A Eugenia e o Mito Da Superioridade Racial Branca Racismo No Brasil Moderno

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A Eugenia e o Mito da Superioridade Racial Branca: Racismo no Brasil Moderno Carlos Vinicius Frota de Albuquerque Universidade Federal do Ceará 1. Introdução O Brasil, ao longo do século XIX, era tido como um locus privilegiado para pesquisas, tendo sido visitado por diversos viajantes naturalistas europeus. No entanto, a partir da década de 1870, um ideário cientificista começa a ganhar força no Brasil, deixando este de ser apenas um objeto de pesquisa, e passando a apresentar-se como uma nação que valorizava a produção científica. Uma elite intelectual brasileira, com base em uma racionalidade positivista, buscava pensar a organização das populações dos centros urbanos, passando a se congregar a partir de instituições de pesquisa e de ensino. O regime escravocrata encontrava-se fragilizado, ganhando força a campanha abolicionista. A abolição era vista como uma necessidade para que o Brasil se integrasse à modernidade. A aproximação do fim da escravidão, que veio a se concretizar em 1888, tornava, para a elite dirigente, central a preocupação com a substituição da mão de obra e a conservação da hierarquia social. Em meio a este contexto, as teorias raciais se apresentavam enquanto modelo teórico nas definições acerca da identidade do brasileiro e na busca de elucidação dos problemas do país. A desigualdade racial é uma construção social e epistemológica, em torno da qual se estrutura um sistema de poder socioeconômico, de exclusão e exploração. A racionalidade moderna surgiu no Brasil embebida em uma ciência positivista, tendo como traço marcante o determinismo biológico das teorias eugenistas. O negro viu-se submetido a situações de pauperização e anomia social, não tendo tido condições de acompanhar o processo de expansão urbana que se desenvolvia e sendo submetido a processos de não-existência. Com a introdução no Brasil de um ideário cientificista, começa a haver nas grandes cidades a adoção de programas de saneamento e de higienização. “Tratava -se de trazer uma nova racionalidade científica para os abarrotados centros urbanos, implementar projetos de cunho eugênico que pretendiam eliminar a doença, separar a loucura e a pobreza.” (Schwarcz, 1993: 34) A medicina social ganha destaque tendo como preocupação central a degeneração da raça. Para este contexto, a noção de biopoder, de Michel Foucault, apresenta-se como central. Foucault analisa como a partir do surgimento do Estado governamentalizado prioriza-se todo um conjunto de saberes e dispositivos de segurança que se ocupam do controle das populações, porém convivendo com mecanismos jurídico-legais e mecanismos disciplinares. A vida biológica converte-se então em objeto do governo. O biopoder apresenta-se como poder sobre a vida e sobre a morte. Aqui o direito do soberano de fazer morrer e deixar viver é substituído pelo poder de fazer viver e deixar morrer. Também se faz fundamental a discussão proposta por Foucault em torno do racismo de Estado, que aparece no século XIX. Em um contexto de guerra das raças, o Estado terá como objetivo garantir a integridade e a pureza racial da população. O exercício do poder torna-se da ordem da normalização, desempenhando a medicina importante papel.

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A desigualdade racial é uma construção social e epistemológica, em torno da qual se estrutura um sistema de poder sócio-econômico. A razão moderna surgiu no Brasil embebida em uma ciência positivista, vinda da Europa, ancorada no determinismo biológico. As teorias eugenistas criaram o mito de uma superioridade inata da raça branca, desqualificando os negros como raça inferior. Este mito, adaptado ao Brasil, introduziu uma divisão binária na sociedade, encarnada no racismo.

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  • A Eugenia e o Mito da Superioridade Racial Branca: Racismo

    no Brasil Moderno

    Carlos Vinicius Frota de Albuquerque

    Universidade Federal do Cear

    1. Introduo

    O Brasil, ao longo do sculo XIX, era tido como um locus privilegiado para pesquisas,

    tendo sido visitado por diversos viajantes naturalistas europeus. No entanto, a partir da

    dcada de 1870, um iderio cientificista comea a ganhar fora no Brasil, deixando este

    de ser apenas um objeto de pesquisa, e passando a apresentar-se como uma nao que

    valorizava a produo cientfica. Uma elite intelectual brasileira, com base em uma

    racionalidade positivista, buscava pensar a organizao das populaes dos centros

    urbanos, passando a se congregar a partir de instituies de pesquisa e de ensino.

    O regime escravocrata encontrava-se fragilizado, ganhando fora a campanha

    abolicionista. A abolio era vista como uma necessidade para que o Brasil se integrasse

    modernidade. A aproximao do fim da escravido, que veio a se concretizar em

    1888, tornava, para a elite dirigente, central a preocupao com a substituio da mo

    de obra e a conservao da hierarquia social. Em meio a este contexto, as teorias raciais

    se apresentavam enquanto modelo terico nas definies acerca da identidade do

    brasileiro e na busca de elucidao dos problemas do pas.

    A desigualdade racial uma construo social e epistemolgica, em torno da qual se

    estrutura um sistema de poder socioeconmico, de excluso e explorao. A

    racionalidade moderna surgiu no Brasil embebida em uma cincia positivista, tendo

    como trao marcante o determinismo biolgico das teorias eugenistas. O negro viu-se

    submetido a situaes de pauperizao e anomia social, no tendo tido condies de

    acompanhar o processo de expanso urbana que se desenvolvia e sendo submetido a

    processos de no-existncia.

    Com a introduo no Brasil de um iderio cientificista, comea a haver nas grandes

    cidades a adoo de programas de saneamento e de higienizao. Tratava-se de trazer uma nova racionalidade cientfica para os abarrotados centros urbanos, implementar

    projetos de cunho eugnico que pretendiam eliminar a doena, separar a loucura e a

    pobreza. (Schwarcz, 1993: 34) A medicina social ganha destaque tendo como preocupao central a degenerao da raa.

    Para este contexto, a noo de biopoder, de Michel Foucault, apresenta-se como central. Foucault analisa como a partir do surgimento do Estado governamentalizado prioriza-se

    todo um conjunto de saberes e dispositivos de segurana que se ocupam do controle das

    populaes, porm convivendo com mecanismos jurdico-legais e mecanismos

    disciplinares. A vida biolgica converte-se ento em objeto do governo. O biopoder

    apresenta-se como poder sobre a vida e sobre a morte. Aqui o direito do soberano de

    fazer morrer e deixar viver substitudo pelo poder de fazer viver e deixar morrer.

    Tambm se faz fundamental a discusso proposta por Foucault em torno do racismo de

    Estado, que aparece no sculo XIX. Em um contexto de guerra das raas, o Estado ter

    como objetivo garantir a integridade e a pureza racial da populao. O exerccio do

    poder torna-se da ordem da normalizao, desempenhando a medicina importante papel.

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    Este artigo tem o propsito de discutir a eugenia e o racismo no Brasil, ao longo do final

    do sculo XIX e incio do sculo XX, a partir da noo de biopoder em Michel

    Foucault. Para isto, partimos de um levantamento bibliogrfico, utilizando uma

    literatura sobre a eugenia e o saber mdico produzido no Brasil entre as dcadas de

    1870 e 1930 e o papel desempenhado por este junto sociedade. Demonstraremos como

    estes discursos de saber-poder legitimaram intervenes para o controle das populaes

    nos grandes centros urbanos brasileiros, introduzindo uma diviso binria na sociedade,

    encarnada no racismo.

    2. Notas sobre o Biopoder em Foucault No sentido de melhor compreender a eugenia e o saber mdico produzido no Brasil

    vamos ao encontro da noo de biopoder em Michael Foucault. O biopoder por ele

    pensado como o mecanismo de poder que passou a prevalecer no ocidente a partir do

    sculo XVIII, baseado na disciplina e na biopoltica.

    Segundo Foucault, at o sculo XVII, as tecnologias de poder poltico se destacavam

    pelo poder soberano de matar. O poder do soberano sobre a vida e a morte se dava na

    medida em que tinha ao seu alcance o direito de fazer morrer ou deixar viver.

    O soberano s exerce, no caso, seu direito de apreenso sobre a vida, exercendo seu

    direito de matar ou contendo-o; s marca seu poder sobre a vida pela morte que tem

    condies de exigir. [...] O poder era, antes de tudo, nesse tipo de sociedade, direito

    de apreenso das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida; culminava com

    o privilgio de se apoderar da vida para suprimi-la. (Foucault, 1988: 148)

    A soberania se exercia como um direito originrio, cedido contratualmente. O contrato

    social aparece como alicerce para a soberania, estando fundada, portanto, em bases

    jurdico-legais. O exerccio da soberania se d fundamentalmente a partir de leis que

    refletem sobre um territrio e suas riquezas. Tendo como base um cdigo legal,

    estabelece uma diviso entre o permitido e o proibido, assim como as punies devidas,

    aplicadas como exemplos para os demais sditos e como forma de manifestar e

    evidenciar o poder do soberano.

    No entanto, o exerccio da soberania mostrava-se por demais custoso e cada vez menos

    eficaz. A partir de fins do sculo XVII e incio do sculo XVIII, ocorreu, na Europa

    Ocidental, o deslocamento do predomnio do sistema de soberania para o do biopoder.

    Como ponto central neste movimento, temos que enquanto na soberania o poder se

    apresentava com toda sua fora no direito de fazer morrer, aqui tem como foco o poder

    sobre a vida, o poder de fazer viver e deixar morrer. Esta manifestao de poder em

    torno da vida se d a partir de dois polos interligados, um que se coloca sobre o corpo

    como mquina e outro sobre o corpo como espcie. A partir destes polos d-se o

    surgimento da era do biopoder, forma de exerccio predominante nas sociedades

    ocidentais modernas, que a partir de tecnologias de poder-saber busca obter a sujeio dos corpos e o controle das populaes. Foucault define biopoder como:

    ... o conjunto de mecanismos pelos quais aquilo que, na espcie humana, constitui

    suas caractersticas biolgicas fundamentais vai poder entrar numa poltica, numa

    estratgia poltica, numa estratgia geral de poder. Em outras palavras, como a

    sociedade, as sociedades ocidentais modernas, a partir do sculo XVIII, voltaram a

    levar em conta o fato biolgico fundamental de que o ser humano constitui uma

    espcie humana. em linhas gerais o que chamo, o que chamei, para lhe dar um

    nome, de biopoder. (Foucault, 2008: 3)

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    Partindo de uma antomo-poltica do corpo humano, o biopoder age sobre o corpo-mquina, focando ... no seu adestramento, na ampliao de suas aptides, na extorso de suas foras, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integrao

    em sistemas de controle eficazes e econmicos. (Foucault, 1988: 151) Sobre este corpo-mquina atua o poder disciplinar, de forma descentrada e contnua sobre cada

    indivduo. Os corpos individuais so modelados, dispostos e vigiados de forma a

    seguirem as normas. As disciplinas funcionam com base na normatizao, produzindo,

    a partir de tecnologias coercitivas de comportamento, corpos dceis e produtivos. Em

    relao com os dispositivos de poder-saber so produzidas subjetividades1 e

    assujeitamento.

    Mais tarde, a partir da metade do sculo XVIII, o biopoder passa a se centrar tambm no

    corpo-espcie, nos processos biolgicos. A reproduo, o nascimento, a sade, a

    longevidade, a mortalidade, a raa, assim como os elementos que atuam sobre estes,

    passam a sofrer intervenes e regulaes. Entra em cena a biopoltica, a partir de

    mecanismos de segurana que agem sobre a populao, tendo esta como:

    ... um conjunto de elementos, no interior do qual podem-se notar constantes e

    regularidades at nos acidentes, no interior do qual pode-se identificar o universal do

    desejo produzindo regularmente o benefcio de todos e a propsito do qual pode-se

    identificar certo nmero de variveis de que ele depende e que so capazes de

    modific-lo. (Foucault, 2008: 97)

    Os dispositivos de segurana organizam, planejam e intervm sobre o meio, tendo em

    sua essncia a problematizao das cidades. Na sociedade de segurana so

    privilegiados o clculo de custo, as estatsticas, os estudos de casos com anlises

    quantitativas de sucessos e insucessos, noes de risco, de perigo e de crise. O objetivo

    aqui no atingir o corpo individual, mas a multiplicidade dos indivduos que existem

    biologicamente interligados, ou seja, o corpo mltiplo da populao, e os fenmenos

    que lhes dizem respeito. Atua-se com base em suportes matemticos e aes preventivas

    visando atingir equilbrios, ou seja, padres de normalidade.

    No entanto, Foucault deixa claro que estes mecanismos de poder no substituem

    simplesmente um ao outro. Na verdade o que ocorre uma mudana de predominncia

    e a edificao de relaes complexas entre eles.

    Vocs no tm mecanismos de segurana que tomam o lugar dos mecanismos

    disciplinares, os quais teriam tomado o lugar dos mecanismos jurdico-legais. Na

    verdade, vocs tm uma srie de edifcios complexos nos quais o que vai mudar,

    principalmente, a dominante ou, mais exatamente, o sistema de correlao entre

    mecanismos jurdico-legais, os mecanismos disciplinares e os mecanismos de

    segurana. (Foucault, 2008: 11)

    Paralelo ao aparecimento de um novo sujeito, a populao, desenvolve-se a arte de governar como uma razo de Estado. A razo governamental propiciou o desenvolvimento de toda uma srie de saberes que tem como foco a populao. Como

    forma a exercer o controle sobre esta, a governamentalidade articula dispositivos de

    segurana com estas redes de saberes, como a medicina, a psiquiatria, a economia, etc.

    Estes novos mecanismos de poder apresentaram-se como fundamentais para o

    desenvolvimento do capitalismo. O biopoder ofereceu ao capitalismo o controle dos

    corpos dentro de um sistema de mxima produtividade e a adequao da populao e de

    1 O poder compreendido por Foucault no de forma negativa, simplesmente como represso, mas como

    produtor de subjetividades e discursividades.

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    seus fenmenos ao sistema econmico. Desta forma, possibilitou-se a aplicao do

    princpio liberal de mxima economia, ou seja, a busca de cada vez maiores resultados

    com menos custos.

    No exerccio do biopoder, desponta como fundamental o papel desempenhado pela

    medicina. Com o intuito de desenvolver a fora de trabalho e de instituir normalidades,

    d-se o investimento no biolgico e a permanente distino entre o normal e o

    patolgico. A sade no mais visada apenas a partir do cuidado com o indivduo, mas

    as sociedades em si so tomadas pela questo da sade e da assistncia. Neste sentido,

    as sociedades modernas ocidentais sero submetidas a um processo de constante

    medicalizao, onde o corpo social tomado pelo saber mdico.

    A medicina estende sua atuao para alm das enfermidades, tendo um papel de

    destaque dentro do mecanismo de poder que se encarrega das vidas. Nas sociedades

    modernas, no se coloca como uma medicina privada, mas como uma medicina social.

    A fora estatal, o controle dos pobres e dos trabalhadores, as cidades, as famlias, a

    sexualidade, etc. so tomados por este saber. Os discursos de saber mdico despontaro

    como discursos de verdade, legitimando as intervenes sobre o corpo social.

    Com o advento da urbanizao, desponta a importncia da preocupao com a higiene

    pblica. A medicina urbana se coloca na centralizao das informaes, na

    normalizao do saber, na anlise dos perigos, das condutas, dos amontoamentos e dos

    ambientes, no controle das doenas e da circulao. Posiciona-se como importante

    estratgia no sentido de atingir o controle dos fenmenos da populao como um todo,

    como um fundamental mecanismo administrativo do Estado.

    Com o intuito de organizar as cidades, a medicina passou a se ocupar da raa e da

    sexualidade. A partir de dispositivos de poder-saber, exercida presso sobre estas,

    intervindo na reproduo, nos casamentos, na famlia, na hereditariedade, com base na

    preocupao com a degenerao da populao. Tem-se como pressuposto que se deve

    atuar sobre as anormalidades para que elas no pervertam a descendncia da populao.

    Para isto, a medicina ir articular mecanismos disciplinares e reguladores no sentido de

    construir uma populao eugnica.

    ... a sexualidade, na medida em que est no foco de doenas individuais e uma vez

    que est, por outro lado, no ncleo da degenerescncia, representa exatamente esse

    ponto de articulao do disciplinar e do regulamentador, do corpo e da populao. E

    vocs compreendem ento, nessas condies, por que e como um saber tcnico como

    a medicina, ou melhor, o conjunto constitudo por medicina e higiene, vai ser no

    sculo XIX um elemento, no o mais importante, mas aquele cuja importncia ser

    considervel dado o vnculo que estabelece entre as influncias cientficas sobre os

    processos biolgicos e orgnicos (isto , sobre a populao e sobre o corpo) e, ao

    mesmo tempo, na medida em que a medicina vai ser uma tcnica poltica de

    interveno, com efeitos de poder prprios. A medicina um saber-poder que incide

    ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a populao, sobre o organismo e sobre os

    processos biolgicos e que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos

    reguladores. (Foucault, 1999: 301)

    A partir da atuao do biopoder na construo da normalizao social, aparece o

    racismo como uma estratgia de Estado no sentido de atingir a purificao da

    populao. Para Foucault, o racismo moderno se apresenta como uma tecnologia de

    poder. Aparece como a face do biopoder ligada ao poder sobre a morte. Estabelece uma

    ruptura entre o que deve fazer viver, ligado ao ideal de pureza, e o que deve se deixar e

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    fazer morrer. Os grupos raciais entram em foco enquanto uma estrutura biolgica,

    estando o racismo encarregado de estabelecer fragmentaes dentro da espcie e uma

    relao positiva com a morte, j que ela aparece como condio para a vida. A raa, o racismo, a condio de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de

    normalizao. (Foucault, 1999: 306) Assim, a partir da ideia de uma busca da sade, da pureza, da higienizao, do progresso da populao, coloca-se como condio biolgica

    a morte. Institui-se um estado de guerra das raas, onde a reproduo da vida da raa

    ideal tem como condio a morte da outra. O racismo o princpio do direito moderno

    de matar, aparecendo na guerra, na colonizao, no combate criminalidade e aos

    fenmenos anormais.

    O racismo se forma nesse ponto (racismo em sua forma moderna, estatal,

    biologizante): toda uma poltica do povoamento, da famlia, do casamento, da

    educao, da hierarquizao social, da propriedade, e uma longa srie de

    intervenes permanentes ao nvel do corpo, das condutas, da sade, da vida

    quotidiana, receberam ento cor e justificao em funo da preocupao mtica de

    proteger a pureza do sangue e fazer triunfar a raa. (Foucault, 1988: 162)

    A partir deste racismo de Estado, podemos compreender a relao mantida pelos

    discursos de poder e as teorias biolgicas do sculo XIX. O evolucionismo social e o

    darwinismo social enquanto discursos cientficos - tornaram-se a forma moderna de pensar a colonizao, a guerra, as diferenas sociais, os enfrentamentos loucura, s

    perverses, prostituio, etc. O racismo ir permitir o biopoder exercer-se, justificando

    a condenao e a exposio morte de adversrios polticos, dos pobres, dos

    criminosos, dos anormais, como uma forma de regenerar a prpria raa.

    3. Cientificismo e Determinismo Racial no Brasil em Fins do Sculo XIX

    No fim do sculo XIX, os ideais do liberalismo ganharam fora no Brasil, dando sinais

    da desagregao do sistema senhorial e da aproximao da abolio da escravido. O

    processo de urbanizao surge com um projeto poltico de substituio da mo de obra

    escrava, de disciplinarizao das classes trabalhadoras, de controle sobre a migrao da

    populao, de represso s manifestaes culturais populares e de higienizao dos

    espaos urbanos. Comeamos a perceber o deslocamento do poder poltico para o

    controle sobre a vida biolgica, o biopoder. Neste sentido, a partir da imagem do Brasil

    de um pas mestio, torna-se central a preocupao com a raa e a sexualidade ao se

    pensar o destino da nao.

    As instituies de pesquisa e de ensino funcionaram para os homens de sciencia como espaos em que legitimavam suas posies sociais e o pensamento cientfico produzido.

    Buscavam fundamentos para pensar os rumos da nao nas teorias sociais vindas da

    Europa, como o positivismo, o liberalismo e o social-darwinismo, incorporadas e

    difundidas por uma elite intelectual. Foram estes modelos de saber secular, afastados de

    concepes religiosas, importantes na implantao da Repblica.

    O fim da Guerra do Paraguai, em 1870, foi acompanhado pelo fortalecimento da

    campanha republicana no Brasil e pelo desenvolvimento econmico, propiciado pela

    cafeicultura e pelo incio do processo de industrializao. Neste perodo, o iderio

    positivista de aplicao da racionalidade das cincias naturais sociedade, procedente

    da Frana, atraiu mdicos, engenheiros, advogados, legisladores, educadores,

    estudantes, militares etc.. Os princpios de ordem, de progresso, de modernizao e de

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    regenerao influenciaram fortemente os movimentos de carter republicano e

    abolicionista e, posteriormente, a relao entre o Estado republicano e a sociedade.

    Os grupos dominantes apontavam como necessidade integrar-se ao mundo civilizado. Com o desenvolvimento de uma racionalidade modernizante, passou-se a privilegiar o

    discurso cientfico, alimentando embates entre homens de sciencia e homens de letras. A arte da retrica dos literatos, que marcava o romantismo at a dcada de 1870, d lugar a discursos especialistas, que se colocam como uma linguagem moral e

    poltica de justificao do poder, representando as novas necessidades do Estado. A

    cincia adquire grande importncia, convertendo-se em instncia moral suprema. Com o

    prestgio alcanado pelos cientistas, fica a cargo destes pensar a organizao da

    populao. Boaventura Santos (2000) nos lembra de que as deficincias e os excessos

    da modernidade foram deixados a cargo da cincia.

    Essa gesto reconstrutiva dos excessos e dos dfices foi progressivamente confiada

    cincia e, de forma subordinada, embora tambm determinante, ao direito.

    Promovidos pela rpida converso da cincia em fora produtiva, os critrios

    cientficos de eficincia e eficcia logo se tornaram hegemnicos, ao ponto de

    colonizarem gradualmente os critrios racionais das outras lgicas emancipatrias.

    (Santos, 2000: 51)

    Neste momento em que se buscava no Brasil um rompimento com as ideias tradicionais

    do romantismo e com o catolicismo associados monarquia, o positivismo passou a

    gozar de fora impositiva entre os intelectuais brasileiros e a elite, que almejava o

    progresso econmico sem, contudo, promover uma reforma social.

    Julgando a massa da populao despreparada para participao plena na sociedade (devido ao analfabetismo, ao meio racial inferior etc), achavam o aspecto autoritrio

    do positivismo um modelo de modernizao, que explicava e justificava a continuada

    concentrao do poder nas mos da elite. (Skidmore, 1976: 29)

    Com a Revoluo Industrial e o processo acelerado de urbanizao na Europa,

    consolidou-se a dominao econmica das potncias europeias sobre o Novo Mundo. Esta prosperidade econmica serviu de alicerce para a f no liberalismo. Em meio a esta

    ebulio, surgem as teorias deterministas raciais que, inspiradas nas cincias naturais,

    buscaram explicar a partir da ideia de raa as diferenas entre os povos e naes.

    No incio do sculo XIX, os pensadores europeus que refletiam sobre a origem do

    homem se distinguiam em duas correntes, os monogenistas e os poligenistas. A corrente

    monogenista sustentava uma imagem de humanidade em constante desenvolvimento e

    distribuda em diferentes estgios de evoluo, indo de povos mais primitivos aos mais

    civilizados. A escola poligenista defendia a ideia de existncia de diferentes raas e de

    uma hierarquia natural entre elas, determinantes na histria humana. Este fator teria

    proporcionado o sucesso econmico dos europeus do norte, considerados raas

    superiores. Entretanto, com a publicao de A origem das espcies, em 1859, o embate entre as duas correntes foi amenizado. A teoria da seleo natural, de Charles

    Darwin, tornou-se um paradigma da poca, sendo transplantado para o pensamento

    social atravs do darwinismo-social. Os darwinistas-sociais pregaram uma origem

    comum da humanidade, porm, segundo eles, as diferentes raas teriam se separado h

    muito tempo, gerando heranas e estgios evolutivos diferentes. Coloca-se ento como

    preocupao central a mestiagem, considerada um fator degenerativo.

    A racionalidade cientfica reforou, a partir das teorias deterministas raciais, o poderio

    poltico e econmico das naes europeias e de seus descendentes brancos. Estas ideias

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    foram transplantadas para o Brasil juntamente com o pensamento liberal. Os cientistas

    brasileiros fizeram amplo emprego delas, adaptando-as ao contexto nacional. O

    determinismo racial introduziu uma diviso binria na populao brasileira, surgindo

    um estado de guerra das raas que tinha como objetivo a eugenia.

    No Brasil, o liberalismo veio influenciar fortemente os movimentos abolicionistas. A

    escravido era vista pelos liberais brasileiros como um impasse a modernizao da

    nao. Dentre os nomes que ganharam destaque no movimento abolicionista se

    encontram os de Joaquim Nabuco e de Jos do Patrocnio. Para estes, a escravatura fizera um Brasil vergonhoso e anacrnico, face ao mundo moderno, e fora de compasso

    com o progresso do nosso sculo. (Skidmore, 1976: 34). O pas sofria tambm grande presso da Europa e da Amrica do Norte em prol da abolio da escravido.

    Todavia, mesmo os abolicionistas compartilhavam do pensamento de que os negros

    eram raas inferiores e que se deveria ter como objetivo tornar o Brasil um pas mais

    branco.

    A abolio da escravido s veio ocorrer no Brasil em 13 de maio de 1888, com a Lei

    urea. No entanto, a forma como ocorreu comprometeu ainda mais a posio do negro

    nas relaes de produo e como agente de trabalho. No houve a preocupao em

    promover subsdios para os negros libertos se inserirem na sociedade. Estes se

    encontraram em situao de competio com o j grande exrcito de reserva de

    trabalhadores nacionais e, principalmente, com a mo de obra imigrante, contra os quais era evidente a sua grande desvantagem. O imigrante branco europeu assumiu

    ento o papel de agente natural do trabalho livre e assalariado, monopolizando as

    oportunidades de classificao econmica e de ascenso social.

    O pensamento racial inserido no Brasil, a partir de um mito de superioridade inata da

    raa branca, funcionou como um instrumento conservador na definio da identidade

    nacional e no reforo s hierarquias sociais. Sob este prisma, as questes sociopolticas,

    econmicas e os comportamentos humanos foram reduzidos a fatores biolgicos. Os

    mecanismos de poder tm aqui como central o poder sobre a vida. O perfil do Brasil

    como um pas fortemente marcado pela questo racial e pela sexualidade colocava em

    foco para estes cientistas a urgncia de pensar polticas eugnicas no sentido de retirar a

    populao do processo de degenerao.

    4. A Eugenia e a Medicalizao da Sociedade Brasileira

    Os mdicos, entre os cientistas do Brasil, foram os primeiro a se organizarem

    institucionalmente, despontando tambm como os primeiros intelectuais brasileiros da

    modernidade. As duas maiores instituies do pas que os formavam eram as faculdades

    de medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. Elas destacaram-se nacionalmente na

    empreitada de promover o planejamento urbano e o incremento do controle social. A

    faculdade da Bahia, principalmente com a Escola Nina Rodrigues, deu nfase aos

    estudos de patologia, de psicologia coletiva e de medicina legal. Enquanto isto, a

    faculdade do Rio de Janeiro focou-se na sade pblica e nos esforos de combate s

    epidemias, tendo como maior expoente Oswaldo Cruz. Como ponto em comum tinha-se

    a crena de que se fazia necessrio purificar a raa, para que assim pudesse se

    preconizar o progresso da nao.

    A partir da dcada de 1870, d-se o incremento das produes cientficas, da publicao

    de revistas, da organizao de novos cursos e da formao de grupos de interesses. A

    raa, o corpo, o sexo, a sade e a higiene tornaram-se temas correntes. O Brasil era visto

  • 8

    como um pas doente, cabendo ento aos mdicos cur-lo. Os mdicos pesquisadores alcanam enorme prestgio social, figurando como detentores da verdade, dotados de

    uma capacidade divinal de objetividade. Eles reivindicavam a responsabilidade pela

    organizao social e os seus discursos se constituram enquanto diretrizes da sociedade

    brasileira. O campo social invadido pela medicina, que, enquanto um saber

    regenerativo, colocava-se como uma tecnologia de poder com intuito de normalizar e de

    controlar os indivduos e as populaes. A medicina assume uma postura de interveno

    social intensa e autoritria.

    A raa situava-se no foco da discusso acerca da sade da nao e da evoluo social,

    aparecendo como central a questo da mestiagem. A partir das anlises deterministas, a

    intensa mestiagem no pas aparece como um fator de degenerescncia racial,

    ocasionando anomalias fsicas, morais e intelectuais. As doenas mentais, a epilepsia, o

    alcoolismo, a criminalidade, a sifilizao, as grandes molstias, etc. passaram a ser

    vistas como consequncias funestas da mistura das raas.

    Abstraindo, pois, da condio de escravos em que os negros foram introduzidos no

    Brasil, e apreciando as suas qualidades de colonos como faramos com os de

    qualquer outra procedncia, extremando as especulaes tericas sobre o futuro e o

    destino das raas humanas, do exame concreto das consequncias imediatas das suas

    desigualdades atuais para o desenvolvimento do nosso pas, consideramos a

    supremacia imediata ou mediata da raa negra nociva nossa nacionalidade,

    prejudicial em todo o caso sua influncia no sofreada aos progressos e cultura do

    nosso povo. (Rodrigues, 2008: 24)

    As produes cientficas geraram censos, estatsticas e estudos de comportamentos

    acerca dos doentes e da populao das cidades, dando ateno especial questo racial.

    Os dados eram manipulados de forma a estabelecer vnculos entre esta e os diversos

    problemas nacionais.

    A medicina legal apareceu como tema predominante na medicina baiana, tendo Nina

    Rodrigues como seu maior expoente. O foco da ateno nos estudos sobre a

    criminalidade desviado do crime para o criminoso. Relacionando a criminalidade

    miscigenao, utilizou-se amplamente de tcnicas para detectar traos de presena de

    miscigenao, como a frenologia, o estudo dos crnios, traando estgios de evoluo

    mental. Em Os africanos no Brasil, Nina Rodrigues afirma:

    O negro, principalmente, inferior ao branco, a comear da massa enceflica, que

    pesa menos, e do aparelho mastigatrio, que possui caracteres animalescos, at as

    faculdades de abstrao, que nele to pobre e fraca. Quaisquer que sejam as

    condies sociais em que se coloque o negro, est ele condenado pela sua prpria

    morfologia e fisiologia jamais poder igualar ao branco. (Rodrigues, 2008: 241)

    O mesmo autor mais adiante tambm declara:

    A sobrevivncia criminal , por outro lado, um caso especial de criminalidade, que se

    poderia denominar tnica, resultante da coexistncia, em uma mesma sociedade, de

    povos ou raas em fases diferentes de evoluo moral e jurdica, de modo que aquilo

    que ainda no imoral ou antijurdico para uns, deve j ser para outros. Desde 1894,

    insisto no contingente que muitos atos antijurdicos dos representantes das raas

    inferiores, negra e vermelha, prestam criminalidade brasileira, os quais, contrrios

    ordem social estabelecida no pas pelos brancos, so, ainda, perfeitamente legais,

    morais e jurdicos, considerando-se do ponto de vista de quem os pratica. (Rodrigues,

    2008: 246)

  • 9

    Estes mdicos passaram a reivindicar para si o tratamento dos criminosos. Tranaram

    tambm anlises patolgicas e de psicologia social que buscavam fundamento no

    determinismo racial, colocando a miscigenao como elemento degenerativo da sade

    fsica, mental e moral da populao brasileira, que deveria ser enfrentado

    energicamente. Com isto, entraram em embate com bacharis de direito, na medida em

    que atuando de forma autoritria negavam os princpios de igualdade e de liberdade do

    Cdigo Penal, considerando-os quimeras sem embasamento cientfico.

    No Rio de Janeiro, os higienistas debruaram-se sobre o desafio de lutar contra as

    grandes molstias. No bastava mais somente curar as doenas, o propsito maior era

    evitar que elas se espalhassem. Surgem as grandes campanhas sanitaristas, nas quais se

    destacou a figura de Oswaldo Cruz, sanitarista responsvel pelas campanhas contra a

    febre-amarela e a varola. Cada vez mais autoritrias, elas abrangeram toda a sociedade,

    culminando com a aplicao obrigatria da vacina contra a varola, que gerou a Revolta

    da Vacina, em 1904, debelada pelas foras policiais. Neste perodo, os mdicos

    mantinham uma forte articulao com a polcia. Encontrava-se em vigor a ditadura sanitria, na qual o higienismo e a eugenia se confundiam. Para poder higienizar o pas acreditava-se ser necessria a aplicao de medidas eugenistas. Os discursos do saber

    cientfico eram utilizados na legitimao das intervenes do Estado sobre a populao.

    Na dcada de 1920 deu-se o auge, em todo o Brasil, das discusses em torno da

    eugenia, atingindo educadores, engenheiros, jornalistas, juristas, etc. Nesta poca, os

    mdicos cariocas passaram a traar histricos das trajetrias das grandes epidemias,

    relacionando as doenas imigrao e mestiagem. Esta interpretao veio casar-se

    reivindicao da faculdade de Direito de So Paulo, que buscava proibir a imigrao de

    asiticos e africanos. Na viso dos mdicos, era preciso selecionar as raas boas que concorreriam para constituir a raa brasileira. O imigrante branco europeu era tido como

    um elemento que iria colaborar para o progresso da nao, entretanto desde os anos

    1880 eram frequentes discusses na Cmara dos Deputados na tentativa de proibir a

    entrada de imigrantes asiticos e africanos. Esse critrio de classificao dos imigrantes

    vigorou em muitos estados na hora de selecionar os imigrantes que iriam entrar

    enquanto fora de trabalho. A elite brasileira, patriota e disciplinar, apostou nesse projeto de raa e de incremento econmico s lavouras de caf. (Diwan, 2007: 117)

    Uma grande campanha eugnica dividiu a populao entre regenerveis e no

    regenerveis. Deu-se nfase, a partir da, a uma srie de programas de higienizao e de

    reformas sanitrias, pedaggicas e arquitetnicas, utilizados nos grandes centros

    urbanos como uma cruzada contra a decadncia fsica, moral e sexual.

    Essa a poca dos grandes projetos de saneamento que invadem dos lares s igrejas,

    dos portos s escolas. Nenhum detalhe escapa. Prescrevem hbitos alimentares,

    indumentrias, costumes. Buscam a disciplina no uso dos lugares pblicos, pedem

    educao higinica na mais tenra idade escolar. (Schwarcz, 1993: 207)

    Com o intuito de promover a regenerao da raa era feito tambm incitamento prtica

    da educao fsica e de esportes. Polticos e autoridades, amplamente incentivados pelos

    higienistas, passaram a organizar frequentemente competies esportivas como forma

    de alcanar a perfeio fsica, a partir de corpos atlticos e saudveis. Por outro lado,

    intensificou-se o combate s atividades ldicas dos estratos pobres e/ou negros da

    populao, considerando-as perniciosas para o corpo social. o caso da capoeira, das

    religies de origem africana, da briga de galo, do jogo do bicho, etc.

  • 10

    Em 1923, foi fundada no Rio de Janeiro, pelo psiquiatra Gustavo Riedel, a Liga

    Brasileira de Higiene Mental (LBHM). Esta instituio tinha de incio o objetivo de

    melhorar a assistncia aos doentes mentais atravs da renovao dos quadros profissionais e dos estabelecimentos psiquitricos. (Costa, 2010: 45) No entanto, influenciados pela noo de eugenia, a partir de 1926, o foco mudado da ateno aos

    doentes para a preveno, a educao e a eugenia. A ateno dos psiquiatras deslocada

    dos doentes, passando para os indivduos normais. Em 1928, a partir da mudana do seu

    estatuto, a LBHM passa a atuar na interveno preventiva em ambientes escolares,

    profissionais e sociais. Os psiquiatras assumem cada vez mais o papel de higienistas

    mentais. A eugenia foi, para eles, a maneira cientfica e psiquitrica de resolver a confuso moral, racial, e social onde se encontrava o Brasil, sem, no entanto, abdicar de

    seu status profissional. (Costa, 2010: 77)

    A partir da preocupao com o aprimoramento da populao, houve um incremento dos

    discursos acerca da sexualidade. A sexualidade foi submetida a uma ortopedia social na

    busca da normalizao e do controle. Entra em cena a preocupao com a

    homossexualidade, a prostituio, a masturbao, o adultrio, o controle da reproduo,

    etc. Estas questes so deslocadas do mbito da religiosidade e da moral, passando a ser

    tratadas como objetos da medicina. As pessoas so distribudas entre normais e

    anormais, estando os anormais na jurisdio dos mdicos. So feitas associaes da

    sexualidade com patologias fsicas, mentais e crimes. No entanto, longe de serem

    simplesmente reprimidas e silenciadas, as formas consideradas anormais foram

    reproduzidas e incitadas a virem a pblico.

    Na busca de melhorar a constituio da raa, foram construdos projetos que propunham

    a esterilizao de indivduos tidos como nocivos. A preocupao com a reproduo da

    populao levou ao controle dos casamentos, incentivando casamentos desejveis e reprimindo relaes inter-raciais. Neste momento de construo de uma identidade

    nacional, a articulao entre raa e sexualidade esteve no centro dos discursos, das

    teorias, dos projetos e das polticas urbanas. A eugenia se propunha a purificar a

    populao brasileira e coloc-la no caminho rumo ao progresso.

    Os anos 20-30 so um momento crucial em termos da redefinio no apenas

    poltico-econmica, mas, essencialmente, cultural. Na busca de respostas para a

    construo do iderio de um Brasil moderno, colocava-se com nfase pouco vista em outros momentos a questo: que pas esse? Mdicos, educadores, engenheiros, literatos, enfim, todos os intelectuais discutiam apaixonadamente o

    tema da identidade cultural/nacional e, na busca de respostas, dois aspectos so ento tomados a fundo: raa e sexualidade. O perfil de Brasil que se configura neste momento tem uma forte marca racial, ao mesmo tempo que aparece tambm

    intensamente sexualizado. Desenha-se um quadro erotizado deste pas mestio.

    (Herschmann; Pereira, 1994: 33)

    Observa-se a ampliao da propaganda e dos estudos eugenistas, tendo como marcos o

    1 Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, e o 1 Congresso de Higiene Mental, em

    1931, que reuniram os pesquisadores eugenistas brasileiros. Surge, em 1931, a

    Comisso Central Brasileira de Eugenia, fundada por Renato Kehl, psiquiatra e grande

    representante da eugenia no Brasil, tendo como foco incitar o estudo da hereditariedade

    e da eugenia. Nos primeiros anos da dcada de 1930, com o apoio recebido pela

    Revoluo de 30, d-se a intensificao da campanha eugenista e higienista no pas. O

    Departamento Nacional de Sade passa a congregar em nvel nacional os mecanismos

  • 11

    institucionais psiquitricos, objetivando fomentar a ampliao de projetos eugnicos e

    de higiene mental.

    No entanto, ainda no incio da dcada de 1930, as teorias deterministas raciais perdem

    fora juntamente com os modelos eugenistas de explicao e de projeo da populao

    brasileira. Foi fundamental nesta guinada a publicao da obra Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre. Freyre veio a ser o maior expoente de uma corrente de pensamento que acreditava que as raas negra, branca e indgena teriam se misturado

    harmoniosamente no Brasil, dando origem a uma mestiagem no s racial como

    tambm cultural. Esta miscigenao, segundo o autor, teria dado origem a um povo

    melhor adaptado s condies da terra e, principalmente, sem barreiras e preconceitos.

    Freyre teve suas ideias refletidas em todo o campo cultural e cientfico brasileiro,

    constituindo o mito da democracia racial2, que passou a aparecer como a ideologia racial brasileira. Com este discurso, a desigualdade racial diluda em meio

    desigualdade social, perdendo-se a ligao entre as relaes raciais e as tcnicas de

    dominao de classe social. A partir deste mito foi possvel preservar o poder de

    dominao da raa branca. Ao invs de se buscar uma integrao do negro sociedade de classes, este mito possibilitou que o negro fosse mantido excludo das

    possibilidades de ascenso. Florestan Fernandes (1978), ao analisar o referido mito,

    alerta-nos do papel que este teve na manuteno das relaes de poder vigentes.

    Ao que parece, tal utilidade evidencia-se em trs planos distintos. Primeiro,

    generalizou um estado de esprito farisaico, que permitia atribuir incapacidade ou

    irresponsabilidade do negro os dramas humanos da populao de cor da cidade, com o que eles atestavam como ndices insofismveis de desigualdade econmica,

    social e poltica na ordenao das relaes raciais. Segundo, isentou o branco de qualquer obrigao, responsabilidade ou solidariedade morais, de alcance social e de

    natureza coletiva, perante os efeitos sociopticos da espoliao abolicionista e da

    deteriorizao progressiva da situao socioeconmica do negro e do mulato.

    Terceiro, revitalizou a tcnica de focalizar e avaliar as relaes entre negros e brancos atravs de exterioridades ou aparncias dos ajustamentos raciais, forjando uma conscincia falsa da realidade racial brasileira. (Fernandes, 1978: 255)

    Posteriormente, ser determinante para o fim do prestgio da eugenia entre os cientistas

    brasileiros a participao do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em 1942, junto aos

    pases do bloco dos Aliados contra os pases do Eixo, este ltimo encabeado pela

    Alemanha, pas no qual as polticas eugenistas resultaram num grande programa de

    extermnio. A partir de ento, o eugenismo estava destinado ao esquecimento, tornando-se sinnimo de intolerncia e violncia. Seus adeptos, no Brasil,

    desapareceram da cena poltica ou trataram de reorientar suas histrias omitindo a

    participao nesse movimento. (Diwan, 2007: 121) No entanto, o racismo continuar presente na sociedade brasileira, encoberto pelo mito da democracia racial,

    determinando as relaes socioeconmicas e mantendo um abismo entre os brancos e os

    negros.

    2 Com o mito da democracia racial, o racismo no Brasil tem assumido a forma da negao do racismo. Atravs da negao da existncia do preconceito racial tem se gerado no-existncias, negando aos

    negros, ao longo da histria, as oportunidades de integrao e de emancipao social.

  • 12

    5. Consideraes finais

    Com base no quadro desenhado acima e na noo de biopoder em Foucault, podemos

    perceber que no Brasil, a partir da dcada de 1870, deu-se, concomitante ao processo de

    modernizao, e dando-lhe suporte, o incremento de mecanismos destinados a exercer o

    controle sobre a vida. O Estado investiu sobre a vida biolgica como ponto central na

    reorganizao nacional. Observamos ento um desenvolvimento, tardio em relao

    Europa Ocidental, de um biopoder que absorveu o controle sobre os corpos e sobre a

    populao, baseado em mecanismos disciplinares e de segurana.

    Nesta tomada do biolgico pelo Estado, a medicina desempenhou papel fundamental

    como um dispositivo de saber-poder que tomou para si o dever de pensar a sade da

    populao e o destino da nao. Manteve uma postura autoritria e intervencionista,

    submetendo todo o corpo social a um processo de medicalizao. Com base em

    discursos de saber-poder, construdos nas faculdades de medicina e demais instituies

    que congregavam os mdicos, as cidades so tomadas por polticas eugenistas,

    higienistas e sanitaristas que buscavam evitar o processo de degenerao da populao e

    colocar o Brasil no caminho do progresso.

    Com base em teorias deterministas, que davam suporte ao mito de uma superioridade

    racial branca, a raa e a sexualidade foram o foco da discusso em torno da populao.

    Sendo o Brasil fortemente marcado pela miscigenao, vimos erguer-se um estado de

    guerra das raas. A emergncia de purificao da raa legitimou amplas polticas de

    controle social, regulando e intervindo sobre a reproduo, sobre a famlia, sobre a

    arquitetura, sobre a educao, sobre os corpos, sobre os ambientes de trabalho, etc.

    O Brasil, at os primeiros anos da dcada de 1930, era considerado um pas doente e em degenerao, tendo os mdicos eugenistas tomado para si a incumbncia de intervir

    sobre a populao, disciplinar a sociedade e propiciar uma reorganizao racial, sexual e

    urbana. Com o descrdito em que caiu a eugenia, ela deixou de ser um ideal

    confessvel, porm ainda encontramos no Brasil um culto ao branqueamento presente

    na media, nos espaos de produo de conhecimento, nos padres de perfeio corporal

    e nas relaes de poder socioeconmico. Este permanece como um legado do

    compromisso que mantivemos com as teorias deterministas raciais.

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  • 13

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