A etnocenologia e seu método - um olhar sobre a pesquisa contemporânea em artes cênicas no brasil...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLAS DE TEATRO E DE DANÇA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS UNIVERSITÉ PARIS OUEST NANTERRE LA DEFENSE UFR DE LANGUES ET CULTURES ETRANGERES DOCTORAT EN LANGUES, LITTÉRATURES ET CIVILISATIONS ROMANES COLÉGIO DOUTORAL FRANCO-BRASILEIRO ADAILTON SILVA DOS SANTOS A ETNOCENOLOGIA E SEU MÉTODO - UM OLHAR SOBRE A PESQUISA CONTEMPORÂNEA EM ARTES CÊNICAS NO BRASIL E NA FRANÇA - Salvador 2009

Transcript of A etnocenologia e seu método - um olhar sobre a pesquisa contemporânea em artes cênicas no brasil...

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLAS DE TEATRO E DE DANA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARTES CNICAS

    UNIVERSIT PARIS OUEST NANTERRE LA DEFENSE UFR DE LANGUES ET CULTURES ETRANGERES

    DOCTORAT EN LANGUES, LITTRATURES ET CIVILISATIONS ROMANES

    COLGIO DOUTORAL FRANCO-BRASILEIRO

    ADAILTON SILVA DOS SANTOS

    A ETNOCENOLOGIA E SEU MTODO - UM OLHAR SOBRE A PESQUISA CONTEMPORNEA EM ARTES CNICAS

    NO BRASIL E NA FRANA -

    Salvador 2009

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    ADAILTON SILVA DOS SANTOS

    A ETNOCENOLOGIA E SEU MTODO - UM OLHAR SOBRE A PESQUISA CONTEMPORNEA EM ARTES CNICAS

    NO BRASIL E NA FRANA -

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas da Universidade Federal da Bahia em convnio com o Doctorat en Langues, Littratures et Civilisations Romanes de lUniversit Paris Ouest Nanterre La Defense, como requisito parcial para obteno do grau de Doutor.

    Orientadores: Prof. Dr. Armindo Jorge de Carvalho Bio e Prof. Dr. Idelette Muzart-Fonseca dos Santos.

    Salvador 2009

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    A Maria Barros da Silva e Felipe Elois dos Santos, minhas razes. E a Cassiel Arajo de Oliveira Silva dos Santos, Lis Silva dos Santos e Pedro Silva dos Santos, meus frutos e flores.

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    AGRADECIMENTOS

    sempre impossvel agradecer nominalmente a todos os que nos ajudam numa longa jornada. Por isso, comeo com um agradecimento geral a todos aqueles que, direta ou indiretamente, contriburam para que este trabalho chegasse a seu fim em bom termo.

    Naturalmente, h sempre aqueles que merecem um certo destaque por terem contribudo mais de perto, por um perodo mais longo, ou mais decisivamente para o desenvolvimento das atividades visadas. nesse sentido que me sinto agradecido aos meus irmos de sangue Ana Lcia Silva dos Santos, herdeira da intuio feminina de nossa linhagem; Antnio Fernando Silva dos Santos, inspirador intelectual longnquo de todo esse trabalho; Adilton Silva dos Santos, miostis delicado e forte, sempre generoso torcedor de nossos xitos; Admison Silva dos Santos o homem-menino firme e doce; e, Alan Silva dos Santos, nosso sol de liberdade, sempre a provar que tudo possvel.

    Agradeo tambm a Ana Rita Arajo de Oliveira, pelo apoio e solidariedade em vrios sentidos diferentes, ao longo de todos os anos desde que nos conhecemos. A Brbara Conceio Santos da Silva, com quem compartilhei, durante quase sete anos, um imaginrio que, em parte, gerou o projeto desta tese.

    A Waldeck Alcntara e Sharyse Piropo do Amaral, amigos de todas as horas, que acompanham minha trajetria em todas as instncias da vida e que se dispuseram a ler ou ouvir as primeiras proposies de idias para desenvolver no doutorado que agora se conclui.

    A Andr Luis Mota Itaparica, Ricardo Henrique Resende de Andrade e Jarbas Farias pela amizade forte, pelo dilogo intelectual e bomio ao longo de muitos anos, alm dos vnculos pessoal e profissional em muitos nveis distintos. Eles me ajudaram bastante, respectivamente, na escuta e discusso dos

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    assuntos, na leitura do material da qualificao e no trato com as referncias em ingls.

    A Ana Luisa Mota Itaparica, pelos cuidados mdicos e amizade sincera; Maria das Graas Cantalino pelos cuidados, pela solidariedade e generosidade incomparveis, seja para localizar uma fonte bibliogrfica, seja para encontrar uma fonte da juventude; e a Glauber Brito, companheiro de longas e agradveis conversas sobre todos os assuntos, inclusive as sutilezas deste trabalho.

    Um agradecimento especial vai para Sarah Glaisen pelo cuidado, pela generosidade e pela imensa disposio em me auxiliar em todos os sentidos seja material, formal ou emocionalmente. Obrigado pelas fotocpias, pelas leituras, pela escuta, pela pacincia.

    A todos os professores e colegas do Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas da UFBA, principalmente Makrios Maia Barbosa pela grande amizade, dilogo artstico e terico; Alexandra Dumas, pelo grande afeto, incentivo e admirao mtua. E tambm a todos os colegas que conheci na Frana com os quais tive a chance de discutir parte das idias deste trabalho, principalmente Srgio Lsias.

    Agradeo profundamente professora Idelette Muzart-Fonseca dos Santos, minha orientadora em co-tutela que, ao me aceitar como orientando, propiciou meu estgio doutoral na Frana, alm do estmulo para a criao intelectual de qualidade. E ao professor Armindo Bio, orientador desde a iniciao cientfica, e que aceitou mais uma vez o encargo de me orientar em uma pesquisa acadmica. Ele o maior responsvel pela mais forte base de auxlios acadmico que obtive ao longo desses anos de trabalhos. Foi ele quem leu e revisou minuciosamente cada parte dos originais.

    Para finalizar, gostaria de agradecer aos meus colegas de universidade, principalmente os do meu campus, localizado na cidade de Itaberaba, o

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    Departamento de Educao e Cincias, Campus XIII da Universidade do Estado da Bahia, UNEB, que aprovaram o meu afastamento para cursar o doutorado; e tambm Pr-Reitoria de Ps-Graduao da UNEB por todo apoio que recebi ao longo desse perodo. E agradecer o apoio dado pelo CNPQ / CAPES atravs da bolsa de estudos que me possibilitou fazer o estgio doutoral na Frana pelo Colgio Doutoral Franco-Brasileiro.

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    Em questes de mtodo, nada se pode fazer que no seja provisrio, pois os mtodos mudam medida que a cincia avana.

    mile Durkheim, 1895.

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    SILVA DOS SANTOS, Adailton. A Etnocenologia e seu Mtodo Um Olhar sobre a Pesquisa Contempornea em Artes Cnicas no Brasil e na Frana. Tese de Doutorado. Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2009.

    RESUMO

    A etnocenologia surgiu como uma nova disciplina dos estudos dos fenmenos espetaculares, em 1995, na Frana. Ela se props a lanar um olhar diferenciado s prticas e comportamentos espetaculares humanamente organizados, procurando evitar os preconceitos e hbitos de pesquisa nocivos aos objetos estudados nesta rea. Esta tese consiste de uma anlise reflexiva acerca do discurso da etnocenologia, especificamente dos marcos de orientao de sua metodologia, entre os anos de 1995 e 2005, desde o ponto de vista estrito da constituio e desenvolvimento de seu discurso cientfico. Procurou-se fazer isso a partir da compreenso dos seus marcos histricos, do exame de suas principais afirmaes, do esclarecimento das ligaes de suas afirmaes com importantes teses, de base epistemolgica, contemporneas e, tambm, pela aproximao genrica do universo da pesquisa em artes cnicas com o universo das cincias, hodiernamente. Os resultados atingidos do conta da falta de elementos epistmicos fundamentais para a constituio de uma disciplina cientfica, mesmo dentro do amplo espectro considerado como abrangncia da categoria do cientfico atualmente. A concluso mais relevante que, em seus dez primeiros anos de existncia, a etnocenologia, desde o ponto de vista intracientfico, ainda no formou elementos epistmicos suficientemente slidos capazes de sustentar sua cientificidade como disciplina autnoma.

    Palavras-chave: Etnocenologia. Artes Cnicas. Cincia. Metodologia. Epistemologia.

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    SILVA DOS SANTOS, Adailton. LEthnoscnologie et ses Mthodes - Un Regard sur la Recherche Contemporaine en Arts du Spectacle au Brsil et en France. Thse de Doctorat. Programme de Post-Graduation en Arts Scniques de l'Universit Fdrale de Bahia. Salvador, 2009.

    RSUM

    L'ethnoscnologie est apparue comme une nouvelle discipline des tudes des phnomnes spectaculaires, en 1995, en France. Elle se propose de regarder diffremment les pratiques et les comportements humains spectaculaires organiss, en cherchant viter les prjugs et les habitudes de recherche nfastes aux objets tudis dans ce domaine. Cette thse consiste en une analyse rflexive sur le discours de l'ethnoscnologie, plus spcifiquement sur les axes d'orientation de sa mthodologie de 1995 2005, en sattachant strictement sa constitution et au dveloppement de son discours scientifique. Dans ce dessein, cette analyse a t dveloppe partir de la comprhension des lments historiques de lethnoscnologie, de ltude de ses principales affirmations avec celle dimportantes thses contemporaines de base pistmologique, ainsi quavec une approche gnrique sur lunivers de la recherche dans le domaine des arts scniques et celui des sciences contemporaines. Les rsultats obtenus rendent compte dun manque d'lments pistmologiques fondamentaux pour la constitution d'une discipline scientifique, au sein du vaste champ considr mais aussi, actuellement, pour ce qui est dune catgorie scientifique. La conclusion la plus importante est que, au cours des dix premires annes de son existence, l'ethnoscnologie n'a pas encore tabli d'lments pistmologiques suffisamment solides, capables de soutenir sa scientificit comme discipline autonome.

    Mots-cls: Ethnoscnologie. Arts du Spectacle. Science. Mthodologie. Epistmologie.

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    SILVA DOS SANTOS, Adailton. The Ethnoscenology and its method - A Look about Scenic Arts in Research Contemporary in Brazil and France. Thesis of Doctor. Post-Graduate Program in Scenic Arts, Federal University of Bahia. Salvador, 2009.

    ABSTRACT

    Ethoscenology appeared like a new discipline of spectacular phenomenon studies in France in 1995. This discipline intended to give a different look at the practices and spectacular behaviors humanly organized, seeking to avoid prejudice and research harmful habits for the studied objects in this area. This thesis consists of a reflexive analysis about ethnoscenology speech, (specifically about the orientation of methodological points between 1995 and 2005, its constitution and the development of its scientific speech), using historical points, exams of the main affirmations, explanations about the connection between its affirmations and the important thesis of contemporary epistemology, and also the general approximation between the universe research in scenic arts and the universe of contemporary sciences; the results show the lack of epistemic elements for the formation of a scientific discipline, even inside the big spectrum considered in the category of science today. The most important conclusion of the analysis of the first ten years of the ethnoscenology existence, from a scientific point of view, is that it still does not form epistemic elements sufficiently solid to sustain its autonomy as a scientific discipline.

    Keywords: Ethnoscenology. Scenic Arts. Science. Methodology. Epistemology.

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    SUMRIO

    CAPA........................................................................................................................1 DEDICATRIA.........................................................................................................3 AGRADECIMENTOS............................................................................................4-6 EPGRAFE...............................................................................................................7 RESUMO..................................................................................................................8 RSUM..................................................................................................................9 ABSTRACT............................................................................................................10

    1 INTRODUO 14 1.1 OBSERVAES PRELIMINARES.............................................................. 14 1.2 A METODOLOGIA DESTA PESQUISA....................................................... 19 1.3 UMA DISCIPLINA NOVA............................................................................. 27 1.4 O CONTEXTO EPISTMICO ...................................................................... 31 1.5 RELAO OBJETO / DISCIPLINA ............................................................. 40 1.6 DESAFIOS DA ETNOCENOLOGIA CIENTFICA........................................ 43 1.7 UMA ETNOCENOLOGIA CIENTFICA........................................................ 47

    2 O OBJETO 50 2.1 A METODOLOGIA CIENTFICA.................................................................. 50

    2.1.1 Mtodo, Cincia e Epistemologia.......................................................... 50 2.1.2 A Preparao do Terreno...................................................................... 56 2.1.3 As Crenas como Preceitos para a Cincia .......................................... 60 2.1.4 Origens.................................................................................................. 63 2.1.5 Trs Concepes .................................................................................. 69 2.1.6 A Cincia Antiga.................................................................................... 71 2.1.7 A Cincia Moderna................................................................................ 73 2.1.8 A Cincia Contempornea .................................................................... 76 2.1.9 A Necessidade da Epistemologia.......................................................... 81 2.1.10 Uma Tendncia Contempornea ........................................................ 87 2.1.11 Dimenses da Metodologia................................................................. 90 2.1.12 O Instrumental Metodolgico .............................................................. 92 2.1.13 Noes, Conceitos, Princpios e Preceitos.......................................... 94 2.1.14 Estratagemas .................................................................................... 101

    2.2 A ETNOCENOLOGIA ................................................................................ 104 2.2.1 Prembulo........................................................................................... 104 2.2.2 Objeto de Estudos e Objeto de Investigao ...................................... 107 2.2.3 O Termo e o Conceito ......................................................................... 107 2.2.4 O Nascimento de uma Disciplina ........................................................ 108 2.2.5 A Intuio de Nelson de Arajo........................................................... 109 2.2.6 Duvignaud e o Campo da Etnocenologia ............................................ 110 2.2.7 A Cincia e os Fatos Concretos.......................................................... 112 2.2.8 O Desafio da Etnocenologia................................................................ 115 2.2.9 O Modelo da Etnometodologia............................................................ 117 2.2.10 Etnocenologia e Cientificidade .......................................................... 119 2.2.11 Possibilidades e Limitaes .............................................................. 120

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    3 A TEORIA DA ETNOCENOLOGIA 123 3.1 PARTE I: A CIENTIFICIDADE ................................................................... 124

    3.1.1 Prembulo........................................................................................... 124 3.1.2 O Modelo Racionalista ........................................................................ 125 3.1.3 O Marco Popperiano ........................................................................... 129 3.1.4 Correntes no Debate ........................................................................... 130 3.1.5 Trs Temas Contemporneos............................................................. 132 3.1.6 Quatro Teses ...................................................................................... 134

    3.2 PARTE II: EQUAO ETNOCENOLGICA ............................................. 143 3.2.1 Aspectos Scio-acadmicos ............................................................... 143 3.2.2 Origens e Projees da Etnocenologia ............................................... 145 3.2.3 Marcos Histricos da Etnocenologia ................................................... 147 3.2.4 Temas da Etnocenologia Francesa..................................................... 149 3.2.5 Temas da Etnocenologia no Brasil...................................................... 152

    3.3 PARTE III : EM BUSCA DE UM MTODO PRPRIO............................... 154 3.3.1 Mtodo e Hegemonia .......................................................................... 154 3.3.2 Artes versus Filosofia .......................................................................... 157 3.3.4 Vias ao Conhecimento ........................................................................ 165 3.3.5 A Cincia Etnocenolgica ................................................................... 170 3.3.6 Lgica e Deontologia........................................................................... 175 3.3.7 O Olhar Epistmico ............................................................................. 179 3.3.8 Artistas-pesquisadores........................................................................ 181

    4 A ETNOCENOLOGIA FUNDAMENTAL 186 4.1 PARTE I - ORIGEM E TRANSCURSO DA ETNOCENOLOGIA................ 186

    4.1.1 PRIMEIRAS REFERNCIAS .............................................................. 186 4.1.1.1 A Cena e a Terra.............................................................................. 186 4.1.1.2 Uma Nova Pista ............................................................................... 189

    4.1.2 KHAZNADAR E AS ARTES TRADICIONAIS ......................................... 196 4.1.3 BIO, UM PROJETO DE DISCIPLINA................................................... 202 4.1.4 BIO, SEU TRAJETO NA DISCIPLINA.................................................. 205

    4.1.4.1 Performance e as Prticas Cotidianas ............................................. 205 4.1.4.2 O Triunfalismo Obsceno................................................................... 211 4.1.4.3 Uma Referncia da Etnocenologia................................................... 212 4.1.4.4 Objeto, Episteme e Mtodo.............................................................. 222

    4.2 PARTE II OS LIMITES DA ETNOCENOLOGIA...................................... 233 4.2.1 PRADIER E O SKNO........................................................................ 233 4.2.2 O Manifesto......................................................................................... 236 4.2.2.1 Da Seo 1, Etnocenologia.............................................................. 236 4.2.2.2 Da Seo 2, Resumo ....................................................................... 238 4.2.2.3 Da Seo 3, A Iniciativa ................................................................... 244 4.2.2.4 Da Seo 4, O Preconceito Etnocentrista ........................................ 248 4.2.2.5 Da Seo 5, A Etnocenologia, Definio.......................................... 254 4.2.2.6 Da Seo 6, Objetivos e Princpios .................................................. 255 4.2.2.7 Da Seo 7, Justificativa .................................................................. 258 4.2.2.8 Da Seo 8, Perspectivas Tericas ................................................. 260 4.2.2.9 Da Seo 9, Organizao ................................................................ 262 4.2.2.10 Da Seo 10, Atividades ................................................................ 262

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    4.2.2.11 Da Seo 11, Calendrio de Atividades......................................... 263 4.2.3 PRADIER E A PROFUNDEZA DAS EMERGNCIAS........................... 264 4.2.4 A CARNE DO ESPRITO DE PRADIER................................................. 280 4.2.5 PRADIER, OS ESTUDOS TEATRAIS E O DESERTO CIENTFICO ..... 297

    5 CONCLUSO 314 5.1 O Estgio de Desenvolvimento da Etnocenologia ..................................... 314 5.2 A Etnocenologia Concreta ......................................................................... 319

    REFERNCIAS 326 PARTE I - FILOSOFIA DAS CINCIAS E METODOLOGIA CIENTFICA....... 326 PARTE II ETNOCENOLOGIA, ARTES E CINCIAS HUMANAS................. 333

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    1 INTRODUO

    1.1 OBSERVAES PRELIMINARES

    Na presente tese de doutorado, intitulada A Etnocenologia e seu Mtodo um olhar sobre a pesquisa contempornea em artes cnicas no Brasil e na Frana , exponho os resultados da pesquisa, dos estudos e reflexes acerca da problemtica da metodologia da etnocenologia, no perodo que vai de 1995 a 2005. Pretendemos concretizar nossos intuitos mostrando como se desenvolveu o pensamento sobre a etnocenologia e, no mbito desta, a questo metodolgica.

    Procurei entender como cada uma das concepes de seus estudiosos se refletiu na formao geral de seu discurso e contribuiu com as pesquisas em artes cnicas realizadas a partir do Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas, PPGAC, da Universidade Federal da Bahia, UFBA, no Brasil, e do Programa de Ps-Graduao em Artes do Espetculo da Universidade de Paris Nord, Vincennes - Saint Denis, na Frana.

    Como procurei mostrar aqui, a etnocenologia pode ser pensada a partir de trs linhas de orientaes diferentes, duas dentro da universidade e uma fora dela. Uma ligada ao pesquisador, no-acadmico, Chrif Khaznadar, que procura seguir os marcos de uma reflexo advinda das idias do socilogo Jean Duvignaud. Uma outra linha ligada s obras e aes do professor Armindo Bio. E uma terceira, a mais abrangente, ligada s reflexes e posicionamentos do professor Jean-Marie Pradier.

    Para este trabalho os estudos mais importantes so os que esto diretamente ligados aos textos e posicionamentos das orientaes tericas que se relacionam com a chamada etnocenologia baiana, com o professor Armindo Bio,

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    e a etnocenologia acadmica francesa, a partir das idias do professor Jean-Marie Pradier. Pois so estes dois pesquisadores os maiores mantenedores do discurso da etnocenologia, em todos os sentidos.

    No presente texto apresento os resultados da retomada dos meus estudos acadmicos formais, interrompidos entre os anos de 1999 e 2005, desde que me tornei professor assistente da Universidade do Estado da Bahia, UNEB, e passei a lecionar as disciplinas Educao Artstica e Metodologia Cientfica, simultaneamente. Ele representa a continuao dos estudos desenvolvidos por mim no mestrado, concludos em maro de 1999, pelo PPGAC, Universidade Federal da Bahia, quando apresentei como resultado uma dissertao sobre os pontos de aproximao terica entre as teses da etnocenologia nascente e as idias presentes na obra de Nelson de Arajo.

    Nos seus dez primeiros anos de existncia, a etnocenologia cresceu continuamente, ampliando o seu raio de ao e ganhou prestgio em alguns centros acadmicos, principalmente no Brasil e na Frana. Em Salvador, na Universidade Federal da Bahia, e, em Paris, na Universidade de Paris 8, e na Maison des Sciences de l'Homme, Paris Nord, um grande volume de textos foi produzido e publicado periodicamente em Cadernos, Revistas e Anais, alm das teses e dissertaes defendidas pelos programas de ps-graduao em artes do espetculo mantidos por essas instituies.

    Como artista de formao universitria, interessado em questes tericas e prticas, e como professor e pesquisador das artes cnicas na Bahia, nos cinco anos em que me manteve afastado dos estudos formais, continuei meu trajeto acadmico e artstico, mas no deixei de acompanhar, distncia, o franco desenvolvimento da etnocenologia na Bahia, que concorreu, entre muitas outras coisas, para a sedimentao paulatina de uma forte prtica de pesquisa em artes cnicas no Brasil.

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    importante mencionar que foi a partir de um estgio doutoral em Paris, pelo Colgio Doutoral Franco-Brasileiro, com bolsa da CAPES, ao longo do ano de 2007, que eu pude levantar e precisar as informaes aqui relacionadas ao desenvolvimento e manuteno do discurso da etnocenologia na Frana.

    Ora, a metodologia cientfica desenvolvida nas pesquisas em artes cnicas exatamente aquilo que me interessa destacar como mbito aqui, pois permite a convergncia da reflexo sobre aspectos tericos e prticos dos conhecimentos da rea de artes.

    Este trabalho uma tentativa de resposta aos questionamentos que eu pude captar de perto, entre os colegas e demais interessados em desenvolver pesquisa na ps-graduao, na ambincia do PPGAC / UFBA. Pois, dez anos depois do aparecimento da etnocenologia, havia muitas dvidas em torno da problemtica da metodologia do novo discurso, entre os pesquisadores com graus bem diferenciados de experincia. Este fato deixou transparecer a importncia e a necessidade de se entend-la, alm do meu desejo de contribuir para o seu fortalecimento, pelo interesse que tal idia despertou em mim e em meus colegas.

    Posso dizer que este trabalho nasceu ento do meu desejo de contribuir para a sedimentao de um esteio epistmico, capaz de servir de base aos procedimentos metodolgicos de um discurso cientfico da grande rea dos estudos sobre o espetculo.

    Seu produto, no entanto, diga-se logo, no construtivo, mas reflexivo, e extremamente limitado pela minha falta de experincia como pesquisador na rea dos estudos epistemolgicos e pelas nuances que constituem a ao de examinar um discurso ainda nos primeiros anos de sua formao.

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    No encontrei, em meu trabalho de pesquisa, registros seguros de disciplinas que tenham formado suas bases epistmicas com menos de trinta anos de estudos e pesquisas de uma dada comunidade cientfica (STENGERS, 1981; FOUREZ, 1995). O tempo de maturao algo a ser levado em conta em qualquer tipo de empreendimento coletivo, e com discursos cientficos no diferente. O que almejo aqui juntar meu esforo ao daqueles que j se puseram a caminhar em busca dos alicerces dessa construo. Meu intuito me ocupar dos materiais e das formas arquitetnicas j projetadas, contribuindo para o bom termo de uma obra que, bem cuidada, ultrapassar a vida de todos os operrios que a iniciaram.

    As crticas diretas a certos pontos examinados, que aparecem ao longo desse trabalho, so os reflexos dos princpios e preceitos aqui adotados como guias. Acredito que somente o dilogo aberto e as crticas sinceras, e impessoais, s idias apresentadas em cada rea de estudo, fundamentadas em pressupostos claros, e congruentes, so capazes de proporcionar a objetividade necessria sustentao da rea de estudos em questo. O que se chama de objetividade cientfica o fruto da intersubjetividade crtica entre pares, e s pode ser atribuda aos resultados do conjunto dos trabalhos (FOUREZ, 1995, p.48; POPPER, 1999, p.22) de uma dada rea, ao longo de sua histria.

    Genericamente, o discurso chamado de etnocenologia, apareceu lanado como uma disciplina ligada aos estudos artstico-culturais, na Frana, no meio da dcada de 90 do sculo XX, que se prope a cultivar uma nova maneira de olhar, ou, pelo menos, a lanar um olhar mais adequado que os olhares j lanados aos fenmenos cnicos.

    As questes levantadas em torno de sua problemtica esto intimamente relacionadas com as formas de pesquisa em artes cnicas no Brasil contemporneo e, particularmente, na Bahia, pela relativa importncia deste estado no atual cenrio nesta rea. Com efeito, o estado da Bahia congrega as

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    duas primeiras escolas da rea de artes cnicas em nvel universitrio no Brasil, as escolas de Teatro e de Dana; o mais conceituado programa de ps-graduao nesta rea, o Programa de Ps-graduao em Artes Cnicas, PPGAC, da Universidade Federal da Bahia, UFBA e , seguramente, o maior centro produtor de etnocenologia do mundo.

    A metodologia cientfica desenvolvida para as artes cnicas, no mbito do discurso da etnocenologia, o nosso foco principal aqui, mas no o nico. O desenvolvimento das pesquisas j realizadas nesta rea; o acompanhamento da discusso sobre a razo de ser desta disciplina; a compreenso do seu advento; o sentido de sua produo; os fundamentos da sua orientao terica geral; e a captao dos traos gerais da metodologia empregada na prtica pelos pesquisadores que a tomaram como referncia, foram outros focos importantes para esta pesquisa.

    O aparecimento de algo como o discurso conhecido como etnocenologia muito importante para o desenvolvimento terico-prtico na rea das artes do espetculo na contemporaneidade. As atividades prticas, que formam o mago dessa rea, podero se beneficiar do incremento das reflexes, para o desenvolvimento de suas tcnicas; assim como do aumento do prestigio pblico de suas artes, pela ampliao dos canais de acesso s suas formas de conhecimento milenares sobre o ser humano.

    A forma de desenvolvimento desse discurso, desde o ponto de vista intracientfico (POPPER, 1999), problemtica em seus contornos e definies, e cria uma srie de dificuldades para os desdobramentos futuros da etnocenologia, se se almeja consider-la como disciplina cientfica.

    Algo como o discurso da etnocenologia necessrio para as artes do espetculo e perfeitamente defensvel. Mas, o intuito deste trabalho no coloc-

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    la em bases definitivas, e sim refletir sobre como ela se desenvolveu no Brasil e na Frana, neste incio de caminhada, tentando compreend-lo de forma precisa. Por isso ressaltamos que este trabalho consiste muito mais numa reflexo derivada das anlises crticas engendradas, do que numa construo terica propositivas de solues concretas para seus problemas. Implica muito mais no registro dos resultados do trabalho de percepo e exame crtico, do que em constituio de elementos que no tenham sido desenvolvidos por seus tericos.

    1.2 A METODOLOGIA DESTA PESQUISA

    Meu esprito se coaduna com o que afirmaram recentemente duas pesquisadoras da comunicao (MAIA e FRANA, 2003, p. 187-188), por ocasio do I Encontro de Epistemologia da Comunicao, ao discutir acerca das formas de abordagem dos fenmenos em seu campo de estudos. Elas disseram o seguinte:

    Uma das marcas distintivas dos atuais estudos em comunicao o crescimento das anlises auto-reflexivas, ou seja, crticas da prpria prtica da pesquisa. E elas no s so teis mas tambm indispensveis, pois traduzem a reflexo de uma cincia sobre si prpria, a qual aclara seu campo de atuao, seus procedimentos, o valor de seus resultados e o mbito de suas possibilidades.

    Este trabalho o resultado de um esforo por bem compreender os principais aspectos implicados na constituio da etnocenologia enquanto um discurso cientfico. E muitas so as possibilidades j aventadas para ele, desde seu aparecimento.

    Gilbert Rouget (1996, p.44), por exemplo, fala da etnocenologia como um discurso cientfico sobre a mise-en-scne das diversas etnias; enquanto que Chrif Khaznadar se atm aos aspectos da constituio sistemtica de um imenso inventrio de formas e prticas espetaculares, nas diversas culturas. Patrice Pavis e Armindo Bio exaltam seu carter disciplinar, Armindo Bio (1999, p.16-17), sua insero no modelo das etnocincias, em interao com disciplinas compreensivas, como a etnometodologia; enquanto Patrice Pavis (1996, p.65;

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    1999, p. 152) fala mais numa ampliao das bases das anlises antropolgicas dos espetculos, algo capaz de incluir os complexos aspectos prprios a cada cultura. Para Jean Duvignaud (1996; 2001), tratava-se de mais uma aventura nas sutilezas do saber antropolgico; enquanto que, para Jean-Marie Pradier (1995; 1996; 1998; 2001), a perspectiva de desenvolver esse discurso a partir duma nica disciplina seria incorrer em equvocos e limitaes, e se atm mais idia genrica de uma heurstica coerente, uma abordagem transdisciplinar.

    Mas, a maioria dos pesquisadores, incluindo os citados no pargrafo anterior, se referiram etnocenologia ou como disciplina cientifica nova, ou como um novo campo cientifico, ou como um conhecimento de bases epistmicas capaz de articular as dimenses tericas e prticas do domnio dos espetculos em geral. Por isso, dentre as vrias possibilidades de estatuto para os conhecimentos discursivos da etnocenologia, procuramos nos pautar, no mbito deste trabalho, pelas demandas de uma etnocenologia como disciplina cientfica. E investigar, em seus principais autores, os indcios para o desenvolvimento da etnocenologia como disciplina cientfica, no atual quadro da cincia contempornea.

    O que considerado como metodologia da etnocenologia, no mbito deste trabalho, e que constitui nosso objeto de estudos, o conjunto das idias fundamentais, e eventuais indicaes de procedimentos, inerentes ao desenvolvimento de marcos orientadores das pesquisas nessa perspectiva, seja como concepes genricas de suas possveis prticas, pelos principais proponentes do novo discurso, seja como aes diretas no trato com as fontes primrias, exercidas pelos pesquisadores que tomaram essas orientaes como guias de suas reflexes para solucionar seus prprios problemas no campo.

    A questo geral acerca da metodologia cientfica compe o corpus da disciplina filosfica epistemologia e, por isso, este estudo precisou se ocupar, em parte, com a anlise daquilo que constitui o estudo dos fundamentos epistemolgicos de um dado discurso na contemporaneidade, para compreender

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    os fundamentos do mtodo desenvolvido pela etnocenologia como discurso contemporneo.

    As idias fundamentais, que eu tomei como base, advm da compreenso de discusses emblemticas sobre o discurso cientfico contemporneo, e dos ancoramentos histricos dos elementos implicados nessas discusses, a partir de concepes genricas de cincia na antiguidade, na modernidade e na contemporaneidade.

    Tais idias de base foram usadas como pontos de partida para o entendimento de alguns dos principais traos das cincias, das epistemologias e das metodologias hodiernas, que formam o contexto no qual se situa a problemtica que moveu esta tese.

    Levando-se em conta vrias teses contemporneas, a partir de seus fundamentos e conseqncias para a constituio de um discurso cientifico novo, privilegiei o ponto de vista resultante do contraste entre as concepes da jovem etnocenologia e os principais tpicos j aceitos nos mbitos das metodologias, das cincias e das epistemologias propriamente ditas.

    O fato de se tratar de uma srie de discusses, num mbito extremamente matizado e amplo, e o fato de que os elementos implicados se encontram envolvidos em muitas disputas, fizeram com que todas as discusses se pautassem numa srie de sutilezas e, muitas vezes, girassem em torno de puros artifcios retricos, seja no mbito da epistemologia, seja no mbito das cincias, seja no mbito das artes.

    Como resposta a essa problemtica, coloquei em pauta uma srie de artifcios. Procurei ancorar em certas teses emblemticas na contemporaneidade, para os autores aqui tomados como referncias; lanar mo sempre dos levantamentos histricos das questes, para entender seus contornos, partindo de idias mais amplamente conhecidas e procedimentos j clssicos; alm de

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    pequenos procedimentos analticos, como a discusso conceitual a partir dos fundamentos lgicos mais correntes, a partir de manuais e autores consagrados dos ramos discutidos.

    A situao ideal seria encontrar na obra de cada autor-chave um trecho determinado no qual eles discutissem as questes que me interessavam, sistematiz-las e cotejar as concepes desses autores. Mas esse ideal, alm de ser impossvel em textos outros, que no os desta disciplina, por conta dos poucos anos de sua existncia, e falta de uma recepo crtica na academia, dentro da etnocenologia no encontrava nenhum respaldo, pelo carter de defesa de seus posicionamentos que seus primeiros tericos, naturalmente, assumiram. E tambm pelo carter polifnico inerente aos primeiros textos, que se ocupam sempre de vrias questes ao mesmo tempo.

    Para que tudo aparecesse da forma mais clara possvel, fizemos o esforo de tentar contextualizar cada assunto aqui implicado, caracterizar, minimamente, as idias das quais cada autor partiu, as estratgias que ns usamos para compreend-lo e os desdobramentos de tais idias para entender e explicar cada aspecto estudado, e pensar, a partir de cada um deles, suas ligaes ou o desdobramento com a prtica de pesquisa.

    medida que o trabalho foi avanando, com a leitura das obras de referncia nas reas implicadas neste estudo (histria e filosofia das cincias, metodologia cientfica, textos sobre etnocenologia etc.), as possibilidades de mtodos foram se sofisticando e a imagem da etnocenologia foi se modificando, de algo bastante abstrato e quase que puramente lingstico, no primeiro captulo, para a caracterizao bem precisa, texto a texto, do captulo final.

    Para entender a metodologia da etnocenologia era necessrio conhecer um pouco de epistemologia e filosofia das cincias contemporneas. E este foi o primeiro impulso, estudar as disciplinas que se debruam sobre o conhecimento,

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    em geral, e o discurso das cincias, em particular, para compreender melhor toda problemtica envolvida nas questes de fundo.

    Com efeito, suponho haja alguma originalidade neste trabalho: a de cotejar o desejo expresso pelos autores da etnocenologia, em ter uma disciplina cientfica dos fenmenos espetaculares, com as idias fundamentais do mbito dos estudos que condicionam a cientificidade de qualquer discurso.

    Como a rea de estudos das cincias muito vasta, estabeleci uma questo-guia: o que que caracteriza um conhecimento como cientifico?. O intuito era refletir sobre a cientificidade da etnocenologia, ainda que precariamente, para melhor entender a articulao entre os objetivos almejados e os mtodos projetados, a partir de cada texto a ser examinado.

    Reforava a idia anterior observao, pressuposio, de que os criadores do mtodo da etnocenologia, seus principais proponentes e orientadores de suas teses, no apresentavam trabalhos que pudessem ser tomados como paradigmas etnocenolgicos, no sentido kuhniano do termo paradigma. Ou seja, seus trabalhos no mostravam como resolver os principais problemas dos pesquisadores no campo, diante de um objeto espetacular.

    A primeira tarefa foi fornecer uma idia satisfatria para a categoria cincia. Mas, o fato que chegamos concluso de que, para responder, de forma minimamente satisfatria, a essa questo, era preciso situar o contexto das abordagens possveis dessa categoria, e cheguei formulao sinttica de que existem trs perspectivas tidas como fundamentais, at o perodo considerado pela pesquisa, nesse sentido. A depender de onde nos localizamos, do ponto de vista terico assumido, mudam radicalmente os sentidos das respostas. Ento decidi caracterizar cada uma das perspectivas mais comuns nesse mbito e compar-las uma a uma com a etnocenologia.

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    Aproveitei o ensejo para relacionar as concepes da cincia a perodos temporais j convencionalmente aceitos, e assim apareceram as noes de cincia antiga, moderna e contempornea, perpetradas aqui. Elas correspondem, respectivamente, ao que se depreende das abordagens epistemolgicas lgico-filosfica, hipottico-experimental e sociolgica, caracterizadas por Barberousse, Kistler e Ludwig (2000).

    Desde a primeira concepo, a da cincia antiga, impossvel dizer que a etnocenologia seja cientfica, por conta da rigidez do que pode ou no ser admitido como cincia neste modelo.

    Desde o ponto de vista da segunda concepo de cincia, a da cincia moderna, se poderia ajustar certos procedimentos, adequando-se a nova disciplina ao modelo consagrado no sculo XVII, e que ainda hoje guarda uma boa reputao por conta dos avanos cientficos. O problema que a imagem gloriosa dessa cincia se dissolveu completamente nas crticas histricas e posicionamentos poltico-sociais tomados como critrios extracientficos e considerados hoje como inerentes aos discursos cientficos.

    O lugar de adequao da etnocenologia, pela forma como foi concebida e desenvolvida, e tambm pelos seus desdobramentos, se daria sob a terceira concepo de cincia, a contempornea. Mas, desde que corresponda a certas condies mnimas de constituio genrica de discurso cientfico contemporneo que, apesar de incorporar as chamadas condies extracientficas, possui tambm condies de distino.

    A concluso acerca do que foi exposto at aqui, sobre as vrias concepes de cincia, clara e direta: a etnocenologia pode ser tomada ou no como cientfica, a depender da perspectiva de cincia sob a qual a enfocamos e das condies de constituio do seu discurso. Como j vimos as principais perspectivas de cincia, vejamos, em seguida, as condies de constituio dos

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    discursos cientficos na contemporaneidade. Pois as concluses gerais s sero enunciadas depois da anlise e reflexo sobre cada um dos aspectos aqui destacados.

    As condies de constituio dos discursos cientficos contemporneos passam pela concepo de uma teoria, ou pela delimitao epistmica dos seus objetos, junto com a constituio de uma comunidade cientfica genuna ou, o que d no mesmo, o compartilhamento de um paradigma por um conjunto de pesquisadores. Ou seja, depende, em ltima instncia, de se conceber uma epistemologia prpria para ela.

    Conceber uma epistemologia, por sua vez, implica, em geral, em uma circunscrio do termo fundamental, etnocenologia, e, atravs desse ato de circunscrev-lo, poder designar relaes cognoscitivas nas quais um sujeito se reconhea a partir dos objetos visados. isso o que comumente se designa como o ato de adentrar o campo de uma disciplina propriamente dita. E, mesmo no ambiente instvel das cincias contemporneas, isso no mudou.

    O ato que prepara a entrada em um novo campo de estudos consiste em apontar as condies que permitiro reconhecer um conjunto de idias que se interliguem e expressem o que se afirma ser o tema da disciplina. Este ato, por sua vez, se baseia num outro conjunto de idias em meio s quais todo um processo de pesquisa, orientado por princpios tericos e metodolgicos, hauridos das prprias relaes captadas entre os objetos, tenham condies de emergir e se desenvolver. Quanto mais fecundos forem os princpios orientadores, melhor.

    Do ponto de vista da construo concreta da estrutura epistmica de uma disciplina cientfica, podemos dizer que h quatro pontos caractersticos, aos quais podemos nos referir como pontos de um arcabouo geral (POPPER, 1959; JAPIASSU, 1979; FOUREZ, 1995; OMNS, 1996; SILVA FILHO (Org), 2002; LOPES, 2004).

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    Considerando-os como critrios genricos, podemos dizer que o primeiro se refere a como definir o saber de uma dada disciplina, que, neste caso, seria apontar, ou levantar, qual o saber da etnocenologia. Trata-se de uma discusso conceitual de bases filosficas (HESSEN, 2003), implicando em apontarmos em quais condies podemos dizer de um dado estudo que ele etnocenolgico; ou, de outro modo, o que faz de uma dada pesquisa, uma pesquisa etnocenolgica propriamente dita.

    O segundo critrio se refere s idias de base, s crenas, e valores de orientao geral (ticos, estticos e polticos), que vo fornecer os fundamentos para o saber considerado. No nosso caso, as crenas que vo moldar a conduta e os hbitos dos etnocenlogos, e criar o diferencial da produo do saber etnocenolgico.

    O terceiro critrio epistmico se refere ao conjunto dos elementos que determina qual o estatuto do conhecimento em foco. No nosso caso, seria determinar, por exemplo, se a etnocenologia consiste num simples inventrio das formas, numa disciplina cientifica, numa arte, numa heurstica, num novo tipo de tcnica, se seria somente o desvelamento de um saber comum, ou um conjunto de estratgias sociais ou acadmicas ou ainda alguma outra concepo possvel para o estatuto do conhecimento da etnocenologia.

    E, finalmente, um quarto critrio, que diz respeito aos conhecimentos que nos permitem compreender qual a relao desse saber com outros saberes. Trata-se do fato de que um campo de estudos est sempre relacionado a outros tantos campos de estudos. E esse relacionamento aparece justamente por intermdio de seu objeto, por isso a questo do objeto fundamental.

    Nenhum dos critrios aqui sistematizados passa indiferente nos textos dos principais tericos da etnocenologia que so Jean-Marie Pradier e Armindo Bio.

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    E, com efeito, exatamente isso que eles almejam, chegando mesmo a enunci-los como objetivos a ser alcanados em suas pesquisas histricas e anlises discursivas. Mas, o fato que at agora eles no lograram xito na tarefa de alcan-los ou indicar como alcan-los.

    Quanto ao ponto um, por exemplo, nenhum deles foi capaz de dizer claramente o que distintivamente etnocenolgico; quanto ao ponto dois, todos enunciam a necessidade e mostram a importncia de determin-lo, mas o fazem de maneira bastante genrica, sem alguma indicao til ao pesquisador no trabalho de campo; quanto ao ponto trs, todos fazem, mas cada qual aponta para uma direo diferente e, por vezes, conflitante entre si; e, finalmente, em relao ao ponto quatro, se repetem as mesmas condutas observadas quanto ao ponto trs, e fica complicado separar os objetos estritos da etnocenologia, bem como reconhecer as relaes da etnocenologia com os outros campos de conhecimento.

    1.3 UMA DISCIPLINA NOVA

    Do ponto de vista metodolgico mais genrico, podemos afirmar que a etnocenologia seguiu o que afirma Jean-Marie Pradier (1995), no primeiro documento pblico da nova disciplina, intitulado Etnocenologia, Manifesto, e sustentado nos textos seguintes. Segundo o que se l ali, a etnocenologia pode tranqilamente seguir os procedimentos da metodologia cientfica corrente. O problema que Pradier afirma tambm, no mesmo texto, e tambm reafirma em textos posteriores, que se trata de uma disciplina nova. Comecemos ento, por tentar entender qual o sentido desse novo.

    No sabemos ainda se o que a etnocenologia coloca como novo, em seu aparecimento, o fato de desvelar objetos novos para o desenvolvimento de pesquisas com um carter diferenciado, ainda que hauridos de fenmenos comuns a tantas outras disciplinas; ou uma maneira genuna, diferenciada, de

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    encarar os mesmos objetos, j conhecidos, e adquiridos pelos mesmos processos em curso nas disciplinas j dadas.

    No texto Etnocenologia, Manifesto (PRADIER, 1995), aparecem aventadas, de forma ambgua e vaga, as duas possibilidades, mas nenhuma indicao de como realizar as duas, desde uma perspectiva inovadora, como exigiria a reivindicao de um novo campo de estudos genuno; nem, tampouco, a expresso de uma conscincia quanto problemtica da confuso entre os objetos de uma dada cincia e os fenmenos estudados.

    A partir das discusses sobre as relaes entre metodologia e teoria, na filosofia das cincias contemporneas, considera-se que h uma dimenso terica espontnea que garante uma metodologia espontnea inerente ao esprito humano em geral (um conjunto de procedimentos e hbitos mentais genericamente usados por todo mundo), a par da metodologia cientfica. Uma espcie de metodologia diferente apenas em grau de descrio, e aprofundamento de certos aspectos, mas no diferente em gnero. o que fornece sustentao, por exemplo, s teses da etnometodologia.

    Diante desse quadro, a chamada metodologia cientfica aparece como uma metodologia mais ou menos controlada e orientada ao estudo dos objetos delimitados e mostrados somente a partir das estruturas teorticas urdidas nas disciplinas. um dos reflexos da questo do mtodo depois da influncia da filosofia kantiana.

    Durante sculos, as duas perspectivas metodolgicas, a do senso comum e a cientfica, se mantiveram separadas por obstculos intransponveis. A possibilidade de metodologias espontneas era completamente ignorada, ou desprezada, sem sequer guardar o status de teoria, quando tais metodologias no consistem em outra coisa seno teorias. E sem as idias atuais de como

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    concebermos uma metodologia, elas continuariam incomensurveis, vide a idia de corte epistemolgico de Gaston Bachelard (1976, p.37).

    Porm, as perspectivas metodolgicas concebidas desde o mbito cientfico se fortaleceram de tal forma a ponto de se negar qualquer utilidade a qualquer outro discurso que tentasse lanar mo desses recursos, sem o concomitante enquadramento em alguma rubrica j cientificamente aceita, incluindo-se nesse bojo o discurso das chamadas cincias humanas. (FOUCAULT, 1999, p. 475 ss).

    nesse contexto que aparece freqentemente o problema de se confundir os objetos de cincia com os fenmenos percebidos. Os fenmenos so percebidos muito antes que os homens organizem um tipo de saber terico como a cincia. Enquanto que s podemos falar dos objetos de uma cincia em funo dos recortes especficos de cada disciplina. Nenhuma cincia estuda o ente diretamente da mesma forma como supomos em nossas experincias cotidianas. Se se pensa dessa maneira a partir de um ato de confuso que substitui arbitrariamente, e de forma intil para produzir cincia, um ente concreto por seus recortes abstratos (COSTA, 2003, p.33). E toda tentativa de agir dessa maneira recai naquilo que Fourez (1995, p. 109-110) chama de empiricismo.

    Uma discriminao que encontra sua primeira concepo na obra de Aristteles nos ensina que existe uma cincia da existncia e uma cincia da essncia de algo. A primeira nos faz saber que algo existe; a segunda nos fornece as chaves de sua inteligibilidade geral. A primeira s pode se desenvolver pela descrio de coisas particulares; enquanto que a segunda desenvolve-se como um processo discursivo de produo das bases de compreenso geral de todos os fenmenos de um mesmo gnero (PEREIRA, 2001).

    Apesar dessa, e de outras questes inconclusas, como natural para uma disciplina de apenas dez anos de existncia, como bem veremos, mantm-se uma espcie de tenso sempre presente no mbito da etnocenologia, pois h uma

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    ao de afirmao, e reafirmao, da parte dos proponentes, de que existe uma perspectiva prpria em relao aos fenmenos espetaculares.

    At agora nenhum pesquisador indicou qual seria essa postura efetivamente e nem os modos pelos quais se pode implement-la. E sem essa indicao clara, que o que se espera como proposio de uma nova disciplina cientfica, a nica coisa que um pesquisador iniciante, por exemplo, pode fazer so puras especulaes, ou seguir os caminhos (mtodos!) correntemente usados para desenvolver as pesquisas na rea em questo.

    Logo, desde o ponto de vista metodolgico, o que a postura da etnocenologia parece querer colocar em pauta que, nesta fase inicial de desenvolvimento da disciplina, no importa tanto o mtodo, desde que se atente para o fato de que os modos de proceder da cincia sofreram crticas que precisam ser incorporadas aos procedimentos gerais dos pesquisadores que se dedicarem a investigar os fenmenos espetaculares. E essa postura, por si s, j se traduz em uma espcie de preceito metodolgico, indicada por Pradier desde o primeiro documento pblico da etnocenologia.

    Ou seja, se minhas inferncias fazem algum sentido, podemos entender que a postura inicial dos proponentes da etnocenologia foi a de considerar que uma cincia que se pretenda nova deve guiar a ao dos seus pesquisadores, ao menos em parte, para incorporar o que h de mais atual em termos dos instrumentais disponveis no contexto do trabalho, assim como os diversos outros aspectos que seja passveis de serem tratados como meios para chegar aos seus objetos de investigao.

    Mas, como afirma Eduardo Duarte (2003, p.45):

    ...qualquer conceito enquanto objeto de uma epistemologia precisa ser apresentado, mesmo que haja consenso poltico contextual quanto sua normatizao, a fim de que a idia sempre

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    reexplorada e o conceito alimente-se (sic) de sua fluidez para poder expressar mais do que um contextual bom senso permite num hiato de tempo da humanidade.

    Normalmente, o uso de metodologias antigas incompatvel com os desgnios de uma disciplina nova, exceto se ficar claro, dentro do prprio corpo terico proposto pela nova iniciativa, que, em seus meandros, os nexos se desenvolvem de tal forma que garantem a coerncia dessa postura perante a comunidade cientfica. Caso contrrio, mesmo no atual ambiente de abertura das cincias na contemporaneidade, criaria algo bastante inslito e controverso.

    1.4 O CONTEXTO EPISTMICO

    Um pouco de leitura sobre filosofia das cincias contempornea deixa transparecer que a etnocenologia se comportou nesses primeiros anos de sua existncia como se ela estivesse to ocupada com os seus limites, condicionamentos e posicionamentos; que no tivesse conseguido, ou querido, sair do entorno dos pontos colocados por seu prprio discurso, no intuito de verificar a sua adequao com os desdobramentos do grande campo das cincias.

    Com efeito, seus temas giraram somente em torno de alguns pontos dos seus fundamentos, da consolidao de seu discurso cotidiano na academia e da tentativa de definio dos seus possveis objetos, sem a conseqente indicao de seu processo de investigao. O que perfeitamente normal e plausvel, levando-se em conta que no havia uma comunidade etnocenolgica propriamente dita e somente dois pesquisadores se dedicaram a produzir continuamente em prol da construo do seu discurso.

    O reduzido nmero de questes de base postas em discusso representou, ao mesmo tempo, sua debilidade e sua fortaleza. Pois veio da capacidade produo acadmica, do esprito inventivo e da persistncia desses dois pesquisadores, Armindo Bio e Jean-Marie Pradier, o combruente que manteve aceso o fogo da etnocenologia; foi tambm o fato de somente duas pessoas

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    dedicadas a uma empresa que necessariamente uma empresa coletiva que implicou no lento avano da constituio das bases de uma etnocenologia autnoma enquanto disciplina cientifica. como nos diz Rehfeld (2008, p. 188):

    Na medida em que posies pessoais ainda so admitidas em alguma cincia, esta no ainda cincia no sentido preciso da palavra. Para obter valor cientifico, (...) no pode ser uma weltanschauung, uma simples totalizao de opinies e atitudes pessoais. Tem que representar, ao contrrio, um conhecimento coletivo....

    Falando de maneira genrica, h trs constantes nos processos de investigao cientfica que precisam ser sempre consideradas quando se trata de analisar esse tipo de questo: a relao sujeito/objeto ; o aparato lingustico que se refere a essa relao e o quadro epistmico geral ou paradigma, sejam l quais forem as referncias em relao s quais o conhecimento a produzido possa fazer sentido (CHALMERS, 2001).

    Do ponto de vista mais genrico, mudou muito pouca coisa na ndole da cincia. Ela continua sendo um saber humano formado pelas tentativas de explicao / compreenso dos fenmenos cujos mtodos variveis passam por etapas mais ou menos invariveis. O que mudou foram os estudos sobre as condies extracientficas modificando e ampliando as perspectivas de enfrentamento das condies intracientficas e, para alguns pesquisadores, chegando mesmo a se sobrepor a elas. o que aconteceu na busca de um fundamento cientfico para a filosofia das cincias, como nos informam Barberousse, Kistler & Ludwig (2000, p. 233-234):

    Determinados historiadores e socilogos, mas, tambm, filsofos, como David Bloor, proclamaram que o tempo de um estudo filosoficamente orientado da cincia tinha passado e que, de ora em diante, era preciso apoiar-se em teorias, elas prprias cientficas, para abordar a atividade cientifica. Eles entendem apoiar-se em teorias sociolgicas para cumprir este objetivo. (...) No entanto, no se pode efetuar semelhantes estudos sem adotar, pelo menos de modo implcito, determinados princpios metodolgicos. Os princpios metodolgicos correntemente

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    adotados foram inspirados por uma reao contra a abordagem filosfica ou histrico-filosfica anterior, que colocava a tnica nos contedos das idias cientficas conceitos, leis ou teorias assim como nos aspectos normativos da atividade cientfica. De acordo com esta abordagem filosfica, a atividade cientfica consiste no estabelecimento de conhecimentos, isto , de crenas verdadeiras justificadas. O peso normativo desta caracterizao est contido nas noes de verdade e justificao.

    De fato, uma olhada no panorama da filosofia da cincia no sculo XX nos faz perceber como, a partir de uma caracterstica marcante, que o fato de tentar ser uma filosofia cientfica das cincias, podemos acompanhar os desenvolvimentos de uma srie de outras questes fundamentais para os estudos sobre cincia nesse perodo. Pois, a tese implicitamente sustentada pela postura de quem almeja uma filosofia das cincias de bases cientficas afirma que no h ruptura entre o pensamento filosfico e a atividade cientfica, de modo que a atividade filosfica deve adotar exigncias de rigor e um processo metodolgico anlogos aos que caracterizam a obra da prpria cincia.

    Uma das conseqncias desse tipo de abordagem da filosofia das cincias coadunar com as reflexes sobre o desenvolvimento histrico das diversas cincias e com a avaliao dos impactos dos estudos sociolgicos das atividades cientficas. E essas duas perspectivas de desenvolvimento se robustecem a ponto de se inscreverem como caractersticas fundamentais da filosofia da cincia e da epistemologia contemporneas. como afirma Barberousse, Kistler & Ludwig, na sequncia do trecho citado acima:

    ...os partidrios da nova abordagem da cincia consideram que no h melhor mtodo que o de se interessar pelos fatos mais que pelas normas e pelas causas mais que pelas razes. assim que afirmam que as condies concretas da atividade cientfica, que incluem a organizao de laboratrios, os instrumentos, mas tambm o seu financiamento, assim como as relaes sociais entre os investigadores, desempenham um papel to importante, seno mais, que as normas a que os cientistas se devem vergar para tornar os seus argumentos convincentes. Alis, alguns afirmam que estas prprias normas so fruto da situao sociocultural donde esto em vigor.

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    Com efeito, a deciso de considerar que no h melhor mtodo que o de se interessar pelos fatos mais que pelas normas e pelas causas mais que pelas razes, criou uma espcie de polarizao nesse ramo do saber que dividiu as concepes gerais acerca das atividades cientficas entre internalistas e externalistas, de acordo com o mbito sobre o qual recai o foco de abordagem dos problemas cientficos. E veremos que os desdobramentos mais recentes dessa maneira de pensar o que vai inspirar a etnocenologia, ao menos na Frana.

    Os internalistas focam suas anlises e forjam seus critrios a partir de uma abordagem lgico-filosfica, que tomada como a principal para compreendermos a problemtica gerada no processo de entendimento do discurso da cincia, em detrimento de abordagens mais histricas ou sociolgicas. Os internalistas tomam como ponto de partida os sofisticados esquemas da lgica formal aplicados e seus produtos exibem os reflexos da conexo de vrios ramos da filosofia em interao. assim que ramos como metafsica, filosofia do esprito e as reflexes acerca dos avanos das cincias cognitivas so implicadas nesse contexto. Enquanto que os externalistas se concentram nas anlises cada vez mais sutis dos vrios episdios da histria das cincias e do levantamento das condies sociolgicas de produo do discurso cientfico, pela observao e compreenso das dinmicas das comunidades de cientistas.

    Boaventura Souza Santos (op. cit., p. 50) afirma, refletindo sobre as condies sociolgicas de aparecimento de um novo paradigma global para os discursos cientficos: a anlise das condies sociais, dos contextos culturais, dos modelos organizacionais da investigao cientfica, antes acantonada no campo separado e estanque da sociologia da cincia, passou a ocupar papel de relevo na reflexo epistemolgica.

    Um dos marcos histricos desses desenvolvimentos , sem dvida, o conjunto das discusses sobre os fundamentos empricos do mtodo cientfico experimental. O programa para tais discusses pode ser bem ilustrado nas

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    questes propostas pelo chamado Ciclo de Viena, e os encaminhamentos que se seguiram a ele, sobre os fundamentos seguros para a cincia e as controvrsias em torno das teorias de fundamentao do mtodo cientfico. (DUHEM, 1906; MACH, 1925; QUINE, 1969; PRIGOGINE & STENGERS, 1980).

    O Ciclo de Viena, foi um grupo de filsofos, reunidos a partir de 1929, com o intuito de estabelecer critrios seguros pelos quais se pudessem diferenciar concepes cientficas de concepes no cientficas. Baseados na idia conhecida como positivismo lgico ou empirismo lgico, eles acreditavam que o que fundamenta, em ltima instncia, as proposies cientficas, e garante sua superioridade na busca da verdade, o fato de que tais proposies so calcadas em percepes sensveis cuidadosamente registradas no processo de observao atravs de uma linguagem neutra, comum a todas as cincias e baseada na lgica dedutiva. Na apresentao do Ciclo feita por Barberousse, Kistler & Ludwig (Op. cit., p. 220), lemos o seguinte:

    O Ciclo de Viena um grupo de filsofos que, sem nunca ter aderido a uma doutrina comum muito definida, partilham, ainda assim, de uma viso geral da natureza e da tarefa da filosofia que promover uma concepo cientfica do mundo. Contrrios dicotomia, institucionalizada nas universidades alems e austracas, entre cincias do esprito (Geisteswissenschaften) e cincias da natureza (Naturwissenschaften), os filsofos do Ciclo partilham da convico de que a avaliao dos enunciados cientficos obedece ao mesmo mtodo em todas as reas de investigao. O conhecimento cientfico exprime-se em enunciados cujo valor de verdade depende da ligao dedutiva que tm com enunciados diretamente referentes a acontecimentos ou fatos observveis. O papel da filosofia consiste no esclarecimento dos fundamentos das diferentes cincias, atravs de uma anlise lgica do seu discurso que utiliza os meios tcnicos da nova lgica formal desenvolvida, nomeadamente, por Frege, Russell e Whitehead.

    As teses de Rudolf Carnap, as refutaes de Neurath, as controvrsias no prprio Ciclo e a interao com as teorias de outros pensadores de fora do Ciclo, como Karl Popper ou Ludwig Wittgenstein, por exemplo, demonstram que o programa de discusses no mbito do Ciclo, apesar de ter sido profundamente

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    modificado, e posteriormente abandonado, funcionou como uma espcie de catalisador para a viso filosfica acerca das atividades cientficas na primeira metade do sculo XX, alm de fornecer um complexo programa para as investigaes na metade seguinte. Com efeito, os principais pontos de desacordo entre os membros do Ciclo vo paulatinamente aumentando e criando novas linhas de investigao.

    Um conjunto de questes particularmente importante nessas discusses se concentrava em torno do que ficou conhecido como o problema da induo, uma das grandes questes da filosofia das cincias, que consiste nos posicionamentos acerca de como se pode chegar a proposies gerais, partindo de casos singulares. Esse problema exigiu uma reviso dos principais processos de inferncia usados por todas as cincias. O destaque aqui vai para a forma como Karl Popper encara a questo e apresenta a sua soluo, em meio s vrias tentativas de resoluo do problema, pois da surge a idia de falseabilidade, que reconhecida at hoje como um excelente critrio de distino entre o cientfico e o no-cientfico.

    A idia de falseabilidade pode ser resumida mais ou menos assim. A pura falta de fundamentos seguros para os processos indutivos de aquisio de conhecimentos fez com que o discurso cientfico perdesse o status de discurso certo para se tornar, no mximo, um discurso razovel. Ou seja, o status atribudo ao discurso cientfico migrou do mbito do logos para o mbito da doxa, como o caracteriza Karl Popper (1972, p.133). Mas, se a cincia no passa de uma opinio, ainda que especializada, o que garantiria o status diferenciado que o discurso cientifico possui?

    Antes das discusses do Ciclo de Viena, acreditava-se comumente que o mtodo cientfico experimental separava, pela verificao, as opinies cientficas das no-cientficas. O que a crtica que Karl Popper empreendeu tentou demonstrar foi que, sem a possibilidade efetiva de aquisio de conhecimentos

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    seguros, que garantira o status social cientifico at aquele momento, o processo de verificao se desenrolaria ao infinito, sem encontrar um termo. Para resolver esse problema props a idia de que, se no podemos verificar opinies concorrentes, podemos, ao menos, false-as. Nas palavras do prprio Popper (1972):

    S reconhecerei um sistema como emprico ou cientfico se ele for passvel de comprovao pela experincia. Essas consideraes sugerem que deve ser tomado como critrio de demarcao, no a verificabilidade, mas a falseabilidade de um sistema. Em outras palavras, no exigirei que um sistema cientfico seja suscetvel de ser dado como vlido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porm, que sua forma lgica seja tal que se torne possvel valid-lo atravs de recurso a provas empricas, em sentido negativo: deve ser possvel refutar, pela experincia, um sistema cientfico emprico.

    Nesta primeira formulao do critrio de demarcao, como ficou conhecido, Popper se exprime basicamente em termos referentes s cincias naturais e exatas. Mais tarde (POPPER, 1976), fica claro como esse critrio pode ser aplicado diretamente s cincias humanas.

    A falseabilidade a resposta de Popper a um outro problema, inerente ao problema da induo, que o chamado problema da demarcao, a determinao distintiva entre um discurso cientfico de um discurso no-cientfico. E Popper, uma das grandes referncias da epistemologia contempornea, se ps a discutir conceitos como certeza e incerteza, relacionando-os com as teorias da probabilidade, conceitos como necessidade, determinismo e indeterminismo, mostrando as dificuldades no processo de reflexo sobre a natureza ltima do conhecimento cientfico que vo resvalar nas recentes teorias do acaso e do caos.

    Outro conjunto de questes destacveis, no rumo das discusses do sculo XX, o que se concentra ao redor da idia de leis naturais. Discute-se nesse mbito a idia de lei cientfica e de como se podem determinar as condies de explicao, justificao e confirmao de tais leis, principais responsveis pela

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    idia de que a cincia um meio privilegiado para se chegar verdade, quando no, exageradamente, o nico meio seguro (POPPER, idem, p. 62 ss; BARBEROUSSE, KISTLER & LUDWIG op. cit. p. 85 ss; FOUREZ, op. cit. p. 145 ss).

    Havia uma grande limitao da cincia em geral em admitir componentes socioculturais naquilo que era apontado como causa dos fenmenos. E tambm uma enorme dificuldade de aceitar que isso ocorria, em parte, ao menos, pela forma como se concebia uma explicao cientfica. Foram os estudos de histria das cincias e a busca de justificao cientfica dos fundamentos da filosofia da cincia, a discusso e reviso das concepes de termos como explicao e causalidade que concorreram para promover as modificaes no discurso da cincia que evidenciaram como os componentes socioculturais concorrem para a constituio dos paradigmas. Tal idia ganhou muita fora depois da primeira metade do sculo XX, gerando uma srie de desdobramentos, em vrias direes distintas, e uma abertura cada vez maior para acolher as teses de cunho externalistas (FOUREZ, op.cit. p. 66 ss).

    Paralelamente a todo esse processo, comeam a aparecer as chamadas teorias da prova em cincia e um volume cada vez maior de crticas aos processos de observao tradicionalmente aceito, assim como crticas da relao entre experincia cientfica e argumentao no contexto das teorias.

    Os estudos acerca da dinmica prpria da cincia, que tambm passaram a florescer, procuravam dar conta das transformaes do saber cientfico ao longo dos sculos, da questo dos paradigmas, das relaes entre teorias conflitantes, da relao de todos esses fatores com o conceito de verdade e da problemtica de se tentar fazer cincia da cincia. O destaque neste mbito vai para as questes geradas em torno do tpico de cincia da cincia.

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    Os avanos das cincias cognitivas aplicadas produo das atividades cientficas, pem em relevo as controvrsias geradas pelas concluses tiradas dos avanos das chamadas neurocincias nos prprios processos do fazer cientfico.

    Em relao a este tpico, vale a pena destacar a tese da modularidade defendida por Jerry Fodor, que se ope frontalmente tese defendida por Thomas Kuhn acerca dos objetos cientficos. Segundo Kuhn, grosso modo, a interpretao e a construo do objeto cientfico so inteiramente subjetivas. O que Fodor mostra que do ponto de vista cognitivo se pode provar que nossos sentidos so modulares, ou seja, percebem as coisas como espcies de mdulos e de tal maneira que as coisas no se do aos sentidos seno de dadas formas mais ou menos definidas. Os desdobramentos dessa questo implicam numa reviso do papel da comunicao, da formao das hipteses e da relao entre mudana conceitual e desenvolvimento cognitivo.

    Uma outra questo que se torna fundamental a que diz respeito cosmoviso da atividade cientfica como unidade ou como pluralidade. Discute-se a nesse contexto a questo dos princpios e a relao entre cincia e ontologia, abordando questes como materialismo, reducionismo e as possibilidades de explicao da realidade a partir destas perspectivas. E tudo isso se reflete sobre os problemas das delicadas relaes entre o mental e o corporal e de como os desdobramentos dessas concepes implicam em posicionamentos radicalmente distintos no mbito das cincias.

    Todos esses deslocamentos, reformas e revises modificam profundamente as questes relacionadas metodologia. As crticas s perspectivas tradicionais de concepo dos processos metodolgicos da cincia criam alteraes e aberturas imensas para o surgimento de novas propostas. a estreita relao entre as teses que advogam um fundamento cientfico, sociolgico em ltima instncia (MAFFESOLI, 1986), que faz Boaventura (op. cit. p. 85) afirmar:

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    A cincia moderna no a nica explicao possvel da realidade e no h sequer qualquer razo cientfica para a considerar melhor que as explicaes alternativas da metafsica, da astrologia, da religio, da arte ou da poesia. A razo por que privilegiamos hoje uma forma de conhecimento assente (sic) na previso e no controle dos fenmenos nada tem de cientfico. um juzo de valor.(...) a explicao cientfica dos fenmenos a autojustificao da cincia enquanto fenmeno central da nossa contemporaneidade. A cincia , assim, autobiogrfica. (...) os protagonistas da revoluo cientifica tiveram a noo clara que a prova ntima de suas convices pessoais precedia e dava coerncia s provas externas que desenvolviam.

    E no bojo desses ltimos desdobramentos, principalmente nas modificaes das relaes entre o mental e o corporal, que os textos da etnocenologia, ao menos a preconizada por Jean-Marie Pradier, preconizam a possibilidade de insero de um discurso realmente novo para as pesquisas sobre os comportamentos espetaculares.

    Uma caracterstica universal da questo de uma dada teoria, nos limites de sua metodologia, no mbito de uma disciplina cientfica, o fato de que aquilo que vai ser estudado, explicado, se constitui de tal maneira que a somatria das aes que transparece no processo de produo de conhecimento pode lograr fracasso ou sucesso, mas esse fracasso, ou sucesso, em ltima instncia, se traduzir em marco para outros pesquisadores.

    Ou seja, a grande funo de cada proposta, independentemente de bem ou mal sucedido na consecuo dos objetivos visados, ainda compor fios, como dizia Fred Litto (1992), em funo dos quais vrios outros pesquisadores vo tecer suas malhas na grande construo de uma disciplina. Um objeto de estudos, neste sentido, o entrelaamento mvel de inumerveis aspectos, e dimenses, tomados genericamente no processo de sua delimitao.

    1.5 RELAO OBJETO / DISCIPLINA

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    Os temas epistemolgicos mais discutidos no mbito da etnocenologia, e em torno dos quais houve maiores aprofundamentos, desde o seu aparecimento, so os que versam sobre o estabelecimento de seu objeto de estudos. O que compreensvel pois, como nos lembra L. C. Martino (op.cit, p. 86)

    ...a discusso do objeto de estudo serve de ponte entre os aspectos epistemolgicos gerais e o trabalho de investigao particular, um necessrio parmetro para o trabalho de recorte e de problematizao de um aspecto da realidade. um valioso instrumento para a reflexo e o distanciamento crtico, que serve tambm de referncia para orientar a busca de interlocuo terica.

    Acresce-se ao que se afirma no pargrafo anterior o fato de que um campo de estudos est relacionado a outros campos justamente por seu objeto. Podemos aqui, mais uma vez, evocar o argumento clssico de Aristteles para separar a cincia da arte e da filosofia, argumento esse que se baseia no fato de que cada uma dessas formas de saber visa coisas diferentes, o que faz com que as relaes estabelecidas sejam completamente diferentes, ainda que se trate da relao com uma e a mesma coisa. Porm, uma vez mais, Martino (ibidem, p. 86-88), na continuao do trecho citado acima, no nos deixa esquecer que:

    ...Quando se fala de objeto de estudo a confuso parece imperar. Antes de mais nada, objeto significa aquilo que se d a ver ou conhecer para um sujeito. Trata-se ento de um termo correlato1 ao de sujeito, pois a coisa em si, a coisa nela mesma, no objeto, as coisas passam a ser objetos em funo de um ato de conhecimento por parte do sujeito; por outro lado no podemos falar de sujeito em si, pois todo sujeito conhecido e se deixa conhecer por sua relao com o objeto (o sujeito no apenas conhece o objeto, mas se reconhece ao conhecer o objeto). O objeto tudo o que se apresenta conscincia ou para a mente do sujeito (...) Falar de objeto de estudo na verdade falar de um saber terico que fornece uma representao do mundo, ou de um mundo que aparece por meio desse saber (...) no se trata de coisas, ou de objetos naturais, mas de objeto de estudo, que s aparecem por meio de uma teoria, de uma apreenso no-naturalizada mas produzida por um modelo terico. O objeto de estudo , portanto, uma construo terica ou o objeto de uma teoria. Ele no o fenmeno que se d percepo ordinria,

    1 Ver a discusso acerca dos correlativos nas Categorias de Aristteles (2005, p. 55-58).

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    mas justamente aquilo que no fenmeno recortado por uma teoria.

    Assim, comea a ficar claro, pelo que vimos at aqui neste trabalho, que uma das grandes dificuldades com relao anlise da metodologia da etnocenologia justamente o fato de que a etnocenologia uma disciplina que no possui ainda uma teoria definida e parece confundir objeto de estudo (recorte abstrato) com os fenmenos ordinrios dados percepo.

    Se no possui uma teoria definida, seu objeto no pode aparecer. Pois no basta simplesmente afirmar que se vai estudar algo para que esse algo se transmute imediatamente em objeto cientfico de estudos. Pois, mesmo no ambiente extremamente malevel, instalado nas cincias contemporneas, aquilo que se entende por cientfico, em grande parte, tem inerente a si um certo nexo lgico entre premissas factuais, processos de demonstrao, critrios de verificao e resultados obtidos algo que tem de ser dado na prpria estrutura da argumentao proposta e no pode ser-lhe acrescentado desde fora.

    A contemporaneidade trouxe consigo a superelevao do valor dado aos aspectos relacionados s condies sociolgicas, que garantem as possibilidades de transformaes dos discursos cientficos. Alguns tericos fizeram dessas condies sociolgicas as bases de fundamento do discurso de toda cincia e acreditam que exatamente desses aspectos que podem advir as idias que vo servir de esteio a um novo paradigma geral para as cincias (MAFFESOLI, 1986; SANTOS, 2003). Entretanto, mesmo no bojo dessas mudanas, os chamados aspectos internos aos discursos cientficos persistiram no entrelaamento e na correlao de paradigmas e comunidades cientificas, de objetos e teorias (LAKATOS, 1974; OMNS, 1996; CHALMERS, 2001; NOUVEL, 2005).

    Correlatas, as vises acerca de dado objeto e a perspectiva terica defendida, que garante a sua consistncia, se complementam. Teorias so criaes do esprito humano e as idiossincrasias dos indivduos concretos que

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    praticam as cincias fazem com que cada pesquisador tenha sua prpria cosmoviso capaz de fornecer sentido s suas aes. Pois a partir do confronto entre as vrias perspectivas acerca de um determinado objeto cientfico que se podem captar as variaes de dada proposio terica no mbito de um campo de conhecimentos.

    Por outro lado, cada verso de dada teoria, que reflete a viso particular de cada pesquisador, pode ser concebida como modo especfico de encarar as questes mais gerais em relao ao objeto de estudo de uma dada disciplina. E assim que posturas tericas diversas marcam suas diferenas especficas em funo deste referencial que a concepo do objeto, enquanto que, ao mesmo tempo, se renem ao redor de um problema fundamental que esse objeto representa, e que fornece o sentido ltimo para se estudar os fenmenos.

    Podemos considerar que a questo do objeto de estudo, pensado-a dessa forma, uma proposta, uma representao til capaz de fornecer um mote sob o qual se unifica um conjunto de vises tericas. No necessrio haver consenso entre as vrias vises acerca do objeto de uma dada disciplina, principalmente nos anos iniciais do seu desenvolvimento. Haver tantos objetos quantas forem as propostas coerentes com o objetivo geral almejado no domnio em questo. Um processo de determinao do objeto de uma disciplina assim concebido consiste nos resultados dos desdobramentos inerentes seara epistemolgica prpria disciplina em questo, e, desta forma, constituem os reflexos das orientaes gerais e as determinaes dos limites de cada objeto, que coincidem com as fronteiras que separam objetos cientficos em campos distintos.

    1.6 DESAFIOS DA ETNOCENOLOGIA CIENTFICA

    Assim, um dos principais problemas da etnocenologia o fato de que ela no tem uma base conceitual prpria. Sem isso, no se pode fazer crtica coletiva consistente. Sem crticas uma disciplina no possui objetividade e sem objetividade no podemos falar de cincia. Exceto de uma maneira claramente

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    imprpria que se afasta de tudo o que foi projetado e reafirmado pelo discurso etnocenolgico ao longo desses dez anos de existncia.

    Porm, se a ausncia de uma teoria genuna definida implica na ausncia de um mtodo original de orientao, a falta de uma teoria no implica em falta de uma dimenso terica. E no podemos negar que a etnocenologia possui uma dimenso terica alimentada em seu cotidiano de produo acadmica, expressa nos vrios textos produzidos sob sua chancela, uma vez que os chamados pequenos mtodos dependem dos pesquisadores em ao no desenvolvimento do seu trabalho de pesquisa. E no mbito da ao dos pesquisadores em etnocenologia que podemos ponderar a capacidade de interpretao dessa disciplina, acerca dos fenmenos estudados, na busca por seus objetivos.

    O problema que, sem uma orientao geral, nem a etnocenologia, nem nenhuma outra disciplina que se queira cientfica, poderia sobreviver, e ela tem sobrevivido, ainda que nos frgeis limites j parcialmente delineados no mbito deste trabalho. A questo que parece se colocar, ento, como a etnocenologia conseguiu manter sua produo ao longo desses anos, com esperana de seu desenvolvimento cientfico como disciplina?

    Do ponto de vista scio-acadmico, certo que a etnocenologia conseguiu manter a sua produo atravs do ambiente que se formou em torno das figuras dos seus mentores, e principais proponentes, Jean-Marie Pradier e Armindo Jorge de Carvalho Bio, em funo da qualidade exibida pelas apetncias de ambos.

    De fato, a produo da etnocenologia a produo acadmica das disciplinas, e demais atividades, dos cursos de ps-graduao nos quais ela passou a figurar como disciplina ministrada. Produo acadmica esta que se entrelaa com a realizao dos colquios, seminrios e demais encontros e eventos que, de alguma forma, carregaram a rubrica da nova disciplina.

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    A enorme capacidade de articulao institucional, e poltica, no mbito interno, ou externo, s instncias universitrias; a capacidade de desenvolvimento de estratgias para atrao de verbas para os seus departamentos, atravs dos seus projetos e demais produes; as caractersticas profissionais, institucionalmente reconhecidas, em suas reas de atuao estrita, dentre outros aspectos menos vistosos para a sustentabilidade da etnocenologia, constituem, sem dvidas, reflexos das aes dos dois proponentes, aqui destacados, desse discurso.

    Certamente, a demanda crescente de pessoas interessadas em desenvolver pesquisas em nvel de ps-graduao provocou o aumento da oferta do nmero de vagas nesse nvel de escolaridade. Mas, os indcios de que algo de diferenciado estava surgindo na rea dos estudos dos fenmenos espetaculares e a reputao desses professores agregou uma grande quantidade de futuros pesquisadores para as orientaes acadmicas realizadas por ambos, seja de teses, seja de dissertaes, o que um bom indicador de como a etnocenologia se instalou e se difundiu scio-academicamente, digamos.

    Do ponto de vista dos rudimentos do discurso cientfico propriamente dito, uma possvel resposta pode ser sugerida a partir do seguinte: Thomas Kuhn (op.cit, p.14) admite que algo semelhante a um paradigma atua mesmo nos perodos anterior, ou posterior, ao estabelecimento de um paradigma. Em suas palavras: ...minha distino entre os perodos pr e ps-paradigmticos no desenvolvimento da cincia demasiado esquemtica. Cada uma das escolas cuja competio caracteriza o primeiro desses perodos guiada por algo semelhante a um paradigma...

    Acreditamos que o carter idiossincrtico dessa disciplina deve-se sua forma inslita de representao. E, somente para relembrar Heidegger (1958, p.199): a cincia no atinge mais do que aquilo que o seu prprio modo de representao j admitiu anteriormente como objeto possvel para si.

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    Com efeito, o aparecimento da etnocenologia, da forma como se deu, tornou extremamente complexos, como vimos constatando aos poucos, os relacionamentos entre as dimenses dos fenmenos, de onde viro seus objetos possveis; das teorias, reflexo dos seus modelos e paradigmas; e da epistemologia, dimenso na qual so forjados seus critrios de avaliao e de sustentao das crenas fundamentais.

    Em geral, alguns dos autores-chave de uma nova disciplina cientfica estabelecem um conjunto de observaes genricas, preceitos ou regras para orientao na prtica, a partir das quais um grande nmero de pesquisadores se guia e, ao final de um dado perodo, uma dada comunidade concebe os rudimentos da sua disciplina. O que quer dizer que, aps um determinado patamar de produo e discusso de preceitos bsicos, ou recorrentes, se formam os contedos fundamentais e, com estes, as possibilidades concretas de seus desdobramentos futuros, se se instalar um processo de crtica franca entre os diversos pesquisadores que se consideram estudiosos no domnio em questo. Tal processo ainda no ocorreu com a etnocenologia.

    Do ponto de vista do mbito externo ao discurso da etnocenologia, as condies sociolgicas de que falamos acima, como disciplina cientfica, destaca-se o fato de no ter havido, em relao a ela, grande demanda social para sua criao, algo como aconteceu, por exemplo, nos EUA, com a histria da cincia no ps-guerra, como nos informa Paulo Abrantes (2002, p.51):

    ...provavelmente em conseqncia do clima de perplexidade diante do impacto crescente do conhecimento cientifico na sociedade, particularmente evidenciado no desenvolvimento tecnolgico, sobretudo voltado para o militar. Passou-se a acreditar que o estudo da histria das cincias pode contribuir para uma melhor compreenso tanto das relaes entre cincia e sociedade, quanto da insero da cincia num contexto cultural mais amplo.

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    Existem, como vimos, indcios da existncia de um campo de estudos aberto para a etnocenologia. Mas, ter somente um campo possvel no basta, uma disciplina precisa ser tambm epistemologicamente consistente para ter efetividade cientfica. O que implica que, desde o ponto de vista do mbito interno ao seu discurso, necessrio ter claramente delineados, pelo menos, uma instncia terica genuna, com suas possibilidades de objetos, e a constituio de um paradigma ou de uma comunidade cientifica autnoma.

    A etnocenologia existe e tem o reconhecimento oficial dos rgos institucionais competentes, tanto no Brasil como na Frana, inclusive como disciplina da ps-graduao stricto sensu, mesmo no tendo pesquisadores praticantes de uma etnocenologia normal (no sentido kuhniano deste termo).

    1.7 UMA ETNOCENOLOGIA CIENTFICA

    Constatamos, assim, que a etnocenologia chegou ao seu dcimo ano de existncia sem apresentar um quadro de referncias tericas prprias. No existe ainda nenhuma obra, ou discurso, no qual se reunissem referncias tericas por uma sugesto de carter eminentemente etnocenolgico; e falta tambm um conjunto de termos instrumentais recorrentes. No existe algo como um thesaurus etnocenolgico. Tanto um quadro de referncias quanto um conjunto de termos dependem da definio do que o saber propriamente etnocenolgico.

    O mesmo ocorre em relao questo metodolgica. Podemos dizer que a etnocenologia possui os grandes mtodos, no sentido aristotlico do termo, em funo da dinmica e das atividades acadmicas com que a disciplina tem se mantido. E que esse grande mtodo, ainda no mesmo sentido, se expressa na variabilidade de todas as correntes tericas das disciplinas da ps-graduao. Como conseqncia, no h tambm pequenos mtodos originais, e grassa uma

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    situao de conflito geral, em termos do relacionamento das diversas concepes de seus objetos.2

    Existe uma dimenso prtica da etnocenologia que, por conta de sua sobrevivncia no mbito dos cursos de ps-graduao, permeia as obrigaes acadmicas. Mas, no se trata de um padro separvel das regras acadmicas estabelecidas nas instituies onde sua prtica permanece e se desenvolve continuamente.

    A etnocenologia no desenvolveu ainda a capacidade de fixao de objetivos cognitivos, aquilo que Irving Lakatos chamou um programa amplo de pesquisas (LAKATOS,1974, p. 91-96), nem desenvolveu uma metodologia capaz de atingir os objetivos fundantes da disciplina. Seus pesquisadores seguem o preceito de Jean-Marie Pradier (1995), tomam de emprstimo os mtodos correntes em outras prticas e disciplinas j estabelecidas, e usa-os ao sabor da apetncia de cada pesquisador. Algo muito prximo da indiferena metodolgica advogada por Paul Feyerabend (1977; 1990).

    No existem ainda especialistas chamados formalmente de etnocenlogos. Mas, a etnocenologia criou veculos adequados para divulgao dos resultados. E os meios de difuso dos conhecimentos associados a etnocenologia seguem as vias institucionais atravs de editais acadmicos cujos meandros seus proponentes conhecem bem, pois, como pesquisadores de ponta, so tambm consultores nestas reas.

    Ou seja, quase nenhum dos elementos, daquilo que poderamos chamar de sua epistemologia, lhe fornece unidade como disciplina cientfica. Mas ela aponta para usos dos instrumentais tericos presentes nos estudos contemporneos das

    2 Quanto a esse aspecto da questo metodolgica da etnocenologia, a professora Lucia Lobato (2001, p. 17),

    em seu trabalho de tese de abordagem etnocenolgica, evoca o termo lgica da indistino, utilizado pelo professor Armindo Bio (1996b), no texto intitulado Esttica Performtica e Cotidiano; enquanto que a professora Franoise Grnd (1996, p.25), para se referir mesma coisa, diz que, depois de combinar uma srie de mtodos correntes, trata-se de um livre curso intuio e imaginao a fim de abrir portas.

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    humanidades e revisita, quando necessrio, os instrumentais tradicionais, sempre procurando incorpor-los ao seu discurso que sabe contemporneo.

    Se concebssemos em cincias, como acontece freqentemente nas artes, um rearranjo de elementos pr-configurados por outras tradies, e autores, como sendo uma obra nova e, at mesmo, uma forma de arte nova, a sim, poderamos considerar a etnocenologia, sem sombra de dvidas, uma cincia ou disciplina cientfica nova.

    Mas, sabemos bastante bem que, se em termos artsticos, o arranjo final apresentado ganha sua nfase nos contornos das formas que so, elas mesmas, expresso do contedo a ser frudo esteticamente, no gozo do espectador em interao perceptiva com as formas arranjadas pelos artistas, no podemos assegurar o mesmo em relao s exigncias para que um discurso se constitua como nova disciplina cientifica.

    Sabemos que os traos fundamentais da criao de uma disciplina nova no so supridos somente pelo trabalho e pela influncia de alguns pesquisadores, por mais eminentes que eles sejam.

    necessrio ainda que o saber a produzido venha a responder a determinadas demandas sociais reais, para garantir sustentao material e humana das prticas de pesquisa (FOUCAULT, 1999). preciso que se constitua uma comunidade cientfica autnoma, com o estabelecimento de uma crtica franca, e