A Face Pedagógica Do Eros

12
311 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.2, p. 311-322, maio/ago. 2007 A face pedagógica de Eros * Marlene de Souza Dozol Universidade Federal de Santa Catarina Resumo O presente trabalho busca descobrir a face pedagógica de Eros. Como ponto de partida, está o fato de a figura do educador/pro- fessor ser comumente representado por alguém cuja ocupação não suscita desejos de qualquer espécie. Não raras vezes assisti- mos a representações literárias e imagens televisivas ou cinema- tográficas nas quais o professor aparece comicamente como uma caricatura que fala, de modo monótono e sem parar, a alu- nos cujos rostos oscilam entre o tédio e o escárnio. No entanto, o que é de fato assustador é que, cada vez mais, as imagens que aparecem no discurso das novas gerações, numa tentativa de oposição à caricatura supracitada, associam a figura do professor à de um animador de auditório, performático, divertido, especia- lista em dinâmicas grupais catárticas, sem conteúdo e igualmente caricatural. Procurando, então, desviar-se de ambas as caricaturas e refletir sobre o gênero específico de libido pedagógica — com- preendido como força ou energia espiritual para o progresso moral, intelectual e sensível —, o texto recupera o poder ilustrativo do mito, pensa sobre a força do imaginário na consti- tuição de parâmetros modelares para a Educação e para o exercí- cio da mestria (para isso, propõe notas socráticas, sofísticas e escolásticas com ênfase na linguagem) e aponta para a importân- cia dessa discussão diante dos problemas que habitam os espa- ços educativos contemporâneos. Palavras-chave Eros — Educação — Linguagem. Correspondência: Marlene de Souza Dozol Univ. Federal de Sta Catarina Rua Frederico José Peres, 67 88035-340 – Florianópolis – SC e-mail: [email protected] * Trabalho apresentado, em primeira versão, na 28ª Reunião Anual da ANPED, realizada em outubro de 2005, na cidade de Caxambu.

description

A Face Pedagógica Do Eros

Transcript of A Face Pedagógica Do Eros

  • 311Educao e Pesquisa, So Paulo, v.33, n.2, p. 311-322, maio/ago. 2007

    A face pedaggica de Eros*

    Marlene de Souza DozolUniversidade Federal de Santa Catarina

    Resumo

    O presente trabalho busca descobrir a face pedaggica de Eros.Como ponto de partida, est o fato de a figura do educador/pro-fessor ser comumente representado por algum cuja ocupaono suscita desejos de qualquer espcie. No raras vezes assisti-mos a representaes literrias e imagens televisivas ou cinema-togrficas nas quais o professor aparece comicamente comouma caricatura que fala, de modo montono e sem parar, a alu-nos cujos rostos oscilam entre o tdio e o escrnio. No entanto,o que de fato assustador que, cada vez mais, as imagens queaparecem no discurso das novas geraes, numa tentativa deoposio caricatura supracitada, associam a figura do professor de um animador de auditrio, performtico, divertido, especia-lista em dinmicas grupais catrticas, sem contedo e igualmentecaricatural. Procurando, ento, desviar-se de ambas as caricaturase refletir sobre o gnero especfico de libido pedaggica com-preendido como fora ou energia espiritual para o progressomoral, intelectual e sensvel , o texto recupera o poderilustrativo do mito, pensa sobre a fora do imaginrio na consti-tuio de parmetros modelares para a Educao e para o exerc-cio da mestria (para isso, prope notas socrticas, sofsticas eescolsticas com nfase na linguagem) e aponta para a importn-cia dessa discusso diante dos problemas que habitam os espa-os educativos contemporneos.

    Palavras-chave

    Eros Educao Linguagem.

    Correspondncia:Marlene de Souza DozolUniv. Federal de Sta CatarinaRua Frederico Jos Peres, 6788035-340 Florianpolis SCe-mail: [email protected]

    * Trabalho apresentado, em primeiraverso, na 28 Reunio Anual daANPED, realizada em outubro de2005, na cidade de Caxambu.

  • Educao e Pesquisa, So Paulo, v.33, n.2, p. 311-322, maio/ago. 2007312

    The pedagogical face of Eros

    Marlene de Souza DozolFederal University of Santa Catarina

    Abstract

    The present work seeks to uncover the pedagogical face of Eros.As a starting point, there is the fact that the figure of theeducator/teacher is commonly represented by someone whoseoccupation does not elicit desires of any kind. It is not unusualto see literary representations and televised or cinema images inwhich the teacher appears comically as a caricature that talkscontinuously and monotonically to pupils whose countenancesoscillate between boredom and scorn. But what is trulyfrightening is that, more and more, the images that show up inthe discourse of the younger generations, in an attempt to opposethe caricature just mentioned, associate the figure of the teacherto that of a presenter of a talk show: theatrical, amusing, anexpert in cathartic group dynamics, with no content and equallycaricatured. Seeking to steer clear of both caricatures and toreflect upon the specific genre of the pedagogical libido understood as spiritual force or strength for the moral, intellectualand bodily progress the text rescues the illustrative power ofthe myth, thinks about the power of the imaginary in theconstitution of model parameters for education and for theexercise of teaching (to this end it proposes Socratic, sophisticand scholastic notes with emphasis on language) and points tothe importance of this discussion in view of the problems thatpopulate the contemporary educational spheres.

    Keywords

    Eros Education Language.

    Contact:Marlene de Souza DozolUniversidade Federal de Santa CatarinaRua Frederico Jos Peres, 6788035-340 Florianpolis SCe-mail: [email protected]

    *A first version of this work waspresented to the 28th ANPED AnnualMeeting at Caxambu in October 2005.

  • 313Educao e Pesquisa, So Paulo, v.33, n.2, p. 311-322, maio/ago. 2007

    No texto Tabus que pairam sobre a pro-fisso de ensinar, Adorno (1995) pe em relevoas motivaes subjetivas ou inconscientes daaverso docncia e o como a sedimentaocoletiva de representaes orientadas por precon-ceitos psicolgicos e sociais transforma-se emforas reais que contribuem para o agravamentoda crise da Educao nos tempos atuais. Dentreas representaes comentadas, a figura do pro-fessor como algum destitudo de qualquer di-menso ertica sugere uma reflexo que busquerecuperar, em algum tempo, o Eros especificamen-te pedaggico como uma das matrizes da cons-tituio do educador que, se no prevaleceu nahistria, coabita, junto com os preconceitos, oimaginrio tecido em torno de sua figura.

    O presente trabalho antes de tudo umdiscurso afirmativo sobre o ato de educar e sobrequem educa. Busca uma traduo da mestria eda figura do mestre em sua poesia e escolhe omito grego de Eros como inspirao. A inteno a de evidenciar o potencial ilustrativo do mito,no sentido exemplar de uma beleza intemporala ser contemplada no que diz respeito ao temaem foco. No entanto, se um mito pode inspiraro que h de permanente na clssica ao deensinar, preciso signific-lo no interior dapaisagem contempornea. Da a necessidade derefletir os elementos do transitrio, do efmeroou do contingente. Trata-se, pois, de encontraruma forma de expressar o movimento de guar-dar e transformar a clssica ao de ensinar.Sendo assim, no o caso aqui de defender umapura e simples reedio do passado da mestriavisto em seu aspecto potico e ideal, e sim deestabelecer, para mais adiante, [...] encontroscriativos com o passado (Berman, 1986, p. 315),no sentido de oferecer elementos para o dilo-go necessrio entre o educador e o seu prpriotempo. Talvez, as palavras de Baudelaire (1996)sejam oportunas para expressar essa tenso entreo passado e o presente quando se trata de bus-car algo de belo:

    O belo constitudo por um elemento eter-no, invarivel, cuja quantidade excessiva-

    mente difcil determinar, e de um elementorelativo, circunstancial, que ser, se quiser-mos, sucessiva ou combinadamente, a po-ca, a moda, a moral, a posio. Sem essesegundo elemento, que como o invlucroaprazvel, palpitante, aperitivo do divinomanjar, o primeiro elemento seria indigervel,inaprecivel, no adaptado e no apropriado natureza humana. Desafio qualquer pessoaa descobrir qualquer exemplo de beleza queno contenha esses dois elementos. (p. 10)

    Mesmo considerando o binmio eterno/efmero na composio de qualquer beleza, cabeuma pergunta a Baudelaire: seria o primeiro ele-mento to indigervel e to inaprecivel assim?

    O porqu do mito

    Na verso de Eliade (1992), o mito contauma histria sagrada, um acontecimento primor-dial que teve lugar no comeo do tempo, tendopor personagens deuses e heris civilizadores.Trata-se, ento, de narraes que tm comoobjeto a criao, o como qualquer coisa foi efe-tuada e comeou a ser: Cada mito mostra comouma realidade veio tona, seja ela a realidadetotal, o Cosmos, ou apenas um fragmento: umailha, uma espcie vegetal, uma instituio huma-na (p. 82; grifo meu). Estabeleceu-se, no interi-or desse comeo de tudo, os modelos exempla-res que servem como parmetro para as aeshumanas, derivando da uma das funes domito: A funo mais importante do mito , poisfixar os modelos exemplares de todos os ritos ede todas as atividades humanas significativas: ali-mentao, sexualidade, trabalho, educao etc.(p. 82; grifo meu). E prossegue o autor:

    Comportando-se como ser humano plena-mente responsvel, o homem imita os ges-tos exemplares dos deuses, repete as aesdeles, quer se trate de uma simples funofisiolgica, como a alimentao, quer deuma atividade social, econmica, cultural,militar etc. (p. 82; grifo meu)

  • 314 Marlene S. DOZOL. A face pedaggica de Eros.

    Essa espcie de histria espiritual domundo (Grimal, 1987, p. 7), plena de relaesentre o real e o imaginrio, remete eterna lutaentre o Logos e o Mythos, entre a razo e afantasia. Comumente o mito associado a umamaneira pr-cientfica de procurar origens ecausaes, e raramente compreendido comouma dimenso da verdade, mesmo que noidentificada com a verdade cientfica. A esserespeito, Ricoeur (1988), quando escreve sobrea interpretao filosfica do mito, prope aseguinte questo:

    A questo , finalmente saber se a verdadecientfica toda verdade, ou se algumacoisa dita pelo mito que no poderia serdita de outra forma. (p. 11)

    A inteno significante do mito, segundoRicoeur (1988), pode ser classificada em figurati-va ou representativa , paradigmtica e afetiva.

    A primeira, a figurativa ou representati-va, consiste na funo de instaurar modelos deao; a segunda, a paradigmtica, trata dacoeso entre a narrao das origens e do tem-po presente, uma vez que o mito permite serreativado no rito; e a terceira, a afetiva, ligadaa fatores essencialmente subjetivos, possui acapacidade [...] de criar aquilo a que podemoschamar o ncleo mtico-potico da existnciahumana (Ricoeur, 1988, p. 29).

    O significado conjunto das trs inten-es assim descrito pelo autor:

    Neste sentido pode dizer-se que os mitosde origem tm eles prprios uma dimensosapiencial porque compreender como ascoisas comearam saber o que elas agorasignificam e que futuro continuam a ofere-cer ao homem. (1988, p. 29)

    o mesmo autor que, recorrendo aJean-Paul Audet, expressa um significado maisprofundo do mito: [...] uma apropriaototalizante da herana total de uma comunida-de (1988, p. 30).

    No tocante Educao, isso se aplica tantos sociedades arcaicas, que depositam no Xam afuno de formar homens, como quelas que pos-teriormente encontravam-se em pleno [...] proces-so de racionalizao progressiva da concepo re-ligiosa do mundo implcita nos mitos (Jaeger,1995, p. 192), a exemplo da sociedade grega. Ain-da assim, a tradio oral e os frutos literrios inspi-rados nos mitos e adequados poca no deixaramde cumprir suas intenes significantes.

    O mito de Eros e seusignificado pedaggico

    Antes de tudo, convm lembrar, segundoa verso que Plato (1971) nos oferece no Ban-quete , a que, pela beleza e significado, bempode ser comparada a uma iguaria as circuns-tncias do nascimento de Eros e sua filiao.

    Eros nasce numa festa na qual os deu-ses comemoram o nascimento de Afrodite. Seuvnculo com a deusa do amor torna-o compa-nheiro e servo da Beleza. Gerado nesse dia, filho de Pnia (a Pobreza) e Poros (o Recurso).Por conta de seus progenitores, Eros duplo.Da me, herda a carncia, a falta e a busca. Dopai, o poder ou a possibilidade de saciar afome, suprir a falta, urdir estratgias para satis-fazer suas necessidades e seus desejos. Noentanto, essa satisfao, que nunca definiti-va, mas sempre provisria, impe a Eros umaespcie de sina: a de viver a festa de uma fomesaciada, de uma falta suprida, de um prazerldico propiciado pela estratgia acertada e ade morrer em seguida, tendo que sentir e reco-mear tudo para novamente viver. Da seu des-tino de andarilho (Pessanha apud Civita, 1973).

    O que sugere o mito na perspectiva filo-sfica? Muito, sem dvida. A comear pela ima-gem de Eros como um astuto caador de saber.Sabe que no sbio (o que, por outro lado,indica sabedoria), mas deseja e se esfora paraconhecer. Etimologicamente, eros vem do ver-bo grego rasthai, que significa desejar arden-temente. Quando filho de entidades menores,Eros no propriamente um Deus, mas uma

  • 315Educao e Pesquisa, So Paulo, v.33, n.2, p. 311-322, maio/ago. 2007

    fora ou uma energia insatisfeita e inquieta,uma carncia em busca de plenitude, um sujei-to procura de um objeto (Brando, 1993),que acredita e no acredita na existncia des-te e em sua capacidade para encontr-lo. Essegnero de libido , nesses termos, compreendi-do como fora ou energia espiritual para oprogresso moral, intelectual e sensvel. E emque medida Eros sugere o enlace entre filoso-fia e pedagogia?

    Na Teogonia, de Hesodo (1995), Erossurge como liame, mediador ou intermedirio,prendendo ou ligando uma coisa outra, sem-pre no meio de dois pontos, intermediando re-laes e conferindo coeso ao Cosmos. Naperspectiva de uma filosofia racionalista, aquele que tende a tudo ligar ou integrar para,dessa forma, conhecer. Se opera por meio derelacionamentos e vinculaes, sobrevoa o pla-no das idias e o das relaes humanas. oque nos lembra a filosofia platnica ao atribuira Eros a funo de [...] estruturar o caminhoque permitiria ao intelecto humano ascenderat o plano das idias [...] (Pessanha apudCivita, 1973, p. 35). O trabalho racional, prin-cipal via de acesso a tal plano, estabelece arazo discursiva como intermedirio, para o usoda referida filosofia, entre o plano sensvel e oplano inteligvel. Portanto, Eros linguagem.

    Segundo Pessanha (apud Civita, 1973), aquesto do erotismo na concepo dos antigosgregos fundamental para que compreendamosa concepo platnica do amor. Mais do queopes sexuais, interessa aos gregos a qualida-de dessas relaes. Se condimentadas pela tem-perana, maiores as chances de ser operada apassagem da Ertica (relativa ao amor aos rapa-zes) para a Filosofia (relativa ao amor verda-de/philia). Na perspectiva platnica de ascese,trata-se de ultrapassar o plano horizontal dasrelaes afetivas entre pessoas para o planovertical da relao afetivo-intelectual entre sujei-tos e verdade.

    Os trs dilogos dedicados por Plato aotema do amor Lsis (apud Pessanha, 1995),Banquete (1971) e Fedro (idem) so confec-

    cionados com base em dois eixos da experin-cia amorosa.

    No Lsis, tais eixos aparecem na formade oposio: ao amor passional, escravizante,avassalador, ligado ao imediato e ao sensvel,contrape-se aquele baseado no aprendizado,no saber e que liberta. Aqui Scrates aparececomo o amante ideal que, ao aplicar sua sedu-o docente, empreende, com seus discpulos,uma caada para o alto. De outro lado, Lsissugere a figura do amado ideal: aquele que, pelacandura e pela docilidade, permite a seduodocente, pois o Eros que nele habita (o do tipodiscente) sabe que precisa aprender e esperar.

    No Banquete, depois de ser reverenciandocomo princpio teognico e cosmognico porFedro, como fora universal de atrao dos seme-lhantes por Pausnias e Erixmaco, como impulsode busca de totalidade por Aristfanes, como deusmais jovem, mais belo e mais feliz, que rege asrelaes de superfcie, sem profundidade ou com-promisso com o trgico, por Agato, Eros apare-ce na voz de Diotima-Scrates como demnio,isto , como intermedirio entre os deuses e oshomens. Em sua faceta pedaggica, transfigura-seem gnio tutelar, numa espcie de voz interior quefala ao homem, guia-o ou aconselha-o. Aqui serealiza como mediador, com funo de interpretare transmitir: como a linguagem que se tece naverticalidade, no relacionamento humano/divino. Acontemplao final de toda a beleza fruto deuma ascese ertica conduzida por ele.

    Sempre a meia distncia entre uns eoutros, o deus que preside as relaes huma-nas, perseguindo a harmonia:

    Eros, de outro lado, traduz ainda a complexiooppositorum, a unio dos opostos. O Amor apulso fundamental do ser, a libido que impeletoda existncia a se realizar na ao. ele queatualiza as virtualidades do ser, mas essa passa-gem ao ato s se concretiza mediante o contatocom o outro, atravs de uma srie de trocasmateriais, espirituais, sensveis, o que fatalmenteprovoca choques e comoes. Eros procurasuperar esses antagonismos, assimilando foras

  • 316 Marlene S. DOZOL. A face pedaggica de Eros.

    diferentes e contrrias, integrando-as numa s emesma unidade. (Brando, 1993, p. 189)

    Sua condio de causa da fome e seupoder aglutinador de idias e pessoas, escolhen-do, no plano do humano, a linguagem como umadas setas disparadas por seu arco, em muito su-gerem a arte da mestria. Pois bem, a metforade linguagem como seta disparada do arco deEros que pretendo examinar daqui em diante.

    Lembremos primeiramente as relaes deEros com as musas.

    Ao analisar a Teogonia, Torrano (1995)discorre sobre as funes das musas:

    As deusas musas cantam no Olimpo paradeleite de Zeus o mesmo canto que o aedoservo das musas, pela outorga que estas lhefizeram, canta no s para o deleite dosouvintes mas tambm para a manutenoda vida, para a vivificante comunho como Divino, para a transmisso do Saber epara que se possa ter uma viso da totali-dade do Ser. (p. 95; grifo meu)

    Por estarem acompanhados pelas musas,os aedos so agraciados por Mnemsine, que re-presenta o poder do esprito sobre a matria ins-tantnea e funda toda a inteligncia. Mnemsinetambm quer significar memria universal, a lem-brana que contesta Cronos (o Tempo) que atudo devora: seres, momentos, destinos, semqualquer apego ao que passou e luta parapreservar a lcida matria sobre a qual reina.

    No entanto, no basta que o canto lembre,mas que o canto seduza pela palavra proferida:

    preciso que primeiro o nome das Musasse pronuncie e as musas se apresentemcom numinosa fora que so das palavrascantadas, para que o canto se d em seuencanto. (Torrano, 1995, p. 21)

    As foras que movimentam a seduoexercida pelas musas na Teogonia so assimtraduzidas, ainda por Torrano (1995):

    To logo nascem, as musas instauram ocoro e a festa, acompanhadas das Graas(Khrites) e o Desejo (Hmeros). Este tam-bm participa do sqito de Afrodite, ondeemparelha com Eros (v. 201). A arte dasmusas no apenas persuaso [...], mas aseduo, a envolvncia da beleza e do ape-lo sensual. Acompanha-as o Desejo, que elasdespertam e o companheiro deste, Eros, in-vade os ouvintes atravs da fora da vozdelas, que pela presena de Eros uma vozamvel [...] e bem-amvel [...]. (p. 33)

    Sob o patrocnio da Memria, reis e poe-tas so artfices da palavra. Observem-se os ver-sos da Teogonia:

    Pelas musas e pelo golpeante Apolo h can-tores e citaristas sobre a terra, e por Zeus,reis. Feliz quem as musas amam, doce desua boca flui a voz. (v. 95)

    O uso da palavra requer especializao equalificao e isso que distingue reis e poetasdos demais. Para serem ouvidos, precisam seduzir,e quando seduzem, transformam-se em autorida-des. Nas palavras de Torrano (1995): [...] a auto-ridade de ambos se estriba na seduo e no fas-cnio que atravs da Palavra exercem sobre seuentourage (p. 37). Ora, lembrar o que passou,transmitir o saber de maneira sedutora e suscitardesejo em relao ao conhecimento so, semdvida, atribuies clssicas da mestria. E nesseaspecto, mesmo que soterrada sob sua atual iden-tidade profana, h um qu de sagrado em seuexerccio. No s nas narrativas mticas, como tam-bm na longa histria que preside a configuraodas mais variadas modalidades de mestria, nuncafoi ignorado o poder da palavra. Desde seus incios,assistimos a uma polifonia de vozes que se preten-dem educativas e ensinantes. Detenhamo-nos umpouco mais nos mitos.

    A associao entre musas e aedos com afigura do mestre quer apenas indicar que tan-to a memria como a seduo so vitais parao exerccio de um determinado tipo de mestria.

  • 317Educao e Pesquisa, So Paulo, v.33, n.2, p. 311-322, maio/ago. 2007

    A relao entre o aedo e o mestre podeser convenientemente ilustrada na personagemde Orfeu.

    Ao tratar da religio greco-romana deDionsio (Baco) e do culto a Orfeu, Henderson(1964) comenta:

    Orfeu deve ter sido um personagem real cantor, profeta e professor que foimartirizado e cujo tmulo tornou-se umsanturio. (p. 141)

    Tantos os cultos dirigidos a Dionsiocomo os que se dirigiam a Orfeu possuiam comocaractersticas a iniciao aos mistrios. Taiscultos acabaram por criar smbolos associados auma espcie de homem-deus que, dentre outrascompetncias, estava a de possuir uma ntimacompreenso do mundo animal ou vegetal,cujos segredos, aos iniciados, passavam a serdesvendados pela ao iniciadora do mestre.

    Orfeu domina a arte da msica e a usapara encantar e seduzir. Foi com esse poderque desceu aos infernos para resgatar suaamada Eurdice e se aventurou na expediodos argonautas em busca do toso de ouro.Nessa expedio, coube a Orfeu embalar, comseu doce canto, heris e marujos. Tangendosua lira, ele quem os livra dos perigos de umoutro canto de mortal beleza: o canto das se-reias; quem oferece aos remadores um ritmosereno para a viagem; quem delicia os ouvidosdos deuses que espreitam por trs das nuvens.

    A capacidade de encantar o que pode-mos observar tambm em Ulisses na sua viagemde retorno taca (Odissia, de Homero). Apedido do rei dos fecios, Ulisses conta diantede uma platia atenta e estupefata as suas his-trias: a batalha com os ciconianos; sobre oscomedores de ltus; a estratgia que usou paraescapar do ciclope Polifemo; a visita a Elo;como chegou a Telepilos; sobre as artimanhasde Circe e do como navegou at a casa deHades; de que maneira no sucumbiu ao can-to das sereias; como chegou s rochas move-dias e s hediondas Caribde e Cila; sobre o

    ataque de seus companheiros aos bois do sole da tragdia resultante; como chegou sozinho Oggia e se transformou no prisioneiro amanteda ninfa Calipso; e, por fim, sua passagem pelaterra dos fecios, que o devolveram taca commuitos presentes, bronze, ouro e finos tecidos.

    A qualidade de narrador faz de Ulisses oprprio mestre. Embora, em vrios momentosda narrativa, o basto do orador seja entreguea outros personagens (velhos e outros nobres),durante as assemblias e reunies, Ulisses quedomina a palavra com arte. Atena, sua protetora,o descreve como invencvel enredador, infa-tigvel fabulista e, ao mesmo tempo, comoastucioso trapaceiro (Homero, 1992, p. 151), oque sugere a ambigidade da palavra no que serefere ao dizer a verdade.

    Quanto a isso, preciso que o ouvintetenha ou desenvolva um pouco da astcia deUlisses, j demonstrada pelo prprio, ocupan-do o lugar no de narrador mas o de ouvinte,quando de sua passagem por aquele pedao demar habitado por sereias. A beleza do cantodas sereias mortal, mas Ulisses a deseja e, aomesmo tempo, no quer pagar o preo dessedeleite com a prpria morte. Para tanto, osouvidos de seus remadores so preenchidos comcera para que nada escutem e continuem a re-mar durante a perigosa passagem e ele, Ulisses,pede que o amarrem ao mastro da embarcao,porm sem os ouvidos tapados. dessa formaengenhosa que Ulisses ouve e usufrui da bele-za do canto, sem com isso sucumbir a ele.

    Dessa passagem que, pensada do pontode vista pedaggico, evoca o esprito crtico porparte daquele que ouve e denuncia o quantopode ser ilusria a sensao de poder experimen-tada pelo narrador, passemos para outras vozes,agora histricas, que se pretendem educativas eensinantes. Comecemos por Scrates.

    Nos dilogos platnicos, a teia racionalque vai sendo tecida pacientemente por Scratessobre o interlocutor cria, nesse ltimo, uma ilu-so de autoria. Ou seja, o que fruto do exer-ccio de uma razo conduzida parece ser frutodos lances efetuados pelo interlocutor. Assim

  • 318 Marlene S. DOZOL. A face pedaggica de Eros.

    que Scrates, ao dizer, diz que quem est di-zendo o seu parceiro ou, ento, leva-o a dizeraquilo que tem em mente. De fato, as chancesdo interlocutor so mnimas. Nesse sentido,cabe perguntar sobre sua autonomia de pensa-mento e ainda se no haveria possveis desvi-os alm do caminho ditado pelas acrobaciasracionais do mestre. De qualquer modo, bomno esquecer que o artifcio utilizado forjaconcluses de carter provisrio, ficando asquestes exasperadamente em aberto. O car-ter permanentemente provisrio da linguagemsocrtica seu componente atrativo, embora seaplique na busca do invarivel ou do eterno.Em todo o caso, essa sua forma aporticaque certamente sinaliza para a inteno de umabusca compartilhada, na qual mestre e discpuloexperimentam uma ertica diferenciada: a doprimeiro marcada pelo jogo da conduo estra-tgica e a do segundo sentida em funo daexigncia de abandono do hbito e da acomo-dao em nome do desejo de ir alm.

    Ao mesmo tempo em que a linguagem, emScrates, exclui e no exclui a verdade absoluta pois se apenas no a exclusse, estaria morta avontade da procura , condena a forma debajulao que facilmente pode adquirir a lnguafalada. Tambm no possvel, em Scrates,entend-la como um artifcio para iludir.

    Scrates no fala o que agrada, masaquilo que precisa ser dito com o fim de levaros homens a operarem as transformaes ne-cessrias em si prprios. Tanto que, na Apolo-gia, no momento no qual os juzes o condenam morte, o filsofo afirma:

    E, contudo, fui apanhado em dificuldades,no de palavras, decerto, mas de ousadia edesvergonha e falta de vontade de vos di-zer aquelas coisas que mais vos agradariaouvir. (Plato, 1993, p. 96)

    No Fedro, em seu primeiro discurso so-bre Eros, Scrates chama a ateno do jovemque d nome ao dilogo quanto ao risco doamado, ao ser seduzido pelo amante, ser priva-

    do de sua inteligncia e afastado da divina fi-losofia. Tais palavras indicam mais uma facetanociva que pode ganhar a linguagem quandoexercida pelos ditames da retrica, pela adulaoe pela promessa de proteo sob o comando dodesejo egosta e da volpia do apaixonado. Maisadiante, Scrates comenta: [...] o lisonjeiro, porexemplo, horrvel monstro e traz grandes preju-zos, mas, simultaneamente, a natureza lhe conferiucerto atrativo que no deixa de ter seu encanto(Plato, 1971, p. 214). Encantos da lisonja, encan-tos da verdade, a escolha de cada um.

    Scrates tem a pretenso de encantarcom a busca da verdade, mesmo que o resul-tado seja a dvida. Seu poder de seduzir metaforizado, aqui e ali, por aqueles que sesubmetem ao seu exame. No Mnon, compa-rado a uma tremelga e, no Banquete, Alcebadeso associa s esttuas de silenos, ao stiroMrsias e s sereias, smbolos que lhe traduzema figura de Scrates.

    Na metfora da tremelga, Scrates assim referido por Mnon:

    [...] eu sabia que nada mais fazes do queduvidar e despertar dvidas no esprito dosoutros! E por isso que agora, segundome parece, me tens enganado e enfeitiadoe embruxado por ti, e cheio de dvidas! Seme permites uma brincadeira direi que peloteu corpo e por muitas outras caractersti-cas de teu ser, fica sabendo que s muitoparecido com a tremelga do mar: esta comefeito, entorpece a quem quer que se lheaproxime e toque e parece que me entorpe-ceste a mim! (Plato, 1971, p. 83)

    Ao ser tocado, esse peixe produz descar-gas eltricas, entorpecendo quem o toca. Mnon,ao tocar Scrates, se v enfeitiado pela dvida.Note-se que Scrates admite a comparao se, aoentorpecer os outros, a tremelga entorpecer a simesma, o que lhe confere certo encanto, j co-nhecido como a sua estudada modstia.

    O feitio da dvida aqui entendidocomo um bem. Depois de examinar o escravo

  • 319Educao e Pesquisa, So Paulo, v.33, n.2, p. 311-322, maio/ago. 2007

    de Mnon, Scrates indaga sobre os efeitos dalinguagem: Despertando-lhe dvidas e parali-sando-o como a tremelga, acaso lhe causamosalgum prejuzo? (p. 90). No. O escravo estem dvida. Sabe que no sabe e se encontraenfeitiado pelo desejo de saber.

    No Banquete, Alcebades, ao elogiar Scrates,compara o filsofo s esttuas dos silenos, quedavam formas a armrios e que guardavam ricas ebelas coisas: feio por fora e belo, no sentido desbio, por dentro. Aparentemente seus discursosiro beirar o ridculo e o cmico, mas:

    [...] que se abra o armrio e se olhe para oseu interior e ver-se- que so os nicosdiscursos providos de profundidade da sig-nificao; e tambm que so os mais divi-nos e os mais ricos em imagens da virtude,e que abrangem muito, ou, melhor, abran-gem tudo o que deve observar um homemdesejoso de se tornar perfeito. (Plato,1971, p. 187-188)

    Em seguida, numa outra comparao,Scrates associado ao stiro e flautista Mrsias.Sabedor de uma msica nica e divina: [...] comsua flauta e com os sons que da mesma tiravaconseguia hipnotizar os homens (p. 179).Acrescenta Alcebades que

    [...] a nica diferena que h entre ti e ele, que consegues os mesmos efeitos sem teutilizares de instrumentos, mas s de tuapalavra. (p. 179)

    Alcebades refere-se com emoo impres-so que lhe causam os discursos de Scrates.Estes lhes perturbam o esprito de modo quesucumbe a eles. Como pronunciador de discursosirresistveis, Scrates agora simbolizado pelassereias: Por isso sou obrigado a fechar os ouvi-dos com fora, como se tratasse de sereias, adeix-lo e fugir, para no permanecer a seu ladoat a velhice (p. 180). Alcebades, atormentadopelas prprias faltas e prprios pecados, sente-segolpeado pela palavra de Scrates e, quase num

    tom de lamento, diz: [...] eu que, fui mordidopelos discursos da filosofia, que mais penetran-tes so do que as presas da vbora [...] (p. 182).

    Entretanto, Alcebades no quer ascese. Apaixo que sente por Scrates o consome e nopede adiamento ou converso. Antes, h a ur-gncia do aqui e agora, acorrentada ao imedi-ato e ao sensvel. Ao chegar embriagado noBanquete, evoca as foras irracionais da outraface do amor. A que, ao invs de subir, mergulhana escurido do amor-paixo no correspondido ese afasta, portanto, da docncia amorosa aosmoldes socrtico-platnicos.

    O Fedro volta aos dois eixos da constru-o da experincia amorosa: o amor como odesejo do melhor e o amor sem domnio de si,prprio das almas desmesuradas.

    Nesse mesmo dilogo, ao tratar das con-dies para se adquirir a arte da retrica admitida provisoriamente como uma fora for-madora da alma, desde que com discursos eargumentos legtimos , Scrates desvela compropriedade os mecanismos implcitos na artede seduzir as almas por meio da retrica.

    Diz Scrates que a fora da eloqnciaconsiste na capacidade de guiar as almas (p. 257).Contudo, as almas no so iguais. Ao contrrio,so diversas e o orador dever conhecer todas asformas sob as quais se apresenta essa diversida-de. Uma vez conhecidas, o orador distinguir dis-cursos adequados a cada uma delas, para dessemodo persuadi-las. As almas deixam-se raptarpelo discurso que lhes querido: cabe ao bomorador descobri-lo e pronunci-lo, para assimconvencer. H tambm, continua ele, a sutileza deperceber o momento e julgar a argumentaomais apropriada; de distinguir as ocasies e ava-liar o que vale mais a pena: calar ou falar; desaber qual a forma de discurso a empregar: seconcisa ou prolixa temperada com apelos dram-ticos e os arroubos da paixo.

    S assim, para Scrates, o orador estarformado para falar em pblico, escrever ou darlies. S assim ser senhor da sua arte.

    E aqui o Eros socrtico cede passagem parao Eros dos sofistas, tambm mestres das palavras.

  • 320 Marlene S. DOZOL. A face pedaggica de Eros.

    Uma outra face do Eros pedaggico. Aquela quese revela pela promessa que o mestre faz ao dis-cpulo de ensinar-lhe algo. Por um discurso-mon-logo, artefato da linguagem, que convida a razoe o sentimento alheios a uma aventura do pensa-mento, sem preconceitos ou reservas quanto aostipos de saberes. Por uma fala que conduz aspotncias internas a remexerem-se em silncio. E, claro, por um discurso que tambm poder es-tar repleto de ciladas, dada a sua sinuosidade.

    No entanto, deixemos a sinuosidade dossofistas por um instante e atentemos para o tipode Eros discursante inaugurado por eles e que seconstituiu em fora modelar para a pedagogia quese erigiu aos moldes da tradio. Mestres itinerantesde retrica e oratria atraam governantes, polti-cos e cidados em geral com o brilho de seusensinamentos, suas tcnicas e suas habilidades, tonecessrios para a participao na democraciaateniense. Entretanto, o que chama a ateno,considerando o tema aqui proposto, a impres-so de um logos tambm itinerante, caractersti-co nos sofistas. Artistas ou tcnicos do discursoargumentativo exibem uma atuao quase ldicade malabarismos com as palavras, num movimen-to abstrato de prs e contras (seja para, em se-gredo, antecipar possveis objees ou para, empblico, evidenciar e valorizar as contradies la-tentes das crenas comuns), em busca de consen-so ou convergncia de interesses. Aparece aqui,no sentido estratgico, um Eros verbal do tipoblico que no fundo deseja metamorfosear-senaquele Eros, j descrito por Brando (1993),que, entre trocas materiais, espirituais, sensveis,choques e comoes, persegue a unio dos opos-tos e a alegria da unidade.

    Por essa razo, no h como operar umaoposio drstica entre discursos e dilogo napedagogia sofista. Embora essa relao notenha a pretenso verticalizante dos dilogosplatnicos, apresenta-se como uma modalida-de no menos relevante de formao humana. certo que o discurso, adornado por arranjosgramaticais e poticos (imagens, metforas efiguras de linguagem como recursos estilsticos,nos quais Plato tambm era mestre), o ele-

    mento central da seduo sofista. Do tipo per-suasiva, acredita-se capaz de forjar uma segun-da natureza, mais bela, fruto da linguagem.

    A prtica pedaggica que tradicional-mente se erigiu pelo discurso tem sido alvo deduras crticas por parte das referncias moder-nas e contemporneas. No raras vezes assisti-mos a representaes literrias e imagens cine-matogrficas nas quais o professor aparececomicamente como uma caricatura que fala, demodo montono e sem parar, a alunos cujosrostos oscilam entre o tdio e o escrnio.

    Se, no entanto, recuperarmos o ncleo ori-ginal das teorias educacionais que tm o discursocomo principal aliado, esse ponto de vista podeser relativizado. Podemos encontrar, at mesmonaqueles modelos pedaggicos que encarnam oque h de mais cannico em termos de tradioeducativa, o tipo de Eros discursante.

    Num pequeno opsculo intitulado DeMagistro uma das questes disputadas sobre averdade, a de nmero onze , So Toms deAquino (2000), ao tratar da natureza do ensino,afirma que as formas naturais so preexistentes namatria como potncia (aluno) e so conduzidasao ato por um agente extrnseco prximo (profes-sor). A potncia ativa, como um dado preexistenteno educando, tem duas formas de adquirir o co-nhecimento (o ato): pela descoberta, quando arazo por si mesma atinge o conhecimento e, peloensino, quando a razo recebe ajuda de fora paraatingi-lo. Para o caso do ensino, a interao entreo agente intrnseco (natureza) e o agente extrn-seco (arte) premissa para definir a prpria idiade educao: eduzir o conhecimento em ato apartir da potncia. O professor, por meio da lingua-gem, mostra ou envia sinais para que o aluno, porsi prprio, transforme a potncia em ato (estado desaber propriamente dito). Para melhor ilustrar esseprocesso, Toms recorre a uma engenhosa ana-logia entre a cura e o ato de adquirir conheci-mento. Explicando melhor: a cura poder serconseqncia da ao da prpria natureza dodoente (agente intrnseco) ou da ao dessamesma natureza auxiliada pelo mdico que pres-creve os remdios devidos (agente extrnseco);

  • 321Educao e Pesquisa, So Paulo, v.33, n.2, p. 311-322, maio/ago. 2007

    da mesma forma, o conhecimento adquirido pelomovimento da razo natural que sozinha o com-pleta e nesse caso temos a descoberta pode-r tambm ser adquirido por esse mesmo movi-mento da razo natural, s que agora ajudada/conduzida por um agente externo (o mestre) e,ento, tem-se o ensino. Portanto, em seu ncleooriginal, a teoria educacional do filsofo aquina-tense em nada se aproxima de uma transmissomecnica desprovida de Eros pedaggico, repre-sentada por um aluno passivo que escuta e umprofessor ativo que fala. Ao contrrio, o professordeve conduzir o aluno ao conhecimento do queele ignorava, seguindo o caminho trilhado por al-gum que chega por si mesmo descoberta doque no conhecia (2000, p. 32). O discurso doprofessor , pois, um convite e, quando aceito,talvez o elemento mais ativo seja o aluno.

    Essa analogia parece situar os primrdios deuma discusso que at hoje se trava em torno danatureza especfica do ensino e que, em Aquino,difere da natureza da descoberta e daquela, defen-dida (tantos sculos antes) por Santo Agostinho,que opera uma oposio entre o interior e o ex-terior, sendo o primeiro uma espcie de reservatriode verdades reveladas, em ltima instncia, pelailuminao divina. O Eros pedaggico, em Aquino, do tipo ensinante, aquele que por meio de sinaismeticulosamente arrumados vai abrindo um cami-nho pelo qual o pensamento possa (ou no) pas-sar. assim que o filsofo defende a possibilida-de mesma de um homem ensinar outro.

    Convm chamar a ateno que tal caminho,em uma de suas possibilidades, no linear. Ele seapresenta aqui sob a forma de meneios e alternn-cias de teses, objees, contra-objees, soluese respostas. a estrutura da quaestio disputata, umexame crtico das grandes idias e essncia dauniversidade medieval. Trata-se, nela, de disputara verdade sobre um determinado tema, consideran-do as vozes adversrias ao posicionamento queser definido pelo prprio autor. Uma determinatiosobre a questo conseqncia, assim, de umconfronto de idias: atrativo, para alguns; enfado-nho e estril para outros.

    De qualquer modo, seja pela busca da ver-dade, fundamentada pela crena metafsica em suaexistncia, pela retrica ou discurso, o fato quea seduo pela linguagem sempre implicar norapto da alma. Como no amor, possvel que noscampos filosfico e pedaggico ela se exera de-licadamente, sorrateiramente, criando o impulsoapaixonado da alma pelo conhecimento. Referin-do-se agilidade de Eros, Agato diz no Banque-te: Pois, se fosse rgido, jamais poderia envolvertodas as almas e nelas insinuar-se, entrando esaindo sem se fazer notado (1971, p. 154).

    No mundo antigo, e necessria no mun-do contemporneo, a fora ertica da lingua-gem em termos ideais parece estar envoltadessa leveza, que se esparge por meio de pa-lavras doces como o mel. O prprio Scratesquando resolve retratar-se a Eros, no Fedro,diz: [...] lavar com um discurso suave o ouvi-do cheio de gua salgada (1971, p. 221).

    No s no tempo de Scrates, mas tam-bm nos tempos atuais, os ouvidos esto chei-os de gua salgada. Em termos de formaohumana, tanto nos espaos amplos quanto nosrestritos, somos assediados por todo tipo deviolncia da lngua um o que quer, o quepode essa lngua em sua verso perigosa epreocupante. Uma violncia que se exerce des-de discursos voltados para os destinos coletivosno mbito da poltica, do mercado, da religioe dos valores culturais de um modo geral, comoaqueles que circulam no interior das casas, dasescolas, dos espaos voltados ao lazer, com osaparelhos de som permanentemente ligados (ede preferncia a todo volume). O Eros do tipopedaggico no gosta de barulho. Foge de todoe qualquer tipo de violncia. No Banquete,Agato o compara a Deusa Ate, a de ps delica-dos, que no andam sobre o solo, mas sobre acabea dos homens (Plato, 1983). Para seremtocados por Eros, os homens precisam ser bran-dos, pois sobre estes que ele consente andare residir. Mais do que nunca, em todas as mo-dalidades da prtica social, o mundo contempo-rneo clama por delicadeza e suavidade.

  • 322 Marlene S. DOZOL. A face pedaggica de Eros.

    Referncias bibliogrficas

    ADORNO, T. W. Tabus que pairam sobre a profisso de ensinar. PalaPalaPalaPalaPalavras e sinaisvras e sinaisvras e sinaisvras e sinaisvras e sinais. Petrpolis: Vozes, 1995.

    AQUINO, T. de. Sobre o ensino (De MaSobre o ensino (De MaSobre o ensino (De MaSobre o ensino (De MaSobre o ensino (De Magggggistro)istro)istro)istro)istro): os sete pecados capitais. Trad. e Introd. de Luiz Jean Lauand. So Paulo: MartinsFontes, 2000.

    BAUDELAIRE, C. Sobre a modernidadeSobre a modernidadeSobre a modernidadeSobre a modernidadeSobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

    BERMAN, M. TTTTTudo que slido desmancha no arudo que slido desmancha no arudo que slido desmancha no arudo que slido desmancha no arudo que slido desmancha no ar: a aventura da modernidade. 8 ed. So Paulo: Cia. das Letras, 1986.

    BRANDO, J. de S. MitologMitologMitologMitologMitologia gia gia gia gia gregaregaregaregarega. v.1. Petrpolis: Vozes, 1993.

    CIVITA, V. E. (Ed.). MitologMitologMitologMitologMitologiaiaiaiaia. So Paulo: Abril Cultural, 1973.

    ELIADE, M. O sagrado e o profanoO sagrado e o profanoO sagrado e o profanoO sagrado e o profanoO sagrado e o profano: a essncia das religies. So Paulo: Martins Fontes, 1992.

    GRIMAL, P. A mitologA mitologA mitologA mitologA mitologia gia gia gia gia gregaregaregaregarega. 4 ed. So Paulo: Brasiliense, 1987.

    HESODO. TTTTTeogoniaeogoniaeogoniaeogoniaeogonia: a origem dos deuses. Estudo e trad. de Jaa Torrano. So Paulo: Iluminuras, 1995.

    HOMERO. OdissiaOdissiaOdissiaOdissiaOdissia. Trad. de Manuel Odorico Mendes. So Paulo: EDUSP; ARS Potica, 1992.

    JAEGER, W. PaidiaPaidiaPaidiaPaidiaPaidia: a formao do homem grego. 3 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1995.

    _____. DilogosDilogosDilogosDilogosDilogos: Mnon, Banquete, Fedro. Trad. De Jorge Paleikate e notas de Joo Cruz Costa. Rio de Janeiro: Edies de Ouro,1971.

    PLATO. DilogosDilogosDilogosDilogosDilogos: O Banquete, Fdon, Sofista, Poltico. So Paulo: Abril Cultural, 1983.

    _____. utifron,utifron,utifron,utifron,utifron, ApologApologApologApologApologia de Scraia de Scraia de Scraia de Scraia de Scrates,tes,tes,tes,tes, Crton Crton Crton Crton Crton. Trad., introd. e notas de Jos Trindade Santos. Lisboa: Imprensa Nacional Casada Moeda, 1993.

    RICOEUR, P. Mito a interpretao filosfica. Grcia e mitoGrcia e mitoGrcia e mitoGrcia e mitoGrcia e mito. Lisboa: Gradiva, 1988.

    Recebido em 23.01.06

    Aprovado em 05.03.07

    Marlene de Souza Dozol doutora em Educao pela USP e professora do Centro de Educao da UFSC. Publicou artigospela Humanitas da USP, pela ANPED e outros eventos, os livros Da figura do mestre, co-edio entre EDUSP/AA, e Rousseau Educao: a mscara e o rosto, pela Vozes.