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A EXPERIÊNCIA DO SENAI NA FORMAÇÃO DE TÉCNICOS DE NÍVEL SECUNDÁRIO Wojciech Andrzej Kulesza Universidade Federal da Paraíba E-mail: [email protected] Palavras-chave: ensino profissional, educação secundária, memória da educação No dia 8 de março, quinta-feira do Carnaval de 1962, começavam as aulas da primeira turma do curso técnico de cerâmica instituído pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI). A escola estava situada em São Caetano do Sul, município de onde procede a letra C do nome ABC paulista dado à região na qual, desde a década de 1950, vinha se implantando pelas multinacionais o moderno parque produtivo brasileiro, simbolicamente protagonizado pela fabricação de automóveis. Por ser então uma atividade tradicional de companhias nacionais, a indústria cerâmica não participava diretamente desse processo de modernização, mas estava presente de modo significativo na região e uma de suas empresas, a Cerâmica São Caetano, era considerada na época “a maior do ramo na América do Sul” pelos próprios ceramistas congregados na Associação Brasileira de Cerâmica (ABC) 1 . Por isso, desde agosto de 1952 o SENAI havia estabelecido na cidade um Curso de Aprendizagem de Ofícios (CAO) para a indústria cerâmica, modalidade prioritária de formação nos primeiros anos de atuação do SENAI, acolhendo de forma intermitente (um período na escola, outro na fábrica), aprendizes entre 14 e 16 anos indicados e pagos pelas indústrias. Afinal, o engenheiro Roberto Simonsen, um dos idealizadores do SENAI em 1942 era então o presidente da São Caetano, estratégica fornecedora dos materiais refratários necessários para viabilizar a metalurgia nacional e não iria deixar de acompanhar os resultados práticos dessa iniciativa do empresariado. Com a morte em 1955 de Armando de Arruda Pereira, diretor industrial daquela empresa, a escola SENAI de São Caetano do Sul passou a adotar o nome desse ilustre engenheiro, origem da denominação Escola Técnica de Cerâmica “Armando de Arruda Pereira” (ETC), dado à instituição que começou a funcionar em 1962, ano no qual o SENAI comemorava seus vinte anos de existência 2 . 1 Conforme editorial do órgão oficial da ABC (Cerâmica, n. 3, setembro de 1955, p.139). 2 Armando de Arruda Pereira teve um papel fundamental na organização da ABC em 1953 quando era prefeito nomeado de São Paulo e organizava as comemorações do IV Centenário de São Paulo para o ano seguinte, ocasião na qual foi realizado o Congresso de fundação da entidade. Durante a realização desse primeiro Congresso foram organizadas várias visitas, uma delas ao SENAI, onde foram recebidos por Roberto Mange (que iria falecer poucos meses depois), quando ele, falando do programa de expansão do SENAI, afirmou que

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A EXPERIÊNCIA DO SENAI NA FORMAÇÃO DE TÉCNICOS DE NÍVEL

SECUNDÁRIO

Wojciech Andrzej Kulesza

Universidade Federal da Paraíba

E-mail: [email protected]

Palavras-chave: ensino profissional, educação secundária, memória da educação

No dia 8 de março, quinta-feira do Carnaval de 1962, começavam as aulas da primeira

turma do curso técnico de cerâmica instituído pelo Serviço Nacional de Aprendizagem

Industrial (SENAI). A escola estava situada em São Caetano do Sul, município de onde

procede a letra C do nome ABC paulista dado à região na qual, desde a década de 1950, vinha

se implantando pelas multinacionais o moderno parque produtivo brasileiro, simbolicamente

protagonizado pela fabricação de automóveis. Por ser então uma atividade tradicional de

companhias nacionais, a indústria cerâmica não participava diretamente desse processo de

modernização, mas estava presente de modo significativo na região e uma de suas empresas, a

Cerâmica São Caetano, era considerada na época “a maior do ramo na América do Sul” pelos

próprios ceramistas congregados na Associação Brasileira de Cerâmica (ABC)1. Por isso,

desde agosto de 1952 o SENAI havia estabelecido na cidade um Curso de Aprendizagem de

Ofícios (CAO) para a indústria cerâmica, modalidade prioritária de formação nos primeiros

anos de atuação do SENAI, acolhendo de forma intermitente (um período na escola, outro na

fábrica), aprendizes entre 14 e 16 anos indicados e pagos pelas indústrias. Afinal, o

engenheiro Roberto Simonsen, um dos idealizadores do SENAI em 1942 era então o

presidente da São Caetano, estratégica fornecedora dos materiais refratários necessários para

viabilizar a metalurgia nacional e não iria deixar de acompanhar os resultados práticos dessa

iniciativa do empresariado. Com a morte em 1955 de Armando de Arruda Pereira, diretor

industrial daquela empresa, a escola SENAI de São Caetano do Sul passou a adotar o nome

desse ilustre engenheiro, origem da denominação Escola Técnica de Cerâmica “Armando de

Arruda Pereira” (ETC), dado à instituição que começou a funcionar em 1962, ano no qual o

SENAI comemorava seus vinte anos de existência2.

1 Conforme editorial do órgão oficial da ABC (Cerâmica, n. 3, setembro de 1955, p.139). 2 Armando de Arruda Pereira teve um papel fundamental na organização da ABC em 1953 quando era prefeito

nomeado de São Paulo e organizava as comemorações do IV Centenário de São Paulo para o ano seguinte,

ocasião na qual foi realizado o Congresso de fundação da entidade. Durante a realização desse primeiro

Congresso foram organizadas várias visitas, uma delas ao SENAI, onde foram recebidos por Roberto Mange

(que iria falecer poucos meses depois), quando ele, falando do programa de expansão do SENAI, afirmou que

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Habilitando no seu início apenas modeladores e decoradores, ofícios característicos

das tradicionais indústrias de “cerâmica branca” ou “louças” que exigiam apenas uma

escolarização primária, a escola de São Caetano passaria no decorrer do tempo a ser vista pelo

SENAI potencialmente capaz de atender aos setores dinâmicos da indústria cerâmica,

fartamente presentes na região e adjacências, o que demandava uma formação técnica mais

refinada. Com o sucesso da escola técnica têxtil, primeira escola técnica de nível secundário

criada pelo SENAI em 1958 na capital de São Paulo, seus dirigentes passaram a se orientar no

propósito de estabelecer também uma escola desse tipo para atender ao ramo cerâmico da

indústria. No início de 1960, a revista Cerâmica (n. 21, março de 1960, p. 29) noticia o

recebimento de “cópia das plantas e do plano de organização da Escola SENAI de São

Caetano do Sul”, enviados por Ítalo Bologna, substituto de Roberto Mange na direção do

SENAI de São Paulo. Esse projeto previa a instalação de progressiva de três tipos de cursos

técnicos para a formação de “chefes de fabricação”: em porcelana, grés e faiança; em

materiais de construção (cerâmica vermelha); e em refratários. Seriam reservados para alunos

que tivessem já concluído o primeiro ciclo secundário (antigo curso ginasial) e teriam a

duração de três anos em tempo integral. Como a preparação profissional desses técnicos

requeria “o estudo da organização e direção de oficinas e da orientação da produção”, esses

cursos somente poderiam ser funcionar “quando a Escola possuir suas instalações industriais

completas e em funcionamento permanente”. Assim, quando a primeira turma de alunos

ingressou na ETC em 1962, adentrou num edifício de dois pavimentos ocupando metade de

um quarteirão, localizado próximo à estação ferroviária da cidade e contando com tudo

necessário para a produção de diversos materiais cerâmicos, desde o tratamento das matérias

primas até a queima dos produtos finais.

Não há dúvida que a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional3

no final de 1961 alterou os planos do SENAI com relação à escola de São Caetano do Sul. A

lei confirmou a tendência dominante de flexibilizar o sistema nacional de ensino permitindo a

movimentação dos alunos pelos diversos ramos do ensino, propedêuticos, industriais,

comerciais e agrícolas. No caso específico da ETC a legislação permitia que o curso fosse

equivalente ao segundo ciclo secundário, isto é, aos tradicionais clássico e científico, o que

possibilitava aos seus concluintes o ingresso em qualquer curso superior. Assim, o curso

técnico de cerâmica foi organizado da seguinte forma: concluídos os primeiros três anos o

nele “consta a imprescindível tribuna a ser sanada da escola artesanal de cerâmica” (Cerâmica, n.3, setembro de

1955, p. 143). 3 Lei n° 4024 de 20 de dezembro de 1961.

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aluno obtinha um certificado de conclusão do segundo ciclo secundário, habilitando-se assim

para prestar o vestibular para qualquer faculdade. Para obter o diploma de técnico em

cerâmica o aluno teria que cursar mais um ano de estudos, aí incluído um semestre obrigatório

de estágio. Dessa forma, o jovem adolescente não ficaria preso a uma determinada profissão,

pois a realização do curso abria-lhe as mesmas carreiras que qualquer outro curso secundário.

Se isso era um atrativo da escola, a exigência de dedicação em tempo integral ao curso

constituía um obstáculo, uma vez que seus futuros alunos adentravam uma idade na qual

começava a procura por uma ocupação remunerada. Tinha-se que enfrentar o dilema: quem

não precisava trabalhar não se interessava por um curso profissionalizante já no nível

secundário e quem precisava, não podia ficar estudando um dia inteiro. Para minorar essa

dúvida, o SENAI acenou com a concessão aos alunos de uma ajuda de custo equivalente a

meio salário mínimo, remuneração idêntica àquela que percebiam seus aprendizes de ofícios4.

Mesmo assim, poucos candidatos acorreram ao processo seletivo, que constou de uma prova

englobando as principais matérias do ginásio e de um exame psico-técnico, ferramenta então

em voga utilizada para selecionar os empregados das grandes indústrias. Apesar de terem sido

abertas apenas 20 vagas, a direção da escola, na dúvida ou por precaução, aprovou 26

candidatos, entre os quais o autor destas linhas, então com 15 anos incompletos, o mais jovem

daquela turma,

A arquitetura da escola, estreitamente associada ao seu projeto pedagógico de ensino

integral, procurava reproduzir o ambiente industrial preconizado pelos técnicos do IDORT

(Instituto de Organização Racional do Trabalho), instituído também pelos mesmos

engenheiros e industriais que criaram em São Paulo a FIESP e o SENAI. Lá estavam,

rigorosamente aplicadas e de modo permanente, as prescrições de higiene e segurança do

trabalho, procurando incutir-nos uma ordem, um asseio, que estavam longe de vigorar numa

indústria tipicamente marcada pela conspurcação de suas matérias primas5. A profusão do uso

de vidraças no edifício, contribuía para dar visibilidade às atividades realizadas na escola por

professores e alunos, ao mesmo tempo que fazia com que elas fossem rememoradas por quem

passava. A cuidadosa, e discreta, limpeza diária de todo o edifício fazia tudo parecer sempre

4 A indexação da ajuda de custo a metade do salário mínimo, por sua conotação de vínculo empregatício, acabou

rapidamente e, em 1965 era apenas equivalente a cerca de 15% daquele salário em termos nominais (vide

Cerâmica, n. 43, setembro de 1965, p. 35). Não há dúvida que este era um atrativo importante, pois; ao contrário

dos aprendizes contratados pelas indústrias, necessariamente menores de 18 anos, os alunos da escola eram ou se

tornariam rapidamente maiores de idade e, portanto, teriam que receber um salário mínimo integral. Em 1964, o

diretor da ETC fez publicar na revista Cerâmica (n. 37, março de 1964, p. 60) matéria intitulada “Curso Técnico

Gratuito e com Bolsa”, onde ele reiterava a vantagem de fazer o curso que “pode levar o jovem técnico, se quiser

continuar seus estudos, até o curso de engenharia”. 5 Significativamente, Roberto Simonsen costumava proclamar entre seus pares ser um “industrial do barro”.

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novo e bonito e refletia-se em nossos trajes e comportamentos, induzindo-nos a compartilhar

das regras daquele local. Acostumados a olhar de longe os espaços de produção, mantidos à

distância por altas cercas e extensos gramados, como a filial da General Motors situada na

Avenida Goiás logo adiante, o SENAI apresentava-nos na escola, de modo triunfal, o mundo

da indústria que deveria fazer parte de nossas vidas dali em diante. Como nós éramos em sua

maioria descendentes da nova geração de imigrantes provenientes de comunidades não mais

rurais, mas urbanas, os Kostenko, os Barth, os Risi, os Hidaka, os Iwanuch, os Strazzer, os

Tanaka, os Paolielo, os Kiselew, os Nardi, os Pronin, dentre outros, esse mundo estava bem

presente em nosso horizonte. Aliás, uma das razões prováveis para termos acorrido ao

chamado daquele tipo de escola foi exatamente essa nossa ascendência citadina6. Premidos

pela exigência de uma definição a respeito do que iríamos fazer na vida e tendo já concluído

uma escolarização que nos afastava do trabalho braçal desqualificado, era na moderna

indústria que depositávamos toda nossa esperança mesmo que tivéssemos que adiar por

quatro longos anos essa que seria a nossa realização na vida.

Claro que essa nossa decisão (muitas vezes também de nossa família), havia sido

tomada apesar da enorme quantidade de dúvidas envolvida. Em primeiro lugar, o momento

histórico que passávamos, agravado pela renúncia do presidente Jânio Quadros no ano

anterior. Desde a década passada, a sociedade brasileira havia decidido tomar o caminho do

desenvolvimento e estava agora atravessada por resistências, alternativas, avanços e recuos

que abalavam toda sua estrutura e que desembocariam pouco tempo depois no regime militar

instaurado em 1964. Também estávamos todos, uns mais, outros menos, na fase da

adolescência com suas crises e inseguranças próprias. Finalmente, como primeira turma da

escola, embarcávamos numa viagem nunca antes navegada para um destino desejado, porém

ainda muito pouco definido. Tínhamos uma vaga consciência de que muitas dessas

inseguranças eram compartilhadas pelos dirigentes, professores e instrutores da escola,

consciência que se fortalecia conforme íamos vivenciando em conjunto o ano letivo. Isso

porque a experiência dos dirigentes era limitada aos cursos de aprendizagem, os professores,

encarregados das matérias de cultura geral necessárias para que o curso fosse equivalente ao

colégio, não estavam acostumados àquele tipo de condições de trabalho e os instrutores,

mestres dos diversos ofícios cerâmicos, estavam preparados para ter aprendizes e não para

educar alunos que, na hierarquia da fábrica, seriam normalmente seus chefes. Sem perda de

tempo, fundamos uma agremiação estudantil, organização frequente numa época em que o

6 Poucos de nós provinham diretamente do meio cerâmico: o filho de um pequeno produtor de abrasivos

odontológicos e o filho do dono de uma indústria de telhas no interior de São Paulo.

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movimento estudantil secundarista ansiava por se tornar protagonista da política nacional.

Nisso fomos abertamente estimulados pela direção da escola, não que ela fosse

particularmente partidária da participação estudantil, mas porque ela precisava de um

interlocutor para fazer a mediação com os alunos, mediação esta que era realizada pelas

indústrias no caso dos aprendizes. Sem saber que usávamos uma palavra historicamente cara

às antigas corporações de ofícios, grêmio, fundamos assim o Grêmio Estudantil “8 de Março”,

nome que, mais do que registrar a data na qual começamos o curso, refletia a nossa absoluta

indefinição a respeito das bandeiras políticas então em voga ou de quaisquer tipo de

lideranças a serem veneradas7. Diante de tantos e diferentes apelos, percebemos logo que a

melhor maneira de conviver com aquela diversidade era tentarmos nos manter neutros: o

cotidiano já tensionava suficientemente nossa vida escolar.

Inspirado na realschule germânica, com sua ênfase nas coisas e não nas palavras, o

currículo escolar da ETC procurava integrar teoria e prática, classificação essa inscrita na

própria arquitetura da escola, com o pavimento superior ocupado por salas de aula e o térreo

pelas oficinas. Essa divisão estava também presente no horário, teoria pela manhã na parte

superior do prédio e prática à tarde embaixo. A integração estava prevista para se dar no piso

intermediário, onde ficavam os laboratórios e os ateliers, locais cada vez mais utilizados à

medida que se avançava no curso. Apesar do tom marcadamente científico do currículo, pois

a ideia era modernizar a indústria cerâmica brasileira extinguindo pouco a pouco o empirismo

reinante, o lado artístico da atividade não poderia ter sido esquecido. De modo nenhum se

poderiam apagar os fortes componentes de escultura e pintura presentes nas oficinas de

modelagem e decoração, locais onde frequentemente se dissolvia a diferença entre o artesão e

o artista. Acho que todos nós concordamos que, no início, a grande sensação das oficinas foi a

tornearia, onde o mestre oleiro nos ensinava como levantar um vaso no torno a partir de um

pedaço de barro. Por mais que analisássemos racionalmente o que significava essa coisa

complexa chamada cerâmica (que nos ensinavam não se limitar simplesmente às tradicionais

louças domésticas, pratos, xícaras, vasos, pias, mas que compreendia também, as telhas, os

tijolos, ladrilhos pisos e manilhas, a indústria de cal e cimento, a fabricação do vidro, a

confecção de isolantes elétricos e abrasivos e que começava então a se ampliar para os lados

da biocerâmica e da cerâmica eletrônica hoje tão importantes), não podíamos eludir a

presença da arte, do toque quase divino do artista, da afirmação da criação subjetiva sobre a

7 Coincidentemente, Luis Inácio Lula da Silva, matriculava-se na mesma época como aprendiz no curso de

Torneiro Mecânico da Escola SENAI “Oscar Rodrigues Alves”, no bairro do Ipiranga, São Paulo, na turma de

1962.

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realidade objetiva. Naturalmente, essa experiência estética era relegada para segundo plano na

escola, focada que estava no valor econômico dos produtos e, de resto, em harmonia com a

concepção dominante da arte como uma coisa admirável, mas secundária.

De qualquer modo, onde estivéssemos na escola parece que sentíamos o que Antonio

Santoni Rugiu denominou de “nostalgia do mestre artesão”, própria de toda pedagogia adepta

do “aprender fazendo” e que vinha se afirmando na educação brasileira desde a publicação do

“Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” por Fernando de Azevedo. Hoje sabemos que

Roberto Mange havia respondido ao inquérito sobre a situação do ensino brasileiro

organizado por Azevedo em 1926 e que compartilhava dessas ideias apesar de não ter, por

razões circunstanciais, subscrito o manifesto8. Engenheiro mecânico formado na Suiça, país

com longa tradição na educação pública, Mange havia feito uma viagem de estudos à Europa

em 1929 para subsidiar seu trabalho no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, quando pôde

tomar contato com o movimento escolanovista europeu. Maria Alice Rosa Ribeiro mostrou

como a orientação dada ao ensino profissional pelo engenheiro suíço na busca por uma

“aprendizagem científica e racional” necessária para a “formação completa do trabalhador”,

partiu da crítica da dicotomia então existente no ensino profissional entre a teoria e a prática9.

No seu trabalho sobre a escola SENAI em Campinas que leva o nome de Roberto Mange,

Meire Terezinha Müller também revelou esse mesmo posicionamento do diretor regional do

SENAI em São Paulo:

Segundo anotações pessoais de Mange, além de seus discursos e de

documentos existentes no SENAI, este era francamente favorável à

formação completa do trabalhador, e não apenas à sua qualificação

profissional técnica; por isso, nas escolas onde foi diretor, pregava a

educação geral em paralelo ao rodízio do aluno por várias oficinas, para

depois encaminhá-lo a uma determinada função a fim de especializar-se.

Para ele, o aluno deveria conhecer bem todas as fases de seu ofício, sem

jamais desprezar a educação geral como catalisadora de toda a aprendizagem

profissional. Mange tecia sérias críticas ao sistema educacional brasileiro,

alegando ser incorreto o forte peso atribuído às disciplinas da parte teórica e

8 Vide SENAI. Projeto Memória: de homens e máquinas. Roberto Mange e a formação profissional.

Volume 1. São Paulo: SENAI, 1991, p. 89. 9 O ensino industrial: memória e história. In: BASTOS, Maria Helena Camara Bastos e STEPHANOU, Maria

(orgs.). Histórias e Memórias da Educação no Brasil. Volume III. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 219.

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à concepção de formação de trabalhadores especializados em apenas uma

função10

.

Tudo isso e mais a referência citada da necessidade para a indústria cerâmica de uma

“escola artesanal” nos faz identificar as concepções de Mange a respeito da aprendizagem

profissional no projeto da ETC a começar pelo caráter generalista do currículo, acabando-se

com as três especializações previstas no plano original da escola . Afinal, segundo Frederico

Angeleri, teria sido outro helvético, o ceramista Gustave Martin, artista nascido na Suiça em

1908 trabalhando no Brasil desde 1942, o responsável pela “orientação e execução da Escola

Técnica SENAI de São Caetano do Sul” 11

, E, para aduzir ainda mais razões ao argumento,

nosso professor de desenho da escola, artista plástico consagrado e que também era o

coordenador pedagógico das aulas teóricas, se chamava Orlando de Toledo Lara!

A tão almejada integração entre teoria e prática dependia do perfeito entrosamento na

escola entre duas pessoas que funcionavam como assistentes da direção, Lara e Jarbas, o

instrutor-chefe que reinava soberano nas oficinas como estivesse no ambiente da fábrica.

Homens com histórias de vida tão diversas, deixaram logo evidente para nós suas diferenças

que procurávamos sabiamente explorar quando surgia algum conflito. Nos primeiros dois

anos distinguíamos claramente o plano teórico, trabalhado pela manhã nas matérias de cultura

geral, definidas em boa parte em função das exigências legais para a equivalência do curso ao

segundo ciclo, e as aulas práticas nas oficinas, apenas um pouquinho melhoradas em relação à

formação dada aos aprendizes do CAO e limitadas pelo deficiente grau de escolarização da

maioria dos instrutores. Se nas disciplinas teóricas o livro didático informava o ensino, mas

também o deformava (uma vez que era visivelmente orientado para os exames vestibulares),

nas aulas práticas as Séries Metódicas Ocupacionais (SMO), parcelamento das tarefas

introduzido pelo engenheiro russo Victor Della Voss e aplicado por Mange nas escolas

profissionais mecânicas paulistas na década de 1930, constituía o guia seguro para orientar

alunos e instrutores nas oficinas12

. Baseadas na representação gráfica dos diversos passos a

10 Conforme A lousa e o torno: a Escola SENAI Roberto Mange, de Campinas. Tese (Doutorado em Educação).

Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2009, p.127, grifos no original. 11 O engenheiro Frederico Angeleri foi quem organizou a seção de Cerâmica do Instituto de Pesquisas

Tecnológicas (IPT) em 1939 depois de um estágio realizado na Alemanha, em estreita associação com a Escola

Politécnica da Universidade de São Paulo e teve atuação expressiva na ABC desde sua fundação. O primeiro

presidente da Associação, Francisco de Salles Vicente de Azevedo, era dono da fábrica de louças sanitárias

Porcelite em sociedade com os irmãos Toledo Lara, cujo Departamento Técnico era dirigido por Angeleri. Na

época que a ETC começou a funcionar, Martin fazia o design dos produtos daquela empresa, considerada

inovadora no ramo. Vide Cerâmica, n.32, dezembro de 1962, p. 18. 12 No relatório anual do SENAI referente ao ano de 1945, as SMO são erigidas em “método da pedagogia ativa,

por se constituir num sistema progressivo de aquisição técnica de trabalho, comparável a uma evolução

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serem executados pelo aprendiz para a confecção das peças, as SMO, cujas cópias

heliográficas circulavam profusamente antecipando o xerox, funcionavam como uma espécie

de tradutor entre os alunos, subsidiados pelas aulas de geometria descritiva, e os instrutores,

cuja destreza, muitas vezes, servia de modelo para a produção dessas séries. Dessa forma, os

filhos de imigrantes deparavam-se na ETC com as soluções educacionais encontradas em seus

países de origem para equacionar os problemas de produção postos pela sociedade urbano-

industrial, dos trabalhos manuais preconizados pelo slöjd escandinavo até a escola do trabalho

do alemão Georg Kerschensteiner, trazidas por engenheiros a serviço da indústria nacional.

Porém, na nossa vida escolar passávamos por outras provações a começar pela hora do

almoço. A maioria dos alunos não morava em São Caetano e precisava se alimentar por ali

mesmo para não perder o turno da tarde, mas não havia refeitório, nem mesmo cozinha, para

fornecer comida. Depois de várias tentativas de solução, conseguimos do SENAI um fogão e

findamos por adotar a saída normalmente utilizada pelo operário fabril: trazer marmita de casa

ou comer um prato feito nas redondezas. Como havia cerca de duas horas para o almoço, este

momento acabou se tornando propício para intensificarmos nossa convivência. Além de uma

quadra de esportes, dispúnhamos de um bom espaço com mesas e cadeiras para desfrutar

nesses intervalos. Não só os que traziam marmita, ou mesmo um lanche, mas também os que

almoçavam perto, todos se reuniam na hora do almoço para conversar, jogar ping-pong, bater

uma bolinha na quadra, enfim, um momento de lazer, mas também de encaminhamento de

nossas questões. Sempre que, por alguma razão ficávamos liberados das atividades na escola,

era para esse espaço de convivência que acorríamos e, no verão, aproveitávamos a claridade

para jogar futebol de salão ou basquetebol ao final das aulas13

. Pelo fato da maioria de nós

não ser de São Caetano, nosso relacionamento social na cidade era muito dependente de nossa

vida na escola. Todos rapazes (embora não houvesse, em princípio, nenhuma restrição quanto

ao sexo dos alunos, as primeiras meninas a se matricular na ETC o fizeram apenas em 1965,

quando já começamos o ano estagiando na indústria), passávamos o dia num ambiente num

espaço, salvo poucas funcionárias, essencialmente masculino e homofóbico, fazendo com que

nossa sexualidade aflorasse em outros espaços. Alguns alunos mais velhos e cuja família tinha

melhor condição social, vinham algumas vezes para a escola de automóvel, poderoso

biológica, em que o aprendiz, sem sentir e sem se cansar, mas com interesse sempre vivo, adquire de forma mais

rápida e racional uma capacidade técnica de produção”. Müller, op. cit., p. 220. 13 Até mesmo alguns de nossos professores aproveitavam para almoçar conosco antes de se dirigirem para outras

escolas. Nosso professor de português e inglês, Ratib Buchala, admirado por todos por ter ganho na época

inúmeros prêmios respondendo sobre a vida e a obra de Castro Alves em programas televisivos, era uma

presença constante. A incorporação das turmas que chegavam a cada ano na escola dependia fortemente da

convivência nesses espaços de socialização.

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chamariz para atrair garotas. Debalde, pelo menos socialmente, tanto é que, apesar de toda

nossa organização, nunca promovemos uma festa, nem ao menos um desses bailes realizados

para financiar os gastos com a formatura dos alunos, tão comuns na época e com os quais

estávamos familiarizados desde que cursávamos o ginásio14

.

No terceiro ano do curso, já completamente integrados à escola, perfazíamos o

equivalente à “obra prima” do artesão. Projetávamos uma peça de cerâmica, a modelávamos

em argila ou gesso, preparávamos o molde, dosávamos a massa, confeccionávamos e

cozíamos a peça crua no forno, a pintávamos e a adornávamos e, finalmente, fixávamos essa

decoração no calor da mufla. Pronto, tínhamos diante dos olhos o resultado de nosso trabalho

para exibir onde quiséssemos. Nesse processo vivenciávamos completamente as

características da formação artesanal tão bem descritas por Rugiu:

Nenhuma outra forma de experiência formativa conservava em si os valores

diversos do controle direto e progressivo, partindo da ideia originária até a

realização final, da objetivação plena do subjetivo e da produção de bens

aproveitáveis pela comunidade, Nenhuma outra forma, além disso,

assegurava um desenvolvimento da natureza ativa do homem através de um

racional exercício ‘prático-moral’, graças principalmente ao exercício de

autocontrole, de concentração sobre um objeto e à consciência de um

objetivo15

.

Nesse momento, o atelier de desenho e o laboratório punham o conhecimento à

serviço da produção através dos diversos tipos de “ensaios” realizados para que o processo

fosse bem sucedido. Mas a etapa mais empolgante para nós ocorria no momento mágico no

qual ocorria da transformação operada pela queima das peças, Processo complexo e

irreversível, dependente de um grande número de variáveis nem sempre passíveis de controle

por constituir geralmente um evento único sem possibilidade de repetição, a queima também

era um momento de congregação do grupo de alunos que a acompanhava, inclusive durante a

14 Era muito importante para nós que transparecesse claramente para a sociedade nossa condição, senão de

colegial, ao menos de estudante. Como o SENAI não dispunha de uniformes, para afirmar nossa identidade,

mandamos confeccionar um blusão com o nome da escola semelhante àqueles utilizados pelos alunos dos outros

colégios. Por nossa iniciativa, o blusão trazia às costas um personagem dos quadrinhos de Walt Disney,

professor Ludovico, desenhado pelo nosso colega Flávio Polo de Camargo. A figura, pelas razões já aduzidas

anteriormente teve a aprovação de todos, pois mostrava o atabalhoado personagem às voltas com a confecção de

um vaso de argila no torno. 15 Op. cit., p. 156.

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noite. Como uma fogueira ritual, a luz e o calor do forno nos uniam ao seu redor dentro da

escola em silêncio, partícipes de uma cerimônia milenar oficiada pelo grêmio de ceramistas.

Foi também no terceiro ano que a ABC, até ali acompanhando a escola de longe e

indiretamente, começou a se fazer mais presente entre nós, mesmo porque se aproximava o

momento de definição do estágio nas indústrias, a ser cumprido no início de 196416

. De olho

nos alunos, alguns já comprometidos com empresas das quais recebiam algum estipêndio

durante o ano e estagiavam em suas instalações nas férias, os industriais também cobiçavam

as instalações da escola, especialmente seus laboratórios, onde poderiam testar, sem grandes

riscos e despesas, novos produtos ou processos. Em 1963, quando era presidente da ABC o

empresário do Grupo Votorantim, Antonio Ermírio de Moraes, havia surgido a ideia da

constituição de um “Centro de Estudos e Pesquisas de Cerâmica” conveniado com a ETC,

enaltecido pela diretoria por ser “a primeira vez no Brasil que um grupo de industriais

especializados reúne seus esforços no sentido de criar um órgão técnico capaz de trazer

desenvolvimento e independência para seu ramos de produção” 17

. Desta forma, o químico

aposentado do IPT, José Letterio Galeano, passa a comandar o laboratório da escola enquanto

um engenheiro químico recém-formado é nomeado para administrar esse Centro. Assim,

pudemos usufruir finalmente dos equipamentos científicos existentes na escola,

especializados o bastante para inviabilizar seu uso pelos professores das matérias de cultura

geral do currículo, como química e física. Tinha razão o administrador quando, em matéria

publicada alusiva ao Centro exaltou a capacidade deste “realizar diversos ensaios, ocupando a

capacidade ociosa dos aparelhos e tornando mais eficiente o ensino através dos mesmos”,

fazendo questão de ressaltar, relativamente ao laboratório de química e antecipando possíveis

críticas, que “apesar de não ter sido previsto para tal, o laboratório permite a realização dos

trabalhos do Centro sem interferir nos trabalhos escolares e até aumentando o rendimento

destes últimos”18

. Essas também eram preocupações nossas tanto é que lançamos, pela mesma

época, na esfera do grêmio “8 de março” a ideia da constituição de um “Centro Técnico de

16 O primeiro registro que encontramos da associação de estudantes da ETC à ABC está na revista Cerâmica, número 40, de dezembro de 1964. No número 49, de março de 1967, a revista relaciona 13 alunos de nossa

turma como sócios. Já o número 69, de março de 1972 registra apenas dois nomes da nossa turma, Flávio Polo

de Camargo e Paulo Roberto dos Santos, exatamente os colegas que mais se aproximaram da entidade, Paulo

Roberto, elegendo-se para o Conselho Diretor da ABC em 1976, enquanto Flávio Polo seria eleito em 1982 e

reeleito em 1988 para a diretoria da ABC. Todavia, a ABC continuaria a manter forte presença na ETC no

decorrer do tempo: na relação publicada no número 84 da revista, em dezembro de 1975, consta o nome de 146

sócios-estudantes pertencentes a cerca de 20 instituições de ensino de todo o Brasil, dos quais 114 eram alunos

da ETC. 17 Vide Cerâmica, n. 36, setembro de 1963, p. 29. 18 Conforme Hely de Andrade Junior. O Centro de Estudos e Pesquisas de Cerâmica. Cerâmica, n.39, setembro

de 1964, p. 51.

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Pesquisas Cerâmicas”, com o objetivo de “incutir nos alunos o espírito da pesquisa

científica”19

.

Não havendo no currículo diferenciação que nos levasse à especialização em algum

dos diversos ramos da indústria cerâmica, o local de estágio era de fundamental importância

para a definição de nosso futuro como técnico. As informações normalmente postas à nossa

disposição provinham de eventuais palestras proferidas na escola, dos congressos anuais da

ABC e de visitas às indústrias organizadas pelo SENAI. Durante três anos vínhamos sendo

preparados para atuar na área e o fizemos: dos 26 alunos iniciais, apenas 7 não concluíram o

curso, a maioria parte deles satisfeita com o certificado de conclusão do secundário obtido ao

fim do terceiro ano e que lhes havia aberto as portas de ingresso no ensino superior. Se

considerarmos que os formados em 1965 só seriam superados em número no ano de 1972,

podemos apreciar quão importante foi para nós ter participado da experiência de ser da

primeira turma para concluir o curso, como se o “espírito de corporação”, ingrediente básico

na formação do antigo artesão, tivesse se reencarnado nessa turma dadivosa 20

.

Se poucos de nós abraçaram definitivamente a carreira de ceramista não

importa, o fato é que todos nós, de uma forma ou de outra, em São Paulo ou no resto do país,

tentamos exercer esse mister e, se mudamos de rumo, foi exatamente porque a nossa

formação nos dava condições para isso. Apesar de nem todos terem seguido a carreira de

técnico em cerâmica, a pedagogia praticada na escola conformou a formação de seus alunos

não só em termos de competência técnica, profissional, mas também como cidadão de uma

sociedade cada vez mais dependente da tecnologia. Como bem definiu nosso colega Efraim

de Silva Lima, bem sucedido promotor de vendas em Belo Horizonte, referindo-se ao final

dos anos de 1960: “desisti de ser ceramista, escolhi o curso de pedagogia e casei-me” 21

.

Pedagogia, Engenharia, Direito, Física, Geologia, Serviço Social, Matemática foram alguns

19 Esse informe foi publicado por Frederico Angeleri, então editor da revista, no número seguinte da revista,

Cerâmica, n. 40, dezembro de 1964, p.44, sugerindo haver uma disputa surda nos bastidores da ABC sobre a

oportunidade e finalidade da criação deste Centro, uma vez que muitas indústrias já possuíam, ou estavam

montando seus próprios laboratórios de pesquisa e desenvolvimento. Nos anos seguintes, com a mudança do

diretor da escola, foi nomeado um engenheiro que acumulava a administração do Centro. Em 1971, com a saída desse diretor, o Centro foi extinto. 20 Conforme a relação dos formados na ETC até 1976 publicada em Cerâmica, n. 146, fevereiro de 1982, p. 23-

A e n. 147, março de 1982, p. 24-A. O número de técnicos em cerâmica formados pela escola, 91 até 1971, numa

média de 13 por ano, iria se avolumar a partir da promulgação nesse ano da lei 5692 que imprimiu um caráter

profissionalizante a todo o ensino secundário brasileiro. A escola passou então a oferecer um curso especial de

um ano para quem tivesse concluído o colégio fazendo com que se formassem 858 técnicos de 1972 a de 1987,

cerca de 57 em média por ano. Estes dados colocam sob suspeição o depoimento de Valnir Chagas, um dos

principais mentores daquela lei, quando afirmou em entrevista que “não estou preparando mão de obra para

Ermírio de Moraes nenhum”, referindo-se ao então senador José Ermírio de Moraes, presidente do Grupo

Votorantim. Vide BUFFA, Ester e NOSELLA, Paolo, A Educação Negada, São Paulo, Cortez, 1991, p. 164. 21 Vide Momentos Decisivos, jornal Estado de Minas, edição de 01/04/2012.

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dos cursos superiores seguidos pelos egressos que, muitas vezes, exerciam outras funções

concomitantes com atividades cerâmicas. Como acontece com toda boa escola, muito ex-

alunos tornaram-se professores da ETC, outros ministraram cursos em eventos e alguns

realizaram cursos e estágios de especialização no Brasil e no exterior. Talvez, se tivesse sido

criado um curso de engenharia cerâmica nos moldes propostos por Horácio Lemos em 1964,

muito de nós continuaríamos nossos estudos formais na área22

. De qualquer maneira, a turma

pioneira da ETC teve e ainda tem, pois ainda está em atividade, uma inserção multiforme na

cerâmica brasileira, tendo contribuído decisivamente para o desenvolvimento do setor 23

. Um

pequeno, mas significante indício dessa inserção foi a matéria escrita por Aroldo Capello,

formado pela ETC uma década depois, na revista Cerâmica Informação noticiando a

passagem do jubileu de ouro da turma em 201224

.

22 Ver o artigo de Horácio Lemos “Cerâmica: uma ciência em desenvolvimento” em Cerâmica, n. 40, dezembro

de 1964, p. 34. Os cursos superiores em Cerâmica foram criados como especializações dos cursos de engenharia

química ou de materiais, área na qual também se desenvolveu a pós-graduação a partir de 1968, tornando difícil

seu acesso aos concluintes da ETC. 23 Em 1990 os cursos da ETC foram transferidos para a Escola SENAI “Mário Amato” em São Bernardo do

Campo, escola que integra os setores de química, plástico e cerâmica, e foi criado no local um curso de

mecatrônica. 24 Vide Aroldo Capello, “Primeira turma do curso técnico de cerâmica da escola SENAI de São Caetano do Sul

celebra os 50 anos da aula inaugural”, Cerâmica Informação, n. 84, set/out de 2012, p. 26.

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Figura 1

Comemoração dos 50 anos da primeira turma da ETC em 2012. Vê-se da esquerda para a

direita: Flávio Vincislao Risi, Walter Brum de Araujo, Wojciech Andrzej Kulesza, Paulo

Barth, Efraim da Silva Lima, Flávio Polo de Camargo, Antonio Carlos Castello, professor

Ratib Buchala, Paulo Roberto dos Santos, Roberto Nardi, Manoel Koiti Hidaka e Woldemar

Iwanuch. Foto: acervo do autor.

A Figura 1 acima traz um retrato dessa comemoração realizada no dia 13 de outubro

no prédio residencial do colega Antonio Carlos Castello. À esquerda da foto, afixada na

coluna vê-se a placa comemorativa que foi oferecida pela turma ao anfitrião. A Figura 2

abaixo reproduz a placa com os mesmo dizeres entregue ao outro organizador da festa, Paulo

Roberto dos Santos, na qual chamamos a atenção do leitor para a expressão “fraterna

argamassa”, feliz alusão ao nosso ofício de ceramista e, ao mesmo tempo, à nossa união.

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Figura 2

Placa comemorativa ofertada ao colega Paulo Roberto dos Santos no jubileu de ouro da turma

de 1962.

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2012.

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