaria a cumpri-la. No por um prolongado cadastro de roubos e arrombamentos. Mas porque todos - guardas e presos - reconheciam que era um homem bom, um homem srio, um homem de palavra. Alm disso inteligente.Por vezes surpreendia os outros com consideraes sobre complexos problemas. No eram disparates que dizia. Eram mostras de uma demorada reflexo. Ningum poderia explicar donde viera tanta sabedoria.No passeio dos doentes da enfermaria, quando se podia levantar e o tempo o permitia, cirandava pelo jardim. Dir-se-ia distrado e metido consigo prprio. Mas observava tudo em volta. Procedia por exemplo a sensacionais descobertas na vida da bicharada. Descobrira aranhas que cortavam malhas da prpria teia para se libertarem de uma abelha, se por acaso cara nela, e corriam a atacar e a sugar31o intruso se se tratasse de uma mosca. Descobrira que a formiga de asa africana, tracejada no dorso a castanho, esvoaava junto ao solo at ` descobrir uma gorda lagarta na raiz de uma planta e depois ia distncia escolher o esconderijo, voltava atrs, com fora insuspeitada arrastava a lagarta, cavava alegremente um buraco, ferrava os ovos no corpo da lagarta, metia a lagarta no buraco e tapava e disfarava o buraco num trabalho de construo e de arte digno de um qualificado engenheiro e arquitecto.Se assim apreciava os bichos, ainda mais atentamente apreciava os companheiros. Dir-se-ia que os estimava a todos, embora sem intimidades nem fceis confianas pois no entrava no jogo corrente das conversas, muito menos de conversas chulas. De si prprio dizia que, embora a vida que levara fosse uma fatalidade, no merecera outra. certo que no conhecera pai nem me e que, fazendo andar para trs a memria, o mais distante que alcanava era ver-se s, talvez pelos cinco ou sete anos, esmola nas ruas, estendendo a mo furtiva para qualquer cesto de fruta e procurando noite abrigo no meio de barracas ou em qualquer vo de escada. Admitia entretanto que, com mais inteligncia e vontade do que aquelas que tinha, poderia ter conseguido outro rumo na vida.32O show do RotimA falta de mulher era para muitos o mais duro castigo. Reagiam de maneiras diversas. Voltavam uns adolescncia estimulando a prpria imaginao e satisfazendo-se a si prprios. Procuravam outros conversas, revelaes e confisses. Os de mais recursos pagavam caro ao Vianinha, candongueiro-mor na priso, fotos de mulheres nuas. Muitos faziam minuciosos projectos erticos para quando sassem da priso. Muitos tambm que ali entravam desejando mulheres passavam com os anos a desejar tambm homens. Ou a serem forados a aceit-los.No labirinto das conversas sobre a matria, destacava-se um grupo que, com pequenas variantes na sua composio, se reunia regularmente no passeio a um canto dos enormes ptios triangulares. Era o show do Rolim.O grupo juntava-se para ouvi-lo, porque emsexo o Rolim era um s. Mais que um s, ummestre. Difcil seria explicar tamanha experincia.Os participantes habituais do grupo eram naquase totalidade aqueles cujo crime no ficara nahistria. Pelo menos ali no se falava deles. Genteapagada e tmida. Dado o assunto, um observadordesprevenido poderia estranhar o completo desinte33resse que votavam ao grupo os condenados por crimes de sexo. Nunca ningum vira no grupo, ou mesmo de passagem parados a ouvir, nem o Tony que arrancava os brincos s mulheres violadas, nem o 101 que violara trs filhas, nem o Elvas que atava as raparigas aos sobreiros. Uma nica excepo era a do Resmas, velho decrpito que, sempre que lhe davam ouvidos, se gabava orgulhoso do que fizera a uma garota. O Resmas era dos primeiros a juntar-se ao grupo. E com um sorriso lambuzado e expresso aparvalhada ouvia tudo de princpio a fim sem perder palavra.Nesse dia o Rolim perguntara a um dos do grupo quantas mulheres conhecera na vida e o outro respondera que, como toda a rapaziada, ia aos bordis quando rapaz, depois casara e para ser franco desde ento at ser preso no tivera outra mulher.- s um desgraado! - comentou o Rolim. - Prostitutas no sexo so produto falso. E se se trata de mulheres srias no h uma s mulher que tenha em si tudo quanto pode dar prazer a um homem.- A minha chega-me bem - insistiu o outro. - Assim passars a vida sem saberes o que oprazer pode dar - sentenciou o Rolim.- Ai passa, passa - gargalhou o Serpentinaque parara junto ao grupo e sabia que o outro ti34nha ainda frente muitos anos a cumprir. - Se calhar nunca mais v o padeiro.Noutro dia discutiram a beleza feminina.- Aos trinta anos quando a mulher o mximo - dizia um. - Tem ainda o vio de moa mas j experincia de mulher.- Para mim - dizia outro -, quanto mais novinha mais saborozinha. No h nada como desmamar uma garota. quando so mais giras e querem experimentar tudo.O Rolim tinha opinio formada.- Seios dos 15, boca dos 20, coxas dos 30, ancas dos 35, ombros dos 40 e sensualidade quando a tiver no momento exacto da vida. A beleza no apenas da forma - explicava. - A mulher torna-se diferente quando faz amor. Pode ficar inerte e indiferente e ento mesmo que muito bela desagradvel como um insuflado. Pode fazer tal espalhafato que se torna grosseira, apalhaada e repelente. Se sente verdadeiramente, se respira sem fingimento, se geme, mesmo se grita, e no fim quebra com um sorriso e olhos fechados acusando o prazer que no quer deixar fugir, ento essa mulher nesse momento mil vezes mais bela do que em todos os outros momentos da sua vida.Era manifesto que o Rolim se deliciava com a prpria eloquncia.35Enquanto o Rolim falava, chegou-se ao grupo o Argentino, um preso de aspecto invulgar. De facto argentino, desmentia a ideia feita de que os sul-americanos so moreno-carregado. Mais alto que o comum dos presos, era louro, de pele clara e olhos azuis. Nos seus cinquenta anos bem conservados caminhava entre os outros com aparente indiferena. Desempenado e tranquilo. Assim se aproximou do grupo do Rolim e ficou impassvel a ouvir. Percebia-se que prestava ateno. No se percebia o que pensava do que o Rolim dizia.Ainda este falava, o Argentino afastou-se to tranquilo como viera.O Argentino num ajuste de contasA postura sobranceira do Argentino destacava-o dos outros. No dava confiana a ningum e tambm ningum procurava que a desse. Esse relacionamento era porm curioso. O seu aparente isolamento no o separava do meio. Qualquer coisa de indefinido e um tanto misterioso indicava que ele se sentia como sendo um de entre os outros e que os outros o sentiam um dos seus.O Argentino fora condenado por ter matado um36scio infiel em negcios comuns. Estando o outro a dormir. queima-roupa, com um Colt. Numa saraivada de balas de 9 milmetros, apontadas as duas ltimas cabea, uma numa tmpora, outra entre os olhos como garantia. Falava-se num ajuste de contas. Contas de qu no se sabia.As circunstncias do crime revelavam uma mentalidade fria, reflectida e operacional. Era por isso e assim que o Argentino era conhecido.O Augusto, o 402, o 333 tambm haviam matado a tiro. No ardor de uma escaramua, numa rixa, num condicionalismo determinado de natureza social e moral, mesmo em legtima defesa. O Argentino no. O outro a dormir, uma chuva das balas de 9 milmetros do Colt e depois queima-roupa uma na tmpora, outra entre os olhos. Talvez como justiceiro. Mais certo como carrasco.O crime justificara a pesada pena e aos olhos dos outros presos o Argentino era conhecido por ser o autor de um tal crime. Mais tarde, no por declarao prpria mas por inconfidncia dos guardas, foi-se conhecendo melhor todo o seu passado e certamente no tudo quanto o ilustrava. luz desse passado, a execuo fria do scio que o trara aparecia apenas como um momento fortuito de toda uma longa srie de outros crimes. Talvez ainda mais graves.37O Falua abre um cadeadoA vida igual e montona de todos os dias ao longo dos anos era cortada por episdios que ficavam na histria. Assim o que um dia aconteceu com o Falua.O Falua no gostava de falar das suas faanhas. Que se saiba, s trs vezes revelara o seu saber na matria. Se no convencia, fazia vista.Numa das vezes, os especialistas discutiam a forma mais simples de arrombar uma porta sem fazer rudo. O Falua foi peremptrio na contestao dos outros.- Qual gazua, qual p-de-cabra - disse na sua voz de falsete. - Encaixas uma cunha de madeira encharcada por baixo da porta e vais dar uma volta. Vais a um caf ou vais s putas que d tempo. Quando voltas a porta est aberta.Doutra vez discutiam a forma de arrombar a porta de uma igreja. Voltou baila a chave falsa e o rebentar da fechadura. Houve mesmo um que lembrou a cunha encharcada.- Nem penses - sentenciou o Falua. - As portas das igrejas pesam toneladas. Por essa forma ficavas espera toda a vida. S h um meio. Furas a porta, metes uma serra das finas e cortas a madeira pelo largo volta da fechadura. Saitudo inteiro, metes o brao e abres a porta por dentro.Uns acreditavam, outros no. Os mais conhecedores da matria diziam mesmo que o Falua era um aldrabo. Mas naquele dia arrumou-os a todos.No passeio calhou estar de servio o guarda Clemente. Nas relaes com os presos tinha frequentes acessos de brusca agressividade. Ao mesmo tempo, tratava-os tu c-tu l e gostava de p-los prova.- Vocs julgam que so capazes de tudo. So uns gabarolas. Vejam o cadeado deste grado. Nenhum de vocs seria capaz de abri-lo... - e olhou em volta triunfante, certo de que ningum aceitaria o repto.- Posso experimentar? - ouviu-se a voz de falsete do Falua, os olhos matreiros a sorrir.O guarda recusou primeiro, hesitou depois. O Falua insistiu e o guarda, olhando em volta a ver se algum colega estava a observar, acabou por autoriz-lo a mostrar a habilidade.Com resguardo para o Falua no ver, foi marcada pelo guarda a chave do segredo nas seis roldanas de dez algarismos. O pesado cadeado foi engatado na grossa corrente envolvendo as duas partes do porto. Fechado o cadeado, desfeita a combinao, o guarda especou-se e esperou.39A pedido do Falua foram buscar uns metros de cordel. O Falua partiu-o em bocados, fez passar cada bocado por cada uma das seis roldanas do cadeado e por cada roldana pediu a um companheiro que agarrasse simultaneamente as pontas de cada pedao de cordel e com energia e rapidez de trs para a frente fizesse rolar as roldanas.A operao comeou, os ajudantes do Falua amontoados volta do cadeado bem se esforavam no vaivm dos cordis, mas aquilo demorava. A assistncia engrossou e o guarda ria.- Fora, Falua! Por esse andar acabas por abrir as portas do inferno.A gargalhada j era geral quando de sbito zs! um estalido e o fecho do cadeado saltou.A histria ficou para sempre contada de gerao para gerao. O Falua deixou de ser apenas o Falua. Passou a ser conhecido e indicado como Aquele Gajo Que Com Um Cordel Abriu O Cadeado Do Grado.O 402 tenta e falhaO 402 no mentira ao avisar o Augusto de que qualquer dia, se quisesse falar com ele, j ele40no estaria l. Era esse o seu firme propsito. Desde que fora condenado e o levaram para ali no pensava noutra coisa. Martimo quase desde a infncia tinha fora, agilidade e coragem bastantes para encarar qualquer esquema. No se inclinava para planos complicados. A vontade e a pressa de se ver l fora levavam-no a concentrar a ateno na possibilidade de um trajecto que fosse o mais curto, o mais simples e o mais rpido possvel.Ao longo dos quatro primeiros anos observara atentamente nas suas raras deslocaes qual era o local que se encontrava mais perto da rua. Avaliara os obstculos. Um a um. E gizara um plano. Ir no rol dos presos enfermaria, no local escolhido escapar vigilncia do guarda, atrasar-se uns segundos na marcha, trepar por um cano ao telhado do armazm da cantina, tentar furtar-se em corrida observao de uma primeira sentinela, rastejar pelo telhado, galgar o edificio que dava para a rua, chegar s ameias de pedra branca do muro e jogar tudo por tudo: vista de outra sentinela saltar e correr rua fora.Assim imaginou e assim fez. At ao muro, mais fcil e mais rpido do que previra. Chegado s ameias sentiu um deslumbramento. A rua larga animada pela intensa circulao abria-se na sua frente41batida pelo sol. Depois a surpresa. O passeio empedrado ficava l muito muito em baixo. A altura do muro era de longe superior ao que calculara. Ainda hesitou um breve segundo. A liberdade estava porm ali ao seu alcance. Lanou-se no espao.O disparo de uma sentinela no lhe acertou. Foi o que parecia mais fcil que falhou no ltimo momento. Caindo pesadamente no empedrado do passeio no conseguiu levantar-se. Colado ao solo por uma perna partida e ensanguentada, ali ficou ante o espanto dos transeuntes at que os guardas vieram em alvoroo e de corrida reconduzi-lo l para dentro. Por azar, no grupo dos guardas vinham o Rinaldo e o Bazuca, um e outro amigos de arrear forte. Apesar de ferido levaram-no de rastos e pelo caminho no cessaram os murros e os pontaps.A tbia fracturada e mal tratada, daria lugar a uma ferida profunda, ulcerada e infectada para sempre. O momento em que esperanoso tentara reiniciar a vida tornara-se o comeo de uma lenta e inexorvel agonia.42Greve da fome at morteO caso dos comunistas presos no terceiro varandim da ala C complicou-se subitamente. Havia j muitos dias um dos dois que restavam recusava-se a comer. O Virgolino, ao ir buscar as latas do rancho, encontrava-as tal como as deixara.Acompanhado pelo pide de sentinela e o guarda de servio ala, fora l cela o enfermeiro, fora l o chefe dos guardas. Diante do pide um e outro fizeram de conta que no viram nada de especial. O preso estava a fazer a greve da fome mas nenhumas medidas foram tomadas.A notcia correu de boca em boca, chegou ao Garino e do Garino ao Augusto jardineiro.- A PIDE quer l saber - disse o Augusto. - L fora ningum tem conhecimento disto. Se o homem leva a coisa por diante, tanto se lhes d, deixam-no morrer e dizem que foi por doena.Passado um ms o Augusto encontrou o Garino.- Sabes alguma coisa? - perguntou.- Vi o Virgolino. O homem continua sem comer e est-se a apagar.Tinha razo. Poucos dias depois, j na hora do silncio, foram busc-lo cela, levaram-no numa maca para uma cela da enfermaria. Chefe dos guardas, guardas, dois agentes da PIDE e o Benjamim43e outros faxinas da enfermaria chamados para o transportar encheram a cela de roldo e ali ficaram apinhados. Vieram o doutor e o enfermeiro avisados para o efeito. Esqueltico, cor de terra, maxilares e dentes desenhados sob a pele, olhos encovados e fechados, o homem no dava sinal de vida. O mdico apalpou-lhe o pescoo, tentou descerrar-lhe as plpebras, tomou-lhe o pulso e abrindo-lhe a camisa deixou exposto luz um tronco felpudo s pele e ossos.- H quanto tempo est assim? - perguntou.Informaram-no que havia j alguns dias.Nesse momento os pides repararam que, na excitao do acontecido, toda aquela gente havia assistido cena.- Fora daqui! tudo fora daqui! - berraram exaltados correndo o pessoal aos empurres.O Benjamim pesava mais de cem quilos e tinha uma fora tremenda. Olhava indignado tudo aquilo. Veio-lhe cabea uma vontade louca de berrar, de acusar, de ser ele a correr com os pides, de os desfazer porrada. Foi um repente. Acabou por sair com os outros.Da em diante pouca gente teve conhecimento do que se passou. A nica coisa certa que o homem morreu.44A ESTRELA DE SEIS PONTAS- O gajo era teso - comentou o Silvino. - Mas morreu. Valeria a pena?- Morreu no - corrigiu o Garino. - Mataram-no.Comea o namoro do NazarAo longo de dois anos, as visitas lado a lado do 31 e do Nazar repetiram-se trs ou quatro vezes. O Nazar esperava as visitas em sobressalto. No j pela me nem pelas novidades que lhe trazia, mas porque ia ver, olhar durante mais de meia hora a irm do 31. Embora isso s sucedesse de longe em longe, essa visita tornara-se para o Nazar o mais importante acontecimento da vida na priso.De volta para as celas ou no passeio dos presos o Nazar foi adiantando comentrios. O 31 era homem de poucas falas. Cara parada, era dificil adivinhar o que pensava. Mas, ao longo dos dois anos, frase a frase, as coisas foram-se esclarecendo.- Simpatizo mesmo com ela - confidenciou o Nazar num desabafo a esperar a reaco.O 31 voltou-se para ele e demorou um pouco.i45No pareceu hesitar. As palavras saram-lhe naturais e seguras como que informando de uma verdade h muito sabida.- Ela tambm simpatiza contigo. Ainda hoje voltou a diz-lo.Nessa noite o Nazar mal dormiu. No lhe saa da memria o rosto da moa e o seu olhar. Deslumbrado imaginava o futuro. Preparou tintim por tintim nova conversa com o 31. No podia perder a sorte que o bafejava. Tinha que adiantar as coisas.Assim trs dias depois no passeio, j com a conversa engatilhada, o discurso saiu-lhe inteiro e escorreito.- Eh, 31. Ouve o que te quero dizer. Gosto mesmo da tua irm. Tenho 25 anos e faltam-me s 5 anos para cumprir a pena. Tu disseste que ela tambm simpatiza comigo. Da minha parte isto mesmo a srio. No podia escrever-lhe?O 31 parou, voltou-se para ele e olhou-o uns momentos de frente. Calado, inexpressivo e indecifrvel. As palavras, como sempre, saram serenas e seguras.- Tambm tenho pensado nisso, p. Foi bom falares. Eu s saio daqui a 8 anos e ela precisa de algum que a ampare. Tu daqui a 5 anos j l ests fora. Vou dar-te o endereo. O resto convosco.46Algumas semanas depois o 31 deu o endereo ao Nazar. Assim comeava uma histria de amor.Agresso que ningum viuNum extremo do passeio da ala C produziu-se um pequeno rebulio. Foi rpido. A alguns pareceu o incio de uma desordem. Logo tudo ficou tranquilo e normal. S depois repararam que cado no cho, meio encostado parede das oficinas, jazia um dos presos com o rosto ensanguentado.Os outros continuaram o passeio como se nada tivessem visto. At o Silvino, sempre to observador, passou mesmo ao lado como se em nada reparasse. S passado um bom bocado um guarda se aproximou e deu pelo homem cado. Disparou ento uma saraivada de perguntas. Que se passara? quem fora? porqu? Ningum sabia nada. Ou quem sabia no respondeu. Nem mesmo o ferido.Ao terminar o passeio formaram e regressaram s celas. No caminho o Serpentina disse ao companheiro que ia a seu lado:- Aquilo foi o 509...- Viste?- Vi.47De facto vira. No se apercebeu da razo do conflito, mas vira o 509, rpido e poderoso, segurar o outro pelos braos e assestar-lhe uma cabeada em cheio no rosto.- Deu-me c uma vontade... - resmungou angustiado o Serpentina.- Que podias tu fazer? - consolou-o o outro.Era certo que ningum denunciaria o 509. O risco seria demasiado.A figura sobressaa do conjunto. No que fosse exibicionista. Mas, alm do tamanho, adivinhava-se na sua forma de estar uma fora bruta pronta a desencadear-se. Chamavam particularmente a ateno as pernas arqueadas, a cabea retesada sobre o pescoo imvel e a expresso do rosto cheio e contrado com uns olhos minsculos e fixos l no fundo.- Eli p! - observou um. - O Javali mete medo...- Cala-te tonto - interrompeu um companheiro. - Nem baixinho digas esse nome. Se ele te ouve, ests frito.Ningum se atrevia de facto a pronunci-lo. Por semelhante descuido j alguns tinham pagado caro. Na verdade o 509 metia medo. Estava ali h alguns anos e ainda lhe faltavam quinze para cumprir. E era j longa a lista das brutalidades que lhe eram atribudas.48Morte na oficina de cartonagemAconteceu na oficina de cartonagem. O Nero no perdera o gosto de atirar graolas aos companheiros. Graolas tanto mais ofensivas e humilhantes quanto mais medo os outros tinham dele. Razes tinham para ter medo. Pelo corpanzil e pela fama. Naquele dia dera-lhe para embirrar com um tipo insignificante em quem ningum reparava.- Ol gordinho - atirou-lhe o Nero gargalhando. - Porque que ds ao cu quando cortas o carto? Ahn? diz l.E bum-bum, tal como sucedera no calabouo da Madeira, esteve assim a massacr-lo toda a manh. O outro no reagira. Nem pouco nem muito. O guarda de servio at achava divertido. Mas um outro preso j h muito os observava com manifestos sinais de descontentamento. Indignavam-no as provocaes do Nero cada vez mais grosseiras e ofensivas e a passividade do outro continuando o seu trabalho como se nada ouvisse. Por fim no se conteve e murmurou:- Se fosse comigo...O Nero olhou-o de lado com desprezo e continuou divertido a disparar as ofensas.- Eh gordinho! Pareces mesmo uma gaja a dar ao rabo...49De novo o outro preso resmungou:- Se fosse comigo, no era assim...Disse-o s para si em voz mal perceptvel. O pior que o Nero ouviu.Ningum esqueceria o que aconteceu. O Nero deu dois passos rpidos, aproximou-se avolumando o prprio corpo, encostou-se ao outro e, fulminante, dando um urro, enterrou-lhe fundo no peito o facalho do trabalho ajudando com o peso do corpo a lmina a entrar.Acorreram os guardas, a vtima foi levada e o Nero conduzido de seguida para uma das celas de castigo no subterrneo. Viria a estar l encerrado mais de trs meses.Armas do crimePor indecifrveis processos de comunicao no sistema geral de separao e isolamento das alas, a morte na oficina de cartonagem tornou-se rapidamente conhecida em toda a cadeia. Durante dois ou trs dias, nos passeios e nas breves palavras trocadas ao sabor de encontros fortuitos, foi o assunto eleito.Homicdio palavra que classifica o crime mas50no o descreve nem caracteriza. Situaes diversas, razes diversas, motivaes diversas, armas diversas.Comentando a morte na oficina de cartonagem, cada qual referia um aspecto da questo. O erro da direco da cadeia por ter posto o Nero a trabalhar na oficina depois de ter quase matado outro no calabouo da Madeira. O juzo sobre os dichotes provocatrios. A responsabilidade do morto que se metera onde no devia. A falta de vigilncia do guarda de servio. Sobre qualquer destes aspectos havia variadas opinies e iria discutir-se anos inteiros.Assim tambm em relao ao facalho de trabalho, arma do crime.Afinal para matar tudo pode ser utilizado. Revlver e pistola. Caadeira e espingarda de canos serrados. Navalha, faca e punhal. Machado, enxada e barra de ferro. Pedras e pedregulhos. Cordas e cintos. Venenos de infindvel variedade. Tambm mos desarmadas que estrangulam e destroem. Mil e uma formas de matar.No recreio, ao sol, um grupo fazia balano da matria. Alguns espraiavam-se em esquemas complicados de casos conhecidos.- Para que tudo isso? - interrogou com voz fraca um moo em geral acanhado e silencioso.51- Eu limpei-lhe o sebo com um chapu-de-chuva. Entrou-lhe na pana como uma baioneta.Os outros riram. E a chacota prosseguiria, se outro dos presentes de rosto ladino e voz aflautada e trocista no acrescentasse um novo e surpreendente elemento de juzo.- Vocs riem? Um chapu-de-chuva uma arma pesada. No tem de admirar. Um lpis bem afiado e usado a preceito faz o mesmo servio.De novo a risota foi geral. S um dos presentes achou demasiado brincar com coisas to srias.- Tem juzo, garoto. Isto para homens.- Limpar um tipo com um tiro no habilidade - replicou o ladino que sabia ter sido uma pistola a arma do outro no seu caso. - Com um lpis tenta a ver se s capaz.Os nimos aqueceram, os guardas notaram, aproximaram-se e o grupo desfez-se.- O tipo parvo vir com anedotas - comentou um na retirada.- Anedota? - corrigiu outro. - Limpou mesmo o sebo a um meco com um lpis bem afiado. Parece impossvel, mas foi assim.52Trabalho para a reinsero socialA morte na oficina de cartonagem foi tambm pretexto para moenga sobre as oficinas. Naqueles anos eram trs: a de cartonagem, a de montagem de bicicletas motorizadas e a de mveis. Todas de empresas privadas, que auferiam elevados lucros graas misria dos salrios. Instaladas nas casas abarracadas que cercavam em crculo o enorme conjunto das alas em estrela, as oficinas eram gabadas pelo Ministrio da Justia, pelos Servios Prisionais e pela Direco da cadeia, como o caminho certo, conforme diziam, para a "regenerao" e a "recuperao social" dos delinquentes. Por um lado, o hbito de trabalhar e de receber a recompensa afastaria por si mesmo a tentao do crime. Por outro lado daria possibilidades aos presos de juntar boa maquia num Fundo de Reserva para quando sassem em liberdade terem dinheiro bastante para a sua reinsero social. As opinies dos presos no confirmavam porm tais intenes.Depois do ocorrido no se falou de outra coisa durante semanas inteiras na oficina de cartonagem.- Os que mandaram o Nero para aqui - dizia um - que so os responsveis. Deviam saber que mais dia menos dia isso iria acontecer.53Outros aproveitaram a ocasio para darem curso ao seu descontentamento, preocupaes e angstias.- J estou farto disto - dizia um. - Estou h cinco anos a cortar carto para as embalagens e faltam-me dez para terminar a pena. No aguento isto. Passar mais dez anos a cortar carto para ganhar uns tostes? E se a empresa acabar antes? uma intrujice, o que .O Porto Alto tinha ideias mais arrumadas. Vindo de Benavente, falava de toiros e touradas como se no tivesse feito outra coisa na vida. Mostrava porm a cada momento ser homem de muitos outros conhecimentos e com experincia da vida. Tinha trabalhado dois ou trs anos nas oficinas. Depois recusara-se a continuar e explicava porqu.- O que nos do uma misria. E dessa misria tiram-nos quase tudo. Pagamos pela cela, pagamos pelo rancho, pagamos o uso e a lavagem das roupas, pagamos por tudo como se estivssemos num hotel. Dois teros do que nos do -nos tirado. O Fundo Disponvel at agora deu-me s para o tabaco e para papel e selos para escrever famlia. E o Fundo de Reserva? Quanto me ser entregue quando sair? Daqui a dez anos? Daqui a quinze anos? E para o que d? Para um ou dois dias?54Fora das oficinas tambm se falou muito. O 333, investido em sacristo na missa dos domingos e em outras importantes responsabilidades, tinha uma viso menos materialista. Antes de mais fizera as contas. Nos trabalhos internos da cadeia menos de cinquenta presos. Quatro faxinas por ala, mais meia dzia para limpeza no resto das instalaes, mais quatro ou cinco para a horta e a jardinagem e uns tantos para trabalhos soltos como carregos, biblioteca, capela e sacristia.- J vocs vem - explicava o 333. - Quanto muito, so cem os que tm trabalho. E os outros quatrocentos?No se limitava porm a colocar a questo. Falando aos domingos com o padre, ou quando calhava com os guardas e mesmo com o chefe dos guardas, tinha a resposta. Sim, o trabalho era importante, mas no era o que decidia do futuro.- Para aqueles que pecmos s podemos encontrar salvao no arrependimento perante Deus e na esperana na Sua misericrdia.- Este gajo acredita mesmo - comentou o chefe dos guardas.- Um farsante, o que - disse o guarda Ernesto.55O mais grave crime do GarinoO Garino prometera ao Augusto contar o resto da sua histria. Demorou tempo porque durante alguns meses andaram desencontrados no trabalho e no passeio. Na primeira ocasio cumpriu a promessa.Sim, a coisa fora mais sria. Passara-se num daqueles prolongados perodos de desemprego e fome que varriam o Alentejo dos latifndios. Os trabalhadores faziam concentraes, iam s Cmaras exigir trabalho, protestavam contra o governo. A nica resposta eram as cargas da GNR, a ida apressada de brigadas da PIDE, espancamentos e prises. O desemprego ficava na mesma. Na mesma tambm a fome negra.Ento o Garino jogou mais forte. Com dois ou trs jovens amigos do seu antigo grupo de assaltos s mercearias, realizou um plano audacioso. Primeiro foram de noite ao estbulo de um ricao e trouxeram de l dois machos corpulentos que arrearam como puderam. Depois foram a um monte que antes tinham vigiado para apurar das existncias. Porta rebentada, foi s tirar e carregar. Alguns sacos de trigo, outros de batatas e feijo e ainda o que havia numa salgadeira que estava fornecida. E a vo eles, s aldeias e casas dispersas distribuir aquela riqueza.56Descobertos e apanhados, foram a Tribunal. Acusados de arrombamento, roubo e associao de malfeitores, foram todos condenados. Como chefe reconhecido e confessado da operao, o Garino apanhou a maior talhada: doze anos de priso maior.Antes de proferir a sentena o juiz olhou fixamente o acusado.- Voc no se pode queixar da sentena. At fui generoso. Voc um comunista, o que ! - die numa voz implacvel.- Comunista, euuu? - exclamou o Garino verdadeiramente espantado.Agora ria-se da cena, pois desde ento aprendera muito.- Se calhar at j o era - disse irnico ao Augusto contando o episdio.- Deram-te duro - comentou o Augusto.- Deixa - disse o Garino. - Foi uma das coisas mais acertadas que fiz na vida.Trezentos contos esperaSe havia qualquer dvida acerca do que o Mata-a-Velha roubara, ele prprio um dia a tinha desfeito. Foi o Serpentina epilptico que conseguiu tal57resultado. Quando queria tirar nabos da pcara, o Serpentina no fazia perguntas. Bombardeava com afirmaes, com insinuaes, com suposies, com graas e insultos e enredava e atordoava de tal forma o interlocutor que este acabava por deixar escapar uma qualquer verdade escondida.Assim foi naquele dia. O Serpentina seringou, seringou, at que depois de aguentar silencioso e indiferente, o Mata-a-Velha explodiu:- Trezentos contos parece-te pouco? Faz l as contas. Alguma vez eu ganharia em toda a vida tal quantia? Faltam-me s trs anos. Depois poderei viver tranquilo.O Serpentina esperava tudo mas trezentos contos era obra. Ficou siderado.Mal tinha acabado de falar, o Mata-a-Velha pareceu arrependido.- Disse-te s a ti. Agora v l se vais contar a algum...- Por quem me tomas? - retorquiu o Serpentina. - No ouvi nada, no sei nada, como se tivesses falado com um padre.No h provas de que tenha sido o Serpentina a espalhar a notcia. O certo que passados tempos toda a cadeia a conhecia. Foi um espanto.- Aquele gajo que ali vs - informou o Bazuca um outro guarda novato na Penitenciria 58ningum d nada por ele. Matou uma velha e tem l fora espera bem escondidos trezentos contos que lhe roubou. Ningum d nada por ele e afinal um espertalho.Um pedido de socorroO Virgolino acordou a meio da noite com a impresso de ter ouvido ecoar, na amplitude da ala mergulhada no silncio, o cair de uma bandeira e logo o som da sineta respectiva. Esperou um momento que da torre central viesse o forte soar metlico do abrir do grado para que um guarda passasse e fosse ver do que se tratava. Nada ouviu. Passados alguns minutos, o som do cair da bandeira repetiu-se. E inesperadamente outro e outro toque da sineta. Algum estava aflito. Da torre central no houve reaco e de novo tudo caiu em silncio apenas cortado uns segundos pelo ecoar distante de uma tosse cavernosa vinda de lugar indefinido. Passou-se o tempo e o Virgolino acabou por adormecer.Cedo de manh, ainda antes da alvorada, o Rinaldo e outro guarda abriram a porta da cela. - Vem da!59Em passo estugado levaram-no ao fundo do primeiro varandim. Um outro guarda estava imvel junto da porta aberta de uma cela. L dentro, meio corpo na cama meio corpo descado, o preso estava morto.- Temos que o levar daqui antes do servio - disse o Rinaldo. - Tu e o Benjamim da enfermaria fazem o servio.O Virgolino lembrou-se do que ouvira de noite.- Eu ouvi de noite...- Que ouviste, diz l! - interrompeu violento o Rinaldo.- ... a sineta tocou trs vezes, eu ouvi...- Tu no ouviste nada! - rosnou o Rinaldo. - No ouviste nada, est certo?O Virgolino fixou-o um momento. Possante, imvel, ameaador, pronto a qualquer brutal agresso. O Virgolino percebeu que queriam abafar culpas. Que podia fazer? Ainda hesitou, no insistiu.O Nero sai do segredo em friaO Nero foi retirado do segredo nesse dia. Passara vrios meses na escurido. Berrara contra o castigo. Recusara comer durante quase uma semana.60Acabara por amansar. Ora passeava o corpanzil c e l horas e horas no curto e escuro espao da cela, ora se deitava no catre dias inteiros a dormir ou dormitar. Por vezes dava-lhe para berrar a plenos pulmes, mas da voz vinda do subterrneo espalhavam-se apenas vagos e indecifrveis sons pela imensido das alas.- V, isto acabou - disse o guarda Clemente ao abrir a porta do segredo j ao cair da tarde. - Pega na manta e no pcaro e vem da.O Nero espreguiou-se at estalarem os ossos, bocejou ruidosamente, piscou os olhos ao sair da obscuridade, nada disse e seguiu os guardas. No caminho estes procuraram sem resultado meter conversa. Conduziram-no a uma cela numa das alas e foram-se embora.No tardou que se no ouvisse vinda de l grande barulheira. O guarda de servio acorreu a espreitar pelo culo e o que se lhe deparou deixou-o estarrecido. No podia crer no que via.O Nero parecia um louco. Desfizera o banco em bocados, desmanchara a pobre cama, partira os ferros e com os ferros desfizera a bacia metlica e estilhaara os vidros do "postigo". O colcho de palha de centeio estava desventrado e a palha rodopiava no ar misturada com os pedaos de ferro e madeira levantados pelo corrupio de pancadas61desferidas. Aos urros o Nero girava e gesticulava como se estivesse num campo de batalha.Vieram mais guardas mas no se atreveram a abrir a porta para pr fim ao desatino. S horas mais tarde o Nero sossegou e subitamente descontrado deixou-se tombar sobre os destroos e adormeceu.Os guardas espreitaram, conferenciaram e deixaram-no assim at manh seguinte. De manh acordou estremunhado, espreguiou-se num levantar e torcer lento dos braos, olhou em volta e surpreso viu o que fizera. Olhou uma duas trs vezes. Ento levou as mos cabea e comeou gargalhada.- Ai Me Santssima! - gritava e ria. - Ai minha rica Nossa Senhora!Um guarda espreitou e encolheu os ombros. Depois da forma, do conto e do distribuir dos pcaros de caf e do casqueiro trs guardas abriram-lhe a porta e levaram-no para outra cela. O riso parara. Silencioso e tranquilo deixou-se conduzir.O crime e o homemQuem os visse nas formas, nas deslocaes, no passeio, naquela mancha acastanhada das fardas marcadas a branco com os grandes nmeros de62identificao e arrastando ruidosamente tamancos e tairocas, tenderia a ver todos aqueles homens muito iguais uns aos outros, no apenas no aspecto mas no mal que haviam feito. Nenhuma apreciao poderia entretanto ser menos exacta.Cada condenado pode ser classificado em termos jurdicos pelo crime cometido: homicida, salteador, burlo, ladro, violador. No pode com rigor, pelo crime cometido, ser classificado o ser humano. O crime classificado em termos jurdicos s por si no classifica o homem.Centenas de presos estavam condenados por homicdio. Todos haviam matado. Entretanto o acto em si, as determinantes, o meio, as circunstncias, a execuo, por vezes a actuao ulterior eram to diferentes que revelavam tambm seres humanos diferentes. Desde casos de ferocidade tocando o horror e a loucura a casos reveladores de aprumo cvico e mesmo coragem moral.O Augusto, por exemplo, fora movido pela indignao das mais tenebrosas malfeitorias que um senhor l da terra fizera sua famlia, seduo e abandono de uma irm, expulso das terras e da casa com um cortejo de grandes desgraas. O Augusto chumbara o sujeito com um tiro de caadeira, com a agravante de premeditao. O 402, quando marinheiro, matara numa desordem nocturna no63Cais do Sodr. Fora em legtima defesa mas no a invocara em tribunal. De resto os seus sentimentos, ideias e atitudes eram positivos e generosos.Salteadores e ladres tambm os havia de todas as espcies. Casos de impiedade, violncia e crueldade. Outros de homens bons que a sociedade e as circunstncias da prpria vida haviam empurrado ao acto. Assim o Garino. Assim o Silvino.Tambm no que respeita aos condenados por violao, mal seria ajuizar de todos pela classificao jurdica do acto.O Tony assaltava as mulheres em caminhos desertos, arrastava-as para as bermas e ao viol-las arrancava-lhes os brincos das orelhas, rasgando o lbulo num brutal puxo. O Elvas contrabandista atava as raparigas aos sobreiros e assim as deixava depois. O 101 utilizara o poder paternal para violar as trs filhas. O 325 intimidava as vtimas com navalha apontada garganta. Os quatro de Leiria tinham raptado uma moa e a geral deixara-a despida, magoada e meio louca num pinhal deserto. Do Resmas, velho decrpito, ningum sabia dizer como fora mas ele com um sorriso aparvalhado gabava-se do acto como a maior faanha da sua vida.Certamente que o 230 no poderia ajuizar-se da mesma forma. Fora condenado por violar uma jovem de 12 anos da casa em que vivia. Com desen64volvimento precoce, criana-mulher, formosa, corpo torneado e vivo, a moa chegava-se, exibia-se, provocava, desafiava. Daquela vez foi de corrida ao quarto dele quando ele j estava deitado, beijou-o e fugiu deixando atrs de si uma fugaz imagem de nudez e excitao. O 230 no resistiu mais. Foi procur-la, ela recusou, ele forou-a sem ter sequer a ideia de que estava a for-la, a moa gritou, a famlia acorreu e o resto seguiu-se na polcia e no tribunal. No tribunal o 230 no citou as provocaes, incluindo a que precedera imediatamente o acto. A violao de uma criana ficou provada e o 230 recebeu pesada condenao. Mais pesada que a do Tony ou a dos quatro de Leiria.Para conhecer cada homem que ali est no basta dizer matou, roubou, assaltou, burlou, violou. Houve quem dissesse que no h crimes mas criminosos. Muitos que praticam crimes poderiam ter passado a vida inteira sem os praticar.O isolado do terceiro varandimA regra era a separao dos presos das seis alas. Comandados pelos apitos dos guardas, levados das celas em formatura, os presos de cada ala eram65conduzidos vez uma hora por dia para o ar livre nos largos espaos triangulares que intercalavam as imensas fachadas do edificio. Era sobretudo a que se conheciam uns aos outros. Refeitrios onde os presos se vissem no havia: as latas do rancho vinham da cozinha em tabuleiros e eram distribudas pelas celas. Sucedia assim, salvo transferncia de uma ala para outra ala por motivo de servio, que cada preso, ao longo de cinco, dez, vinte ou mais anos que ali passava, acabava por conhecer directamente apenas um nmero limitado de outros condenados. Ou conhecia um outro e deixava de o ver ao longo de muitos anos. Oportunidades de encontro de presos de alas diferentes s na missa, no posto mdico e no passeio da enfermaria, uma vez que para as celas da enfermaria iam doentes de todas as alas. Sempre sob estreita vigilncia.O Augusto jardineiro, tendo a cela na ala A, j h muito no encontrava ningum da ala C. Foi por acaso que encontrou o Parrana da ala C no posto de tratamento da enfermaria. Ficaram na bicha, um ao p do outro.- Ento? - arriscou em voz baixa. - O poltico ainda l est?O Parrana certificou-se de que os guardas no estavam a ouvi-los.66- Est s um. Outro enlouqueceu. Outro mataram-no. Est s um.- Continua isolado?- Sim - respondeu o Parrana. - S o Virgolino lhe pode levar o rancho. No permitem que ningum l v. Alm do Virgolino ningum mais lhe viu a cara.O Augusto abanou a cabea.- de mais. H j mais de dois anos que o tm ali fechado. de mais.- Mais de trs anos - corrigiu o Parrana.O guarda aproximou-se e o enfermeiro chamou, irritado.- Tu a! Vens ao posto ou pr conversa? a tua vez, chega aqui.O 333 em defesa da prpria honraO 333 era talvez o preso que desfrutava de maior confiana do director, do chefe dos guardas, do padre, do mdico, do enfermeiro e do rancheiro. Foram-lhe atribudos alguns dos mais altos cargos conferidos a presos. Era o sacristo nas missas de domingo, o responsvel da biblioteca e da distribuio e recolha de livros embora poucos houvesse67e da distribuio do leite a doentes graves, o que por no ser frequente nem abundante no diminua a responsabilidade.Mesureiro para toda a gente, fazia vnias a torto e a direito. As feies eram secas, como que cortadas machadada. Os olhos encovados, brilhantes e agressivos. Essa aspereza de feies era porm compensada pelos gestos amveis, a voz pausada, a linguagem cuidadosa e a lisonja fcil que utilizava para quem quer que fosse. Tratava o director por Vossa Excelncia Senhor Director, o chefe dos guardas por Senhor Chefe dos Guardas, os guardas por Senhor seguido dos nomes que conhecia de cor. Os outros presos tratava-os ou por irmo ou por amigo distinguindo-os entretanto segundo a origem social: doutor por doutor, capito por capito, engenheiro por engenheiro e assim por diante. Para os mais humildes falava do alto com ar protector. Alguns gozavam por tais maneiras, outros diziam que era o 333 que os gozava a eles.O caso do 333 dera brado. Eram trs na sociedade comercial. Os negcios iam mal, o dinheiro era pouco e ao 333, segundo ele prprio dizia francamente, colocou-se a alternativa: ou segurava algum antes da falncia ou ficava na dependura. Nada h de mal que um homem queira sobreviver.68Em vez de pagamentos a fazer, meteu a massa ao bolso.Tudo natural e lgico, como se v e ele dizia. O pior que os outros no gostaram, no estiveram pelos ajustes, foraram um encontro e de papis vista e contas feitas chamaram-lhe ladro. At ali as coisas tinham ido menos mal. A acusao estragou tudo. Os nimos exaltaram-se, berraram, descompuseram-se e, para pr termo a tal baguna, o 333 sacou de uma pistola e trs-trs, matou os dois scios de uma s vez.Como sempre, o Garino fez um comentrio.- Esta histria parece fantasia, mas passou-se assim mesmo.De facto, explicava o 333, como poderia ter sucedido de outra forma?- O senhor juiz compreender, no podia fazer outra coisa - explicou no tribunal. - Foi em defesa da minha honra.Por muito que parea absurdo, dir-se-ia que o juiz compreendeu to bem o acusado que a pena foi relativamente leve.Agora os anos passaram, mas o 333 definiu uma linha de conduta: com o seu estilo prprio, lutava pela liberdade condicional.69O Malveira, um duroAlguns guardas gostavam de submeter experincia os condenados que ali chegavam com fama de valentes. Dirigiam-lhes piadas, ofendiam-nos, vexavam-nos, ameaavam-nos. Se o preso de qualquer forma reagia o castigo era em proporo.O Nero e o 509, o Javali, tambm haviam sido sujeitos experincia. Os factos mostravam que nesses casos s havia duas sadas: ou fechar os olhos ou a violncia brutal conduzindo a mortes mais dia menos dia. Passaram a fechar os olhos.O Malveira no fugiu regra. Entrou na Penitenciria com fama de duro e ficou sujeito prova. Cadastro por confusos negcios de gado, desordens, um homicdio, pesada condenao. No era alto nem encorpado. Seco, ossudo, todo ele se deslocava em movimentos bruscos como que retesado por uma forte presso interna.Os guardas comearam a experiment-lo.- Eh, Malveira! Limpa-me essa gua do cho.O Malveira olhou de mau modo mas limpou.- Isso no est bem limpo, limpa melhor!O Malveira tornou a limpar o que j estava limpo.- Ests cego ou qu?! No te faas fino. Limpa isso com jeito.70Era de mais. O Malveira soprou e atirou com o esfrego.- Sabe, senhor guarda? V para o caralho!Assim terminou a primeira experincia. A frase custou-lhe uma semana de segredo a po e gua. Entretanto os guardas no deixavam de o espicaar.- Este no nenhum Nero, nem nenhum Javali - comentava o Bazuca deserto por situaes em que pudesse malhar-lhe. - Quer ser duro, mas a bazfia passa-lhe depressa.- A ver vamos - replicou o Clemente. - O tipo pequeno, mas parece atrevido. Vai dar-nos trabalho.As provocaes continuaram.- Eli, Malveira! - atirou-lhe um dia o Bazuca. - Para a outra vez lava melhor a marmita...- Eli, Malveira! A! - atirou-lhe de outra vez. - Quieto na forma, no te faas fino, ouviste?O Malveira dava sinais aparentes de docilidade. No respondia aos ditos provocatrios. Mas qualquer observador atento podia ver nele uma tal tenso que era inevitvel um dia a raiva iria estoirar.71O isso passa do doutor BarnabO antigo mdico no era mau sujeito. No podia fazer grande coisa mas fazia o que podia. Recebia os doentes ou os que se queixavam de o ser, distribua os poucos medicamentos de que dispunha, mantinha nas celas da enfermaria os casos mais graves e ia destinando as restantes celas aos pacientes de ocasio.Quando se agravou o estado do comunista que fazia greve da fome no terceiro varandim da ala C, os pides que por turnos permanentemente guardavam a cela no chamaram mdico, nem enfermeiro. Fizeram-no transportar moribundo para uma cela da enfermaria onde pouco depois morreu. Quiseram obrigar o mdico a assinar uma certido de bito, mas ele recusou e ordenou a autpsia.- Nem todos teriam essa coragem - disse o Benjamim ao informar do facto o Augusto jardineiro.Um dia porm esse mdico foi-se embora e mandaram um outro. Ningum soube dizer para onde fora o antigo e donde viera o novo. O novo alis no era nada novo na idade, antes era j bastante idoso, surdo como uma porta e completamente tarouco. O seu verdadeiro nome ningum o72sabia. Houve porm quem o crismasse e para todo o sempre ficou sendo conhecido como o doutor Barnab.O 402 atribua-lhe o agravamento da grande ferida na perna resultante da queda quando tentara fugir. De princpio, quando ainda l estava o mdico antigo, trataram a ferida. Veio o Barnab e passou muito tempo sem fazerem nada.Por fim l o levaram ao posto. O enfermeiro tirou o enorme penso ensanguentado e o Barnab deitou uma rpida olhadela.- Icho pacha - disse solenemente no seu sotaque regional levado ao extremo.Pelos vistos era a expresso preferida do Barnab depois de observar qualquer doente.O Porto Alto era diabtico num estado bastante avanado da doena. Os recursos no eram muitos, mas o enfermeiro, bem-disposto nesse dia, lembrou-se de que havia uns restos de ampolas de insulina e berrou aos ouvidos do doutor que desse uma delas ao doente.- Incho... qu? - perguntou o doutor Barnab.O enfermeiro deu a injeco ao Porto Alto e, quando este se ia a retirar do posto para voltar ala, o doutor quis consol-lo.- Icho pacha - disse-lhe paternalmente. Afinal no passou. Foram dar com ele desmaia73do na cela e o Benjamim e mais outro foram chamados e levaram-no enfermaria.- Hipoglicmia - berrou o enfermeiro ao ouvido do Barnab.- Hipo... qu? - surpreendeu-se o doutor.O Benjamim era faxina da enfermaria h alguns anos. J vira casos semelhantes. Correu prpria cela a buscar um pouco de acar, meteu o acar na boca do Porto Alto e passados uns instantes este voltou a si.O enfermeiro no fizera mais nada e estava mesmo disposto a nada fazer. Mas no interveio. O Benjamim era conhecido como pacfico, disciplinado e realizava os trabalhos de faxina e outros ainda menos atraentes como transportar suicidas e outros mortos. Estava sempre disponvel para o que fosse. Pesava entretanto mais de cem quilos e o enfermeiro sabia que era de maus ventos quando o contrariavam.O mestre com ar de xarrocoO grupo do Rolim no falhava nunca. Os participantes habituais ouviam-no admirados por tanta sabedoria. Quando apareciam dvidas, problemas74novos ou discordncias, o Rolim encontrava a resposta certa e dominava a situao com -vontade.As suas preleces sobre a importncia para o verdadeiro prazer do homem de saber dar prazer mulher continuavam entretanto a suscitar interrogaes e at discordncias.- Se a mulher fria, nada feito, amigo - contestou nesse dia um dos assistentes.- Ests enganado - replicou o Rolim. - S frgida se no souberes trabalh-la.- Ento desembucha - disse o outro. - Se fria como que a trabalhas?- Quando eu era ganapo - acedeu o Rolim -, o que queria era saltar-lhes para cima. Quase no lhes dava tempo para nada. O que queria era vir-me.- E ento?- Ento, se continuasse a fazer sempre assim, nunca teria conhecido verdadeiramente uma mulher. O teu maior prazer s podes alcan-lo quando ds tambm o maior prazer tua parceira.- Era o que eu fazia - gabou-se um dos participantes na conversa. - No se podiam queixar. Punha-me nelas duas ou trs vezes a fio.- Que avaria - atalhou outro -, cinco ou seis fodas dava eu.75- Eu c eram logo dez ou vinte - zombou o Serpentina.- A questo no essa - sorriu condescendente o Rolim. - Uma vez pode valer por muitas. O importante preparar a mulher. Atrasar se for caso disso, descobrir os pontos mais sensveis, muitas vezes em lugares inimaginveis. Saber despertar a impacincia, a pressa ou mesmo a fria. Saber contrariar, fazer subir mais e mais o desejo atrasando mais e mais o grande momento at finalmente fazer explodi-lo. Se tomba cada um para seu lado, tudo foi certo.Inesperadamente, o Nero, que se chegara ao grupo e acompanhara o discurso do Rolim, soltou uma gargalhada que a todos pareceu . a despropsito.- Porque te ris? - perguntou o Rolim.O Nero no parava de rir. Olhava o Rolim, o corpo insignificante escondido na fardeta enorme, o barrete com os 444 brancos enterrado at s orelhas, o rosto mido agora com uma indescritvel expresso de espanto perante a risota.- Eh homem! Ao ouvir-te pareces um professor, mas olhando para ti pareces um xarroco.76O doutor Biscaia continuava a aparecer aos domingos para consolar os presos. Coisa estranha. No fim de contas quem expunha as suas dores no eram os presos mas o doutor Biscaia. Vinha para ter d dos presos e afinal parecia que eram os presos a ter d dele.- Tenha coragem, doutor - diziam-lhe aqueles com quem normalmente conversava. - No perca a vontade de viver.O caso era para isso. O doutor Biscaia tinha h anos a mulher gravemente doente. Dizia ser esclerose em placas, mas no era certo que fosse diagnstico correcto. A infeliz h muito no se levantava da cama. Ia l a casa uma mulher tratar do essencial, mas o peso da situao era ele, o doutor Biscaia, que o suportava. Viver naquela casa era um pesadelo. Talvez por isso aos domingos passava as manhs na Penitenciria, a fazer bem como vicentino que era. verdade que alm do nmero reduzido de assistidos pelo doutor Biscaia os presos em geral no simpatizavam nada com ele. No gostavam do seu deambular pelo meio do pessoal como se fosse dono daquilo, chapu na cabea, voz baixinha e lamecha e aquele gesto aparentemente discreto mas77que sabia ser observado quando entregava as onas das beatas. O doutor ficaria certamente desapontado se ouvisse os nomes que falando entre si os presos lhe endereavam.A par desses, o doutor encontrava outros com palavras caritativas. Eram uns tantos, quase sempre os mesmos. Em boa verdade conversavam com ele por trs razes. Ou porque se sentiam lisonjeados como se a conversa com pessoa a seus olhos to importante fosse uma distino. Ou porque sempre valia a pena a chatice de uma conversa para receber uma ona, como era o caso do Mata-a-Velha. Ou porque tinham a iluso de que o doutor Biscaia, pelo que representava e pelas facilidades que tinha na priso, sempre poderia fazer alguma coisa por eles.Naturalmente, ouvindo as suas queixas da vida, diziam-lhe palavras de consolo. O doutor gostava particularmente de falar com o 333 quando conseguia encontr-lo. O 333 ouvia-o atentamente, acompanhando as queixas com um aceno respeitoso e aprovativo de cabea. No fim tinha sempre palavras apropriadas.- Deus sabe o que sofre, doutor Biscaia. No se pode contrariar a vontade de Deus. O sofrimento do homem redime-o dos seus pecados e pela sua bondade e devoo ter recompensa eterna.78O doutor Biscaia acenava tambm com a cabea. Dir-se-ia que acreditava.Cartas de amorAgora o Nazar no tinha pressa de sair da cela. Com frequncia, hora do passeio, dizia ao guarda que se sentia mal e pedia para ficar. Julgavam-no doente e l o deixavam. Mas no, no estava doente. A doena, se doena se podia chamar, era outra.Para ele agora os melhores momentos eram esses que passava fechado na cela. Lia e relia as cartas que recebia da irm do 31. E o tempo passava rpido a rel-las e a escrever, a emendar e a reemendar as cartas de resposta.Fechado na cela nem ouvia o tenebroso barulho de rotina da cadeia. Nada ouvia. Sonhava com o futuro. Passava horas a imagin-lo. Eram reflexes srias, projectos e planos que pouco a pouco ia construindo com rigor e preceito. Tudo quanto o esperava com os mais pequenos pormenores. No casamento ele iria de negro, ela de branco com amplo vu e grinalda de flores. Choviam os papelinhos e o arroz lanado ao ar sada da igre79ja. A casa estaria j ento caiada de novo, arrumada, arranjada, alegre em dia de sol. Tudo imaginava com sentimentos limpos que constantemente ganhava em si prprio. De tal forma que, quando o fluir da imaginao o levava previso do grande momento de a conhecer como mulher, quase indignado consigo prprio fugia perseguio das imagens de nudez feminina e de aproximao fisica, que inevitavelmente teimavam a concluir cada curso do seu pensamento.Agora o pior do tempo de priso no era a priso em si mas o tardar do momento ansiado quando o libertassem. A paixo era tanta que por vezes o assaltava de surpresa o terror de perder a sua amada."Meu amor", escreveu um dia. "Sei que trs anos so muito. Muito para mim pelo dia que tarda. Muito para ti tambm, eu sei. Mas vale a pena esperar porque nos espera a felicidade."A resposta recebida deixou-o maravilhado.... "trs anos, meu querido, so muito. Mas que isso? Pelo que te amo, esperaria cinco ou seis"...Certamente exagero ou uma forma de dizer, pensou o Nazar. Em todo o caso, se ele se sentia apaixonado, porque no o estaria ela tambm? Alm do mais, era uma forma de dizer, to cativante,80to generosa, que lhe ateava as chamas da paixo.Quando meses depois dessa carta calhou de novo ir visita com o 31, procurou ler no rosto da moa o que as cartas lhe revelavam. Na penumbra do parlatrio vizinho mal se divisavam as feies. Ele apercebeu-se porm de fugida, estava certo disso, de um olhar mais doce que sempre.Reconduzidos pelo guarda, o Nazar e o 31 voltaram s celas. Pelo caminho, o Nazar ciciou um comentrio.- Custa a esperar, p! - desabafou.S alguns passos adiante o 31 respondeu.- Quem espera sempre alcana, amigo. Saiu-tea sorte grande, que queres mais?- Chiu ! ! - fez o guarda a impor silncio. "Terrvel este 31", pensou o Nazar. "No sente as coisas. Decerto nunca amou."Era autorizado ter nas celas um fogareiro a petrleo ou uma lamparina a lcool para cozinhar ou aquecer o que fosse. O Catalo tinha uma lamparina. Uma tarde, pouco antes do conto, ainda aber81tas as portas das celas, verificou que se lhe acabara o lcool. Dirigiu-se ao guarda e perguntou se ainda podia ir um faxina comprar-lho cantina.Calhou estar o Rinaldo de servio. Imvel como um touro amansado. Ouviu-o sem o olhar sequer.- No, no pode - respondeu secamente.Raio de resposta. A cantina estava ainda aberta e o que pedia era corrente pedir-se e a autorizao em geral era dada. Ainda quis insistir.- No! - repetiu o Rinaldo. E com o seu passo slido e pesado, afastou-se ala fora.O Catalo recolheu cela resmungando. Mal o tinha feito, espreitou-lhe porta um dos vizinhos que ouvira a conversa. Era o Fradinho. Pequeno e humilde caminhava curvado, as mos juntas como se andasse a rezar. Tinha sido condenado por violao, mas sempre se afirmara inocente.- Se quiser, eu arranjo-lhe um frasquinho.O Catalo aceitou, o Fradinho foi-se e passado pouco tempo voltou com um frasco cheio.O Catalo olhou o azul do lcool desnaturado e agradecido pagou trs ou quatro vezes o preo. O Fradinho sabia bem que ao Catalo dinheiro no faltava. Pouco depois os guardas apitaram, procederam ao conto e com o estrondo habitual de fechaduras e ferrolhos fecharam as portas das celas.82Foi a surpresa. Ao acender o lcool na lamparina - pfum!, uma labareda sbita e apagou-se. Tentou mais uma, duas, trs vezes e sempre sucedeu o mesmo. Pfum! uma labareda e tudo apagado.O Fradinho fizera mistela e levara o Catalo certa. Daquela mistela ningum soube e o proveito foi certo. O Catalo no fez queixa, pois infringira a proibio de se fazer negcio com outros presos. Tambm no lhe foi possvel tratar do caso directamente porque o Fradinho embora na cela vizinha sempre se esgueirou.At que um dia o apanhou mesmo de frente ali porta. Chegou-se a ele, quase lhe encostando cintura o bojo da barriga e fitou-o ameaador.- Usted fez uma coisa sucia. Eres un cabron - disse-lhe a voz a tremer no seu portugus espanholado.O Fradinho no se atrapalhou.- Usted est enganado - respondeu suavemente. - O material era do bom. Muy bueno.Furioso, o Catalo voltou-lhe as costas e entrou na cela como um furaco, fazendo vento com o deslocar do balofo corpanzil.O caso foi conhecido e o 333 um domingo na missa chamou o Fradinho pedra. Estava vontade para isso pois eram os dois muito devotos.83- No o devias ter feito, irmo. Deus pode castigar-te.- No castiga, irmo - respondeu o Fradinho. - Estou inocente. - Os olhos tinham uma expresso de tamanha humildade que era difcil no acreditar.- Ainda bem que ests inocente - disse o 333- Ainda bem que me acreditas - concluiu o Fradinho.O 333 sabia muito da vida e dos homens. O Fradinho estava a mostrar que no sabia menos.O novo DirectorFoi grande notcia para os presos que o Director da cadeia, o Martins-Lucas como os presos lhe chamavam, fora substitudo por um novo Director, um jovem advogado sobrinho do ministro da Justia. Podia supor-se que pretendia apenas um tacho. Mas no. O novo Director trazia na manga boas intenes e reformas quase revolucionrias na vida prisional.Eliminou o barrete. Eliminou os grandes nmeros dos presos at ento chapeados nas costas, nas84calas e no barrete e substituiu-o por uma pequena fita colada ao peito com o nmero respectivo. At parecia um enfeite. Aumentou o tempo de recreio. Passou a receber os presos em audincia. Criou uma sala comum para presos em vias de reabilitao. E, segundo logo correu de boca em boca, deu ordens terminantes para melhorar o rancho e no serem exercidos em quaisquer circunstncias castigos corporais.As novas fardetas anunciadas tardaram a chegar. Quando chegaram foi um sucesso. Sem os grandes nmeros brancos, cabea ao lu. Na nova indumentria os presos sentiam-se respeitados. Fazia-lhes bem, indiscutivelmente.Entre os guardas as opinies sobre tais medidas eram diversas. Assim, por exemplo, apoiando o novo Director o Ernesto dizia que at ali nem tudo estava certo e que alguma coisa se tinha de fazer. Ao contrrio, o Bazuca chamava a tudo aquilo uma asneirada, insistia em que o novo Director era ainda muito garoto e no tinha experincia e bufando entusiasmava-se tanto na crtica que os colegas se afastavam para no se comprometerem. O Rinaldo, ouvindo os colegas, no tugia nem mugia. No precisava de ser dito que aquela ordem de servio proibindo doravante castigos corporais, para ele Rinaldo no era de aplicar. De um aspecto, todos85os guardas se queixavam. Sem os grandes nmeros nas costas e no barrete os presos praticavam toda a casta de faltas e escapavam-se entre os outros sem que pudessem ser identificados.Da parte dos presos, no havia duas opinies. O novo Director estava no certo. Que se saiba, houve s uma nota de menos entusiasmo. Foi do 402.- sol de pouca dura... - disse sem mais.Rancho e petiscosCom a entrada em funes do novo Director, o rancho melhorou. Claro que, havendo como havia boa quantidade de leo ranoso em armazm, tinha de se gastar. O mesmo com o feijo-sacana duro como pedras por ter apanhado gua depois de ensacado. Em compensao aquele peixe intragvel e de nome feio, servido habitualmente uma ou duas vezes por semana, desapareceu durante algum tempo. Menos frequentes tambm os casqueiros queimados e esborrachados bons para deitar fora.As modificaes desencadearam um pouco por todo o lado, quando havia ocasio, conversas sobre velhas patuscadas e comeres regionais.86- No h nada melhor que uma aorda de svel - dizia convicto o Porto Alto, vaidoso da Lezria do Tejo donde viera.- No digas - contestou o Falua. - Eu j provei e s po e espinhas.- Provaste uma gaita - replicou o Porto Alto. - Ou ento quem a fez no sabia faz-la. Se bem feita, nem uma s espinha poders encontrar.O 333 que ouvira sorriu, mas no disse nada.O Nazar andava demasiado absorvido pela correspondncia com a irm do 31. No passeio circulava isolado e pensativo. No se conteve porm ao ouvir num grupo uma frase a seu ver disparatada.- A cobra-do-mar? A cobra-do-mar no se come.- Posso dizer uma palavrinha? - atreveu-se a entrar na conversa. - Vocs esto com certeza a falar da moreia. Parece cobra mas no . Feio ser, mas...- S v-la faz vmitos - interrompeu o outro.- Ser feio, mas saboroso. O que preciso cortar em postas finas e fritar bem. At ficar tostadinho. Come-se tudo.Na onda de tais conversas, o Elvas contou uma vez como alguns malteses preparam o porco.87Primeiro vo a um monte. Escolhem um porco dos mais pequenos. Do-lhe vidro modo com alguma coisa de comer e o porco sorve tudo brutamente. No dia seguinte no pra de grunhir, de guinchar e de cagar sangue. Os manajeiros julgam que tem peste e enterram-no. coca os autores da faanha vo l desenterr-lo e comea a funo. Bem lavado e enrado inteiro em barro previamente preparado para o efeito, colocado a assar numa grande fogueira. Demora mas assa. Depois s tirar da fogueira, quebrar e tirar o barro, cortar pedaos escolha e enfardar at fartar.- No vo comer o porco inteiro - observaram.- Nem para isso - respondeu o Elvas. - Tira-se o que apetece e enterra-se o que fica para no deixar rasto.Cada qual citava os petiscos da sua terra como os melhores do mundo. Para os do Porto o sarrabulho e as tripas. Para os do nordeste a feijoada transmontana. Para os alentejanos o ensopado de borrego, as aordas, as migas, o gaspacho. Para os algarvios os carapaus alimados, o xerm, a sopa de lingueiro e o arjamolho. E assim por diante.Para todos, dois petiscos indiscutveis: as sardinhas assadas e o caldo verde.- por isso que somos portugueses - ciciou malicioso o Falua.A oficina do CataloEstava o ptio coalhado de presos em passeio, apareceu um grupo estranho de civis bem vestidos e engravatados acompanhados pelo chefe dos guardas e pessoal da administrao. Deslocavam-se em passo rpido resvs aos edifcios. Abrindo uma porta desapareceram da vista dos presos.- O que que os gajos iro fazer oficina do Catalo? - perguntou um.Ainda outro no tinha dado resposta, nova surpresa. Acompanhado por dois guardas, o Catalo foi conduzido at oficina.Aquela oficina tinha adquirido rpida celebridade e aura de mistrio. Os presos chamavam-lhe a oficina do Catalo. O Catalo no gostava. Chamava-lhe laboratrio. Ainda no tempo do Martins-Lucas, antigo director, fora instalada custosa aparelhagem com autorizao superior dos Servios Prisionais. O Catalo fazia ali experincias para o fabrico de um novo combustvel lquido. Fora-lhe mesmo autorizado dar uma conferncia de imprensa89onde referira tanto os progressos das suas investigaes como as reformas inovadoras do regime prisional propiciando aos presos a revelao das suas capacidades.Da visita oficina naquele dia, soube-se depois que fora organizada pela direco da cadeia e especialistas enviados pela Direco dos ServiosPrisionais.- Querem ver que o Catalo inventou mesmo um novo carburante!... - comentavam alguns.Que o Catalo tinha um cadastro notvel por burlas e abusos de confiana era certeza adquirida. Reconhecia-se ao mesmo tempo ser homem de experincia, conhecimentos, inteligncia e inventiva. No que o seu aspecto o revelasse. Era um tipo volumoso, redondo, balofo, todo pneus de gordura, rosto com barbela e papos quase disformes. Tudo isso esquecia quem falava com ele. O que sobressaa era um olhar fino, atento e inteligente e um fluir de palavras calmas e convenientes. Dificil se tornava no acreditar.Ainda no tempo do Martins-Lucas obtivera apoio para a instalao da oficina. O novo Director da cadeia apoiara tambm e, dizendo-se confiante no xito, inscrevera a experincia no seu projecto inovador.Alguns presos no partilhavam de tal confiana.90- Aqui h o sbio e o tonto - disse um dia o Garino. - O Catalo o sbio porque j campa. O tonto o director porque julga vir a campar.Sobre a origem comum dos animaisAlguns gostavam de ouvir Silvino discorrer acerca dos bichos e da natureza. Acontecia porm s vezes ir to longe nas suas fantasias que ganhou fama de ser um tanto luntico. Assim um dia, na sua voz fraca e pausada, falando dos insectos que povoavam o jardim.- Olhamos para eles, perseguimo-los, matamo-los. Entretanto somos da mesma massa e vimos da mesma fonte. Um ingls descobriu em tempos que o homem descendia do macaco. Quer dizer que tanto o macaco como o homem descendemos de um macaco av de um e de outro. Vocs podem pensar que no verdade. Mas somos primos, sem qualquer dvida.Os que o ouviam achavam graa. Mas o Silvino falava a srio.