A Extraordinária Vida de Jésus Gonçalves (Eduardo Carvalho Monteiro)

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A EXTRAORDINÁRIA VIDA DE JÉSUS GONÇALVES Eduardo Carvalho Monteiro DE RETORNO AO PASSADO “Nascer, viver, morrer, renascer ainda e progredir sempre, tal é a Lei” Allan Kardec (Inscrição no seu túmulo) Corria o século IV d.C. Envelhecia o Império Romano. A incapacidade dos governantes e a dis- solução dos costumes, aliadas à infiltração de mercenários e bárbaros nas fileiras de seu exército levou a defesa do Império a depauperar-se. Outro grave problema, que colaborou para o colapso de Roma, foi a crise do sistema econômico. A autonomia provincial retirou uma importante fonte de recursos da Capital, ao mesmo tempo em que grande parte dos impostos eram canalizados pa- ra fins improdutivos: enormes gastos em festas e jogos. A pilhagem imposta aos venci- dos rareava, já que quase a totalidade do mundo conhecido à época fazia parte de seus domínios. Vislumbravam-se tempos negros para os Impé- rios Romano, ameaçado pelas hordas bárbaras que se acercavam de suas fronteiras no Oriente. Durante seu reinado, Teodósio I conseguiu fixar um desses povos, os visigodos, nos confins da Ptésia (Às margens do Rio Borythenes) onde foram posteriormente elevados à condição de fede- rados do Império (387), enquanto que seu líder, Alarico, fazia carreira no exército romano, sendo distinguido com honrarias e promoções pelo comando. Cristalizava-se, então, a falsa ideia de que os bárbaros e, em particular, os visigodos, se constitui- riam em aliados contra possíveis ataques aos Impérios. Com a morte de Teodósio, estes passaram à ofensiva, já sob o comando de Alarico, que assimila- ra as modernas técnicas do exército romano. Avançaram pela Península Balcânica decididos a tomar Constantinopla, mas o príncipe Rufino, regente do Império Oriental, conseguiu induzir Alarico a mudar-se para Dalmácia, intentando desviá-lo para o Oeste. Na Dalmácia, Alarico e suas tropas iniciam a infamante carreira de conquistadores, onde campe- avam a morte, o terror e a destruição. A sede de conquistas não mais tinha limites. Devastadoras incursões levavam “gozo, o saque e a morte” às cidades, que uma após outra, sentiam o peso da espada de Alarico e experimentavam os gravames cruéis de sua alucinação guerreira. Armaduras, lanças, capacetes de ferro, azagaias, dardos e flechas formavam o arsenal do terror. Do alto de sua liteira, bárbaro, encarnando a crueldade e a insensibilidade, parecia transmitir aos corcéis fogosos a sanha de destruição que refervia em sua alma... Muitas vezes, Senhor, brandindo a espada, Junquei o campo de amargosas dores, Estendendo medalhas e favores Sobre o sangue de presa abandonada, A golpes vis, assinalei a estrada Do meu carro de falsos resplendores E, buscando lauréis enganadores, Desci, gemendo, à sombra ilimitada... Ao terrível exército do caudilho tudo o que interessava eram as conquistas territoriais, o ouro, as riquezas, os estofos de seda e as especiarias. Escrúpulos, não os conhecia Alarico. Sua personali- dade reunia qualidades de grande líder e disciplinador, mesclados à prepotência e à perversidade. O ano de 395 d.C. marca o início da caminhada que empreende, disposto a subjugar Roma: cai Constantinopla ante fulminante ataque; é invadida a Grécia e saqueada a Ática, embora Atenas,

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A Extraordinária Vida de Jésus Gonçalves

Transcript of A Extraordinária Vida de Jésus Gonçalves (Eduardo Carvalho Monteiro)

  • A EXTRAORDINRIA VIDA DE JSUS GONALVES

    Eduardo Carvalho Monteiro

    DE RETORNO AO PASSADO

    Nascer, viver, morrer, renascer ainda e progredir sempre, tal a Lei Allan Kardec

    (Inscrio no seu tmulo)

    Corria o sculo IV d.C. Envelhecia o Imprio Romano. A incapacidade dos governantes e a dis-soluo dos costumes, aliadas infiltrao de mercenrios e brbaros nas fileiras de seu exrcito levou a defesa do Imprio a depauperar-se. Outro grave problema, que colaborou para o colapso de Roma, foi a crise do sistema econmico. A autonomia provincial retirou uma importante fonte de recursos da Capital, ao mesmo tempo em que grande parte dos impostos eram canalizados pa-ra fins improdutivos: enormes gastos em festas e jogos. A pilhagem imposta aos venci-dos rareava, j que quase a totalidade do mundo conhecido poca fazia parte de seus domnios. Vislumbravam-se tempos negros para os Imp-rios Romano, ameaado pelas hordas brbaras que se acercavam de suas fronteiras no Oriente.

    Durante seu reinado, Teodsio I conseguiu fixar um desses povos, os visigodos, nos confins da Ptsia (s margens do Rio Borythenes) onde foram posteriormente elevados condio de fede-rados do Imprio (387), enquanto que seu lder, Alarico, fazia carreira no exrcito romano, sendo distinguido com honrarias e promoes pelo comando. Cristalizava-se, ento, a falsa ideia de que os brbaros e, em particular, os visigodos, se constitui-riam em aliados contra possveis ataques aos Imprios. Com a morte de Teodsio, estes passaram ofensiva, j sob o comando de Alarico, que assimila-ra as modernas tcnicas do exrcito romano. Avanaram pela Pennsula Balcnica decididos a tomar Constantinopla, mas o prncipe Rufino, regente do Imprio Oriental, conseguiu induzir Alarico a mudar-se para Dalmcia, intentando desvi-lo para o Oeste. Na Dalmcia, Alarico e suas tropas iniciam a infamante carreira de conquistadores, onde campe-avam a morte, o terror e a destruio. A sede de conquistas no mais tinha limites. Devastadoras incurses levavam gozo, o saque e a morte s cidades, que uma aps outra, sentiam o peso da espada de Alarico e experimentavam os gravames cruis de sua alucinao guerreira. Armaduras, lanas, capacetes de ferro, azagaias, dardos e flechas formavam o arsenal do terror. Do alto de sua liteira, brbaro, encarnando a crueldade e a insensibilidade, parecia transmitir aos corcis fogosos a sanha de destruio que refervia em sua alma...

    Muitas vezes, Senhor, brandindo a espada, Junquei o campo de amargosas dores, Estendendo medalhas e favores Sobre o sangue de presa abandonada,

    A golpes vis, assinalei a estrada Do meu carro de falsos resplendores E, buscando lauris enganadores, Desci, gemendo, sombra ilimitada...

    Ao terrvel exrcito do caudilho tudo o que interessava eram as conquistas territoriais, o ouro, as riquezas, os estofos de seda e as especiarias. Escrpulos, no os conhecia Alarico. Sua personali-dade reunia qualidades de grande lder e disciplinador, mesclados prepotncia e perversidade. O ano de 395 d.C. marca o incio da caminhada que empreende, disposto a subjugar Roma: cai Constantinopla ante fulminante ataque; invadida a Grcia e saqueada a tica, embora Atenas,

  • apreensiva , fosse poupada; capitula Corinthos, Argos e Esparta, ante os golpes do rude guerreiro e seu exrcito de condottiere...

    Inda vejo, Senhor, de alma oprimida, A Trcia devastada, a nsia de Atenas, Constantinopla em lgrimas e penas E Roma flagelada e envilecida...

    Por onde quer que passasse, deixava em seus rastros a viuvez, a orfandade, em traos de selvage-ria. Mesmo s cidades subjugadas Alarico impunha seu requintes de maldade e de sadismo, in-cendiando-as, promovendo os aleijes, ceifando vidas...

    H sculos num carro de esplendores, Minha vida era a angstia de outra vidas, Estraalhava multides vencidas, Coroando de prpura e de flores.

    Era trao marcante de sua personalidade, a vaidade. Em nome desta mesma vaidade sonhava volver Roma e conquistar o posto de comandante-em-chefe das tropas imperiais, cargo para o qual havia sido preterido. Porm, em seu caminho havia Estilico. Filho de um chefe vndalo e que era casado com uma sobrinha de Imperador Teodsio e tutor de Honrio, herdeiro do trono. Derrotado numa primeira investida, por Estilico, Alarico atravessa o Golfo de Corinto, invadin-do em 397 o piro. Feito governador da Ilara, vende seu apoio alternadamente aos imperadores do Ocidente e do Oriente. Em 401, Alarico entra na Itlia pelo Friuli e invade a plancie padana...

    Outrora, frente de conquistadores, Num trono de fantsticas riquezas, Despojando cidades indefesas, Comandei o cortejo de esplendores!

    Estilico, atento ao avano do visigodo, derrota-o no Piemonte (402) e no Vneto (403). Sabe-dor, porm, da ameaa que este povo representava para o Imprio, brindava-o com valiosos pre-sentes a fim de mant-lo afastado. O mau interpretado zelo de Estilico em defesa de Roma, sua ambgua relao com Alarico e o seu parentesco com a famlia imperial (dera duas filhas como noivas a Honrio) alimentaram a inveja e suspeita de que ele estivesse almejando o trono. Assim, para posterior arrependimento seu, Honrio mandou matar o general temendo que ele se aproveitasse a situao crtica do Im-prio para usurpar a Coroa. Com o seu maior oponente morto, Alarico fica com Roma sua merc. As disputas entre os Im-prios do Oriente e Ocidente, as tricas domsticas e fragilidades do Exrcito fizeram a cidade vulnervel, e Alarico, aproveitando-se do momento, leva seu povo de volta Itlia e em 408 si-tia, pela primeira vez, Roma, s consentindo em retirar-se mediante vultoso resgate. Sua inteno no era a de destruir o Imprio mas se apossar do ambicionado cargo de comandante das tropas imperiais alm de obter territrios dentro de suas fronteiras, na regio entre o Danbio e Golfo de Veneza. Em posio de superioridade, Alarico negociou durante dois anos a salvao da cida-de, enquanto que os romanos viviam em terror e em penria de vveres...

    Senhor, eu que vivia em vos clamores, Vinha de longe em nsias aguerridas, Sob a trama infernal de horrendas lidas, Entre largos caminhos tentadores.

    Tronos, glrias, tiaras, esplendores E cidades famlicas vencidas...

  • Tudo isso alcancei, de mos erguidas Aos gnios tenebrosos e opressores.

    Como nada conseguisse com Honrio, que se recusava a acordos, tornou a sitiar Roma em 409 e fez do prefeito da cidade, o grego talo, Imperador. Novamente procurou negociar com Hon-rio, que a esta altura havia se transferido com a corte para a frica, celeiro do mundo, poca. Depois de 11 meses de negociaes infrutferas e dada intransigncia de Honrio, Alarico cer-ca novamente a cidade e a 24 de agosto de 410 decide cumprir sua ameaas. Antes, porm, quando o acampamento brbaro ultimava os preparativos para invaso, que j era inevitvel, sin-gular episdio viria modificar o rumo dos acontecimentos. Encontrava-se em Roma, Agostinho, bispo de Hipona, que a exemplo da populao antevia as consequncias trgicas da iminente invaso. A cidade movimentava-se com presteza, sobressal-tada com a fama de Alarico. Preparava-se a defesa de seus muros, mas como j poucas esperan-as restavam de resistir ao ataque, buscava-se tambm as melhores formas de proteo s mulhe-res, crianas e idosos para quando da consumao do fato. Corria, de boca em boca, os feitos de natureza sanguinria, depravada e sdica do guerreiro visigodo. Um mrbido silncio caracteri-zava a ltima fase da expectativa na cidade. O bispo Agostinho, em dado momento, saiu pelas ruas a divagar sobre o acontecimento sombrio. Ao anoitecer j no se via a movimentao de an-tes mas o silncio sepulcral era s vezes entrecortado por gritos de desespero e alarmes falsos. Arriscada ideia sobressalta-lhe, ento, o Esprito. O pasmo inicial d lugar a um fio de esperana no Esprito amargurado daquele homem do Cristo. Decide ele, mesmo com o risco da prpria vi-da, enveredar-se pelas colinas que levariam ao acampamento brbaro de l pedir clemncia ao chefe visigodo. Sabia que a ira dos visigodos seria inevitvel, no entanto estava disposto a ofere-cer a vida em troca de uma rstia de esperana para seu povo. Bendita a fortaleza dos que creem no triunfo do Esprito sobre a Matria! Embora a invulnerabilidade do exrcito do caudilho, ei-lo penetrando em suas hordas, diante do olhar estupefato dos soldados pela sua ousada intrepidez. E os soldados perplexos, sbito, ouvi-ram os gritos alucinados e carregados de dio de seu chefe, ao tomar conhecimento da ousadia do sacerdote: - Degolem-no! Degolem-no! Degolem o romano que ousou desafiar minha fora! Degolem-no! - Mas, senhor, - ouviu de um subordinado bem sabes que matar a um sacerdote significa mau agouro! Os soldados tm medo de suas pragas e por isso no lhe tocam! - Estpidos! Boais! Quem ps em suas cabeas essas baboseiras? Vamos, matem-no e pendu-rem sua cabea como trofu! aduziu o general brbaro, aulado por um dio injustificado. Os guerreiros, sem a devida coragem para dar o golpe de misericrdia naquele pobre homem, en-xovalhavam seu rosto com cusparadas, ofendendo-o com os mais execrveis improprios. Eles odiavam-no. Agostinho, porm, irresistvel em sua f, prosseguia em direo tenda do chefe vi-sigodo. Frente a frente agora, os dois aguardavam a acomodao da turba. Em pouco, apenas abafados comentrios ainda se escutavam. Os olhos de Alarico, chispados de dio, esto fitos, secos, con-trastando com o olhar doce e sereno do sacerdote. Havia algo naquele olhar que o poderoso guer-reiro no conseguia explicar: o magnetismo. Frente s atitudes incivis da soldadesca, Agostinho, longe de se chocar, cumprimentava-os com o sorrir sincero, rebuscando nos arquivos das melho-res lembranas que trazia. Alguns se destacavam da turba e vinham como a farej-lo. Abeira-vam-se de sua figura humilde que contrastava com a mitra de bispo e se esforavam por entender a razo de tamanha coragem. Coragem, sim, para alguns, embora grande maioria no passasse de ousada afronta. Nenhum deles, entretanto, imaginava quem era esse Agostinho. Gnio raro, dignificou o sacerdcio cristo e surpreendeu o mundo da poca, quando rompeu luminosamente com a carreira de glrias e fama que delineava para si, para optar pelo caminho de porta estreita da salvao. Abraara o ministrio de Jesus, afastando-se conscientemente das comodidades efmeras do poder material e da sensualidade pecaminosa. At aquela poca, sua vida houvera sido de empenho instruo catequtica de futuros batizados, s obras da caridade e direo espiritual das comunidades por onde houvera passado. A diligncia com que tomava parte na

  • proteo aos pobres, a firmeza com que se embrenhava na defesa dos fracos e oprimidos junto s poderosas autoridades, procurando respeitar o direito de asilo, no o impedia de tambm oferecer ao povo de sua f, brilhantes dissertaes filosficas que at hoje permanecem atuais e maravi-lham o mundo cristo. E Alarico no conseguia resistir. Embora o desejo de avanar, espada em punho, e colocar termo audcia do guerreiro do Cristo para salvar sua imagem de lder duro e implacvel, o condottie-re permanecia esttico e sem reao ante a surpresa do acontecimento. Assim como seus co-mandados, sentiu que todo seu aparato blico e sua experincia de guerreiro de nada valiam, ante a supremacia moral de algum que, com sua f inquebrantvel, lutava por uma causa justa. O encontro foi rpido e incisivo. No poderia haver troca de amabilidades e sequer dilogo, pois as lnguas que falavam eram diferentes: um a do amor, outro a do dio. - Augusto guerreiro Alarico, comandante-em-chefe das bravas fileiras do povo visigodo. Certo de que poderia contar com a compreenso e generosa pacincia que exornam de to nobre carter que tomei, por deciso, dirigir-me ao teu acampamento, portando inadivel e importante assun-to de interesse da cidade de Roma... - Passe logo ao assunto que o traz aqui, miservel, pois o tempo de que disponho no posso per-der ante um inimigo de meu povo! Voc, seu verme, deve ter perdido o juzo por tomar a resolu-o de vir aqui em nosso reduto! Fale, miservel, o que deseja? Oferecer-me ouro, prata, seda ou qu? Pois fique sabendo que seu rei, Honrio, no aceitou minhas propostas de negociao. Por-tanto, agora, mesmo que tenha ele voltado atrs em sua deciso, meu povo j tomou a sua: arra-sar a cidade de Roma e mostrar a essa corja de imundos quem o rei do mundo: Alarico! Agostinho, nesses instantes de comovida compaixo, confrontava a insensibilidade do caudilho com as lies preciosas do Mestre: amai-vos uns aos outros como eu vos amei... quem pela espada fere, pela espada ser ferido... perdoar, no sete, mas setenta sete vezes... quando, su-bitamente, relanceando o olhar em derredor, pde observar uma gama de Entidades Espirituais que procuravam irradiar vibraes de paz a cometimento na tela mental do guerreiro! Imediata-mente, o vislumbre de desesperana e melancolia, que lhe penetravam nas fmbrias do Esprito, transformaram-se em melodias de esperana e em irrepreensvel confiana de que aquele ser, ainda em sua infncia espiritual, haveria de compreender a razo de sua splica. Uma ternura in-finita se lhe transbordou do Esprito... transformou o mpeto em realidade, e arrojou-se genuflexo e splice aos ps do verdugo: - V Senhor, a difcil tarefa em que encontro. Rojado a teus ps e colocando o corao nas pa-lavras que te dirijo, venho, no fazer um acordo, como poderias esperar, mas oferecer minha in-significante existncia em troca de uma moderao na invaso nossa cidade... - O que ests dizendo, repugnante sacerdote? replicou, rangendo os dentes de dio, o coman-dante visigodo ento, acreditas mesmo que eu, o grande general, trocaria a vida de um rptil, que para mim nenhum valor tem, pelas glrias da conquista da cidade-bero do mundo? Pois fica sabendo que lavaremos com sangue do teu povo as alamedas que aclamaro a chegada de meu exrcito. Saiba que aqueles que se opuserem nossa entrada na cidade havero de sofrer as mai-ores torturas e sentir o peso de minha espada. Apodrecero nas prises os que se recusarem a aceitar os visigodos, legtimos detentores do trono da Terra. Suas vias suntuosas tero que estar repletas de romanos para saudar o grande general Alarico, e no haver um s romano que no ser desprezado, humilhado e vilipendiado. Suas mulheres sero nossas mulheres e suas crianas, cedo, sero educadas para servir ao povo visigodo. Os habitantes orgulhosos desta cidade, que foi ingrata com o maior general que lhe pisou o solo, rastejaro como vermes a implorar clemn-cia ao que devero reconhecer como o legtimo comandante-em-chefe de suas tropas! Est, pois, desgraado sacerdote, estabelecido o futuro da tua cidade podre! Abalado ante a rudeza do verbo guerreiro, mas no menos confiante no sucesso de sua misso, apoiada, naqueles momentos pela presena marcante de Protetores Invisveis, no represa as l-grimas sinceras e comoventes que lhe caem abundantemente. Meritria a tarefa dos que se sa-crificam em benefcio de seus irmos em humanidade! Naqueles instantes, de um lado estava o poder desptico dos que se julgam infalveis e preocupados em receber os louros ilusrio das dominaes transitrias; de outro, a sagrada expresso do amor e da sabedoria, refletidos na

  • conscincia liberta dos entraves da cobia e do desrespeito individualidade de seus semelhan-tes. - Senhor dirige-lhe a palavra Agostinho no minha inteno, nem a de meu povo, replicar ou ir de encontro supremacia militar de teu Exrcito, que notria a todos. Apesar, como sa-bemos, desde a partida de nosso Imperador para a frica, Roma se encontra desguarnecida e a teus ps. Por isso, em nome do Cristo, que me inspirou a vir ter com o general, em nome de Deus... -Deus? replicou raivosamente Alarico Como ousas falar em outro Deus que te governa? Eu sou teu Deus e outro Deus mais poderoso jamais em tua vida estpida conhecers... Compreen-des? Eu sou Deus e no admito que venhas ao meu acampamento insultar-me a assacar blasf-mias contra mim. Ningum mais poderoso que Alarico, que em breves dias se apoderar da ci-dade corao do mundo, a nica que ainda lhe falta conquistar. Eu sou a lei, eu sou Deus, eu sou o grande Alarico que Roma aclamar e adorar. E o dilogo prosseguia, alternando-se entre as frases rspidas de Alarico e humildade e submis-so de Agostinho, que lutava para penetrar naquele corao dominado pelo dio e ansiava deses-peradamente conseguir a misericrdia do caudilho. - Ilustre guerreiro Alarico, no foi inteno deste pobre e insignificante operrio do Evangelho magoar ou ferir a honra daquele que todos reconhecemos na imagem de um grande general que j tem seu nome gravado na Histria! Se acaso te feri com minha insolncia, prpria daqueles que ainda percorrem as sendas da imperfeio e do pecado, rogo-te que me perdoes, pois, de agora em diante, procurarei vigiar minhas palavras para que no venham ferir ou ofender-te no-vamente... Alarico e seus soldados permaneciam, agora, mais do que nunca, estticos diante de uma reao que ainda no conheciam: ante o dobrar do orgulho, palavras de perdo brotadas do fundo do co-rao! Realmente, a uma gente habituada a lavar a honra manchada por pequenas desavenas em duelos mortais, essa era uma atitude digna de espanto! A turba, que se acalmara, ligeiramente, entreolhava-se com estupefao, mas o silncio era logo cortado pelos gritos de covarde, covarde, luta, queremos a luta , enfrente um de ns, ro-mano. No compreendiam eles a dignidade de um gesto cristo. As vulgaridades empanam a viso dos humanos envoltos no desconhecimento das Leis Espirituais e o espesso vu da matria -lhes o empecilho para o descortinar da luz em suas trajetrias. - No pretendendo molestar V. Excia, por mais tempo, prossigo na minha explanao. A cidade e o povo de Roma pedem clemncia, grande general, e recorrem tua misericrdia para que nos poupe ao saque indiscriminado, ao negror das humilhaes a nossas mulheres e crianas, s in-vestidas ardentes a nossos lares e templos e nos indulgencie de possveis falhas com relao a tua pessoa - Indulgncia? Clemncia? Perdo? Como podes rogar perdo cidade que no me quis como general e vem me dizer como devo agir nas batalhas? Quem tu, ignbil criatura, para atreveres a ditar normas a um general visigodo? Como ousas? Pois cala a tua boca suja e no pronuncies mais uma baboseira sequer, se no quiseres ficar sem tua lngua. Eu te ordeno que vs e diga ao povo romano que espere para saber quem Alarico, o general que no quiseram para seu Exrci-to e se arrependero, ento, amargamente pelo desprezo com que fui tratado! O dilogo encerrou-se ali e Agostinho, sujeitando-se novamente aos ultrajes e desdouros da mul-tido mpia e fantica, retomou o caminho de volta, de Esprito sfrego e amargurado, agrilhoado pelo sofrimento e j antevendo o furor da ira com que Alarico se arrojaria sobre a cidade sua merc. Entretanto, suas palavras inspiradas, a sublime serenidade ao enfrentar tantas humilhaes e o exemplo de humildade refletido nas splicas veementes dirigidas ao condottiere, haviam con-seguido instalar no Esprito do guerreiro uma rstia de misericrdia. Nos dias que antecederam invaso, o olhar e as palavras do sacerdote no saam da mente do guerreiro e ecoavam-lhe no Esprito de maneira perturbadora. A primeira reao foi a de desligar-se do ocorrido e comandar os preparativos, no entanto, mal compreendia ele que o Sacerdote da Caridade, em suas fervoro-sas preces, prendia-o sua faixa mental e o episdio entre os dois permanecia lmpido e recente.

  • Tateando entre as barracas, pensativo e visivelmente transtornado, debate-se para libertar-se do fantasma da influncia que o episdio provocara. As marcas impressas no Esprito de Alarico no foram suficientes para impedir o vandalismo do saque cidade, porm, frutificaram em for-ma de comedimento e respeito aos Templos Cristos que no foram sequer tocados pelos visigo-do. O povo romano, no entendo o que se passava diante da moderao do exrcito inimigo, logo que percebeu a situao, foi buscar proteo naqueles Templos que nesses instantes eram procu-rados at mesmo pelos pagos. A extraordinria reviravolta dos acontecimentos, muito embora no tenha evitado a quase devas-tao da cidade, era o trofu haurido por Agostinho, o soldado de Cristo que ousou, com sua in-trepidez, desafiar a fora fsica do exrcito de vndalos e fez-se sobrepujar mediante as qualida-des morais de Esprito. Mas Alarico no permaneceu muito tempo em Roma. Fascinado pelo poder, pretendia dar golpe de misericrdia no Imprio. Dirigiu-se para o sul, chegando Calbria, intentando invadir a frica. Sua frota, no entanto, foi dispersada por tempestade e Alarico morreu pouco depois, em Cosenza. Seus soldados, para evitar a profanao de seu tmulo, enterraram-no no leito do Rio Basento, matando posteriormente os escravos usados para desviar o rio a fim de no revelassem o local do sepulcro do guerreiro.

    * * * *

    Alarico, pouco tempo aps seu desencarne, desperta os sentimentos na Verdadeira Vida e com a viso do Alm inicia a reeducadora trajetria de padecimentos, consequncia da cegueira espiri-tual de um Esprito primitivo que perpetrara tantas ignomnias em sua ambio doentia. Pesadas angstias, vises terrificantes das vtimas a cobrarem-lhe aes em vida formavam o quadro do-loroso de sua estada na zona compacta de trevas. Tornou-se necessrio descerrarem-se os vus do conhecimento espiritual para que fosse chamado realidade da Vida Imortal. Inevitvel foi seu mergulho nos infortnio morais impostos pela colheita da misria, pranto e luto, que se-meara em vida...

    Depois... infernos, atormentadores, Braseiros vivos, maldies acesas, Ligado angustia de milhes de presas, Apunhalado o peito por mil dores...

    Indescritveis sofrimentos marcaram a passagem do guerreiro pela penumbra das regies umbra-linas. O passado, pesado e sombrio, arrancava lgrimas do rprobo que suplicava nova oportuni-dade na esfera carnal. Transgredira incontveis leis da vida e agora se colocava como ru da prpria conscincia. Neste tribunal no h possibilidade de erro. Cada qual armazena nos arqui-vos da memria os atos praticados na carne e a resultante vir em forma de recompensas ou so-frimentos que ter de suportar. Ningum se vincula situao por acaso, e esse acaso tambm no existir quando o mrito dos atos praticados tiver que ser apreciado. Os Estatutos Divinos nos previnem de que a semeadura livre, mas a colheita obrigatria e com Alarico no poderia ser outro o panorama. Buscava ele agora, no Plano Maior da Vida, a merc celestial que lhe permitisse encetar nova jornada terrena, necessria ao alumiar de seu Esprito, transviado dos verdadeiros objetivos da vida. O arrepen-dimento viera, certo, mas a gama de tendncias inferiores ainda estava muito arraigada na es-sncia do seu Esprito. Mesmo diante de semelhante quadro, as leis sublimes do Eterno Legisla-dor no negam novas chances de reparao a seus filhos. E Alarico inicia a operao de retorno s lides fsicas, a qual deveria se subordinar s necessidades de burilamento de seu Esprito; por pedido seu e com a concordncia das Esferas Espirituais, -lhe permitido volver gleba terrestre no seio de seu prprio povo. Protegido por um dispositivo da Grande Lei, em retomando o envoltrio carnal, vai o Esprito reencarnante perdendo lentamente a faculdade de recordar seu passado, providncia esta que se constitui em mais uma ddiva do Criador, apiedado dos sofrimentos que se abateriam sobre as criaturas conhecedoras de seus tenebroso passados.

  • Reencarna, assim, na roupagem de Alarico II. Investido nos mesmos poderes de sua encarnao pretrita, no consegue, ainda desta vez, refrear as inclinaes ambiciosas de seu carter primiti-vo, fazendo por sucumbir as promessas de redeno consignadas no Plano Espiritual. As guerras e as conquistas territoriais continuavam sendo seu mvel principal. Muito embora no conservasse mais, em grau to marcante, os traos de crueldade com que na existncia ante-rior grafara pginas negras na Histria Universal, ainda assim continuava governando pelo poder da fora e do terror. Oitavo rei dos visigodos, sucedeu a seu pai, Eurico, em 484, seus domnios abrangiam a Espanha (exceto a Galiza), a Aquitnia, o Lanquador e a Provena Ocidental. Embora cristo ariano, como o pai, atenuou as perseguies aos catlicos, sendo mais compla-cente com estes do que fora aquele. de sua autoria o cdigo LEX ROMANA VISIGOTHO-RUM, tambm conhecido como BREVIARUM ALARICIANUM, oficializando no ano de 506. Alarico II tentou manter o pacto que seu pai firmara com os francos, mas Clvis, rei destes lti-mos, transformou o cristianismo dos visigodos em pretexto para guerra. Na batalha de Vouill, travada em 507, perto de Poitiers, perde a vida Alarico II pelas mos de Clvis e Aquitnia in-corporada aos domnios francos. A prxima encarnao, que se conhece desse Esprito, passou-se na Frana do sculo XVI, quando esteve na roupagem carnal de Armand Jean du Plessis Richelieu, mais conhecido como Cardeal Richelieu. Volveu a este plano a 9 de setembro de 1585, sendo seus pais Francisco Du Peles e Susana De La Porte. Um dos mais notveis estadistas franceses do regime monrquico, foi odiado e temido por todas as camadas da sociedade. Defendeu o absolutismo real e contribuiu para grandeza da monarquia. Representou o clero como bispo de Luon em reunio dos Estados Gerais, em 1614, Auxiliar de Luiz XIII desde 1620, feito Cardeal em 1622, e dois anos aps, elevado ao cargo de primeiro-ministro. Por 18 anos foi no s o homem mais poderoso da Fran-a, incluindo-se o rei, como tambm o rbitro da poltica europeia. Intransigente defensor do Es-tado, Richelieu tinha como princpio: O homem imortal, sua salvao est no outro mundo; o Estado no, sua salvao agora ou nunca. Sob este princpio esmagou as resistncias na rea de administrao pblica e proporcionou, ao povo francs, ignominiosos espetculos de sangue com a decapitao de inmeros oponente de seu governo. Sobre esta passagem na terra transcrevemos pequeno trecho da obra Sublime Expiao psico-grafada pelo mdium Divaldo Pereira Franco e ditado pelo Esprito de Vitor Hugo em que se-gundo o prprio relato por via medinica, informa: - Esclarece-me que vocs estiveram juntos nos tumultuosos dias de Frana agitada dos sculos XVI e XVII, quando ministro de Luiz XIII e um dos responsveis diretos pela guerra dos trinta anos, (no seu quarto perodo, o francs), ele, na indumentria de Richelieu, oferecendo apoio se-creto aos inimigos de Casa de ustria, resolveu definir-se, por fim, publicamente contra, o que facultou as vitrias francesas de Friburgo e de Norlinga, obrigando, em consequncia, a ustria a assinar o humilhante Tratado de Paz de Vesflia... Arruinados pelo dio entre protestantes e catlicos que deram incio calamitosa hecatombe, a partir de 1618, os pases beligerantes ficaram em dolorosa misria, especialmente a Alemanha, que muito sofreu... Naqueles dias continuou esclarecendo a figura do nefando sacerdote estimulava as ambies do Cardeal, que colocara Deus na condio de francs, num zelo abominvel e terrvel, em que o fanatismo usava as mais terrveis armas para sobreviver, em detrimento de todos os ideais huma-nos. A Frana, em razo disso, pagaria, no suceder dos tempos, pesado tributo de dor. Este sa-cerdote, que vivera na sombra, caracterizado pelo fervor religioso, na sua fidelidade a Richelieu, conseguira que este adquirisse o chapu escarlate e o manto de prpura... Doente, com o corpo tomado por tumores de diagnstico desconhecido, o brao direito paralisa-do, a sade de Richelieu, que nunca fora boa, debilita-se a tal ponto que mal consegue levantar-se do leito do Palcio Real. Aos quatro de dezembro de 1642, data de sua morte, suas ultimas pa-lavras foram: Meus nicos inimigos foram os inimigos da Frana. E prossegue este Esprito em sua marcha evolutiva rumo ao Reino do Pai. A venerao excessiva Ptria obscureceu-lhe a viso e empanou uma carreira que se delineava das mais promissoras.

  • Certamente, este devotamento conceder-lhe-ia mritos perante a Justia Divina, no entanto, no soube ele penetrar no real valor do amor ao Criador. Disse Jesus que o maior no reino de Deus seria aquele que se convertesse no servidor de todos. Este Esprito, embora em ascenso, tomara por princpio servir Ptria e em nome da Ptria pra-ticara crimes hediondos. Amenizara em si as inclinaes ambiciosas da dominao do poder pe-la fora, mas ainda carregava dvidas das insnias cometidas em outras vidas. Agora, novamente no Plano Espiritual, remexia em suas reminiscncias as consequncias de ou-tro naufrgio sofrido. Chafurdara-se no lodo da ambio e deixara-se envolver no redemoinho das paixes humanas, desviando-se dos deveres sagrado do sacerdcio cristo que abraara por dever e usurpara dos poderes de lder em que se vira investido. Um turbilho de remorsos atordoavam-no e de memria emaranhada nos espinheiros do pretri-to, rogava alvio s feridas dolorosas incrustadas no corao. A soluo, bem o sabia ele, estava na retomada de novo corpo, porquanto somente o palmilhar de outras existncias terrestre lhe permitiria reencetar o aprendizado das Leis Divinas. Seria preciso curar velhas enfermidades do Esprito, vencer apetites mundanos e domar interesses mesquinhos. Ademais, pesava sobre si a carga dolorosa das carnificinas, dos saques, das traies, dos flagrantes desrespeitos vida hu-mana que marcaram sua passagem pelas hostes brbaras e que urgiam ser resgatados. Considerando o quadro das necessidades espirituais desse Esprito, duas reencarnaes compul-srias foram-lhe impostas para expurgar os delitos inscritos no Livro da Vida. Por duas vezes re-tornou ele, pela misericrdia do Senhor, com o corpo envolto pelas chagas purulentas da hanse-nase. O abenoado resgate de seu passado trevoso constitua-se num sublime mecanismo da Lei da Reencarnao, ainda to incompreendida pela humanidade. na dor e no sofrimento que encon-tramos o cadinho onde se purificam os sentimentos humanos, mas que os humanos ainda esto longe de compreender o processo. Por isso, recebeu o guerreiro de outrora a lepra, a temvel e execrvel lepra, por santo remdio ao seu Esprito rebelde, fornecendo-lhe, a um mesmo tempo, sofrimentos cruciantes ao corpo em decomposio e amadurecimento espiritual ao seu Esprito transviado. O desprezo, o escrnio, o abandono e a repulso da sociedade faz com que as dores das feridas lepromatosas sejam relegadas a segundo plano, face ao impacto da humilhao que os portadores deste mal sofrem. Infelizmente, o ser humano, trnsfuga das Leis do Supremo Legislador, ainda carece dos suplcios fsicos para aprender a administrar o livre-arbtrio que lhe concedido, e a educar sua inclinaes na direo das realidades nobilitantes. Por isso, mil e duzentos anos de-pois, esse Esprito ainda prestava contas dos horrendos crimes praticados nas jornadas de terror que comandara como guerreiro brbaro. Os efeitos das torturas que impunha s suas indefesas presas, os incndios desnecessrios s cidades subjugadas, os saques, a viuvez, a orfandade que promovera em suas dominaes sanguinolentas refletiam-se agora no manto de feridas que abrigava seu Esprito enfermio. Ningum pode ver o reino de Deus se no nascer de novo, disse Jesus, e cumpria-se, assim, na trajetria deste Esprito mais duas etapas necessrias a seu burila-mento. Compreendera ele, agora, em seu retorno ao Plano Maior da Vida, que toda a posse material efmera, e que Jesus no se equivocara quando nos exortou a cultivar os valores do Esprito, va-lores estes que os ladres no roubam e as traas no corroem. Mas tambm a respeitar o corpo, patrimnio divino que nos emprestado, conscientes de que dele devemos prestar contas ao To-do Poderoso por seu usufruto. Aprendera que a passagem pela Terra qual minuto na eternidade do tempo e que, de nossos atos neste minuto na eternidade do tempo e que, de nossos atos neste minuto pode depender a felicidade ou a infelicidade porvindouras. Recebera ele, nos esconsos de seu corao, as lies sublimes do Mestre dos Mestres, e com elas adocicava seu carter e redimia-se do tenebroso passado que fazia leproso seu Esprito... Em aparente calmaria, prosseguia a estada do guerreiro visigodo no Plano Espiritual e, embora revestido de funes edificantes que sua evoluo permitira abraar na rotina do trabalho, sua mente acalentava projetos de retorno ao Plano Fsico. Os Assistentes Espirituais na Colnia que o abrigava j lhe haviam notado as preocupaes, mas segundo o programa de servio traado, seu estgio naquela Colnia ainda deveria prolongar-se por mais tempo.

  • Em contato com as realidades da Verdadeira Vida, todos se revestem dos mais puros propsitos regenerativos, mas muitas vezes uma precipitao pode provocar uma derrocada e por isso Ala-rico aguardava submisso uma deciso superior. Decorrido certo tempo, em que se dividia entre servios de atendimento e cursos de evangeliza-o, o Esprito comunicado de que o Benfeitor, responsvel pela Colnia, apresentava-se em v-lo. O recinto em que foi recebido era confortvel e exalava doces vibraes de suas paredes imanta-das pela prece. O Benfeitor Espiritual de expresso dlcida e amorosa, aproximou-se de Alarico e envolveu-o em afetuosas vibraes de carinho. O semblante do guerreiro, carregado pela apre-enso, em instantes desmanchou-se em recproca doao de amor fraterno. - Prezado irmo iniciou o mentor conta-se que, ao ser criado o mundo e seus habitantes, pou-co satisfeita com suas condies de inferioridade, uma avezinha pediu uma audincia ao Ser Su-premo e lhe falou de suas desditas: - Venervel Senhor, sou do mundo dos menores seres que criastes, por isso me constituo em presa fcil aos outros habitantes da floresta; -me custoso con-seguir alimentao, porque as melhores plantas e ervas, os animais mais lpidos me subtraem; muitas vezes distrada, mal consigo fugir s patas assassinas dos lees ou dos cavalos; enfim, Senhor, no consigo receber o benefcio dos raios solares porque a vegetao me cobre, e quando da poca de chuvas, a enxurrada deixa merc meu corpo frgil... e assim sendo, Amorvel Se-nhor, pedi-lhe essa entrevista para dizer-lhe das minhas mazelas e contar como pesada a mi-nha cruz... logo eu, que sou um dos menores seres que criastes e j carrego to pesada cruz sobre os ombros... rogo-te, Senhor, d-me a soluo para to duras provas! E o Senhor da Vida, com seu olhar compassivo e terno, compreendendo as preocupaes da ave splice e humilde, lhe diz: - Um pai que ama e quer bem a seus filhos procura favorec-los com os melhores cenrios e roupagens necessrios para sua apresentao no Teatro da Vida; este Pai desvelado nunca colo-caria em ombros frgeis cruz impossvel de ser suportada, portanto assuma o envoltrio corporal que recebeste por ddiva celeste e em retornando ao prado de onde vieste, procura levar tua cruz com galhardia, harmonizando-a ao teu corpo frgil e gracioso, e concluirs que da maneira com que adaptares esta cruz a ti mesma, depender a tua felicidade ou infelicidade! - A pequena ave, muito embora tivesse sado mais aliviada, no compreendeu a profundidade da lio, mas voltou para seu stio e l continuou sua vidinha apreensiva, marcada pelos perigos costumeiros. Por medida de precauo, procurava sempre ela pequenas elevaes para proteger-se de possveis enxurradas... mas, nesta ocasio, as chuvas foram to fortes que mesmo naquele refgio, at ento seguro, via-se ameaada... Desesperada ante o iminente perigo, e tendo esgota-do todas as suas foras, arrastando-se pelo cho... eis que, instintivamente, ergue suas asas esta-banadamente e percebe que estava se elevando do cho! Protegida j nos ramos de um arbusto, passa a refletir nas palavras do Senhor da Vida e percebe que suas asas formavam a prpria cruz de que tanto se lamentava, e que bastou aprender a conviver com ela para que se tornasse um dos habitantes mais livres, alegres e belos que a floresta jamais tivera! Permanecia, o Esprito de Alarico, embevecido ante as lies recebidas e a ternura com que o Amvel Benfeitor transmitia atravs da conversao. Indizvel bem estar interior percorria-lhe o Esprito, prenunciando abenoado desfecho para a entrevista. - A dor, - prosseguiu a Entidade que nem sempre sabemos carregar, pode tanto transformar-se no suplcio daquela ave rastejante, como na cruz abenoada que a promoveu a um dos mais belos exemplares da floresta! Infelizmente, o humano ainda no est preparado para entender a neces-sidade do sofrimento, nosso abenoado companheiro. Os cientistas, os mdicos, os curandeiros esmeram-se em aperfeioar os lenitivos para as dores humanas, utilizando-se desde as mais so-fisticadas tcnicas da ciberntica at a simplicidade das ervas, no entanto, o mais alto grau que atentarem conseguir com suas tcnicas, ser apenas um paliativo, porque combatero apenas os efeitos. As causas no sero atingidas. As verdadeiras causas, que esto alojadas no Esprito, poucos as compreendem e combatem. A Terra, a cujos limites estamos vinculados, bem o sabeis, um campo de provas e expiaes. Resgatar um passado culposo significa aproximar-se de Deus e, medida que dimana dentro de ns esse desejo, vemo-nos irresistivelmente presos s razes de nossas angstias que dificultam nossa marcha ascensional. Urge, ento, renovar valores, cicatri-

  • zar feridas, promover reconciliaes e, acima de tudo, grafar indelevelmente no mais profundo de nossos coraes a lio do amai-vos uns aos outros. Sob a luz desta verdade, aprenderemos a viver mais cooperativisticamente, substituindo dios, competies aviltantes, traies mortferas por confiana mtua, amor desinteressado e realizaes nobilitantes. A Entidade, que era da Colnia o Esprito de maior elevao, demonstrava ao longo de sua ex-planao as venturas que haure um Esprito renovado no monumento indestrutvel das virtudes. E deu sequencia, projetando na tela mental de Alarico suas encarnaes no seio do povo brbaro, referindo-se s vidas de rprobo, odiado e temido que escolhera para si, ocasionando cadeias de dio vinculadas a torrentes de pranto. Falou em Deus, rememorando a encarnao como estadista francs; para mim existem dois deuses: Deus e a Frana! O Esprito, acrisolado pelo sofrimento da rememorao de angustiantes fatos, a tudo escutava de emoo contida. Estampado estava em seu semblante o fantasma dos quadros repulsivos que lhe eram trazidos tona. O fogo do remorso, camuflado que estava pelos trabalhos dignificantes na seara do amor, apenas ligeiramente se lhe registravam no mago do Esprito, porque, desde h muito era consciente de que seria imperioso o chamado ao complemento de resgate do torvelinho de aes insidiosas e desatinos que mil e quinhentos anos de mltiplas encarnaes no haviam sido suficientes para reparar! Prosseguiu o Digno Mentor dissertando sobre as chances recebidas por este Esprito, atravs das experincias dolorosas, assim como a renovao, sorvida graas ddiva das sucessivas vezes que vestira os trapos carnais. - Em vista dos crditos morais conquistados e da disciplina ao trabalho redentor que realizas nes-ta Casa de Assistncia, quero informar-te de que est sendo preparado teu retorno ao plano fsi-co. Ademais, a constncia da orao com que tens orvalhado teu Esprito varou distncias inco-mensurveis e encontrou eco em um corao amigo que h sculos te grato; e mesmo das para-gens celestes em que habita, dirige-te carinhosas vibraes de amor. o Esprito de Agostinho, que certa ocasio magnetizou-te com o olhar, no episdio distante da queda de Roma, e que gra-as tua complacncia, que surpreendeu a todos, diga-se de passagem, pde ver o saque cidade abrandado e os Templos Cristos respeitados. a Lei do Amor e da Gratido que vence o tempo e eterniza sentimentos puros e sinceros, retirados da acstica do Esprito dos justos. Muito embo-ra a barreira do Tempo, este abnegado cirineu que amou a Humanidade em toda plenitude e en-tendimento, utilizou-se de tuas preces sinceras para construir uma ponte socorrista e com seu brao fraternal obter a ansiada oportunidade de reencarnao, que teu corao suplicava. A Lei de Deus reserva aos que admitem o erro e rogam oportunidade de compens-lo, um luzeiro tra-duzido na beno da tomada de novo corpo. O Pai sempre assiste queles que se detm nas transgresses Lei, e vibra no limiar da nova era dos Espritos arrependidos. Este ento sente, dentro de si, a doce presena do Hspede sempre bem-vindo, que porta consigo a paz que estive-ra adormentada e eclipsada pelo caudal de lgrimas que o leva desesperao. Agostinho, desde h muito, sem que o soubesses, tem sido o anjo tutelar que te sustm quando a dor te atinge nas dobras do caminho. Alarico, surpreso, tinha os olhos abundantes de lgrimas ao tomar conhecimento da desvelada dedicao que este Esprito, da mais alta expresso hierrquica, lhe devota. E em profunda medi-tao, aos olhos do Esprito abrem-se-lhe as portas do arquivo mental permitindo a ele reviver a passagem de sua peleja em minudncias, com o ento bispo de Hipona. Respeitoso silncio se fazia no ambiente, mas o Venerando Orientador logo o interrompeu: - Desde j, portanto, s tuas tarefas normais de socorro nesta Colnia, ser acrescida tua prepara-o ao prximo renascimento na Crosta Terrestre. Ests, segundo sindicncia j realizada, pronto para retificar os caminhos percorridos e reencetar a luta pelo ressarcimento de teus dbitos do pretrito. No entanto, devemos prevenir-te das provas por que passars. Faz-se mister, em teu ca-so, cercear as tendncias imanentes de teu Esprito e, para tal, te ser imposta nova vestimenta de lepra e chagas, pela qual procurars dominar tuas caractersticas rebeldes: pois que, sem esta mi-sericordiosa providncia, mais uma vez, te lanarias s aventuras das dominaes desenfreadas. O mapa que te foi traado indica que milhares de vtimas que fizeste em teu desvario guerreiro, as mutilaes dolorosas que perpetraste contra teus inimigos, a sanha injustificada das conquistas efmeras, as infraes ao direito alheio, as traies, as arbitrariedades, os assassnios em nome

  • de ideais esprios, tudo isto, dever ser reparado por entre torrentes de lgrimas no catre da lepra redentora! Por ora, os recursos do esquecimento iro apagando de teu arquivo mental as lem-branas das existncias passadas, porm estas, como sabes, estaro sempre incrustadas em teu organismo perispiritual. O cavalgador que dirigia o carro da guerra, dizimando famlias, dilace-rando coraes aps suas pegadas sanguinolentas; o oprbrio que, fascinado pelo poder, trans-formava aldeias em fogarus, em nome de suas idiossincrasias, de seu dio, de suas paixes e que no deixava em sua passagem seno runas fumegantes, pastos crestados, marcando-lhe a jornada de degradao histrica, viver, nesta nova vida, sob o guante das consequncias e rea-es de seus atos. Quando no trilhamos a estrada que nos leva ao Pai pelo amor o caminho mais curto sobrevem-nos, ento, a dor. Tua evoluo atual j te permite valorizar os tesouros dos laos familiares, por isso passars, inicialmente, pelas provas da orfandade e da viuvez para que se vejam reabilitados teus antecedentes cruis nesta rea. Apesar da doura com que eram proferidas as palavras, estas repercutiam de forma excruciante em suas lembranas. Embora a necessidade das rememoraes, o pranto rolava-lhe do recndito do ser. O Mentor notou-lhe a emoo, mas considerava-a positiva, pois provinha do arrependi-mento sincero de um corao amargurado. - A teu mando prosseguiu milhes de aoites erguiam-se, abrindo feridas, mutilando mem-bros, promovendo aleijes, desconjuntando corpos. Aniquilastes a alegria de viver de dezenas de cidades, levando a apreenso e terror simples aproximao de tropas. Para o resgate de tais violaes recebers as Artes por ferramentas, que te permitiro compensar o terror de outrora pe-la alegria do divertimento sadio que proporcionars aos povos das cidades em que habitars. Po-rm, no as recebers de forma facilitada, no, porque no havero facilidades para ti. A Espiri-tualidade estar assistindo teu reeducar e colocar em teu caminho as oportunidades, mas compe-tir a ti aproveit-las ou no. A tenacidade e dedicao ao trabalho que tens demonstrado, certa-mente, te levaro do bero pobre, em que reencarnars, a uma posio estvel e formao de um lar, pois, por impositivos da Lei de Ao e Reao, reencontrar-se-o tu e antiga companhei-ra com as mesmas necessidades reencarnatrias. O Lar feliz e a vida prspera iro durar pouco tempo, o necessrio para receberes nos braos Espritos que trilharam muitos passos contigo e necessitam de orientao certa e segura que no lhes proporcionastes em outras vidas. Curto o compromisso do Esprito que ser tua companheira, por isso, cedo, enviuvars, fican-do-te, guarda, os filhos pequenos. E, em vista dos dbitos a resgatar, no daro trguas as ad-versidades. Em teu tecido espiritual estaro inoculados os bacilos da Hansenase, que deflagraro quando estiveres no verdor de tua juventude e beleza. A doena ser, ento, tua abenoada com-panheira at o fim de teus dias. De jovem belo e requisitado da sociedade, ver-te-s como um ser desprezado e humilhado por todos. Enquanto o mal estiver corroendo teu corpo lentamente, teu Esprito estar sendo educado nas lies da humildade e da resignao. A vaidade e o orgulho, traos marcantes de tua personali-dade, estaro sendo substitudos pela submisso e simplicidade. Ser leproso (Na poca, ainda no havia a teraputica da sulfona que significa cura total ou estagnao da doena e por isso os do-entes ainda sofriam a discriminao e a segregao da sociedade. Hoje, sabe-se que uma doen-a benigna e de improvvel contgio.) significa ser abjeto e desprezvel. A humanidade progre-diu tecnologicamente, mas ainda, desde os tempos bblicos, procede da mesma maneira: expulsa e despreza os doentes da pele, cultivando o fantasma do contgio e ignorando que nem sempre so doenas contagiosas e nem sempre sintomas se referem mesma doena. Sofrers amargo-sos padecimentos, os amigos te faltaro e a lei te dir: no poders voltar! No poders ter filhos! No poders viver em sociedade! Sers confinado aos limites estreitos de um Hospital para que possas aprender a controlar teu Esprito sequioso de conquistas territoriais. Aprenders, l, a va-lorizar o corpo que te emprestado pelo Sublime Legislador, a respeitar o direito do prximo e, vendo-se separado do convvio da famlia, valorizars tambm a instituio familiar por sagrada ddiva divina. Entre os companheiros, estaro teus velhos comandados, que tambm mereceram a oportunidade de regressar experincia construtiva na Terra, recapitulando as lies no aprendidas. Reconhecero logo, em ti,seu antigo lder, e dessa situao devers tirar proveito, pa-ra recambi-los ao Aprisco do Senhor. Injrias, sarcasmos, humilhaes, traies, alm dos su-plcios fsicos, completaro o quadro expiatrio que te espera no Orbe Terrestre. No demorar

  • muito para que a Humanidade descubra o processo de cura da doena, mas no poders ser bene-ficiado por ela, porque necessitas apagar ndoas do passado trevoso que carregas. O visigodo escutava o Mentor, humilde e silenciosamente, mas a dado instante ocorre-lhe per-guntar em que nao deveria ele retornar Vida Terrestre. O Mentor, observando-lhe a indaga-o mental, responde-lhe amorosamente: - Recebers por bero, no mundo, um lugarejo na Ptria do Cruzeiro, terra onde est transplanta-da a rvore do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Na Ptria do Evangelho, predestinada a abrigar Espritos de escol, na sagrada misso de reviver o cristianismo do Cristo atravs da Ter-ceira Revelao, encontrars o palco de tua nova vida. Pequena manifestao de alegria quebrou a seriedade com que Alarico ouvia a explanao, mas o Abnegado Servidor, atento aos seus pensamentos, aduziu: - Sei que exultas, porque j te imaginas prximo da Doutrina Consoladora dos Espritos, que te poderia oferecer o sustentculo precioso s duras provas que te aguardam. Porm, lembra-te de que, no meio em que vivers e com a revolta que se alojar em teu corao de se prever que te afastes de Nosso Maior Amigo. E sem a presena de Deus no corao, ser difcil despertar para as realidades da Vida Maior. A Misericrdia Divina permitiu, como j rememoramos, reencon-trar-te um dia na Frana. Onde havias dizimado os antigos gauleses. Nestes mesmos stios pode-rias reorganizar a vida poltica de um Imprio que desmoronava em seus alicerces essenciais, mas, na condio de Cardeal de Richelieu, Primeiro Ministro, atendendo s exigncias escravo-cratas da Rainha, deflagraste o ltimo perodo da guerra franco-austraca, produzindo 10.000 v-timas a cada 24 horas. Renegavas, naqueles instantes, a doutrina crist que abraaras por sacer-dcio, violando a Lei da Fraternidade Universal e acreditando em dois deuses: Deus e a Frana. de se prever, portanto, que teus caminhos sejam percorridos sem a presena Daquele que ex-pulsaste do corao. Ademais, lembra-te que ters, adormecido em teu imo, as lies aqui apren-didas. No princpio, ters inmeras ocupaes que te desviaro do caminho do Senhor. Em se-guida, estars assoberbado por tantas provas, que teu Esprito orgulhoso e vaidoso empanar tua viso espiritual e te impedir da Ver a claridade da Verdadeira Vida. Se a tudo, por mim des-crito, suportares, sem grandes deslizes, sem revoltas de monta, sem te desencaminhares e nem a outros, como em pocas distantes, a ento... o tempo de vida que lhe foi determinado, segundo tuas necessidades, ser acrescido de uma sobrevida. O marco delimitador desta sobrevida dever ser a incredulidade e, caso abraces o ideal cristo, recebers muitas oportunidades de testemu-nhar em favor do Cristo. Para tanto, recebers do Plano Espiritual toda a retaguarda para arreben-tares as algemas que te prendem ao passado culposo e bendizendo os sofrimentos que te afligi-ram em vida, enxugars muitas lgrimas alheias e poders dar muito consolo aos deserdados do caminho... O Mentor fez pequena pausa em suas consideraes. Seu interlocutor no o interrompeu, pois encontrava-se meditando profundamente sobre o exposto. - Deus nos concede a vida, mas ns lhe traamos os rumos. Aplica-te com denodo preparao da reencarnao prxima e no desanimes ante lembranas que te sei amargas. No te esqueas que todo pr do sol prepara o raiar de uma nova aurora. Volvamos s razes de nossos males e veremos que elas provm do Esprito. A Humanidade presenciou o Filho do Homem curar os enfermos, levantar os paralticos, limpar os leprosos, expelir os maus Espritos, no entanto no compreendeu que o Mestre no veio curar estas doenas! Que importa as doenas do corpo? O importante so as doenas do Esprito, e foi para elas que veio Jesus, exortando-nos a amar os nossos inimigos, a perdoar sem restries, a sermos mansos e pacficos, a dominarmos nossas paixes e instintos maus... foi para transmitir-nos essas preciosas lies, para a sade do Esprito, que veio Jesus... por isso, filho meu, no prevariques, no te revoltes quando as feridas do cora-o sangrarem, no te entregues ao desnimo, e quando estiveres assoberbado pelas dores pun-gentes que te afligiro, lembra-te sempre que noite antecede o dia, e que na lio preciosa da Fsica encontramos o correspondente no campo moral: no se neutraliza em efeito seno inver-tendo-o sua causa, para que a possa encontrar sua compensao! Emoes contraditrias agitavam a mente do visigodo. Por um lado, a alegria recolhida na gran-de chance que tanto aguardara. De outro, a apreenso das provas destacadas para sua reencarna-o.

  • O bondoso Mentor interrompeu o dilogo e, abraando o irmo prestes a voltar ao Plano Fsico, transmitiu-lhe toda sua admirao, derramando-lhe cariciosos fluidos magnticos.

    A REENCARNAO DE ALARICO

    Tudo tem uma razo de ser na existncia humana. No h um nico sofrimento que no seja re-petido em sofrimento que tereis que suportar. O Cu e o Inferno, de Allan Kardec, Cap. VII

    * * * *

    Borebi, So Paulo, foi o vilarejo que recebeu por filho o Esprito reencarnante de Alarico, outro-ra poderoso Rei dos Visigodos e que por misericrdia e justia de Deus viria, em 12 de julho de 1902, retomar as vestimentas carnais em bero pobre, o que fez com que, prematuramente, Jsus Gonalves conhecesse as asperezas de uma existncia rdua e espinhosa. De sua infncia passada em Agudos, So Paulo, pouco se tem conhecimento. Era tutelado por seu tio, Antonio Arruda, juntamente com um sobrinho seu, Chiquinho, filho de sua irm Luiza Trindade, j que sua me, Josepha Mendes, falecera quando este tinha 3 anos, com tumor malig-no no intestino e seu pai, Joo Gonalves, provavelmente se dedicava ao servio do lavradio nas proximidades de Borebi. Com 14 anos, o menino e sua famlia se transfere para Borebi, onde se emprega em servios temporrios no campo, ganhando como trabalhadores braais o po de cada dia. Assim, teve Jsus Gonalves seu primeiro emprego na fazenda Boa Vista, de propriedade de ngelo Pinheiro Machado. O garoto trabalhava como cultor e beneficiador, ora de algodo ora de caf. Nesta poca, seu tio Antonio de Arruda inicia-o na arte da msica e cedo Jsus Gonalves j ensaiava os primeiros acordes num desgastado baixo de sopro, juntamente com os outros companheiros de Borebi que viriam formar, pouco tempo depois a Bandinha de Borebi, verdadeiro feito que envaidecia o pequeno vilarejo e animava suas quermesses e bailes de fins de semana. Seus com-panheiros nesta empreitada foram: Alberico Salvador Pirone, Jos Ramos Tom, Jos Bastos, Lino Vargas, Francisco Braga, Eduardo Lus, Estcio F. Machado e Francisco Frguas (Chiqui-to), seu sobrinho. Tinham como maestro, Antnio Arruda Estcio Ferreira Machado, seu companheiro de quarto na Fazenda Boa Vista, relata que j quela poca Jsus Gonalves destacava-se por seu Esprito de liderana e que nos seus traos de ado-lescente imberbe j dormitava uma personalidade marcante, diferindo dos demais colegas pela sua maneira de ser, que no permitia estagnao. Em todos os setores que atuava, a fibra, disci-plina e dedicao salientavam-se perante a sociedade de Borebi. Por isso, logo se fez conselheiro de todos e amigo procurado nas situaes difceis, j que seu Esprito calmo e ponderado sempre sabia dosar o discernimento prprio de algum bastante vivido. Colaborador constante da parquia de Borebi, no regateava esforos para que as promoes e festas locais obtivessem o maior xito possvel e, embora o respeito com que participasse de quermesses e procisses, apenas assistia s missas quando se tornava necessrio cumprir um de-ver. Isto para no faltar com o respeito ao costume de sua gente. Assim Borebi conheceu o garoto Jsus Gonalves. O tempo passa. Aos 17 anos, arroja-se a pro-curar novos rumos, que lhe permitam dar maior impulso aos seus anseios de realizao. Con-quanto sempre grato a Borebi, sentia que o vilarejo se tornava pequeno demais para a expanso de seu Esprito sequioso do saber e do progresso. Bauru, So Paulo, foi o rinco escolhido. As dificuldades encontradas so muitas, mas nada im-pede a vontade frrea do precocemente adulto, Jsus Gonalves. Seu primeiro endereo na cida-de era Rua Cussy Junior, esquina com Ezequiel Ramos. Nesta cidade, teve a oportunidade, du-rante algum tempo, de frequentar aulas no Colgio So Jos, no chegando, porm, a tirar o di-ploma de ginsio. No vilarejo de Borebi e em Agudos, onde passou a infncia, as primeiras letras foram-lhe ensinadas por seu tio Manuel Gonalves e posteriormente sua tia Luzia. Por tudo isto, pode-se dizer que Jsus foi praticamente um autodidata em letras. Aos 20 anos, aps ser investido no cargo de tesoureiro da Prefeitura de Bauru, consorcia-se em primeiras npcias com Theodomira de Oliveira, viva e com duas filhas, Neria e Lgia. Dona

  • Theodomira deu-lhe quatro filhos: Jaime, Jandira, Helena e Carlos. Seu lar, simples mas de bases slidas graas moral e ao respeito nele reinantes, logo se abalou com triste acontecimento. Sua esposa, acometida de tuberculose e desenganada, v-se obrigada a transferir-se para Itapetininga. Contudo, por volta de 1930, parte para a ptria espiritual, deixando a Jsus Gonalves a tutela de 6 crianas, das quais o menor, Carlos, contava apenas 3 anos de idade. Apesar dos dissabores e das dificuldades domsticas, Jsus Gonalves destacava-se no ambiente de trabalho e na vida social de Bauru por sua afabilidade e dominadora simpatia. Conquistava, assim, o respeito e a amizade de tantos quantos o conheciam. Os momentos difceis que se sucederam perda da es-timada companheira no o impediram de continuar levando alegria ao povo da cidade, na sua humilde posio de clarinetista da Banda da Prefeitura de Bauru, tambm conhecida quela poca como Jazz Band de Bauru. O teatro tambm foi mvel de suas iniciativas naquela cidade. Nas peas, geralmente de sua au-toria, atuava como diretor e ator. Eram apresentadas nos Teatros So Paulo e Dante Alighi-eri. Em Pederneiras, cidade vizinha, as peas eram levadas no cinema local. Faziam parte da Companhia amadora: Paulinho Rodrigues, Francisco Frguas, Media Madeira, Ernesto Perez, Maria Rosa e outros. Das peas encenadas alcanaram sucesso: Fim do Mundo. Mulheres sem Dono, O nico beijo, Coisas da poca (histria de um mdico que transformava as pessoas) e Dois Coraes (de interessante enredo, retratando a Revoluo de 1924). Esta lti-ma conta a histria de um gacho que se enamora de uma paulista ao visitar So Paulo. Com a Revoluo, obrigado a voltar ao seu Estado. A pea termina com a seguinte fala do persona-gem: Adeus, menina paulista. Largo So Paulo, expresso mais brilhante da ptria brasileira, mas acontece que eu tenho outro corao: o Rio Grande do Sul. Paralelamente a estas ativida-des, vicejava em seu grande amor ao jornalismo e, embora o seu pouco estudo, trazia consigo a bagagem literria de um autodidata esforado. Entre inspirado e arrojado, conseguiu engajar-se nas funes de articulista do Correio do Noroeste e do Correio de Bauru, rgo jornalsticos da cidade de Bauru. Alm da contribuio regular ao Correio do Noroeste, artigos em prosa e poesia eram publica-dos em outros dirios como este belo poema que se segue, ainda indito em livro:

    A NATUREZA

    No poema sincero que agora concebo, Direi sem receios, com muita firmeza, Que em tudo o que vejo, o que sinto e percebo, Contemplo a cantar, nossa Me Natureza:

    No germe da vida, que surge e palpita Nos seres viventes que acabam na morte; Que acabam morrendo na luta esquisita, Da nsia do fraco a querer ser mais forte...

    No vrus da morte, que ao nada conduz Os seres que lutam em dura refrega; Que vence na vida, o que a vida produz, Sem nunca vencer o que a vida lhe entrega.

    No homem que nasce, que vive e que morre No seio do homem que fica e que passa; Gerado no homem, no sangue que corre E acaba na morte a vida se enlaa.

    Na gua do mar, que da gua que aflui Das grossas serpentes, que em tramas de fios, Rebentam da terra, que ao mar restitui,

  • As guas serenas que correm nos rios...

    Nas lutas das ondas, traquinas, teimosas, Que afrontam as rochas e quedam partidas... E vo para a praia, arrogantes, vaidosas E beijam a areias e se entregam vencidas...

    Nas nuvens moventes, que o cu agasalha; Que temem e gritam nos choques da luta E choram...desfeitas em lquida malha E servem a terra em perene permuta...

    Nas rochas da serras, que so gigantescas Vigias do solo, na rija feitura; E vertem das veias as guas mais frescas, Que vo para o lodo, em chocante mistura...

    No lodo que mancha a pureza das guas E vive na terra, que opera tranquila E surge de novo, num grito de mgoas, No pranto das nuvens que ao lado distila.

    Nos campos extensos, bonitos, cheirosos, De um verde tapete coberto de flores, Que servem de piso aos viventes ditosos, Que ali vo torcer os seus ninhos de amores.

    Nas lindas estrelas, do espao inquilinas, Que tremem de inveja das luzes maiores, Que brilham noite, gentis, pequeninas, Dispostas no cu como luzes menores.

    No amor que reside no beijo que estala Da boca tremenda daquele que ama; Que une, enternece e que alma nos fala, Das coisa sublimes que a alma reclama.

    No dio que quebra, ferino e mordente, A graa e beleza ao conjunto seleto; Que mora e se esconde, vivendo latente, No cofre que serve de cofre ao afeto.

    Nos astros que olham grande distncia Num jogo de luzes, as mais reluzentes, O giro infindvel e sem relutncia, Dos velhos planetas, que giram dementes

    No sopro da brisa, suave e macia, Que filha do vento que ruge em aoites... Na noite que zomba da morte do dia E o dia que ri da fugida das noites...

    No ouro metal, feito em rei dos metais, Que o bero da inveja, discrdia e trapaa

  • Na moeda que mostra, nas faces iguais, De um lado a ventura e do outro desgraa...

    Na seiva que marca a velhice das Eras, Passando nas horas pequenas, velozes; Que grita soberba, no grito das feras E canta na aves, num misto de vozes...

    No fogo latente, que a terra propaga, Que o homem transforma, com grande artifcio Em chamas que o ar estimula e apaga E prestam ao homem real benefcio.

    No sol feito rei, que no tendo dilema, rei soberano, impoluto, solene. Mantendo o equilbrio de todo o sistema Num elo de fogo que dura perene!...

    Na fora invisvel, Sublime, Portenta, Que haja criado, com mo poderosa, A essncia-mistrio que tudo alimenta E algo nos fala de Pr-Nebulosa!...

    Passado algum tempo do falecimento de D. Theodomira, vemos Jsus Gonalves lutar incansa-velmente para cumprir sua misso: proporcionar o sustento e a educao necessria s crianas. Conquanto ainda ignorasse os tristes acontecimentos que transformariam sua vida, surge-lhe, como apoio, uma sua vizinha, Anita Vilela, que penetrando em seu Esprito amargurado se des-dobra em fazer o papel de dona de casa que lhe faltava. Com isto, terminou por envolver seu co-rao, resultando da uma unio que durou 12 anos at o desencarne desta, tempo em que no faltaram testemunhos de renncia e abnegao de ambas as partes. A vida terrena, porm, purificao. Jsus Gonalves atingido por grande provao. Ele nota que se lhe formam pequenas manchas no brao direito e tubrculos nas orelhas. A princpio no lhe causavam maior apreenso, mas com aumento destes, decide procurar um mdico que lhe d o seco diagnstico: Devo imediatamente comunicar ao servio Sanitrio Estadual que o senhor portador do mal de Hansen. Para tanto, solicito sua compreenso e colaborao, no sentido de no fugir s responsabilidades de to grave e contagiosa molstia. Tenho certeza de que no ig-nora a gravidade de seu mal, e as consequncias que este acarreta para a vida de seus portadores. Por isso, solicito sua cooperao no sentido de no insurgir-se quanto s sanes e restries a que estar sujeito, a partir deste momento. Ele no conseguia entender, mas a programtica reencarnatria cobrava-lhe pesado mas justo tributo. Procurando dominar a agudeza das dores experimentadas, deu largas reflexo e fez um avinagrado retrospecto da morfeia: palavra multimilenar, sinnimo de mutilao, ulcerao, asco maldio ... Ele agora era um imundo! Seria muito difcil enfrentar a nova situao. Via-se, somente, a ferir-se com o desprezo dos amigos e o escrnio da sociedade! No conseguia ele alcanar o sentido de justia que no se perde e que aguardara quinze sculos para chamar-lhe ao acerto de contas. Seus turbilhonados e acres pensamentos relanceavam uma incurso ao fadrio que constitua a vida do leproso. Desde tempos imemoriais, estes tristes lacerados, com suas chagas pestilenciais e retratos de horror, se arrastavam ao peso de sua cruz pela via dolorosa do sofrimento. E agora, ele tornara-se um de-les!

    JSUS GONALVES -- O LEPROSO

  • O homem tem que reparar, no plano fsico, o mal que fez no mesmo plano. Torna a descer no cadinho da vida, no prprio meio onde se tornou culpado, para junto daqueles que enganou, despojou, espoliou, sofrer as consequncias do modo por que anteriormente procedeu. O Problema do Ser, Destino e Dor! Leon Denis ed. Feb.

    Jsus Gonalves sempre respeitava a Ordem e a Lei. No seria agora, com mais esta adversida-de, que modificaria sua maneira de ser, desrespeitando as normas da Sade Pblica que obrigava os portadores do mal de Hansen a um afastamento quase total da sociedade. Revoltado a princ-pio sim; nunca, porm, Jsus tivera a inteno de burlar ou ferir a legislao mdica em vigor, pois, acima de tudo fora um respeitador incondicional das leis. Assim, com o Esprito mais dila-cerado do que o prprio corpo, v-se Jsus Gonalves diante de outra terrvel prova: que fim le-variam seus pequenos rebentos e sua companheira? Como receberiam eles to trgica notcia? Aquele Deus, em que no acreditava, impusera-lhe mais uma rude prova e Jsus Gonalves, re-voltado mas submisso, desesperado mas sob controle, sente-se no verdor de seus 27 anos um homem marcado tragicamente pela vida. Neste estado, com as feridas da alma entreabertas, de-mora algum tempo para se recompor e tomar as decises necessrias. Lgia e Neria, filhas de sua primeira esposa, so entregues tutela de uma parenta em Itapeti-ninga; Jandira confiada tia Luiza Trindade Espanhes, em Bauru. Ele, aposentando-se do funcionalismo pblico recolhe-se, com o restante da famlia, a uma moradia cedida pela Cmara Municipal, na Rua Campos Salles, em Vila Falco. Seus filhos, ainda pequenos para entenderem to repentina mudana, estranham a presena do pai o dia todo em casa; ele, que sempre fora to ativo e ocupado em seus afazeres profissionais. O Correio da Noroeste continua recebendo seus artigos, mas o inquieto redator, acorrentado em seus anseios e sequioso de trabalho, no se conforma diante da inatividade forada. Um amigo e compadre seu, Joo Martins Coub, entendendo-lhe a angstia, cede-lhe o usufruto de um stio, nas proximidades de Bauru. Para ali, Jsus se transfere com seus familiares. Seu Es-prito inquieto atira-se com a mesma fibra de sempre ao trabalho do lavradio, principalmente ao cultivo de melancia e outras frutas, tentando com este afogar as lgrimas de mgoa que a doena lhe impunha. Contudo, para uma vida predestinada ao sofrimento, frustrao, j se poderia prever que aque-les momentos de trgua seriam passageiros. De fato, em 16 de agosto de 1933, uma perua do Servio Sanitrio rouba-o implacavelmente do convvio da famlia e procede a seu internamento no Asilo-Colnia Aymors, recm-inaugurado em Bauru. Jsus Gonalves j esperava por este momento. Deste modo, aceita resignado a nova situao, para surpresa dos funcionrios da Sade Pblica que, normalmente, enfrentavam grande resis-tncia e revolta dos doentes. As exulceraes lepromatosas j se faziam mais visveis. Em breve, previa, deveria estar reduzi-do a um monte de carne disforme se no enlouquecesse at l... Onde estava o Deus de que tanto falavam? O que fizera de to cruel, para que Ele o atingisse com o guante de to amargosa desgraa? Den-tre tantos flagelos, misrias e castigos que existiam no mundo, porque logo a doena de Lzaro para ele? E assim, entre dvidas e imprecaes ntimas, rasgavam-lhe o peito relmpagos de revolta a pre-nunciarem a chegada prxima da borrasca nos meandros de seu destino.

    NO LEPROSRIO DE AYMORS

    O doente de Hansen no precisa de piedade. No precisa de compaixo. Precisa e precisa muito de solidariedade e compreenso. Malba Tahan.

    Data de 26 de agosto de 1933 o pronturio de entrada n 3351, do cidado Jsus Gonalves no Asilo-Colnia Aymors. Na sociedade em que passa a viver, so todos iguais a ele: elementos que trazem nas chagas do corpo as marcas dos erros de existncias passadas; ali, unidos em so-frimento, amigos e inimigos de outras vidas suportam-se uns aos outros, tentando, atravs da do-ena do corpo, restituir a sade do Esprito.

  • Intimamente Jsus Gonalves mostrava-se mais resignado, como que se conscientizando de que no adiantariam arroubos de revolta, ao pensar na felicidade que tantas vezes se lhe escapara das mos. No entanto, o rancor que no se extravasa em atos, mostrava-se dominador, exuberante, em suas produes, como vemos no soneto Uma Vida. do livro Flores de Outono ed. Lake.

    Nasci numa pauprrima palhoa, Onde passei a infncia e a juventude, Ferindo as mos no labutar da roa, Queimado pelo sol, na luta rude.

    Dupla orfandade me colheu. E pude Ver o destino, como zomba e troa, De quem tem nesta vida, em plenitude, Todo o mistrio que uma vida esboa.

    Cresci. Lutei. Sem ter o privilgio Da Carta que se ganha no colgio E que clareia ao homem seu fadrio.

    Da palhoa passei para os sales, Onde nasceram novas iluses, Que vieram sucumbir num leprosrio!...

    Apesar das revoltas e frustraes, seu Esprito nunca se deixou sucumbir ante a ociosidade e de-snimo. Lder por excelncia, modelo de homem correto e cumpridor de seus deveres, tolerante e calmo, no breve tempo em que esteve internado em Aymors cultivou sinceras amizades. Man-teve-se frente de diversas iniciativas, como a fundao do jornalzinho interno O Momento. Escreveu e interpretou muitas peas teatrais, participando tambm da criao do Jazz Band de Aymors e da equipe de futebol. Foram seus companheiros no Jazz Band e contemporneos de Aymors: Emlio Francisco Paini, Jos Belber, Duque, ngelo Santini, Mouro, Lelo, Durval Campos, Guido Petrelli, Calazans e Bento. Um deles, Osrio, mereceu mais tarde de Jsus o interessante soneto que se segue: do livro Flo-res de Outono ed. Lake

    Osrio. A ti que s troa da cidade, se os homens no so bons, no so tiranos; jamais espreita o sono uma saudade nem a esperana se aniquila em planos...

    No sofres de descrena ou desenganos, porque no tens inveja nem vaidade. Pouco te importa o suceder dos anos, sempre menino a envelhecer na idade.

    Por isso, tu, que causas d pungente, aos que merecem pena em suas paixes, a mim, causas inveja, simplesmente...

    Sim!... Quem me dera ter gelado o tino! No habitar castelos de iluses... E no viver espera do destino!

    Na impossibilidade de receberem grupos artsticos no Asilo, Jsus Gonalves e o grupo teatral interno representavam peas de sua autoria ou adaptadas por ele. Destacaram-se nessas apresen-

  • taes as peas Bombonzinho, adaptada de Viriato Correa, e O Outro Andr, de Correa Va-rella qual O Momento assim se refere em sua edio de 13 de abril de 1936:

    NOTCIAS DE LTIMA HORA TEATRO

    Realizou-se ontem, conforme fora anunciado, o espetculo do Grupo de Amadores local. Subiu cena, rigorosamente ensaiada, a linda e engraadssima comdia O Outro Andr, em 3 atos, de Correa Varella. Falta-nos espao para descrever o espetculo em toda a sua perfeio e brilhan-tismo. Podemos adiantar, entretanto, que a noitada de ontem ultrapassou todos os limites de to-das as expectativas. A representao de O outro Andr constituiu uma glria para os nossos amadores de teatro. A interpretao que deram, todos, aos papis, valeu uma consagrao. Esti-veram todos impecveis, dando mostras de grande amor pela arte, para elevarem-se mais no bom conceito que todos fazamos deles. No possvel destacar elementos, como impossvel apontar falhas. A pea discorreu num crescendo de perfeio, para terminar sob os grandes aplausos de uma plateia colossal. O pblico numerosssimo, riu a valer. Riu e aplaudiu, com o entusiasmo sincero de quem gosta. Entre a grande assistncia, vimos muitas pessoas de Bauru e bem assim, o corpo de funcionrios do Asilo. Dos de Bauru destacamos de relance, as Sras. Prosperina de Queiroz e marido, Alberti-na Lopes Abelha, Ceclia Lopes Abelha, Evangelina Kruger e tantssimos outros, cujos nomes nos escaparam. A montagem esteve brilhantssima com riqussimos cenrios oferecidos pelo consagrado ator brasileiro Procpio Ferreira. Nossos parabns ao extraordinrio conjunto cnico local. Na verdade, graas aos talentos que o destacava dos demais e ao Esprito empreendedor e vi-brante no trato de tudo que abraava, no lhe foi difcil granjear tambm a simpatia da Direo do Hospital. Isto fez sua fama ultrapassar os limites de Aymors, indo alcanar outros Sanat-rios e at mesmo o Centro Estadual de Profilaxia da Lepra, em So Paulo. Faz-se mister realar este ltimo detalhe, porque foi graas ao prestgio de Jsus Gonalves, que sua dedicada compa-nheira Anita, apesar de ser sadia, conseguiu, depois de certa relutncia de Jsus, internar-se em Aymors, para viver com ele e seu primognito, Jaime, tambm suspeito de ser portador da mo-lstia. Numa poca em que constitua ato de herosmo at mesmo estender a mo a um doente de lepra e, onde minguadas e espaadas visitas de entes queridos eram obrigatoriamente realizadas nos famosos parlatrios, que separavam, aviltantemente, coraes unidos pelo amor, esta ma-ravilhosa companheira d sublime prova de renncia e amor a Jsus Gonalves, atitude esta s consignada nos arquivos da memria de quantos a conheceram quela poca em Aymors. Na realidade, dado o rigor com que eram dirigidos os Sanatrios de Hansenianos nesse tempo, foi impossvel encontrar em seus arquivos o pronturio de Anita Vilela, presumindo-se, portanto, uma pseuda clandestinidade da mesma. Anteriormente fundao de Asilo-Colnia Aymors, havia na cidade a Liga de So Lzaro de Bauru que tinha por fim abrigar e defender os interesses dos hansenianos. Com a criao de Aymors, esta perdeu sua razo de ser mas antes de extinta foi assunto de muitas controvrsias quanto a destinao de seu patrimnio. Jsus Gonalves, partcipe da absoro desta Caixa Beneficente de Asilo, fez publicar o seguinte artigo no jornal O Momento de 12 de maro de 1936, interessante no s pela reconstituio dos fatos, como tambm pelos comentrios nele inseridos a respeito da situao e da personali-dade dos hansenianos em geral:

    O DIREITO E A JUSTIA - O CASO DA LIGA DE SO LZARO DE BAURU Jsus Gonalves

    Vai realizar-se, no sbado prximo, 14 do corrente, uma reunio, ou melhor, uma assembleia, entre os associados da velha Liga de So Lzaro de Bauru. O assunto a ser desenvolvido nessa reunio coletiva parece ligar-se, segundo notrio, ao estudo definitivo da situao que lhe foi criada depois da inaugurao do Asilo-Colnia Aymors. Ser mesmo, decerto, dissolvida a Li-ga, visto a sua nenhumas razo de ser presente poca. Antes que essa reunio se realize, reser-

  • va-me a circunstncia o direito de algumas palavras. No h, porm, nesta minha atitude nenhu-ma influncia superior oculta e nem est ligada ao sentimento subalterno do servilismo. Como redator deste pequenino jornal e como humilde servidor do Asilo onde vivo, julgo no ser demais a minha palavra em torno desse assunto palpitante. E, manifestando o meu pensamento, a minha pena desliza sobre o papel com aquela facilidade dos que se entregam defesa de uma causa nobilssima. Oxal o grito do meu corao possa chegar at a mesa dos trabalhos da Liga e ali exercer a influncia da Justia e do Direito. Na hiptese da dissoluo da sociedade, o seu patrimnio ser por fora, transferido a uma outra instituio congnere, que haja nascido para os mesmos fins e propsitos. No sei, pois, qual, a direo que vo tomar os trabalhos da assembleia, e nem tampouco o desfecho de suas resolu-es. No conheo o estado de Esprito de cada um dos participantes prxima reunio, bem como, desconheo o pensamento que os anima em relao a esse acontecimento de suma respon-sabilidade. Partindo, entretanto, de um princpio de lgica e de justia, de coerncia e de direito, suponho que todos os atuais componentes da velha associao beneficente tenham os seus pensamentos voltados para a Caixa Beneficente do Asilo-Colnia Aymors. O patrimnio da Liga foi an-gariado em nome do leproso, em nome de sua dor, em nome de sua desgraa, em nome da lsti-ma que ele causava... Por isso a ele deve ser dado o que dele! Entendo que assim pensam todos e no duvido um instante sequer da compreenso dos bauruenses que, reunidos, vo decidir de uma causa sagrada! Sucedem essas coisas, precisamente quando a C. B. se acha em face do seu maior problema, esboando a construo de um cassino no Asilo, dadas as condies atuais do leproso encarce-rado, e que constitui o anseio de quantos veem na sua soluo, a conquista legtima de uma aspi-rao inadivel. Ningum, de boa f e conscincia, pode conceber a ideia de que seja possvel ar-rancar-se o doente do seio de sua famlia, calcando-lhe no corao a flecha da saudade infinita e tolhendo-lhe os movimentos de um cristo livre, para encarcer-lo, sem outras cogitaes que no sejam as de usufruir benefcios da sua desgraa! Ningum, decerto, alimentar a ideia de que ao doente para viver bastam-lhe o alimento e o agasalho do corpo... dando-lhe como direito, ape-nas, o direito de vida, simplesmente, assistindo esttico o movimento dos astros que marcam os dias e as noites. No! O doente internado, mais do que ningum, precisa de lenitivo confortante do movimento. Precisa organizar-se coletivamente, divertindo-se e instruindo-se tambm em comum, a fim de que as saudades no lhe trucidem mais o Esprito enegrecido! A vida do Asilo, em todas as suas modalidades, s pode ser compreendida de fato, por aquele que, tombando em meio da existncia, se v arrastado pela desgraa, msera condio de um asilado... No ambiente limitado e triste de um asilo, no correm os trens do progresso e nem pou-sam os avies da civilizao; no interessam os negcios da bolsa e pouco importam as oscila-es do cmbio; no se discutem estatsticas das safras algodoeiras e a poltica nacional vive margem dos acontecimentos naturais. O doente internado no asilo no pois um renegado moral. Tem o fsico abatido, minado pelo vrus terrvel, mas glorifica o Esprito no santo sacrifcio do desprendimento. Chora a sua eterna desgraa, afogando no corao todas as aspiraes de cria-tura, mas vive altaneiro e contente, porque serve aos seus semelhantes! Por tudo isso, preciso que se d ao doente o mximo de conforto, preparando-lhe o Esprito pa-ra a aceitao da lei que o prende e que tolhe os movimentos. preciso ensin-lo a colaborar numa sociedade parte, que vem a ser a sociedade hanseniana. Ser doente no constitui um cri-me; se no significa um delito, lgico concluir que o asilo no foi criado para ser uma cadeia. Esse o ponto de vista predominante no seio dos dirigentes da Instituio Estadual e esse o pon-to de vista que a sua Caixa Beneficente se prope realizar, para o que, conta com o apoio des-tas modestas colunas. Dito que o internado no pode viver no espao sombrio de quatro paredes tristes, contemplando to somente o desmoronamento do seu prprio EU, sem alimentar outra esperana que a de ali morrer, fcil a concluso de que preciso aproxim-lo o mais possvel da vida livre que ele pr-prio deixou em benefcio da ptria e dos seus compatriotas. Reside nesse ponto o empenho da Caixa Beneficente. Por isso, pretende ela construir o cassi-no, para dar ao doente o direito de assistir um cinema, de ir ao teatro, de frequentar uma socieda-

  • de danante, de sentar-se nos bancos de uma escola. A construo do edifcio impe-se pois, como uma necessidade de primeira linha. Mas, pergunto, construir como? Se os saldos da sociedade no chegam ao incio de uma obra desse vulto? Como aniquilar os pequenos fundos de reserva que estabelecem a base das despe-sas oramentrias da Instituio? Recorrer novamente caridade pblica, j, afigura-se-me uma coisa que deve pesar na conscincia, nesta poca em que o povo paulista se v a braos com difi-culdades vrias, sobrecarregado pelas majoraes da vida contempornea. Da o concluir que, sendo a Caixa Beneficente deste Asilo legtima herdeira dos bens da sociedade bauruense que vai encerrar o seu ciclo de atividades, chegado o momento propcio realizao desse objetivo. Contando com o capital que, por Justia e Direito lhe pertence, tornar em realidade esse trao administrativo que tem vivido como um sonho. S assim a C.B. atingir os fins institudos em suas leis fundamentais, no desdobramento de um trabalho fecundo e recproco. Mais adiante, no mesmo exemplar do Jornal, encontramos a seguinte referncia de Jsus Gon-alves:

    FATOS E INFORMAES

    O Sr. J.G. apareceu-nos no domingo ltimo com uma imensa, uma gigantesca flor na lapela... Que gosto...

    TRANSFERNCIA PARA PIRAPITINGUI

    SOLIDARIEDADE

    Em baixo destes cus, por estes ares, onde eu sou triste em lgubre morada... faz moradia alegre a passarada que sabe ser feliz e sem pesares,

    Nas moitas, nos jardins, pela ramada, andam pardais aos mil, pombos aos pares, cantando as mil canes da madrugada, no confuso rumor dos mil cantares!

    E em primavera eterna e venturosa, No abandonam eles a paragem, Sem ter medo da doena contagiosa...

    Por isso aos passarinhos amo tanto! E se entendesse deles a linguagem, Com eles cantaria o mesmo canto.

    (Jsus Gonalves Flores de Outono, Ed. La-ke)

    Pejada de lances dramticos e estratgias rocambolescas foi a transferncia de Jsus Gonalves para Pirapitingui. O mesmo Esprito empreendedor e dinmico que fez conquistar lugar de destaque perante os in-ternos de Aymors e a direo do Hospital, fez com que, durante tempo, fossem sufocados seus anseios de mudana de Sanatrio, pois era fama corrente na poca que o Hospital Padre Bento, em Guarulhos, So Paulo, oferecia melhor assistncia mdica, e Jsus, que sofria muito com seus problemas de fgado, desejava transferir-se para l, no intuito de beneficiar-se com essa assistn-cia. No entanto, de nada lhe valia o prestgio conquistado junto ao Dr. Francisco Salles Gomes,

  • Diretor do Instituto de Profilaxia da lepra em So Paulo, j que suas cartas e esperanas morriam nas mos do Dr. Enas de Carvalho Aguiar, Diretor do Sanatrio de Aymors, que no queria ver seu mais ativo e dinmico interno transferido para outro Hospital. Numerosas cartas foram remetidas e a resposta no vinha. Com isto, Jsus Gonalves, desconfiado do que estava aconte-cendo, e j magoado com as querelas com o ento diretor da Caixa Beneficente do Asilo, Joo Ferraz, que quase culminaram com a sada de Anita, sua companheira, do Sanatrio, arquitetou arriscado plano, a fim de estabelecer contato com o Dr. Salles Gomes, em So Paulo. Numa po-ca em que fugir ou ausentar-se de um Hospital de Hansenianos era comparado a uma fuga de pri-so, Jsus Gonalves, premido pelas circunstncias e contrariando at mesmo seus princpios, planeja uma escapulida de Aymors, de seu filho Jaime e do companheiro Julinho, ambos com 14 anos aproximadamente, para Bauru providenciarem o devido contato com So Paulo. Depois de vrios dias estudando os melhores locais e o momento adequado, Jaime e Julinho, valendo-se de seus espritos aventureiros, lanaram-se em direo a Bauru, distante 12 ou 13 Km de Aymo-rs, e l, ultrapassado o espanto inicial de Luza e Jandira, tia e filha de Jsus, colocam-nas a par da situao e empreendem rpida jornada de volta. No demorou muito tempo para obterem a ansiada resposta: Dr. Salles Gomes envia uma ambu-lncia com o Ofcio de Transferncia para Padre Bento de Jsus Gonalves e seu filho Jaime, para surpresa e indignao do Dr. Enas, que sem saber como haviam conseguido realizar o con-tato, entre inconformado e furioso, no sabia que argumentos usar para reter seu mais famoso in-terno em Aymors. Embora deixando resqucios de seu corao em Aymors, pelos seus amigos queridos que l ca-tivara, segue, Jsus Gonalves, entre clere e vitorioso, a 21 de setembro de 1937, rumo a Padre Bento. No entanto, a viagem foi-lhe um tormento; as dores no fgado castigaram-no tanto, que a ambulncia teve de fazer uma parada forada no Hospital de Pirapitingui, em Itu, na metade do trajeto, para que este pudesse descansar um pouco e receber a assistncia mdica necessria. Aportando em Pirapitingui, o Diretor do Hospital, Dr. Marcelo Guimares Leite, conhecendo-lhe a fama, retarda sua partida, at convenc-lo a ficar ali, sob promessa de maiores e melhores cui-dados mdicos. Esse argumento foi o bastante para convencer Jsus Gonalves, j que transferir-se para Padre Bento representava to somente promessa e no garantia de melhoria no trata-mento mdico.

    JSUS GONALVES O ATEU

    FALTA (1940)

    Onde andar um no sei que, um Bem, em cuja busca sou judeu errante? Por onde eu passo, j passou tambm... E quando chego j partiu h instante...

    No sei se est na vida, ou mais adiante, dentro da morte, nas manses do alm... Se est no amor... se est na f, perante os dois altares que esta vida tem.

    Mas, se esta vida um sonho, a morte o nada; por que manter-se em luta desvairada?...

    No entanto, eu sigo... acovardado, triste... a procurar em tudo que no creio, a coisa que me falta e no existe!

    (Jsus Gonalves Flores de Outono Ed.Lake)

  • Em Pirapitingui, a odisseia de Jsus prossegue. Mais um captulo de sua vida iniciado e a tem-tica permanece a mesma: o flagelo de uma doena que no tem pressa de caminhar, mas impla-cvel e dominador em sua trajetria. Lentamente vai tomando conta das extremidades do corpo para ento atingir os rgos vitais, seu alvo principal. A cada passo, em se deparando com o exrcito de remdios que tentam impedir-lhe a passagem, eis que... no se desespera, e aps pe-queno acordo, rompe a trgua momentnea e inflexvel, avana incontinenti rumo ao seu alvo. A destruio lenta, cruciante e inoperosos se tornam cada vez mais os medicamentos. Ela no respeita, no transige, no faz armistcios, no aceita trguas. implacvel. No perdoa. A dor, a angstia e a solido fazem com que os indivduos busquem o remdio apropriado e Jsus Gonalves no foge regra; tambm O busca, mas, mesmo Ele estando dentro do corao do enfermo a rode-Lo, ainda assim, Jsus Gonalves O nega, procurando-O somente nas vesti-mentas do trabalho, da atividade artstica, da criao. Precisaria surgir uma Estrada de Damas-co na trajetria deste homem, para que o gigante adormecido dentro dele viesse tona? Ele possua quase tudo em seu mundo: amigos, prestgio, nvel intelectual, artstico; era um lder em potencial e estava frente de todas as iniciativas. Contudo, no se completava. Faltava algo den-tro dele. Jsus Gonalves era ateu. Ainda, por mais uma vez, traduzia ele sua amargura, em ver-sos:

    Em mim reside um mal, uma agonia, Que torna o meu viver indiferente. Talvez um crime que minhalma expia, - o crime de sonhar e de ser crente...

    Tudo o que belo, est de mim ausente. A tudo estou alheio... Todavia, a morte tarda. E eu vou contando, doente... o lento gotejar do dia-a-dia...

    As sombras do passado, j distantes; as promessas futuras, provocantes; - tudo morreu em mim, sem ter remdio.

    Creio at que este mal que no tem cura, comigo ir morar na sepultura, pra que dentro da terra eu tenha o tdio!

    Pouco tempo depois de sua chegada a Pirapitingui, Jsus Gonalves j se revela o mesmo indiv-duo absorvente de sempre. Logo v sua volta grande roda de amigo que o cercam como se, de h muito, o tivessem como lder, a ponto de muitos no o chamarem pelo nome, mas pelo apeli-do mestre pois, salientando-se sobre os demais, era requisitado a opinar e a aconselhar sem-pre que a ocasio se apresentasse. Cedo reconheceram nele um homem um tanto diferente dos demais internos; seu carter reto, ntegro, denunciava ali a presena de algum amante da disci-plina, da ordem, dos bons costumes; sua altivez, prpria de guerreiro vencedor frente ao vencido, camuflava a doura e o sentimento de um artista, que fazia da pena do poeta e do teatrlogo por-ta-voz de uma alma univrsica, acorrentada aos limites da carne. Sim, Jsus Gonalves no era mais um interno, dos muitos que iam e vinham. Jsus Gonalves, perceberam logo, era algum predestinado a deixar na histria do Hospital seu nome marcado em letras de glria. Sua primeira iniciativa, no campo da liderana que estava no seu sangue, foi candidatar-se Presidncia da Caixa Beneficente. Este era um rgo pertencente aos internos que se constitua numa espcie de Prefeitura e estava reportada Direo do Hospital. A Caixa, como ainda o hoje, dirige as ati-vidades comerciais existentes no Hospital, tais como cooperativa de alimentos; fbricas de sa-bo, colcho, guaran; olaria; lavoura; pecuria; alm de ser rgo representante dos internos e distribuidor das verbas recebidas do governo pelo Hospital, aos internos mais carentes. J era dada como certa sua vitria nas urnas quando foi interrompido o processo eleitoral devido ao

  • Golpe de Estado de 1937, ocasionando a prorrogao do mandato do ento Presidente da Caixa. Diligente como sempre, suas iniciativas logo foram movimentando a vida at ento montona do Hospital. Suas adaptaes e produes teatrais, da comdia tragdia, marcaram poca; um Jazz Band foi fundado; conseguiu, junto Direo do Hospital, a implantao de uma Estao de Rdio (PRC-2 Rdio Clube de Pirapitingui), que funciona at os dias de hoje; e fundou ain-da um jornalzinho interno, O NOSSO JORNAL, do qual era diretor e redator. A PRC-2, Rdio Clube de Pirapitingui, foi fundada a 20 de agosto de 1939, montada por um tc-nico da cidade de Itu, Joo Pandof, e por um interno do Hospital, Antonio Clarassol. Suas prec-rias instalaes ficavam inicialmente no poro da enfermaria A, na Rua do Salto. A direo da Rdio era de Jsus e colaboravam com ele na programao; ngela Serralho Scavoni, Valentim Montorso, Esmeralda Zquere, Filomena Rossi e, bem mais tarde, entre 1945 e 1948, o filho de Jsus, Jaime Gonalves. Posteriormente, a Rdio foi transferida para instalaes mais apropria-das na Praa Margarida Galvo. Singular episdio ocorreu certa vez no programa De voc para voc e que bem caracteriza a personalidade materialista de nosso biografado. Este programa era apresentado diariamente pelo interno Valentim Montorso e sua maneira clssica de terminar o programa era: - Para amanh, nova apresentao do programa De voc para voc se Deus quiser! Jsus Gonalves, que es-tava por perto neste dia, pegou o microfone na mo e retrucou: - Se Deus quiser no, se eu qui-ser, porque quem manda aqui sou eu. Tambm nas apresentaes teatrais flua o carter materialista de Jsus Gonalves. Uma das pe-as encenadas em Pirapitingui foi Deus e a Natureza que, apesar do nome, apresentava Deus maneira do autor e de tal